Por Jorge Fernandes Isah
Deus é imutável. Ponto. Deus é eterno. Ponto. Deus é soberano. Ponto. Ainda que alguém não saiba adequadamente a correlação entre esses atributos e suas implicações diretas, os cristãos, em geral, não resistirão em sustentá-las como verdadeiras. Porque a Bíblia expõe-nas e instrui-nos sobre cada um desses pontos. É claro que estou a falar de cristãos não-liberais, não-heterodoxos, não-humanistas, não-marxistas e bíblicos. Chega a ser surreal este esclarecimento, mas é que se pode encontrar cristãos que sequer crêem em Cristo. O que em si mesmo é contraditório e absurdo. Mas deixemo-los de lado com suas inconsistências e desatinos.
A questão é: afirmei, em vários escritos, a imutabilidade divina, bem como a do Seu decreto eterno, ao ponto de escrever o texto "Deus não tem escolhas". Mas, e nós, temos escolhas? E, a partir da resposta, podemos dizer se a realidade é ou não mutável?
Primeiro, transcreverei alguns versos do livro de Atos dos Apóstolos:
“A este que vos foi entregue pelo determinado conselho e presciência de Deus, prendestes, crucificastes e matastes pelas mãos de injustos” [2.23]
“Mas vós negastes o Santo e o Justo, e pedistes que se vos desse um homem homicida. E matastes o Príncipe da vida, ao qual Deus ressuscitou dentre os mortos, do que nós somos testemunhas” [3.14-15]
“Porque verdadeiramente contra o teu Santo Filho Jesus, que tu ungiste, se ajuntaram, não só Herodes, mas Pôncio Pilatos, com os gentios e os povos de Israel; para fazerem tudo o que a tua mão e o teu conselho tinham anteriormente determinado que se havia de fazer” [4.27-28]
São declarações contundentes de Pedro, a delinear nitidamente duas coisas quanto ao tema proposto:
1) Deus determinou tudo o que aconteceria ao Seu Filho Amado na eternidade, desde a encarnação até a morte na cruz, culminando com a Sua ressurreição.
2) Pedro acusou o povo de ajuntarem-se com as autoridades para prender, crucificar e matar o Santo e o Justo.
3) Esta idéia foi anteriormente proclamada por Cristo, referindo-se ao Seu ministério terreno e àquele que o trairia, Judas: "E, na verdade, o Filho do homem vai segundo o que está determinado; mas ai daquele homem por quem é traído!" [Lc 22.22]
1) Deus determinou tudo o que aconteceria ao Seu Filho Amado na eternidade, desde a encarnação até a morte na cruz, culminando com a Sua ressurreição.
2) Pedro acusou o povo de ajuntarem-se com as autoridades para prender, crucificar e matar o Santo e o Justo.
3) Esta idéia foi anteriormente proclamada por Cristo, referindo-se ao Seu ministério terreno e àquele que o trairia, Judas: "E, na verdade, o Filho do homem vai segundo o que está determinado; mas ai daquele homem por quem é traído!" [Lc 22.22]
Há duas realidades, se assim podemos dizer. Uma eterna, outra temporal. Uma divina, outra humana. Contudo, estariam elas dissociadas? Seriam conflitantes? Ou se dariam autonomamente uma da outra? Os versos claramente indicam que não. E mais, que as ações humanas estão completamente subordinadas à vontade de Deus, de tal forma que, assim como Ele previamente decretou, assim acontecerá infalível e inexoravelmente. Como Jó anunciou: "B em sei eu que tudo podes, e que nenhum dos teus propósitos pode ser impedido" [Jó 42.2].
O ponto aqui é que Deus coordena os pensamentos, a vontade, as decisões e ações do homem de maneira que toda a realidade, tudo o que parece ocasional, fortuito, sem ligações implícitas e visíveis, estão interligadas, tecidas por um único fio condutor: o próprio Deus. Ele é a fonte de todas as coisas, sem o qual nada existiria, ainda que o nada precisasse dEle para existir. Até mesmo o nada não pode prescindir de Deus. Assim como tudo, o nada não é autônomo, nem se origina em si mesmo. Deus é portanto a origem de todas as coisas, sejam materiais ou espirituais. Elas são partes da Sua obra, uma obra em execução no tempo, aos olhos carnais, mas totalmente definida, acabada, inalterável, aos olhos divinos, como disse Tiago: “Conhecidas são a Deus, desde o princípio do mundo, todas as suas obras” [At 15.18].
Tem-se de entender que não dá para sair do rigor do texto bíblico, o qual é muito claro em asseverar tanto a imutabilidade da vontade divina, como o poder para realizá-la.
