11 outubro 2021

Paris é uma Festa - Ernest Hemingway

 



Por Jorge F. Isah


Este é um livro nostálgico, por dois motivos: o primeiro, havia muito que não lia nada do autor, desde a adolescência e a fase posterior e, se não me equivoco, o último foi por volta dos 23 anos, e a obra era O Velho e o Mar. Apesar de ser uma novela e quase basicamente relatar a “vitória dos caçadores”, a sensação atual é de não ter gostado dele à época, sem saber muito bem o porquê, deixando-me o desejo de revisitá-lo novamente.

                Segundo, já na primeira página sou arrebatado pela escrita fluída e memorialista de Hemingway, levando-me à compulsão de concluir a leitura em 3 dias. E a nostalgia em que tece as peripécias na Paris dos anos 1920 são feitas de maneira delicada porém direta, como é o seu estilo. É um livro crepuscular, não no sentido da escrita, mas do autor, às portas de completar 60 anos e mais interessado ou conectado ao passado do que ao presente, a se lhe afigurar distendido da alma, corrosivo. Muitos afirmam ter ele perdido a genialidade após os anos 30, e de lá até a sua morte, escreveu obras apenas medianas, sem a criatividade e engenho das anteriores. Apesar de ser um livro longo, meio distante dos padrões “hernestinianos”, Por quem os Sinos Dobram parece-me o título mais próximo de uma obra-prima que algo possa chegar; e escrito no final dos anos 30.

                Alguns apontam Paris é uma Festa como um livro de memórias. Outros, crônicas. Ainda outros, ficção. Para mim, é um livro indefinível pois todos os elementos dos três estilos encontram-se presentes. Não exclusivamente memorialista, ainda que seja. Nem ficcional, ainda que também o seja. Há um pouco de tudo e, talvez, esse seja um dos atrativos da publicação. Outro chamariz é o fato dele tratar de literatura, seja no trabalho e na vida da famosa “geração perdida” (título que Ernest detestava por considerá-lo reducionista e injusto) ou em discussões sobre autores do passado (no caso, não tão no passado), como Tostói, Tchekhov, Turgueniev, Dostoieviski entre outros. Portanto, é um livro sobre literatura, sobre literatos; um prato cheio, ao menos, para mim.  

                Hemingway descreve os loucos anos 20, estabelecendo-se juntamente com a esposa, Hadley, e o filho na Cidade Luz. Vive basicamente de contos publicados em revistas alemãs, levando uma vida quase miserável. Existe o charme e o glamour da cidade, mas ele precisava colocar comida à mesa; e mesmo tendo o seu gênio reconhecido, não era suficiente para garantir sempre o sustento familiar. Ele cita a proprietária de uma livraria, Sylvia Beach, que além de fornecer-lhe gratuitamente livros, fazia também empréstimos (pode-se dizer, doações) nos momentos mais difíceis. Travou-se uma amizade que garantiu-lhe prazer e subsistência. E aí temos algo interessante: como a providência garantiu-lhe meios de viver apenas da literatura ou, ao menos, poder dedicar-se integralmente a ela até que os frutos pudessem ser colhidos.

                Nesse ínterim, travou conhecimento com vários nomes famosos da época e que permanecem até hoje, como T. S. Eliot, James Joyce e Picasso. Alguns, nem tanto, os quais nunca ouvira falar e descobri durante a leitura: Harold Stearns, Katherine Mansfield,  Evan Shipman, Pascin e outros que são apenas citados ou têm descrições a partir de impressões iniciais do autor; poucos como Madox Ford e Ralph Dunning receberam mais do que citações.

                Entrementes, três do seu círculo particular, Gertrude Stein, Ezra Pound e Scott Fitzgerald (este considerado por Hemingway seu grande amigo) ganham ares de protagonistas ainda que a literatura seja, a meu ver, a grande personagem do livro; nem mesmo Hem é páreo a ela.  Não serei estraga prazeres a descrever as impressões e análises sobre o temperamento, comportamento e o relacionamento deles com Hem; a leitura se encarregará de satisfazer a curiosidade do leitor. Posso, contudo, assegurar que são análises e descrições a cativar até mesmo aquele pouco afeito a desbravar as qualidades e defeitos de autores renomados, ou seja, o caráter humano para além ou aquém do bem e do mal. Ele gasta boa parte do terço final em detalhar a sua amizade com Scott Fitzgerald e a relação tempestuosa e destrutiva dele com a sua esposa Zelda, segundo Hemingway uma bêbada enciumada com o talento e sucesso de Francis, e se esforça em afastá-lo diariamente para festas intermináveis, noite após noite.

                Ao mesmo tempo em que critica com acidez algumas personalidades, descreve outras com compaixão, carinho e gratidão, com aquele espírito “másculo”, meio seco, quase obrigatório, sem deixar contudo as entrelinhas falarem por si.

                Realmente, como disse anteriormente, o livro foi uma grata surpresa. O estilo franco, sincero, faz-se presente, mas é possível vislumbrar uma sensibilidade quase emotiva, em alguns momentos quase calorosa, perto de um quebrantamento. Sim, Paris é uma Festa, mas para Hem, entre foguetório, egos inflados e vozerio, existe apenas barulho; e como outro escritor disse: é “muito barulho por nada”!


