29 agosto 2024

Estudo sobre a Confissão de Fé Batista de 1689 - Aula 41: É pecado jurar?






Jorge F. Isah




O irmão Bruno fez um questionamento, após a aula passada, ao qual julguei procedente considerar um esclarecimento aqui. Durante a nossa aula, foi dito que o membro da nossa igreja deveria jurar a Deus que aceitaria, cumpriria e defenderia a declaração de fé da igreja. Então, ele me perguntou:

- Mas a Bíblia não diz que o crente não pode jurar? - Certamente se lembrando do Sermão do Monte.

Eu disse-lhe que não, que não há a proibição, mas sem muita convicção, naquele momento. Decidi estudar um pouco, ontem, sobre o assunto e cheguei à conclusão de que a minha resposta estava correta, ainda que proferida sem a base bíblica claramente definida. Portanto, começaremos lendo o trecho de Ex. 20.7, cujo texto é repetido em Dt 5.11: “Não tomarás o nome do Senhor teu Deus em vão; porque o Senhor não terá por inocente o que tomar o seu nome em vão”.

Agora leiamos o Sermão do Monte, onde o Senhor Jesus diz: “Outrossim, ouvistes que foi dito aos antigos: Não perjurarás, mas cumprirás os teus juramentos ao Senhor. Eu, porém, vos digo que de maneira nenhuma jureis; nem pelo céu, porque é o trono de Deus; Nem pela terra, porque é o escabelo de seus pés; nem por Jerusalém, porque é a cidade do grande Rei; Nem jurarás pela tua cabeça, porque não podes tornar um cabelo branco ou preto. Seja, porém, o vosso falar: Sim, sim; Não, não; porque o que passa disto é de procedência maligna” [Mt 5.33-37, consonante com Tg 5.12].

O que temos aqui? Uma expressa proibição do Senhor para que não juremos? Ele está a ordenar-nos que qualquer jura é pecado ou se refere a um tipo específico de juramento? É o que veremos a seguir. Mas primeiro, definamos o termo, segundo o Michaelis:

Juramento: "1 Ato de jurar. 2 Afirmação ou negação explícita de alguma coisa, tomando a Deus por testemunha ou invocando coisa sagrada". 

Temos, no Antigo Testamento, a afirmação clara de que o homem não deve jurar em vão, ou seja, ele não pode jurar sobre algo que não pode cumprir, e se jurar, deve fazê-lo, certo de que tem de cumpri-lo, do contrário ele profanará o nome de Deus. Veja que o juramente é sempre em nome de Deus, e não em nome de alguma outra coisa. Não podemos jurar em nome de nós mesmos, pois somos inconstantes e seres caídos, sem autoridade. Nem podemos jurar em nome de outro elemento da natureza, seja o céu, a terra, as árvores, etc., porque, ao fazê-lo, colocamos o nosso juramento sobre algo criado, que em si mesmo não é fonte de nenhuma autoridade, e acabamos por invocar implicitamente o nome de Deus, que é a origem de tudo o mais, o criador de todas as coisas, e é por ele que elas vieram a existência e têm a glória e o poder que ele as deu. Ao fazê-lo, acabamos por jurar implicitamente, de uma forma ou de outra, em nome de Deus, que o princípio de todas as coisas e a causa primeira da criação.

O Senhor Jesus ordena que não se jure por nada criado, visto que os judeus, com o decorrer do tempo, usaram o artifício de jurar em nome do céu, da terra, do templo, em substituição ao juramento em nome de Deus; já que se recusavam e proibiam a pronúncia do nome sagrado, o tetragrama YHVH [Javé]. Com o tempo adotaram a fórmula de jurar em nome das coisas criadas, como um subterfúgio, um estratagema, para resolver o dilema de não se pronunciar o nome divino, considerado impronunciável por qualquer dos homens.

