Jorge F. Isah
“Duas narrativas fantásticas” é um livro que pode parecer, à primeira vista, tratar de temas irreais e utópicos. Engana-se quem assim pensa. Poderia chama-lo de “expectação suprarreal” tal a realidade (e também humanidade) dos temas abordados. O livro se compõe de dois contos: “A Dócil” e “Sonho de um homem ridículo”, onde o assunto “suicídio” está presente, em ambos.
No primeiro, temos um homem de 40 anos aproximadamente, casando-se com uma jovem recém-saída da adolescência. Ela é criada por duas tias que pretendem uni-la em matrimônio com um homem asqueroso e rude; mas acaba por conhecer, e por fim casar-se, com um negociante, dono de uma loja de penhores. Ele fora militar; sendo desligado da corporação por se recusar a duelar com um companheiro de farda, que o insultou. Por isso, ficou com a pecha de “covarde, o que o atormentou, de certa forma, por toda a vida.
Ele se apaixonou pela garota, por sua beleza, meiguice e a docilidade do título. Ela, para se livrar do brucutu com o qual as tias queriam uni-la, aceitou o pedido de casamento do negociante, e acabaram juntos.
No início, às mil maravilhas; porém, com o passar do tempo, ele vai se tornando controlador, exigente, individualista, e a mantém distante de si. Eles pouco ou nada dialogam. Não têm uma vida compartilhada além do local onde moram. Isso faz com que a relação frágil se torne ainda mais débil e perigosa (ele fugindo da solidão, e ela de um casamento indesejado), tornando-os, enfim, amargos e quase inimigos.
Ela abandona a docilidade para se tornar em uma mulher sediciosa, provocadora e adúltera. Numa clara tentativa de autodestruição, de desprezo a si mesma (ainda que respaldada pelo desprezo ao cônjuge), frustrada, e em estado de beligerante vingança.
Ele, ao perceber a traição e a rejeição, e o desprezo da esposa, obriga-se a uma reação de autoridade, como se suficiente para transformar o caos existencial de ambos em ordem, no retorno à harmonia perdida.
O ponto é: duas vontades, aparentemente boas e benéficas, podem descambar para a beligerância e a destruição? Entre a rigidez de um relacionamento formal e conveniente, e o sonho de perfeição, romântico e singelo, está o homem e sua humanidade, disposto a frustrar os dois esquemas, revelando que a vida é muito mais complexa do que uma suposta unidade de interesses possa contê-la; a vida toma rumos desconhecidos, ainda que muitos previsíveis, se o homem não deixar de olhar para si mesmo tão somente, e observar o próximo com cuidado, generosidade e caridade. A perfeição não pode ser exigida, nem mesmo no amor, se não houver uma disposição ao sacrifício, a entrega voluntária do seu orgulho, desejos, ambições e egoísmo em favor do outro, de tal forma que, mesmo pessoas diferentes e com vontades distintas, se harmonizarão do mútuo anseio de privilegiar aquele que é o alvo do seu amor. Se não acontece...
Quanto ao suicídio, bem, leia a história e saiba como terminou.
O outro conto, “Sonho de um homem ridículo”, muitas vezes é compreendido como se fosse um sonho ridículo, quando o título nos remete a um homem ridículo, que necessariamente não tem um sonho ridículo. Pela grandiosidade da narrativa dostoieviskiana, alguns imaginam que o sonho daquele homem não passa de um delírio, uma utopia infinitamente distante da realidade humana, quando, o que o autor nos revela é exatamente a essência dessa realidade, a humanidade em todos os seus detalhes, ainda que relatados em uma porção de páginas.
Sem fazer um spoiler do livro (o que, infelizmente, acabei por fazer no comentário ao outro conto), "Dosty" (desculpe-me a intimidade, mas sou leitor do russo desde a adolescência, então me permito certas liberdades) revela que a esperança não pode estar em um homem, ou mesmo em muitos homens, deste ou de outro mundo, pois mais cedo ou mais tarde a sua inclinação para o pecado, para a subversão e a incitação ao mal, aflorará. Um único homem pode pôr tudo a perder, ao incitar outros a trilharem o mesmo caminho de morte no qual transita.
A referência ao Éden e à Queda, descritos no livro de Gênesis, é clara, trazendo, na trama, as mesmas consequências para a humanidade advindas da rebeldia do casal primevo. O homem inclina-se para o mal, a despeito de todo o bem que está a cerca-lo, da bondade divina e que lhe foi entregue também na obra da Criação.
