Por Jorge Fernandes Isah
O livro inicia notificando-nos que Jó habitava a terra de Uz, assim chamada por causa da tribo aramaica cujo nome derivava de um dos “Uz” da Bíblia: 1) O filho mais velho de Naor (Gn 22.21); 2) O neto de Seir (Gn 36.28); ou 3) O filho de Arã (Gn 10.23). Provavelmente, situava-se no deserto da Arábia ou da Síria, a leste da Palestina; alguns indicando-a em Edom.
Em seguida, lê-se: “e era este homem íntegro, reto e temente a Deus e desviava-se do mal” (v.1). É uma assertiva valorosa que a Escritura faz de Jó, o que nos leva a meditar: ele esforçava-se para ser assim, ou Deus operava, capacitando-o?
Certamente Jó se esforçava, mas mediante Deus produzir nele o esforço. No fim, Jó era sustentado por Deus para pensar e agir como justo, “porque Deus é o que opera em vós tanto o querer como o efetuar, segundo a sua boa vontade” (Fl 2.13). O seu caráter era conseqüência da vontade e daquilo que Deus produzia nele, o que, porém, não impede a Bíblia de exortar-nos à retidão: “aparta-te do mal, e faze o bem; procura a paz, e segue-a” (Sl 34.14); de denunciar-nos: “não há um justo, nem um sequer, não há ninguém que entenda; não há ninguém que busque a Deus” (Rm 3.10-12); e declarar que somente Deus “cria em mim... um coração puro, e renova em mim um espírito reto” (Sl 51.10).
Como a analogia que o Natan* sugeriu:
“‘Jorge, você leu o meu livro e o personagem Jó que eu escrevi? O que achou? É um personagem justo, reto, íntegro...’. Assim, os méritos do caráter do personagem são do autor, e não da criação”.
De outra forma, como Deus poderia assegurar a integridade do caráter de Jó? E de que se apartaria do mal? Se fosse “livre” no sentido de “escolher” ser justo e reto ou não (como querem os arminianos), essa liberdade poderia mudar com o tempo, e mesmo que não mudasse, como Deus teria a certeza de que Jó manter-se-ia fiel? Já que não depende da ação de Deus, mas da vontade do homem? Isso derruba qualquer idéia de soberania divina.
Alguns dirão que a presciência garante a Deus a certeza do futuro. Mas se a presciência é antevisão do futuro, e esse futuro está sob a volição ou arbítrio do homem, que poderá alterá-lo a seu bel-prazer, como Deus terá certeza de que ele efetivamente ocorrerá? Só há uma resposta: o futuro precisa ser infalível; e Deus garantir que se cumprirá inevitavelmente, certificando-se de que cada etapa realize-se infalivelmente, de acordo com o Seu plano eterno. Tanto o desígnio geral como os mínimos detalhes serão assegurados por Deus de tal forma que não se frustrarão, então, o pensamento, a vontade e as ações humanas estão dentro do escopo da soberania divina, a qual Paulo diz: “conforme o propósito daquele (Deus) que faz todas as coisas, segundo o conselho da sua vontade” (Ef 1.11); “porque nele vivemos, e nos movemos, e existimos” (At 17.28).
Portanto, da perspectiva humana, a decisão é do homem, mas ela não é livre, pois produziu-se pela vontade soberana de Deus. Jó era o que Deus queria que fosse, da mesma forma que somos em Cristo o que Deus quer que sejamos, “com o fim de sermos para louvor da sua glória” (Ef 1.12).
Em seguida, somos avisados de que Jó era um homem próspero, “maior de todos os do oriente” (v.3). Tinha dez filhos, sete mil ovelhas, três mil camelos, quinhentas juntas de bois e quinhentas jumentas, além de servos e outros bens (v.2-3), o que faria dele um milionário, na atualidade. Apesar de todas as posses, ele não se rendia ao orgulho e vaidade humanas, antes sabia que tudo o que possuía provinha do Senhor. Diferente do Pai, os filhos banqueteavam-se numa espécie de “rodízio festeiro” em suas casas (v.4), e não demonstravam o mesmo zelo para com Deus, o que levava Jó a encarregar-se de, decorrido o turno de dias de seus banquetes, oferecer “holocaustos segundo o número de todos eles” (v. 5). O seu temor era de que os filhos pecassem e, portanto, afrontassem a Deus; incumbia-se então de aplacar a ira do Senhor sobre a sua casa. E essa atitude era contínua, mostrando não somente a reverência, mas a necessidade de obediência e da busca constante de santidade diante de Deus, que lhe abençoava com toda a sorte de bênçãos.
Porém, “num dia em que os filhos de Deus vieram apresentar-se perante o Senhor, veio também Satanás entre eles” (v.6). Parece que o Senhor convocou os seus anjos, incluindo o próprio diabo, para um concílio. Há a dúvida se satanás foi um “penetra” na reunião. Mas pelo relato no verso 2.1, ele era constantemente chamado à presença de Deus, para uma espécie de “prestação de contas”. Quanto a ser um filho de Deus, parece haver uma distinção entre ele e os demais anjos, porque o advérbio “também” denota que satanás veio “entre” os filhos de Deus, sem sê-lo, como uma criatura discordante, diferente dos demais anjos.