Cristo nos diz que não se deve proceder assim, e que assim o fazendo, cometemos pecado. Entre os judeus, especialmente fariseus, acreditou-se que o juramento, sendo em nome das coisas criadas, possibilitava o seu não cumprimento, de sorte que a autoridade para que determinado juramento fosse considerado válido ou invalido cabia exclusivamente às autoridades do templo. Com isso o homem se tornou, em última instância, a autoridade, aquele que controlava o que se devia cumprir ou não, à revelia do texto bíblico que exortava ao cumprimento de tudo o que se prometia, pois sempre era realizado em o nome do Senhor. Não há juramento que não seja em nome de Deus, pois nele está contido o poder supremo e absoluto, a autoridade absoluta e suprema. Por isso, até hoje, em muitos tribunais, os envolvidos no julgamento são obrigados a jurar dizer a verdade somente a verdade em nome de Deus, com a mão direita estendida e a mão esquerda sobre a Bíblia, implicando que aquela pessoa o está fazendo diante de Deus, em seu próprio nome. O que os judeus fizeram foi uma exceção, uma excrecência à ordem divina, e, agindo dessa forma, estavam em flagrante pecado e desobediência.

Contudo, o próprio Senhor jurou por si mesmo: “Então o anjo do Senhor bradou a Abraão pela segunda vez desde os céus, E disse: Por mim mesmo jurei, diz o Senhor: Porquanto fizeste esta ação, e não me negaste o teu filho, o teu único filho, Que deveras te abençoarei, e grandissimamente multiplicarei a tua descendência como as estrelas dos céus, e como a areia que está na praia do mar; e a tua descendência possuirá a porta dos seus inimigos; E em tua descendência serão benditas todas as nações da terra; porquanto obedeceste à minha voz. Então Abraão tornou aos seus moços, e levantaram-se, e foram juntos para Berseba; e Abraão habitou em Berseba. [Gn 22.15-19].
E,
“Porque, quando Deus fez a promessa a Abraão, como não tinha outro maior por quem jurasse, jurou por si mesmo” [HB 6.13- ver até o verso 17].

Claramente, o juramento nos remete a Deus, o Criador e Senhor de todas as coisas, ao qual devemos honrar e do qual somos porta-vozes. O profeta antigo, que recebia as palavras diretamente de Deus, e o atual, que as recebe das Escrituras, falam em nome de Deus. E é o nosso dever falar em nome do Senhor; algo que devemos ter sempre em mente, e, assim, pelo nosso falar, somos testemunhas não somente do que Deus diz, mas também daquilo que ele fez em nós. Usar e falar em nome do Senhor, logo, não é pecado, pelo contrário.

Há a ordem explícita para que o homem jure“O Senhor teu Deus temerás e a ele servirás, e pelo seu nome jurarás... Ao Senhor teu Deus temerás; a ele servirás, e a ele te chegarás, e pelo seu nome jurarás” [Dt 6.13, 10.20].

Não podemos é usar o nome de Deus em vão, pois quem o faz comete perjúrio [Sl 24.4], a profanação do sagrado, do nome santo de Deus, que é o próprio Deus. 

Em 2 Co 1.23, Paulo invoca a Deus como testemunha de que ele não podia ir a Corinto.

Não devia ser necessário o juramento. O nosso testemunho deveria falar por nós mesmos, de forma que sempre que dissermos sim ou não, a verdade esteja evidente e patente. De que as nossas promessas serão cumpridas e não negligenciadas; de que tudo o que falamos é verdadeiro e de que não mentimos. O juramento é uma forma de confirmar o que está sendo dito, e invocamos a Deus por testemunha daquilo que dizemos ou prometemos. O fato do homem ser mentiroso nos leva a jurar em nome daquele que nunca mente [Rm 3.4]; e por ele, devemos nos guardar da mentira, sendo verdadeiros.  

Notas: 1 - Estudo realizado na EBD do Tabernáculo Batista Bíblico

21 agosto 2024

Fome, de Knut Hamsun

 




Jorge F. Isah

 


Lá pelos meus dezenove, vinte anos, li este livro por indicação de Charles Bukowski, autor que sorvia compulsivamente, cujo estilo “despojado” de escrita admirava. Investi esforço e saí à caça de “Fome”, de Knut Hamsun, autor, inclusive, laureado com o Nobel. Até então, para mim, noruegueses eram pródigos na produção de bacalhau e petróleo; não imaginava que tivessem uma literatura “parruda” e um Nobel, apesar da Academia se instalar concomitantemente em Estocolmo e Oslo, jamais ouvira falar de um grande escritor, não obstante, seria suficiente como sinal de alerta, das coisas não serem como pareciam ser. Pois bem, acabei por encontrar uma reedição publicada pela Civilização Brasileira, com tradução de Carlos Drummond de Andrade.