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Avaliação: (****)

Título: Paris é uma Festa

Autor: Ernest Hemingway

Páginas: 178

Editora: Círculo do Livro

Sinopse: 

"Ernest Hemingway foi sempre contrário ao sentimentalismo. Seus contos e romances mostram o homem em busca de si próprio, descobrindo-se nos momentos de dor, perigo ou derrota. Nenhum idealismo diante da vida: ela deve ser enfrentada como um desafio, e vencida sem arrogância ou perdida sem lamúrias. Paris é uma festa mostra-nos um Hemingway diferente, o escritor e o homem fazendo uma viagem sentimental à década de 1920, quando o mundo se abria diante dele e seus companheiros eram a gente anônima das ruas e gente famosa como Gertrude Stein, James Joyce, Ezra Pound, F. Scott Fitzgerald."

28 setembro 2021

Uma semana com a fiel testemunha: William Carey

 


Jorge F. Isah


        Durante anos, tenho lido bastante, não o suficiente (e nunca o será), e realizado anotações no meu blog de leituras e em outros lugares. Decidi então postar essas anotações tal qual foram escritas, sem burilá-las ou alterar-lhes o sentido. Tento assim ser fiel ao apreendido na época da leitura, apenas com a correção de erros datilográficos e ortográficos. Em alguns casos, foram feitas dezenas de anotações; na maioria, algumas. Começarei por um livro que marcou a minha caminhada cristã, e através do qual Deus falou imensamente comigo. Trata-se da biografia do primeiro missionário moderno, o inglês William Carey. Enviado pela Sociedade Missionária de Londres para a Índia, pais pobre, politeísta em cuja tradição praticava-se sem remorsos o infanticídio e o assassinato de esposas, Carey nos deu o testemunho de que, contra tudo e todos, "se Deus é por nós, quem será contra nós?" (Rm 8.31)

        Desejo que a leitura destas notas estimule-o(a) à leitura do livro; pois, tenho como certo o fato de a igreja fraquejar atualmente em parte pelo desprezo (o não querer conhecer ou o querer não conhecer) ao testemunho fiel dos santos em todos os tempos. 

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Notas de uma semana lendo "Fiel Testemunha"

em 2008

        
        Sabia pouco sobre o pr. William Carey: era inglês, tornou-se missionário na Índia e, após seis anos de pregação, houve a primeira conversão através do seu ministério. Sabia também que ele foi o primeiro missionário moderno. Portanto, aí está o interesse em ler a sua biografia.
        Estou um pouco além da pag. 100, e Carey ainda está em solo britânico.
        Timothy George descreve as lutas e oposições que Carey e seu grupo (formado por Andrew Fuller, Robert Hall, John Ryland Jr. e John Sutcliff) tiveram para implementar o trabalho missionário, cumprindo a Grande Comissão da qual Cristo nos responsabilizou (Mt 28.18-20).
        O livro relata o amadurecimento espiritual de Carey; e as vias doutrinárias da época (o início do hipercalvinismo, por exemplo), os avivamentos na Europa e América, e um apanhado geral dos trabalhos missionários de Jonathan Edwards, John Elliot e David Brainerd.
     A escrita é agradável e, muitas vezes, torna a leitura compulsiva.

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    Na segunda parte, vemos Carey e Thomas na Índia, ilegalmente, e experimentamos um pouco do sofrimento, aflição e angústia pelos quais passaram. Carey perdeu o seu filho Peter, de 5 anos, vítima de uma febre, e viu o nascimento de outro filho, Jonathan, enquanto a sua esposa enlouquecia, e irmãos e amigos morriam pelo caminho. Tendo de sobreviver sem ainda dominar o idioma bengalês, abandonado por todos, com o desejo fervoroso de pregar o Evangelho de Cristo aos pagãos, sofreu sobremaneira com a injustiça, e abandono, da sociedade inglesa missionária, que alegou vê-lo afastar-se do seu real compromisso com as missões para entregá-lo à própria sorte (quando, na verdade, essa sociedade foi quem "esqueceu-se" de Carey, Thomas e seus familiares, sem lhes dar qualquer apoio em sua jornada no oriente).
        É evidente o amor de Willian  para com a obra do Senhor, e o seu único objetivo é a glória de Deus e a conversão de almas. Fica evidente também a providência de Deus em favor dos seus filhos, sustentando-os  espiritual e materialmente.
    Timothy George não poderia ter escolhido título mais apropriado para o livro: Fiel Testemunha.

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    A terceira parte aborda a implementação de grupos missionários na Índia, sob a supervisão de Carey, e a sua entrada na vida acadêmica como professor de bengali, sânscrito e outros dialetos hindus; a tradução da Bíblia para esses dialetos; a morte das duas primeiras esposas e do seu filho Félix; o rompimento com a Sociedade Missionária de Londres, e o surgimento de grupos "liberais" mais jovens (em sua maioria heréticos) entre os batistas que se opunham aos métodos de Carey.
        Ele foi professor, pastor, missionário, tradutor, editor, mas o seu objetivo principal era a proclamação do Evangelho de Cristo, sem se esquecer das causas sociais como a luta contra o infanticídio e o ritual de sati (onde as viúvas eram queimadas vivas juntamente com os corpos dos seus maridos mortos), o que acabou sendo proibido depois de muitos anos de luta (nas quais foi apoiado por Wilberforce). Mas em tudo havia o desejo de glorificar a Deus e de obedecê-lo naquilo que era a Sua vontade, como ficou claro em suas palavras,  ao completar 70 anos: 
        "Hoje estou fazendo setenta anos, o que é um monumento à misericórdia e bondade divina, apesar de, numa revista de minha vida, eu encontrar muitas coisas pelas quais devia ser humilhado no pó. Meus pecados ostensivos e concretos são inumeráveis, minha negligência no trabalho do Senhor foi grande, não promovi sua causa nem busquei sua glória e honra como deveria. Apesar de tudo isso fui poupado até agora e ainda sou mantido em sua obra, e tenho confiança de ser recebido na presença de Deus por meio dele. Eu queria ser mais consagrado ao seu serviço, mais santificado, praticando as virtudes cristãs e produzindo frutos de justiça, para louvor e honra do Salvador que deu sua vida em sacrifício pelo pecado" (Carta escrita por William Carey a Jabez Carey, em Serampore, índia, 17/08/1831).