Contudo, existe redenção, existe perdão, se houver sincero arrependimento dos seus pecados, é possível ver a luz, e vislumbrá-la por toda a eternidade. Este me parece o cerne, digamos, a parte otimista em toda a narrativa de "Dosty", desde "Crime e Castigo" até mesmo nesse singelo, mas fantástico conto.
Ah, sobre o suicídio, que falei no primeiro comentário, e que está presente em ambos os contos, deixarei para que você mesmo leia o livro, e se certifique do que estou falando, como o apontar a direção.
Livro curto, belo, em descrever a miséria humana, mas com os eflúvios eternos do porvir.
Livro curto, belo, em descrever a miséria humana, mas com os eflúvios eternos do porvir.
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Avaliação: (****)
Título: "Duas Narrativas Fantásticas"
Autor: Fiodor DostoieviskiEditora: Editora 34
128 Páginas
Sinopse:
"Designadas pelo próprio autor como "narrativas fantásticas", as duas novelas aqui reunidas foram publicadas pela primeira vez nas páginas do Diário de um escritor, publicação mensal redigida por Dostoiévski entre 1876 e 1881."
Jorge.
ResponderExcluirPoderia comentar mais sobre o Autor?
Desejo saber mais sobre a relevância da leitura do mesmo para o pensamento cristão.
Aguardo,
Ramon.
Ramon, obrigado pela visita e comentário.
ResponderExcluirDesculpe-me a demora em respondê-lo.
Olha, há muitos anos, no início da minha conversão, eu desconsiderei tudo o que não fosse especificamente cristão. Com o tempo, percebi que o imago dei (nada a ver com "graça comum") está presente em todos os homens, e pode manifestar nesses homens reflexos daquilo que eles ainda possuem de divino.
Segundo, grandes escritores descrevem a vida, o homem como ele é, com suas virtudes e vícios. E isso é fundamental para conhecermos melhor quem somos.
Terceiro, grandes obras tendem a remeter-nos a Deus, ainda que não falem diretamente dEle, mas sempre têm a capacidade de nos levarmos a Ele.
Quarto, a própria Escritura Sagrada revela-nos o homem tal como é. O Senhor não escondeu a realidade, não encobriu os pecados e erros e defeitos da humanidade, mesmo dos seus servos, e isso tem o objetivo de fazernos olhar para nós mesmos não como imaginamos ser, mas como somos: pecadores carentes e necessitados do Deus gracioso!
Muitos autores e livros têm a capacidade de descrever a humanidade, em todas as suas nuances, e apontar-nos, dirigir-nos a Deus. Penso que não devemos negligenciar nada, em princípio, pois são emanações reais e verdadeiras daquilo que o homem ainda contém da divindade.
Quinto, e não menos importante, é possível se divertir com as artes em geral, e a literatura em particular. Deus nos fez também para termos prazer, e deliciarmo-nos com o intelecto, os sentimentos, gostos e dádivas criadas para o nosso gozo. Coisas que nos deu para a nossa satisfação.
Por fim, você mesmo é quem deve ser capaz de compreender a relevância de uma obra para a sua vida. Sem lê-la, jamais saberá. Garanto que se procurar os leitores clássicos, os livros que atravessaram décadas, séculos, e mantiveram-se "vivos", encontrará a tão ansiada relevância. C. S. Lewis escreveu muitas histórias. Tolkien também. Exemplos de cristãos capazes de nos remeterem a Deus e sua obra. Assim também, Dostoievisk, Tolstoi, e tantos outros autores, refletem o imago dei e podem nos levar a Deus, sua obra, seus ensinos. Com isso, não estou colocando esses livros no mesmo patamar ou nível da Bíblia. Não é isso! A Bíblia é o único livro inspirado por Deus, o que os demais não são. Mas cada um de nós pode, e deve, refletir a imagem divina em nossos pensamentos, ações, desejos e manifestações. Por isso, não acredito que negligenciar o "secular" necessariamente nos leve ao santo. Pode até mesmo o santo parecer santo e não ser assim tão santo (refiro-me a livros de autores notadamente cristãos, alguns cheios de heresias e distorções do evangelho).
Pense nisso!
Forte abraço!
Cristo o abençoe!