Exemplar em mãos, passei à leitura, e, depois de três décadas, não me recordava de muitas coisas a não ser as andanças do personagem principal por Cristiânia (atual Oslo) em busca de trabalho, comida e abrigo, e notar algumas tênues semelhanças com Raskolnikov, de Crime e Castigo.

Ao passear pela Amazon, deparei-me com a nova edição da Editora Itatiaia, e resolvi lê-lo novamente. Algumas coisas se confirmaram: para um livro publicado em 1890, “Fome” tem uma simplicidade narrativa e estrutural quase inéditas. Não me lembro, no momento, de outro título, à época, a assumir essa posição.

Durante a leitura, foi possível notar a influência de Hamsun em autores como Hemingway, Fitzgerald, Miller e outros tantos, inclusive o próprio Bukowski. A cada página uma estranheza indefinida vinha intermitente, inexplicável, como alguém a girar em torno de si mesmo sem parar, feito piorra. Entretanto, engana-se quem não percebe as entranhas de “Fome”. O autor vive em constante dilema, seja no aspecto físico, a realidade da sua penúria e miséria, seja no insucesso da sua carreira de escritor, no amor, e em algum auxílio da sociedade, já àquela época tão preocupada e resguardada nas aparências. Se antes era um homem promissor, autor alvissareiro, bajulado por uns e outros, gradualmente se viu obrigado a penhorar livros, objetos pessoais, roupas e até mesmo os botões do seu casaco. Restaram-lhe as roupas de mendigo, sujas, puídas, desbotadas. Seria uma analogia ao seu estado de espírito? À degradação da sua alma? Como Dorian Gray no seu retrato?

“Sentado no banco, e absorto nessas reflexões, sentia-me cada vez mais azedo com relação a Deus, por causa de suas insistentes provações. Se ele supunha chamar-me para junto de si e aperfeiçoar-me pelo martírio, acumulando mortificações em meu caminho, estava um tanto enganado, podia garantir-lhe. Levantei os olhos para o Altíssimo, quase chorando de orgulho desafiador, e disse-lhe essas coisas uma vez por todas, mentalmente.” (pág. 23)

Esta mania que o homem moderno tem de eximir-se invariavelmente de qualquer culpa ou responsabilidade atribuindo-a a outrem, à sociedade ou a Deus, em última instância é apenas o reflexo do Adão perdido no Éden após a sua queda: culpa-se tudo e todos, menos a si mesmo, ao seu desejo ilícito e a sua imoralidade disfarçada, mas não menos exposta e saliente, como a se ver em meio às sombras, a fugir para a escuridão pensando ir à luz.

Se existe algo a propor loucuras na mente é a fome. Se há o “start” da fraqueza, é ela. Não subsistem os princípios morais, éticos e humanitários. Como a avalanche: é capaz de arrastar quem estiver por perto, sem muito esforço.

O personagem principal, cujo nome verdadeiro não sabemos, ao adotar vários no decorrer da trama, em seu orgulho e jactância, desce a escala moral em direção ao fundo do abismo. Entrega-se à mentira, dissimulação, furto, cobiça e tudo o mais que o seu estado deplorável permite. Entretanto, é incapaz de impedir a humilhação, o descrédito e a pilhéria. Vê-se, também, paranoico, enrolado e imerso na própria confusão criada. É a receita do desastre, agravado pelo desprezo à sociedade, à agitação urbana, aos valores impregnados na maioria das pessoas; ainda que, uma e outra, ao perceber-se alvo da gentileza e compaixão alheias, reconhece-as bondosas, mas trata quase imediatamente de despojar-se delas e as suas ações. Não pouco, me vi a perguntar: “Por quê?... Qual o sentido disso? De não se precaver e ser racional?... Parece não haver apenas uma indigência corpórea, mas espiritual; ao perder os sonhos, se encontrava igualmente desnorteado, sem identidade, sujeito às atitudes mais absurdas e levianas. Pode-se dizer estar às portas da loucura, produzida pela empáfia e cinismo. Logo, apesar do estado de penúria, os momentos de arroubos ufanos, predem-no a um mundo intolerável e indigno.