Quando se diz que o homem é colaborador de Deus, estamos, ainda que inconscientemente, dando-lhe um valor e uma prerrogativa que não tem, nem existem. Toda a criação é meramente instrumento de Deus, e não pode colaborar em nada para que o Seu plano aconteça, quanto mais frustrá-lo de qualquer forma. A linguagem antropomórfica presente na Escritura é uma forma rudimentar de expor idéias e sentimentos perfeitos a criaturas em estado imperfeito. Ele se utilizou de símbolos e sinais inteligíveis para nos instruir e orientar no entendimento dos Seus propósitos, e na relação que temos com eles. Guardadas as devidas proporções, seria o mesmo que um adulto conversar com um bebê; ele terá de usar mais do contato físico e visual para se fazer entender de maneira pueril à inteligibilidade ainda não desenvolvida e infantil da criança.
Porém, isso não quer dizer que devemos ignorar ou desprezar o que de mais profundo revela a Escritura, simplesmente porque não nos parece legítimo investigá-la, seja por medo ou preguiça. Para isso Deus nos deu o Consolador, o Espírito Santo, a nos ensinar todas as coisas [Jo 14.26]. Quando Cristo diz “todas as coisas”, não está dizendo algumas, uma porção, ou quase tudo. Ele é incisivo em ressaltar tudo. Mas o que seria tudo? Ele mesmo diz: “tudo quanto vos tenho dito” [Jo 14.26]. Ocorre que muitos crentes estão satisfeitos com uma parte da revelação, quando a ordem do Senhor é para que aprendamos tudo; não temendo conhecer tudo; não nos acovardando diante de tudo. Até mesmo essas coisas, seja a indolência ou o entorpecimento, estão sob o restrito controle de Deus, para que entendamos que tudo, absolutamente tudo, está fundado, edificado, sobre a Sua vontade.
Alguém afirmou, certa vez, “que tudo muda, menos Deus”. Até que ponto isso é verdade? Se Deus não muda, não mudam Sua vontade, plano e execução. Para que isso acontecesse, Deus teria de ser mutável. E como já disse em algum lugar, se Deus é mutável, ainda que remotamente cogitado, não seria Deus. Logo, a realidade para Deus não é mutável. Nem todas as contingências presentes nela. Para Ele, tudo está pronto. Então, voltamos à pergunta inicial: temos escolhas?
Na verdade, do ponto de vista humano, sim. Sempre estamos a escolher algo. No dia-a-dia é demonstrável desde as coisas mais corriqueiras às mais importantes, e isso acontece na vida de qualquer um. Muitas vezes somos levados a decidir mesmo para outras pessoas. Até os animais fazem escolhas, segundo sua natureza. Mas o que estou a dizer é que nossas escolhas acontecerão segundo a imutabilidade das coisas. Em outras palavras, Deus estabeleceu todos os nossos atos, os quais são imutáveis. Na perspectiva humana é como se tivéssemos escolhas, mas elas invariavelmente serão decididas segundo o plano divino. Somos livres para fazer a vontade de Deus em todos os aspectos, assim como nossas escolhas desembocarão sempre no que Ele quer; sem acidentes, imprevistos e percalços, como diz o Senhor: "Eu sou Deus, e não há outro Deus, não há outro semelhante a mim. Que anuncio o fim desde o princípio, e desde a antiguidade as coisas que ainda não sucederam; que digo: O meu conselho será firme, e farei toda a minha vontade" [Is 46.9-10].
Da mesma forma, a segunda pergunta, “a realidade é ou não mutável?”, será respondida. Para Deus há apenas uma realidade, a que planejou e levou a cabo executar. Uma única realidade efetivada no tempo. Para nós, é mutável, pois não somos oniscientes como Deus é, e vemos tudo fragmentado, limitado, e imperfeitamente. Como a nossa vontade não é soberana, compreendemos o mundo como instável, em constante variação. Por não compreendermos a realidade, ela nos é incompreensível. Por não apreendê-la, nos é inconcebível. Por não dominá-la, nos é incontrolável. Por não conhecê-la, nos é indistinguível. O que não quer dizer a impossibilidade de se tomar alguns indícios e averiguá-los. Mas estarão sempre confinados aos limites da nossa imperfeição; reduzidos e subordinados ao que Deus restringiu-nos saber e perceber.