A pergunta que o Todo-Poderoso faz-lhe mostra que era esperado: “Donde vens?”. Deus parece desconhecer o trajeto e a atividade do diabo, mas há de se entender que a narrativa bíblica é voltada a uma perspectiva humana, e se não houvesse a indagação, jamais saberíamos o que satanás fazia. Ao que respondeu: “De rodear a terra, e passear por ela” (v.7). O dito é verdade, mas a mente maquiavélica do inimigo quer induzir-nos ao erro de pensar que ele estava a flanar pela terra despreocupadamente, como um turista fortuito. Não é isso. Satanás anda pelo globo com claros objetivos: Incitar-nos ao pecado como fez com Davi (1Cr 21.1, 1Jo 3.8); Acusar-nos diante de Deus como fez com Jó (Jó 1.9-11; 2.4); Praticar o mal (Jó 2.7); Opor-se ao homem como fez com Josué (Zc 3.2); Tentar-nos como fez com Jesus (Mt 4.1, Mc 1.13, Lc 4.2, Ap 2.10) e Pedro (Lc 22.31); Prender-nos a doenças (Lc 13.16); Transfigurar-se em anjo de luz (2Co 11.14); Mentir (Jo 8.44), e levar-nos à mentira como fez com Ananias (At 5.3); Enganar, e combater toda a justiça (At 13.10); Armar ciladas (Ef 6.11); Matar (Hb 2.14); e outras obras malignas que o espaço não permite descrevê-las.
Se há alguma dúvida quanto à atuação do diabo, basta meditar na interrogação de Deus: “Observaste tu a meu servo Jó? Porque ninguém há na terra semelhante a ele, homem íntegro e reto, temente a Deus, e que se desvia do mal” (v. 8). O diabo sabia das qualidades de Jó, pois ele não as invalidou ou refutou-as, porém, justificou-as como sendo fruto de toda a bondade de Deus, e que somente subsistiam por causa das bênçãos recebidas (v.10). Assim, ele reputava o zelo de Jó aos bens materiais, à prosperidade material, a qual explicaria cabalmente a sua fidelidade comodista. Em seu papel acusador, satanás questionou o temor do servo para com o Senhor (v.9), fazendo-o de maneira limitada, já que a sua única base era espreitar a Jó como seu adversário, bramando como um leão a fim de tragá-lo (1Pe 5.8); sem que lhe fosse dado conhecer o seu coração. Portanto, satanás tem um poder restrito, e apenas a idéia do que o Criador a efeito faz-lhe conhecido.
Como ignorante da verdade bíblica (igual à maioria dos homens), satanás não reconhece a soberania de Deus, pois julga ser capaz de Jó cair da graça e blasfemar “contra ti na tua face” (v.11). Somente o controle divino sobre todo o processo da vida de Jó pode permiti-lO confiar na sua integridade moral e espiritual. Assim, sabendo que ao final tudo ocorreria conforme a Sua vontade, Deus estendeu a Sua mão, e tocou em tudo quanto Jó tinha, aceitando o desafio diabólico: “Eis que tudo quanto ele tem está na tua mão; somente contra ele não estendas a tua mão” (v.12).
Há duas implicações no verso 11: 1) Satanás diz a Deus que “estende a tua mão e toca-lhe em tudo quanto tem”, revelando que o mal provém de Deus, e de que Ele determina o mal através da ação subordinada do diabo. Deus planeja, deseja e ordena que satanás tire tudo de Jó, mas é o diabo quem tira, ao desejar, no íntimo, a sua ruína. Existe uma coordenação de vontades que culminará com Jó perdendo tudo o que possui.
2) Satanás tem a certeza de que o servo blasfemará contra Deus, demonstrando que, tanto não crê na soberania divina, como desconhece o coração de Jó. O erro do diabo é o mesmo de muitos homens: duvidar de Deus, e ignorá-lO. Portanto, no decorrer da narrativa, o diabo literalmente “quebrará a cara”, será desmascarado, e sofrerá nova e flagrante derrota.
Igualmente, há duas inquietações no verso 12: 1) Deus entrega ao diabo tudo quanto Jó tem. Significa que Ele deixou o controle para o inimigo? Não. Seria o mesmo que afirmar, como os teístas relacionais, que Deus “abriu” mão da Sua soberania. Mas, por quê? Para deixar de ser Deus? É possível Deus deixar de ser o que é? E o fazendo, não se tornaria em outra coisa, menor que Deus? O teísmo-aberto é tão ilógico, insano e antibíblico que não requer maiores considerações. Assim, o que ocorre é Deus autorizar o diabo a agir segundo a Sua vontade.
2) Satanás é um anjo (ainda que caído), e como tal, um mensageiro, não de boas novas, mas de destruição. Há confusão quanto a se distinguir o papel do diabo na história. Muitos acreditam que ele é o oponente, uma força que se contrapõe a Deus. E isso é dualismo, antibíblico. Mas o que a Escritura nos revela é que satanás não passa de um servo (como dizia Lutero, “o capacho de Deus”), o qual executa rigorosamente o que o Senhor planejou. Na verdade, ele é o nosso inimigo, não o inimigo de Deus; que se quisesse, já o teria destruído, bem como a nós e ao universo. Se não o fez, é porque não foi a Sua vontade; e a Sua vontade é de que tanto o diabo, como o homem e o mundo subsistam pelo Seu poder. Talvez esta seja a parte menos tolerável, que mais incomode, mas a qual devemos nos render: saber que o diabo existe, vive e se move pelo poder soberano de Deus.
Como instrumento divino, ele é uma espécie de operário encarregado de cumprir as ordens do construtor, ou um procurador com poderes limitados e específicos outorgados por Deus para agir em Seu nome. De qualquer forma, mesmo que não haja consenso nessa questão, é claro, notório e incontestável o servilismo do diabo a Deus.
Logo, ao receber suas ordens, restou-lhe somente cumpri-las, e “saiu da presença do Senhor” (v.12).
*O Natan é o tutor do blog “Reflexões Reformadas”, com o qual tenho examinado a questão da soberania de Deus; sem que ele subscreva as minhas opiniões.