“Não obstante, aquele cobertor verde me importunava. Por outro lado, não condizia com a minha dignidade carregar semelhante pacote debaixo do braço, à vista de toda gente. Que iriam pensar de mim? Caminhando, procurava lembrar-me de um lugar onde pudesse guardá-lo até nova ordem.” (pág.34)

A miséria transtorna e o leva a laivos de hipocrisia. Ao considerar-se melhor do que os outros, incapaz de agir pelos meios deles, de infringir as leis naturais, de ter consciência pura e inocente, numa ilusão e delírio, se mete nos mais banais e caricatos pecados. Vive em paradoxo, onde é incapaz de manter a honra e inocência, e acaba por meter-se num emaranhado desconexo de indulgências e lamentos. Sim, ele é um vitimista, onde todos os problemas, via de regra, concentram-se no exterior, à parte dele. Raramente se dá conta do próprio fracasso e de como contribuiu peremptoriamente à decepção e abandono.

“A consciência de minha honestidade subiu-me à cabeça, inundando-me com o sentimento grandioso de que eu era um caráter, um farol de extrema claridade em meio ao oceano lamacento dos homens, entre destroços flutuantes.” (pág. 43)

Para ele, a fome é a causa de todos os seus problemas, a razão dos dilemas, inclinações e máculas, e não o contrário; dela ser tão somente a consequência das suas escolhas, hábitos e frustrações, guiados pelo orgulho às vezes maior, outras, menor, mas sempre efetivo em algum aspecto nas suas decisões. Paulo escreveu: “Aquele, pois, que cuida estar em pé, olhe que não caia.” (1 Co 10:12).

Ele é um homem que vive na escuridão, com entremeios dispersos de luz ou penumbras, ao ponto em que, de consequência a fome tornou-se também em causa da degradação, em todas as esferas e facetas do ser, a afundá-lo mais e mais na desilusão, em devaneios e reações descabidas. Faltou-lhe o prumo, e o estado famélico elevou o desequilíbrio, em constante amálgama de sonho, delírio e realidade modelados pelo âmago caótico, mas a julgar proveniente do exterior. Se a fome aparenta simplicidade, as emoções, razão e sentimentos são atormentadoramente complexos, às vezes controláveis, na sua maioria exaltados e indômitos.

“Expliquei o caso, contando a mesma história da véspera; menti de olhos abertos, sem pestanejar, menti com sinceridade: ‘infelizmente, farreei um pouco além da conta num café, e perdi a chave...’ ...ninguém me ofereceu um bônus, e não tive coragem de reclamá-lo. Instantaneamente, isso despertaria desconfiança. Começariam a remexer em minhas coisas, descobririam quem eu era realmente. E me deteriam por falsa alegação. De cabeça erguida, com a atitude de um milionário, de mãos presas ao forro do paletó, retirei-me do Depósito” (pág. 67).

Neste círculo vicioso, o protagonista não parece ter saída para a sua alma atribulada, cheia de angústia, humilhada, mas segura em uma altiva inutilidade, incapaz de satisfazer-lhe no desejo mais simples e trivial, a comida. Tudo o afasta dela, e ele é o único promotor a garantir e manter o distanciamento. A despeito da ajuda aqui e acolá, em seus ímpetos atarantados e evasivos, ambíguos e artificiais; pois a fome não lhe dera outra personalidade, apenas a manifestou, retirou-a das entranhas e expô-la, e produziu um tipo de sinceridade traiçoeira e impostora.

“Deixava-me dominar pelo orgulho, saltava à primeira provocação, do alto da minha soberba, atirando dez coroas ao vento, e ia-me embora... Censurei-me severamente por haver deixado o quarto e ter-me posto de novo em apuros.

Afinal, para o diabo com tudo isso! Não pedira aquela nota de dez coroas, mal a tivera na mão, e, logo a passara adiante, em pagamento a alguém que nada significava para mim, e que nunca mais veria.” (pág. 166)

Se o grão não morre, fica só; mas se morrer, produz muitos frutos. Para o personagem sobreviver era a resposta, e de alguma forma, ser herói de si mesmo, bastava-lhe. A solidão e o isolamento persistiram enquanto marinheiro, indo para Leeds. Assim como a sua alma errática. Se trocarmos o homem pelo grão, restar-lhe-ia o quê? Na solidão?

Por fim, seja pela sobrevivência ou a conclusão lógica de todo o aprendizado, se entregou à ajuda, se dispôs à solução, tão óbvia, mas que postergou ao esgotamento, até quase sucumbir.

E, então, “disse adeus por essa vez a Cristiânia, a todas as casas, a todos os lares, a todas as luzes que brilhavam e rebrilhavam nas janelas.”