        Apenas alguém que não buscou a glória pessoal, mas honrar ao bom Deus em obediência poderia dizer tais palavras; sabendo que tudo feito só foi possível graças à Ele, que nos amou primeiro.

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        Há dois apêndices no livro, um fazendo um paralelo da relevância de Carey para hoje (cap. XI), e outro, o livro escrito por Carey "Uma Averiguação...", o qual é fundamental para se entender os seus pensamentos sobre missões e evangelismo.

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            Existe um filme contando a vida do "pai das missões modernas", denominado "Uma Chama na Escuridão", disponível no Youtube e provavelmente em outras plataformas de streaming. 

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Avaliação: (*****)

Título: Fiel Testemunha - A vida e a obra de William Carey

Autor: Timothy George

No. Páginas: 296

Editora: Vida Nova

Publicação: 1a. Edição (1997)

Sinopse: 

    "William Carey é universalmente reconhecido como o “Pai das Missões Modernas”. Seu nome se confunde com o período heroico do movimento missionário protestante iniciado com seus 40 anos de ministério na Índia, período que inclui a saga de outras personagens notáveis como Henry Martin, Adoniram Judson e David Livingstone, cujas vidas foram profundamente influenciadas pelo exemplo de Carey. Sapateiro, botânico, tradutor, pregador, gerente de fábrica – William Carey foi tudo isso e muito mais. Acima de tudo, ele foi uma fiel testemunha do evangelho de Jesus Cristo no meio de uma vida de sofrimento pessoal, de desprezo profissional e de discórdias internacionais. Livro de cabeceira, Fiel Testemunha o conduzirá pelos caminhos trilhados por William Carey, numa linguagem cheia de vida, de emoções e de convicções intensas, que Timothy George sabe expressar com maestria indiscutível, a exemplo de sua outra obra publicada pela Vida Nova, Teologia dos Reformadores."











27 setembro 2021

A Superfluidade Humana em “Retrato de Uma Senhora”, de Henry James

 



Jorge F. Isah


Retrato de uma Senhora é um livro de conflitos, a perpassá-lo em cada página, parágrafo, linha. Henry James é um autor e tanto. Ele penetra e fustiga seus personagens até espremê-los à exaustão e ao limite de suas forças (dele, e deles). E o amor parece ser a causa, a origem de todos os embates e hostilidades nessas relações. Seja o amor à pátria, ou alguém, ou a si mesmo, seus desejos ou convicções, nada é fácil, ou melhor, puro, aos olhos dos personagens. Existe sempre uma áurea de maldade, de oposição, a impedi-lo de se concretizar, materializar-se, em meio às imperfeições e sutilezas aspiradas por almas incapazes de fazer o bem, ainda que o almejem (Ralph, certamente o personagem mais fascinante do livro, mesmo pretendendo fazer o bem, acaba por reconhecer que o bem pretendido não foi além do mal realizado. Ainda que seus esforços sejam nobres, dar à sua prima, Isabel, os meios para realizar o seu idealismo: ser uma mulher do mundo, conhecendo-o, em sua ânsia por liberdade; motiva-o a satisfação de ser o benfeitor anônimo, numa prova de desprendimento, mas também de ascetismo mórbido – Quem ler o livro entenderá).

A ideia do autor de narrar a trajetória de Isabel, no decorrer de alguns anos, menos de uma década, e, especialmente, o que lhe sucederia, sendo uma jovem moderna, independente e visionária, leva-o, contudo, a investigar o fracasso, digo, a frustração de homens e mulheres a circundá-la; satélites em desarmonia, perturbados e caóticos, enquanto a estrela central se implode, incapaz de manter a si mesma, e ao seu círculo, na rota da felicidade. Estão sempre a colidir uns com os outros; e amontoam-se em camadas de orgulho, vaidade e pernosticismo. Não é o retrato de uma senhora, mas da alma humana, de uma sociedade na qual a busca da felicidade e realização tem tão duros e insuperáveis obstáculos que o desgosto parece ser a forma natural de se viver enquanto os sonhos se dissipam, como barcos em naufrágios.

O mal se faz sentir nas doenças, nos encantamentos, nas aspirações, nos convívios, amizades, casamentos, traições e tentativas; percorre os sentimentos, os atos, os desejos, e nem mesmo uma alma angélica e adorável como a de Pansy está imune à tristeza de, sendo cândida, pagar pela impureza dos outros; mais especialmente de seu pai, Osmand e de sua amiga, madame Merle. Esta, com certeza, é ladina, finória, vivendo em uma constante trama, planejando tirar dos outros, em especial o seu círculo mais próximo, as vantagens necessárias para sobreviver, sem ser ela mesmo capaz de retribuir além das intrigas.