Este assunto está na órbita da soberania de Deus, como tudo o mais também está; revelando a impossibilidade escriturística da soberania divina ser compartilhada com o homem, em qualquer nível ou condição. Se tal fosse verdade, o homem seria capaz de criar para si mesmo várias realidades, e essa liberdade implicaria em que cada um de nós poderia ter a sua realidade pessoal, alheia e aparte de outras realidades. Se a vontade do homem fosse livre de Deus, e o que o compatibilismo proclama é isso, teríamos numa cidade de 50.000 habitantes, 50.000 realidades em progressão. O que representaria o caos; até mesmo para Deus, o qual estaria incapacitado de ordená-las, visto serem autônomas, autoexecutáveis, autodeterminadas. Deus não teria como fazer nada, apenas observaria impotente a desordem e a anarquia na Criação. Deixar-se-ia amarrado pela volição do homem; o que, em última instância, tornaria a criatura em posição de preeminência sobre o Criador, que teria planejado um mundo ineficiente, indesejado, anômalo, denotando, em algum aspecto, a sua própria imperfeição. Em outras palavras, não haveria a realidade de Deus, apenas a de suas criaturas guiando-o por trilhas miseráveis, imperfeitas e caóticas. Nem mesmo Deus daria conta de arrumar tamanha bagunça, exatamente por ela estar fora do Seu controle. É mais ou menos o que os defensores do livre-arbítrio propõem; porque livre-arbítrio significa autonomismo, independência, tomar decisões livres de Deus. Da mesma forma, o compatibilismo, sem aceitar o autonomismo, proclama duas realidades distintas, onde a liberdade humana [uma liberdade onde não se é livre, mas é] está subjugada a Deus, mas permanece livre. É como se existisse a partir da não-existência. É como se fosse, não sendo. É o próprio "samba-do-crioulo-doido", a afirmar que ela é, quando não é. Esquizofrenia latente, pode-se dizer.
A falta de lógica dos dois sistemas, livre-arbítrio e compatibilismo[1], tornam-os em inimigos quando são irmãos siameses a se socarem. Por isso há uma grande dificuldade em se entender o conceito um do outro, pois as divergências, no fim das contas, ficam no campo semântico, da retórica. Os termos bíblicos são utilizados por ambos, diversamente, para, enfim, resultar em quase a mesma coisa: o poder da criatura. Mas isso é impossível quando entendemos que a menor escolha, o menor gesto, a ação mais insignificante do homem, não estando subordinada a Deus, poderia dar início a uma cadeia de fatos e situações não planejadas, e que fugiriam ao Seu controle. Contrariando o próprio Senhor: "Ainda antes que houvesse dia, eu sou; e ninguém há que possa fazer escapar das minhas mãos; agindo eu, quem o impedirá?" [Is 43.13].
Portanto, ainda que aparentando o contrário, existe apenas uma realidade: a divina; à qual estamos presos, e da qual não podemos nos desvencilhar; mesmo que aos olhos carnais pareça ser eu o condutor do meu destino; mesmo que o mundo grite à volta: há muitas realidades! Elas são frações, fragmentos do todo complexo e inimaginável que Deus teceu, e que, no fim das contas, é a Realidade, única e imutável de todo o universo.
Por isso a Bíblia[2] nos revela o Deus não-mutável, não-suscetível, não-impotente, não-domesticado; ela não nos revela um deus em progressão, se desenvolvendo, relacionando-se de igual para igual com as criaturas; sentindo, aprendendo, se emocionando, como se participasse de uma simbiose onde os papeis se confundiriam, fazendo-se indistinguíveis. Esse deus ficaria demente com a nossa demência. Ele se desacreditaria, e regrediria da sua própria condição de deus, humanizando-se ao ponto de não se reconhecer mais como deus, como criador, mas chegando ao nível das criaturas, assim como os humanistas querem, e insistem em querer, para alcançarem o que sempre pretenderam: proclamar o ceticismo e a não-existência de Deus.
E se isso não é o mais alto grau de loucura, nada mais é.
Mas, sobretudo, para os crentes, é antibíblico! E conspira contra a "fé que uma vez foi dada aos santos" [Jd 3], limitando-nos em nossa limitação, e iludindo-nos em nossa ilusão, de que Deus não nos deu respostas convenientes.
Notas: 1-O compatibilismo, como um sistema híbrido, ao não se decidir pela completa soberania divina, nem pelo livre-arbítrio do homem, acaba por se tornar facilmente refutável em si mesmo. Por ser um sistema contraditório, não apresenta respostas claras, nem mesmo pode-se defender dos ataques sem ser imediatamente contra-atacado. Qualquer pessoa é capaz de confrontá-lo em seus pressupostos, talvez, por isso, a saída seja o "mistério". Quando não se tem respostas, nada melhor do que apelar para o não-explicável, para o obscurantismo. Por isso os cristãos são acusados pelos não-cristãos de fazerem "grandes sacrifícios intelectuais", e até mesmo de "abandonar a razão". Com conceitos inconsistentes como o livre-arbítrio e o compatibilismo, sou forçado a concordar com os ataques dos inimigos. Infelizmente.