 

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Avaliação: (***)

Título: Fome

Autor: Knut Hamsun

Editora: Itatiaia

Páginas: 171


15 agosto 2024

Prefácio de Eduardo "Doca" Barroso ao livro "A Bula do Placebo"

 



Não é raro nos surpreendermos com a escrita de um autor. E não é preciso esperar muito ou produzir uma vasta obra para se perceberem nuances e mudanças no estilo; igualmente não raro é perceber-se diante do texto completamente diferente quanto ao objetivo, conceito e percepção. A linguagem, já diziam os estudiosos desde sempre, é um fluxo contínuo de mudanças e solidificação. Existem elementos irremovíveis e outros nem tanto. Fato é que a escrita originária da pena de um único autor deve ser versátil e explorar vários aspectos e recursos e se expressar convincentemente, seja qual for o tratamento aplicado à narrativa. Entretanto, nada deve ser tão heterogêneo a ponto de não ser distinguido e suas características tomadas como as de outro. Com isso, não estou ditando regras ou a “enjaular” a imaginação e criação. Nada pode ser diferente o suficiente para desfigurar ou deformar a identidade, as digitais a apontar para si, independentemente das circunstâncias e formas.

Quando se me apresentou este novo trabalho do Jorge Isah, após lê-lo, mesmo acompanhando seus textos na Revista Bulunga, senti-me diante do artista a procurar novos rumos, novas formas, a alterar o estilo, provocado talvez pela ânsia de aventurar-se em terrenos inexplorados, ou a urgência de sondar novos roteiros, personagens e sentidos. Contudo, lá estava o mesmo autor, meticuloso nos detalhes, inquerindo-se, à cata de respostas e cheio de dúvidas. Lá estava, esquadrinhando o universo intocado e carregando-o nas próprias mãos, deixando indelével a sua impressão. Lá estavam a ironia, o cinismo e a capacidade de rir de si mesmo e do outro. Lá estava o homem a examinar as relações, o momento e a sociedade. Em histórias curtas mas de significados intensos. Lá estava a linguagem mais simples, menos rebuscada, quase “Pulp”, a remeter-me, primeiramente, a Nelson Rodrigues, na maneira econômica de contar histórias, para depois mostrarem-se tão ou mais críticas quanto às do “Escritor Maldito”, sem o seu apelo sexual e orgíaco. Assim, me vi a lembrar dos autores “beatnik” e, por que não, do realismo da primeira metade do século passado, contudo sem a claustrofobia, agonia e niilismo de alguns deles. Existem elementos absurdos, sim, claro. Existem componentes existencialistas, sim, claro. E ingredientes psicológicos, também. Mas existe sobretudo o homem, seus dilemas e a necessidade de decifrar a si e os tempos, seja qual for. É a esta universalidade que o autor nos remete, de estar no tempo e também fora dele. Sem isso, não nos resta muita coisa a não ser comer, beber e morrer.

Entre os contos publicados na Bulunga e alguns outros de épocas distintas, os mesmos elementos fundamentais são perceptíveis a qualquer um que desejar vê-los; e, digo, é melhor vê-los para se deliciar ainda mais com esta obra.

Outro aspecto inseparável das entranhas do autor é o transcendental ou metafísico. Para ele é impossível dissociar a vida frugal e terrena das implicações celestes e espirituais. Sei que alguns leitores não concordarão, mas, pior para eles: é o elemento não somente salutar, mas catártico para esta geração, o reencontro com esta proposta. Ela se apresenta como única solução ao mundo embrenhado e envolto nas trevas, e qualquer alusão apenas à materialização de elementos concretos, palpáveis e físicos simplesmente diminui a humanidade ao nível dos animais. Ainda mais quando se percebem nitidamente as opções à mesa; nada, em sã consciência, pode restaurar o homem e trazer à tona virtudes e qualidades à parte da sublimidade, das coisas lá do alto. Enquanto se mantiver cego aos clamores do espírito, o homem não será o que deveria ser, e apenas se tornará a imagem engelhada de si mesmo. Não existe liberdade quando se excluem os meios de alcançá-la, seja por arrogância, teimosia ou ignorância; pois nada disso o inocentará no fim das contas daquilo que não pode ser porque não quis, ainda que pudesse fazê-lo se tateasse a realidade e a verdade à sua volta.

Nestes aspectos, em linhas gerais, imagino ser fiel ao pensamento do autor, ao menos no ponto fundamental e decisivo, entre tantos outros que o leitor descobrirá certamente ao se debruçar sobre esta obra, de maneira sincera e sem os eventuais preconceitos conceituais ou ideológicos.