É difícil escrever sobre uma história sem contá-la; e é o que venho tentando fazer, sem as vezes obter sucesso. A ideia é relatar o mínimo necessário para aguçar o interesse do leitor, de que ele se disponha a comprar o livro e, ele mesmo, venha a descobrir coisas que não descobri, e ver o que não vi. Tomara que eu possa, com o mínimo, levar alguns a desejarem o muito.

Retrato de uma Senhora é um grande livro, dos melhores que li ultimamente. A trama é elaborada, sem os constantes e desnecessários “sustos” e “perplexidades” que as obras atuais se especializaram, como a maneira mais fácil de fisgar o leitor (de maneira artificial. Escrevem como se fosse um thriller de suspense e emoções “sem pé nem cabeça”). Não é um livro fácil; mas certamente, à medida que se dá voz às personagens, acaba-se por criar uma empatia e cumplicidade com alguns deles. E o grande livro somente o é se amamos e odiamos, apiedamos ou desprezamos certas personagens. Escrito no final do século XIX, é uma obra universal. Talvez, e somente talvez, eu gostaria que James tivesse reduzido o volume total de páginas em algumas dezenas; me parece que cinquenta seria um bom número. Mas, certamente, não serei eu a desprezar uma linha sequer do enredo; pelo contrário, tenho-as, cada uma, como importante para o desenrolar da história.

Voltando a ela, creio que a maioria desprezaria ou não entenderia os percalços, dúvidas e esquemas abusivos e caprichosos em que as pessoas se inseriam ou eram cooptadas. A questão pode ser entendida como o apelo à “primitividade” humana, tão distante da “liberdade” com que se goza atualmente. A verdade é que o livro vai muito além da superficialidade das relações e seus meandros, e que parecem desmerecê-los em prol dos modernosos avanços do sec. XXI. Ledo engano. O homem certamente descrito por James conhecia mais de si mesmo e do outro, e por isso não tinha ilusões, ao menos não se entregava a elas como um cão ao osso. Ao contrário da aparente fleuma de superioridade, da autoconfiança e da quase infalibilidade das apreciações e conceitos “modernos”, o homem permanece o mesmo, em sua busca de felicidade, de satisfação, de realização, mas esquecendo-se de que nelas reside o seu ser. Ele nada mais é do que aquilo que faz ou pensa fazer, para o bem ou para o mal. Ele não é, se não fizer; e mesmo fazendo, deixa de ser. Não o que é, mas o que deseja ser ou pensa ser. Por que isso? Porque a leitura de qualquer obra deve, no mínimo, não ser apenas a apreciação da história pela história, mas o que ela revela do homem, do mundo, do conhecido, do desconhecido, do tangível, do intangível, do natural e do sobrenatural, do homem e de Deus.

Henry James não pretendeu escrever sobre a necessidade do homem de Deus, mas ao descrever a insuficiência humana e o seu fracasso, deixou nas entrelinhas essa exigência; pela falta pode-se saber a ausência, e naquilo em que somos carentes. E, “Retrato de uma Senhora”, é a síntese da superfluidade que em nada preenche ou pode preencher o homem.

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Avaliação: (****)

Título: Retrato de Uma Senhora

Autor: Henry James

No. de Páginas: 680

Editora: Cia das Letras

      Sinopse: "Retrato de uma senhora, publicado pela primeira vez em 1881, é o primeiro grande romance de Henry James, e talvez sua obra máxima. Num século em que a esposa burguesa insatisfeita tornou-se um personagem literário central, e o adultério um motivo romanesco recorrente - o século da Madame Bovary, de Flaubert, e de Anna Karenina, de Tolstói -, Henry James colocou em cena uma heroína singular, cuja carência essencial é de outra ordem. Com uma narrativa que, astuciosamente, começa lenta, quase contemplativa, e aos poucos se acelera, ganhando dramaticidade, James constrói sua história como um jogo em que cada coisa se transmuta em seu oposto: liberdade em destino, afeto em traição, pureza em artimanha - e vice-versa"







01 setembro 2021

Tiros na Noite: Nenhum pela Culatra

 




Jorge F. Isah


O que esperar de uma compilação de contos de um ícone do gênero policial noir, sendo a maioria deles escritos para publicações baratas, as chamadas Pulp fiction[1], muito antes da fama?

Para ser sincero, foi uma surpresa positiva. Ao contrário de alguns que não veem mérito no processo de formação do escritor, tenho certo interesse por ler os primeiros trabalhos, aqueles raramente tidos como obras-primas ou relevantes (seja lá qual significado carregue) para, exatamente, descobrir, ainda que um pouco, a trajetória e caminhos pelos quais o autor atravessou. Dashiell Hammett não é o meu predileto do gênero. Gosto mais de Chandler, apesar de ter algumas ressalvas. Mas, dizer que ele não foi importante ou um mau escritor, vai uma diferença enorme. Considero, como já disse em outro lugar, O Falcão Maltês acima da média e, para mim, disparado o melhor livro de Hammett (mas suponho que este seja um ponto sem discordância entre a maioria dos seus leitores).

