12 setembro 2024

O infante das pernas tortas

 




Jorge F. Isah




O que você imaginaria de uma pessoa que tivesse estrabismo (desvio de um olho em relação ao outro), obliquidade pélvica (desequilíbrio na bacia), seis centímetros de diferença de comprimento entre as pernas, o joelho direito tinha valgismo (desvio do joelho para dentro em relação ao eixo central) e o esquerdo varismo (desvio do joelho para fora em relação ao eixo central)? Provavelmente você diria: está de muletas ou numa cadeira de rodas. Ledo engano, camarada! Pois estamos a falar de um dos maiores jogadores de todos os tempos, que superou esses e muitos outros problemas para se tornar em um ícone do futebol mundial: Garrincha.

Em meio aos salários astronômicos dos astros do esporte na atualidade, e mesmo os menos votados acumulam fortunas, Garrincha ganhava o equivalente a um 3º reserva se ainda jogasse. É verdade que o futebol não era a máquina de cifrões que se tornou, mas era, à sua época, o esporte a mover céus e terra entre torcedores, imprensa, atletas e dirigentes. Meio amador, meio profissional, ainda que fosse um grande espetáculo, não movimentava as quantias como veio a se tornar. E para os jogadores menos organizados e incapazes de planejar o futuro, como Mané, a curta profissão e a má administração resultariam em dívidas ao invés de dividendos.



Nascido em 1933, em Magé, Manoel Francisco dos Santos pertencia a uma família de 15 irmãos, e ele mesmo quase alcançou esse número (14), tendo filhos em dois casamentos e em vários casos extraconjugais, inclusive com uma sueca. Era boêmio inveterado, mulherengo e nem sempre tomava as melhores decisões. Muitas delas resultariam em acidentes, como o que vitimou a sua primeira sogra, em 1969, no qual foi condenado por homicídio culposo.

No dizer de muitos, era um misto de apedeuta (estudara até o segundo ano do ensino fundamental) e ingênuo, um meninão crescido e de mentalidade infantil, mesmo em meio a uma avalanche de tragédias: perdeu o pai muito cedo, vítima de cirrose. A irmã Tereza morreu aos 14 anos de barriga d’água. Outra, em um dia de festa, caiu do caminhão e também faleceu. O filho dessa perdeu a perna em acidente de trem. No dizer de outros, um gênio inigualável no gramado e com a bola nos pés... Para muitos, o maior de todos os tempos, maior até que Pelé... Difícil separar o homem do mito; e o que as gerações guardarão será muito mais a figura do mito.

Campeão mundial pela Seleção Brasileira em 1958 e 1962, chegou a ganhar muito dinheiro, mas esbanjava a maior parte pagando dívidas de amigos e conterrâneos, esquecia cheques jogados entre os brinquedos das filhas e, como sempre, era assediado por supostos amigos que lhe roubavam e exploravam o quanto podiam e ele permitia, para depois simplesmente o abandonarem; mas ele, em momento algum, parecia ou demonstrava estar ressentido, fosse com quem fosse, nem mesmo os que o ridicularizavam recebiam troco. Como o jornalista Geraldo Mayrink escreveu: “Era um louco, deliciosamente irresponsável. Quando perdeu a forma, passou a ser apenas irresponsável.”

Abandonou a primeira esposa, Nair, com quem teve oito filhas, e foi morar com Elza Soares, com quem teve um filho.


Nos últimos tempos, após a separação com Elza, a quem ele traiu, humilhou e agrediu, vivia uma série intermitente de problemas financeiros e pessoais. Morreu aos 49 anos, de cirrose hepática, em 1983. No seu féretro, milhões de pessoas o acompanharam, rendendo-lhe homenagem. O homem partia, derrotado em seu último desafio, enquanto o mito continuaria a desfilar nos gramados imaginários mundo afora, nos playgrounds de corações definitivamente encantados.


Hoje, mesmo sendo lembrado, e existem aqueles a desconhecê-lo completamente, Garrincha, ou simplesmente Mané, ainda aguça a curiosidade, de como um homem cheio de limitações conquistou o mundo, ou parte dele, com a magia das pernas tortas e dribles perfeitos.

Em sua passagem pela Itália, nos anos 1970, jogando por um time amador de açougueiros, em Torvaianica, alguns repórteres perguntaram-lhe, surpresos, por que participava de um torneio de operários? Ao que respondeu: “Eu faço isso para me divertir e me manter em forma.” O time dele perdeu por 5x4.