Portanto, quer você queira ou não, aconselho-o a não prescindir da indispensabilidade de “A Bula do Placebo”. Ah, por falar no título, demandaria outro prefácio, mas, desde já, ele aponta para o inexorável fiasco das tentativas de autocura ou melhor, buscar em si mesmo o remédio para a doença autoinoculada, sem que o antídoto tenha qualquer eficiência.

Eduardo “Doca” Barroso

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06 agosto 2024

A volta dos mortos-vivos ou a dolce vita no inferno

 




Jorge F. Isah


Talvez você não saiba, ou sequer imagine, mas os faraós eram enterrados com suas joias e ouro, vestuários, esposas, servos, escravos e mais alguém ou algo que o falecido quisesse ter em seu reino celestial. Com isso, nada faltar-lhe-ia, inclusive aqueles para servi-lo, do outro lado. Muitos sacrifícios foram realizados pelos desejos, temores e cuidados faraônicas. O faraó Djer, por exemplo, filho do faraó Hórus Aha, governou o Egito na I Dinastia, entre 3.100 e 3.043 ac., aproximadamente, quando faleceu. Na sua tumba, em Umm el-Qa'ab, Abidos, foi enterrado com outras 318 pessoas. Não se sabe ao certo como eram realizadas as imolações, provavelmente por venenos ou drogas paralisantes.

Em nossos dias, se fosse dada a escolha de ser enterrado com o seu ídolo, quando morresse, o que você pensaria? “Mas essa é uma ideia estúpida”, diria um. “Não tem coisa mais sem cabimento”, diria outro. “O que você está insinuando com isso?”, outrem se pronunciaria. A verdade, contudo, é que muitos vão para os túmulos dos seus ídolos. Loucura? Asneira?... Não, é a verdade da qual o homem tem de se libertar, não importa quão importante ou quanta afinidade se tenha com ele ou eles.

Quando existe uma defesa intransigente e absoluta para com seus ídolos de estimação, muitas vezes cega e obcecada, seja um político, artista, clérigo, jogador de futebol e, pasmem!, bandido e salafrário, o que diria, por exemplo, um parente ou amigo? Que durante a sua vida não lhes revestiu do mesmo ardor e paixão? O que dirá a sua mãe, esposa/marido ou filhos quando o virem tomar “bênção” a um desconhecido? Ou espalhar pôsteres pelo seu quarto? Ou defendê-lo obstinadamente mesmo em seus caprichos, manias e defeitos?

Alguém pode dizer:

- Bem, mas não estaria apenas substituindo o ídolo desconhecido pelo ídolo conhecido, neste caso a mãe ou a esposa?

Normalmente não agimos levianamente com pessoas do nosso convívio, pelo contrário, estamos mais dispostos a criticá-los do que a nós mesmos. A questão é: você se dedica com a metade do empenho no relacionamento com os mais próximos da mesma maneira que se consagra ao ídolo? Qual a razão de dispender dinheiro, emoções, intelecto, e entregar a própria alma a um estranho que não o possa fazer a alguém realmente do seu trato e convívio?

- Me diga então, sabichão: você apenas admira e se simpatiza com seus correlatos? Ninguém fora do seu círculo merece a sua atenção? – Insistiria o interlocutor.

Não estou a falar de méritos, valor ou concordar com atitudes e seus promotores. Por exemplo, se alguém demonstra um ato de gentileza, prestando seja lá que tipo de ajuda, abonarei a atitude e o agente. Mas se esse indivíduo, em seguida, chuta um cão ou joga lixo na rua, não conceberei desculpas a fim de justificá-lo. Infelizmente, muitos agem assim, e para não serem paradoxais (ao menos não se sentirem como tal), criam os maiores sofismas e se fazem de hipócritas na tentativa de salvaguardarem-se a si mesmos preservando o seu ídolo.

- Mas todos erramos... Ninguém é perfeito...

Mais um motivo para não se ter ídolos e morrer abraçado a eles, não é!

E algo ainda pior: ter a consciência trancafiada a sete palmos, anos ou décadas antes de a “dolce vita” no inferno chamá-lo em definitivo.

Ah, e depois, os antigos egípcios é que são criticados...

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Nota: Texto publicado originalmente na Revista Bulunga