E “Tiros na Noite”[2]? Bem, são 20 contos escritos entre 1920 e 1930, publicados aqui e acolá em revistas populares, alguns muito bons, outros nem tanto. Mas os primórdios estão lá: o detetive durão, seco, que desconfia de tudo e de todos e não mede esforços para desvendar crimes e levar os autores à prisão. Diferente dos livros policiais clássicos, onde a linguagem mais sofisticada, personagens aristocratas, sutilezas e uma trama onde o protagonista é um mero coadjuvante, as histórias de Chandler, Goodis e Hammett colocam o “herói” (se podemos chamá-lo assim) no papel de proeminência no texto. Não sei se me fiz entender mas Agatha Christie, Edgar Wallace, George Simenon, entre outros, privilegiavam a trama, ou melhor, o crime em si, e desvendá-lo era mais importante do que criar personagens bem delineados e concebidos. Com isso, não digo inexistir marca ou valor nos protagonistas desses autores, apenas são mais conhecidos pela capacidade de elucidar dilemas do que exatamente por suas personalidades.

Ao contrário, os autores “noir” primam pela concepção do herói e a trama se ajustará ao caráter dele (não faço qualquer tipo de comparação aos talentos, no sentido de Chandler ser maior que Simenon, p.ex.; a diferença é estrutural). O enigma é importante, contudo, tão ou mais importante é o agente a desnudá-lo. Então, temos Spade ou Marlowe, homens comuns (mesmo em suas singularidades), obstinados, intransigentes em suas missões, dispostos às últimas consequências, mas muito mais próximos do cidadão com o qual trombamos todos os dias. A força dos seus caráteres, aliada à necessidade de comer, beber e pagar o aluguel, e o senso de “utilidade” pública, move a narração até o seu desfecho final. Nem sempre é a soma do intelecto, da razão, perspicácia ou engenho; as vezes são coincidências, fortuitas, ambíguas, obscuras. Os “tropeços” nas evidências e provas.

Pois assim são os contos deste volume. Um mundo onde o crime é crime, em sua vulgaridade, doença, crueldade, sem adornos ou disfarces, apenas a realidade nua a despojar-se diante do leitor. Quase ninguém está disposto a desempenhar um papel benigno ou satisfatório em suas relações pessoais. A maioria é covarde, bêbada, violenta, nociva, mesmo em suas superfícies de aparência indelével, de caráter nobre e virtuoso. Ainda que a alma humana não seja exposta em argúcia e lúcido propósito, o autor a apresenta em flashes, pegadas em terra dura, capazes de fornecer muitos traços e aspectos daqueles a marcá-la. Estão lá, para todos verem, e cada um meça a si mesmo pela régua de Hammett; não quanto à criminalidade mas a humanidade.

Como disse, há boas estórias e outras nem tanto. Nelas se vê, pela primeira vez, a aurora de Sam Spade, ainda anônimo, sem os holofotes a iluminá-lo no panteão dos heróis detetivescos, mas os sinais do brilho advir fazem-se notar. Encontramos os indícios do que Hammett viria a se tornar, nos anos seguintes, e de como a sua escrita impactaria e influenciaria a categoria por gerações.

É um livro a introduzir os não iniciados em “Noir” ou “Hammett”, e a perscrutar um dos principais modeladores do gênero. Com isso, não há como não indicar o livro, e esperar que o leitor encontre, como encontrei, as muitas faces do mal moldadas nas mais díspares figuras: gordas, altas, baixas, magras, homens, mulheres, gays, muita cobiça e devassidão, e um pouco, um tiquinho de decência e honradez, a mostrar que mesmo no pior dos mundos a Imago Dei não se extinguiu por completo.  Afinal, no homem se trava a maior de todas as lutas entre o bem e o mal, e nem sempre este vence; porque o sopro de vida, o vento a conceber a alma, não extingue.

 


[1]  Quanto ao título desta postagem, não resisti a tomá-lo na linha “Pulp”, estilo com o qual muitas das estórias criadas por Hammett se integraram.  

[2] “Tiros na Noite”, volume único, foi o que li. Existe nova edição da LP&M dividida em dois volumes.

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Avaliação: (***)

Título: Tiros na Noite - Volume ùnico

Autor: Dashiel Hammett

Páginas: 567 Páginas

Editora: LP&M

Sinopse: 

"Em Tiros na noite, o leitor encontrará reu­nidas vinte histórias de Hammett que permaneceram fora das livrarias nos quarenta anos após a morte do autor. São contos ambientados em um mundo corrupto, onde o crime organizado é rei e em que o ganho desonesto e paixões violentas regem as vidas humanas. Este primeiro volume é dominado pela figura de Con­tinental Op, um durão e taciturno detetive particular de San Francisco sempre cercado por vítimas, traidores e cadáveres, e dono de uma habilidade única para chegar à verdade das coisas.
O próprio Hammett dizia que sua ambição era elevar as histórias de mistério a grande arte. Tiros na noite comprova o absoluto sucesso do autor."


16 agosto 2021

A Doutrina Cristã - Santo Agostinho

 



Jorge F. Isah



Leio Santo Agostinho já há algum tempo, e muitas vezes não o compreendi adequadamente. Em especial, quando confrontava o “meu calvinismo” às afirmações equilibradas e bíblicas do bispo de Hipona. Demorou um tempo para eu entender que, mesmo Calvino, mesmo Lutero, Pink, Gill ou Clark, mesmo qualquer um que se considere a si mesmo fiel à tradição cristã, ou melhor, fiel ao Evangelho de Cristo, não existiria sem as reflexões, meditações e ensino de Agostinho. Veja bem, não estou a afirmar que eles não existiram, ou que não existiriam como existiram, mas de que haveria uma certa dificuldade para ser o que foram. Por isso, penso claramente que o mestre africano foi instrumento de Deus não somente na edificação desses homens, mas na de muitas e muitas gerações e multidões com os seus escritos.