Era o fim do jogo.




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Nota: Texto publicado originalmente na Revista Bulunga

04 setembro 2024

Ouro de Tolo

 




Jorge F. Isah



Muito se tem falado nas últimas décadas de poluição do meio-ambiente e a necessidade de preservá-lo para o bem da humanidade. Há até mesmo aqueles, mais radicais e insanos, que defendem o fim da humanidade para que o meio-ambiente seja conservado. Eu só gostaria de saber se os idealizadores dessa ideia “genial” seriam os primeiros da fila de extermínio; ou estão apenas em busca de holofotes ou de tratamento psiquiátrico gratuito? A verdade não é outra senão o fato do homem ser o mordomo deste mundo, a quem Deus (quer você queira ou não) designou como administrador. A natureza é uma criação, assim como o homem, e não algo autogerado e, sendo o homem capaz de modificá-la, é necessário fazê-lo com sabedoria, conhecimento e bom senso. As intervenções devem acontecer de forma prudente, organizada e com o menor impacto justificável. Nem sempre é possível, mas aconselhável... Não colocaria esta responsabilidade nas mãos apenas do governo, da iniciativa privada, de ONGs ou exército de mercenários. Nem tão pouco nas mãos de plantadores de coca, marijuana ou ópio, ou a cargo de índios ou grileiros. Muito menos na massa de palpiteiros que assumem a preservação como um modismo, assim como se usava polainas no passado e agora usam-se havaianas. Não sobrou muita gente, é verdade, e esse pessoal, incapaz de conciliar-se, atira um no outro e no próprio pé.

Não quero me ater a esse tópico, mas falar de outro que não ganha, aos olhos do Ibope, dos povos e organismos, a mesma relevância, e está muito mais ligado ao ambiente do que se possa imaginar, ao menos para os insanos padrões do establishment: a poluição anímica. Senão, vejamos:

1) Qual foi a última vez em que você estava lendo, ouvindo sua banda ou cantor predileto, ou assistindo aquele melodrama na TV, ou simplesmente tirando aquela soneca depois do almoço, e não se viu sacudido pelo terremoto sonoro do “mano” e seu funk morbo a perambular na rua ou estacionando o seu Corsa duas portas de primeira geração bem debaixo da sua janela?



2) Ao flanar pela cidade, não teve o desagradável vislumbre de paredes e muros pichados, garatujas do mais péssimo gosto, a emporcalhar a visão?

3) Prédios e monumentos assimétricos, construídos sabe-se lá por qual alma penada, mais parecidos com cubos empilhados por um prematuro?



4) E o que dizer de homens e mulheres dispostos à inconveniência e descortesia, a fazer dos seus dias o suplício dos outros? Entre berros, grosseria e má-educação?

5) Sem falar nos ferretes epidérmicos (vulgo tatuagens e afins) que, para o bem dos higienistas mentais, deveriam se resumir às partes mais íntimas, longe dos olhares perturbáveis (do jeito que as coisas andam, nem estas partes são garantias de exposição dispensável)?



6) Ah, mas ainda não chegamos ao pior: naquele vizinho que faz um “gato” na luz, água ou TV a cabo, e você é quem paga a conta. Naquele político que desvia a verba do SUS e você acaba mandado de volta para casa, com uma costela quebrada ou o apêndice supurando, e ainda paga a conta. Ou as várias e múltiplas formas de existir uma casta privilegiada, muito além do que produz ou seja capaz de produzir, regalias adquiridas por meios ditos legais mas antiéticos; e a conta é sua. E outras ilegais e ainda mais antiéticas, com o ônus para você...



Portanto, antes de se preocupar com a extinção do pau-brasil (muitos acreditam ser a madeira verde e amarela) ou da arara-vermelha (tem a maior parte do corpo em azul), olhe-se no espelho ou faça um exame de consciência e veja se este mundo não é simplesmente o reflexo do que você e eu somos, e, neste caso, não há lei ou protesto que o despolua. Como está escrito: “Hipócrita, tire primeiro a viga do seu olho, e então você verá claramente para tirar o cisco do olho do seu irmão.” (Mateus 7:5)

Pois o pecado não é de mais ninguém, a não ser seu... E não adianta dizer que é meu, senão vou escrever outro artigo impugnando-o!

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Nota: Texto publicado originalmente na Revista Bulunga