Isso posto, não estou afirmando também concordar com tudo o que ele se propõe. Na verdade, não li nem 1/10 da sua vasta obra. Gastarei um bom tempo em fazê-lo, se assim o bom Senhor permitir. E tenciono fazê-lo, dada a riqueza espiritual e literária a emanar dos seus textos. O fato, contudo, de haver divergências em alguns pontos, não significa dizer que ele não deva ser lido, não preste, ou simplesmente não tem nada a ensinar. Esses, certamente, seriam erros indesculpáveis e do qual nenhum cristão ou leitor sairia ileso. Acima de tudo, Agostinho escreve como poucos. Chego a pensar que, entre os muitos autores lidos, ele é disparado o que mais admiro, seja pela maneira poética em que redige, seja por compreender aquilo ainda incompreendido, seja em explicar o inexplicável, a partir de uma comunhão íntima com o Espírito, de uma vida devotada a se deixar aperfeiçoar por esse relacionamento.

Entrando propriamente em “A Doutrina Cristã”, como o título pressupõe, ele disserta sobre os fundamentos da fé: a Trindade, o relacionamento com Deus, a salvação vicária e exclusiva de Cristo, as relações entre cristãos, o amor aos inimigos, etc. Terminada a leitura da obra, a profusão de temas e elementos remete-nos a uma exposição reverencial, paciente e devotada com o fim de esclarecer os princípios e enunciados do texto sagrado. Não há como não se apaixonar. E ainda descobrir como a nossa fé pode ser aprimorada e alcançar níveis de verdade aos quais não estávamos expostos.

Alguém pode dizer que estou a “idolatrar” o santo, mas nada mais longe da verdade. Reconhecer a sua capacidade de entender e interpretar as Escrituras de forma coerente, espiritual e reverente não significa idolatria, mas constatar o quanto o autor foi conduzido pelo Espírito de Cristo à compreensão, e o quanto o amor do Filho pode ser apreendido em suas linhas e nas entrelinhas. Pode existir, mas, além dos autores bíblicos, não conheço nenhum escritor que expresse tão nitidamente o seu amor pelo Pai, o Filho e o Espírito Santo. Por meio de uma beleza ímpar, outro dom concedido por Deus.

Todavia, entre tantos assuntos versados, dois me chamaram a atenção em especial. O primeiro, foi a ideia de Agostinho sobre o significado de “Pátria”. Não como um lugar onde habitaremos, o local em si, onde estaremos com Deus, o Paraíso ou Céu, mas de que Pátria tem, para ele, um sentido ainda mais amplo e veraz: pátria é o próprio Deus. Ou seja, não é apenas um lugar de destino, o destino para com quem estaremos por toda a eternidade. Nesse sentido, não é impossível dizer que, mesmo aqui neste mundo, ainda sobre os efeitos do pecado e em processo de transformação, podemos não somente almejar mas viver na “Pátria”, como se fosse celestial. Bastando o relacionamento intrínseco, verdadeiro e profuso com o Espírito de Deus. Ou seja, não iremos para a pátria, mas pelos méritos do próprio Deus, sendo pátria, já estamos inseridos e vivendo nela. Por isso a afirmação de sermos forasteiros, tanto nas Escrituras, como nos escritos de Agostinho, identificam que é possível estar neste mundo já estando no outro. Ou fazer deste, aquele. E gozar aquele, vivendo neste.

Não sei se deixei clara essa assertiva do bispo, espero que sim, mas o desdobramento dessa descoberta tem me trazido uma paz e um gozo antes não sentido, porque não entendido, ainda não havia penetrado no coração de maneira ampla e avassaladora.

Por falar em gozo, este é o segundo ponto a ser identificado. Para Santo Agostinho havia duas categorias de coisas: para fruir e usar. Não se deve fruir ou gozar das coisas que se usam. O gozo e alegria somente podem se direcionar a Deus exclusivamente (desculpe-me a redundância). E mesmo que gozemos de certas coisas do uso, elas jamais podem, ou devem, ser um fim em si mesmas, mas apontar para Aquele que é a fonte eterna e infinita do Bem. O homem sem Deus, sem a real consciência e conversão, põe sua alegria e consolo naquilo que deve estar a seu serviço, e não ao que deve servir. Inclusive, a si mesmo.

Nesse sentido, todas as coisas devem estar sujeitas a Deus, o doador final de todas elas, e por quem nos são entregues, para o bom uso, mas para que, sobretudo, nos alegremos no Senhor. Por isso, o sexo, o dinheiro, o trabalho, a diversão e tudo o mais que o homem almeja, não pode ser a fonte da alegria em si, mas entendê-las como bem-aventuranças, dádivas que nos são destinadas para atingirmos a plenitude do gozo, somente possível nEle. Ainda que nos tragam alegria, estão a apontar, direcionando-nos, para a fonte da verdadeira alegria, Aquele que tudo criou para manifestar a sua bondade, e fruirmos nEle. E assim, usando essas coisas, alcançamos o gozo e a alegria em Deus.

Outro aspecto importante é que, ao reconhecermos a suficiência apenas em Deus, temos mais dEle e crescemos em ser. Não em ser o que somos ou o que fomos, mas naquilo que seremos: a exata imagem de Cristo. É óbvio que Agostinho, e nem eu, está a falar quanto à divindade do Filho, mas quanto à sua perfeita e santa humanidade. E assim, gozando nEle seremos cada vez mais dEle e com Ele, e com Ele identificados seremos um: Senhor e servos em unidade.

Há uma gama de elementos apontados por Santo Agostinho neste livro, mas, em especial, chamou-me a atenção os pontos que abordei, que mais me impregnaram a alma até o momento, e me fizeram agradecer a Deus pela sua vida, e por desfrutar da sua sabedoria, vinda dos céus; e mesmo depois de quase dois mil anos é possível a qualquer um se deleitar nos seus ensinamentos, mas mais do que isso, aprender a viver em Deus e para Ele, assim como o mestre viveu.


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Avaliação: (****)

Título: A Doutrina Cristã

Autor: Santo Agostinho

Páginas: 288

Editora: Paulus

Sinopse: 

"Esta obra é a carta magna de Santo Agostinho sobre a maneira de entender e pregar a Sagrada Escritura. Nela podemos sentir o imenso amor e conhecimento profundo de Agostinho pela Bíblia. De fato, ele deixou-se impregnar por ela, tornou-a "seu sangue, a medula de seus ossos". Ninguém como ele explorou tão a fundo e com tanto empenho e sutileza os profundos e obscuros recônditos da Bíblia, e nunca houve alguém que trouxesse de suas explorações tal abundância de preciosos achados. A doutrina cristã é um manual de exegese e formação cultural com finalidade didática e pastoral dirigido aos cristãos de sua época. As diretivas dada pelo zelo pastoral do Bispo de Hipona são originais e penetrantes, válidas ainda, em grande parte, para nosso tempo, tão ávido de estudos exegéticos e hermenêuticos"

05 agosto 2021

Somos Todos Iguais - Resenha

 

Jorge F. Isah


Em um mundo cheio de barreiras, a verdade é que somos todos iguais, mesmo com diferenças sociais, culturais, étnicas etc. Mas nada disso pode nos tornar mais ou menos humanos; apenas humanos na essência, e diferentes quanto as coisas gerais. Tanto se fala em amor como nunca antes se falou, mas boa parte desse amor foi ideologizado, se tornando nada mais do que uma peça publicitária para o discurso e a retórica por trás de um sistema de ideias.

O próprio filme, num letreiro no refeitório, reproduz parcialmente os escritos do Apóstolo Paulo sobre o amor:


“E ainda que distribuísse toda a minha fortuna para sustento dos pobres, e ainda que entregasse o meu corpo para ser queimado, e não tivesse amor, nada disso me aproveitaria. O amor é sofredor, é benigno; o amor não é invejoso; o amor não trata com leviandade, não se ensoberbece. Não se porta com indecência, não busca os seus interesses, não se irrita, não suspeita mal; não folga com a injustiça, mas folga com a verdade; tudo sofre, tudo crê, tudo espera, tudo suporta. O amor nunca falha” (1 Coríntios 13:3-8)

E esta é a proposta do filme, falar do amor incondicional, colocar o próximo acima de si mesmo, dos seus obstáculos, e tratá-lo como superior a si mesmo; é abrir mão de fazer ou ser o que se quer para cuidar do outro; em suma, o amor é a única “afirmação” de que a humanidade precisa, o real e verdadeiro "empoderamento" humano; pois o restante é legitimar manobras e programas e interesses nada amorosos.

Com ótimas interpretações, um roteiro emocionante sem ser piegas, o filme é recomendado a todos aqueles que não somente queiram acender uma tocha (a luz, não a destruição), mas mantê-la acesa.

Disponível no NetFlix.



27 julho 2021

O Som e a Fúria - William Faulkner

 



Jorge F. Isah


Este é um livro que requer muito cuidado do leitor, que pode se perder em meio a uma narrativa não linear, cheia de digressões, mudanças de ambiente, atmosfera e protagonismo. Não é um livro fácil, pelo contrário, especialmente em sua metade inicial, quando ainda se tateia o texto em busca de contato com seus elementos e fundamentos. O autor se utiliza também de longos trechos sem pontuação, frases truncadas, linhas contínuas, ajudando a criar uma imagem “hermética” e complexa da obra. 

A história se divide em quatro partes, cada uma delas contada por um dos personagens centrais, exceção à última, cujo narrador é uma terceira pessoa, indeterminada. A primeira parte é narrada por Benjamim. A segunda, Quentin. A terceira, Jason. E a quarta, que trata diretamente da personagem Dilsey, por um desconhecido.

Basicamente, trata-se de uma família decadente sulista, que perdeu os seus dias de glória, em que controlava a região; e se vê exaurir financeira, moral e espiritualmente. Em meio às tradições e as mudanças advindas do novo século (XX), a maioria está despreparada para enfrentar as contingências e surpresas em que os novos tempos as arrastam.

Ganância, sexo, filhos ilegítimos, cobiça, incesto, furto, parecem, de alguma maneira, fazer dos “Compsons” o retrato de uma sociedade que caminha arrastada pelas correntes e o peso do passado.  O mal e o pecado apresentam-se definitivamente dispostos a conter qualquer resistência; nem mesmo as eventuais "aparências", a hipocrisia arraigada na alma de alguns, torna-se o desejo corrompido, doente e frágil, capaz de destruir e amaldiçoar as relações e indivíduos.

Há quem veja apenas uma sociedade altamente religiosa, puritana, inquisidora, retrógada a aniquilar vidas, o que é por demais reducionista. Contudo, seria tão somente a sociedade a fazê-lo, ou seriam consequências das escolhas pessoais? A rebelião da alma em êxtase, o relacionamento mecanicista e formal com Deus, a busca do amor no afastamento do verdadeiro amor, como se o homem, por si só, pudesse, ao exemplo de Adão, ser autossuficiente em si mesmo, desprezar o Bem, e sair incólume.

No fundo, o mal tem como premissa a negação não somente do bem, mas a origem do bem, entregando-se ao ardor da carne, leviana e obstinadamente.

Alguém poderá dizer que estou a replicar os erros que Faulkner aponta; mas, entrementes, ele está a desnudar o desejo, seja ele qual for, irresponsável em não reconhecer a sua legitimidade no amor. Sem este, qualquer desejo, por mais nobre ou elevado seja, é como o sino que não dobra ou o fogo que não aquece...

E a liberdade, tão propalada e banalizada nas bocas e mentes, surge como apenas outra forma de o homem descer às profundezas do calabouço não desejado, mas impossível de se safar, porque a luz que se acredita ver, está obliterada pelas trevas que se teima em não ver.  

Mas não somente a perfídia destilam as páginas; existe bondade, uma bondade ingênua, um tanto perigosa, as vezes confusa, de Benjamim, de Dilsey, de Caroline (a matriarca). E deles são os maiores sacrifícios, a verdadeira entrega, e aquele clamor à paz, ainda que não seja vislumbrada, pela proximidade das querelas e litígios, a assomá-los por todos os lados.

“O Som e a Fúria”, como toda a obra de Faulkner, é um livro imprescindível, daqueles clássicos que o tempo não apagará. E nele encontraremos o homem, sobretudo o homem que amamos e odiamos.


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Avaliação: (****)

Título: O Som e a Fúria

Autor: William Faulkner

Páginas: 320

Editora: Cosac & Naify

Sinopse: "Este romance, finalizado em 1929, marca o início da chamada "segunda fase" da carreira de William Faulkner (1897-1962) e é considerado sua obra mais importante. Vinte anos depois, o autor se consagraria definitivamente, ao receber o Prêmio Nobel de Literatura. O ambiente da escritura de Faulkner é o sul dos Estados Unidos, escravocrata e derrotado na Guerra da Secessão. O som e a fúria narra a agonia de uma família da velha aristocracia sulista, os Compson, entre os dias 2 de julho de 1910 e 8 de abril de 1928. Um apêndice, acrescentado pelo escritor em 1946, fornece outras informações sobre a história dos Compson entre 1699 e 1945. Assim, é possível afirmar que o grande personagem desta obra-prima é o tempo, o que lhe confere interesse universal."




18 junho 2021

Trecho do Prólogo de Bartolomeu Salgado ao livro "A Viga Oca Sob o Teto"

 







Trecho do Prólogo de Bartolomeu Salgado ao livro 

"A Viga Oca Sob o Teto"



            “A Viga Oca...” tem uma suavidade e elegância distantes do antecessor; um esmero linguístico quase impossível de se ver na literatura, abandonada ao imediatismo e aos clichês de maneira geral. Cheio de reminiscências e diálogos atemporais, ao percorrer o livro encontramos um “fervor cósmico”, quero dizer, não somente dos antepassados e figuras a transporem a vida da protagonista e outros personagens; não apenas das imagens líricas, bucólicas de um passado a assomar da memória, exigindo um lugar marcante no presente, pois o passado é quase eterno; uma carga a tornar o que foi em ser; fazer o “existiu” reviver quantas vezes o grito interior de despertá-lo do sono; não só os conflitos, as amálgamas a cruzar almas; nem infortúnios ou vergonha; fatos ou mistérios; vida e morte; em que a palavra não é furtiva, nem escorregadia, ao assombro do sinal divino. Paira sobre as páginas o sobrenatural, o fantástico (especialmente no último terço), onde nem tudo pode ser explicado; porém, não pode também ser negado ou feito indiferente, sob pena de o homem ser desprovido de espírito, e ao mal produzido se juntar o mal não desejado, ou o mal agir por negligência. (...)

            “A Viga Oca Sob o Teto” é um livro admirável, pela sua linguagem não vulgar, pelo destemor de não cometer excessos, por não se deixar capturar à forma ou à carcaça de um modelo ou estrutura; por ser autoral sem as amarras de se fazer parecer inédito (muitas vezes, sinônimo de anômalo e estapafúrdio); reflexivo sem aborrecer. Por tudo isso, e atendendo aos anseios do autor em não produzir um prólogo que seja o resumo da história, espero ter aguçado o seu desejo de adentrar a estas páginas e aventurar-se pelo mundo (des)conhecido de Jorge F. Isah. O qual ele criou meticulosamente alinhavado por uma teia que certamente o capturará até o final, belo, profundo e acessível como todo fim deveria ser.


À venda em amazon.com.br 




15 junho 2021

Trecho do prefácio de Leandro R. de Souza ao livro "A Viga Oca Sob o Teto"

 






Trecho do prefácio de Leandro R. de Souza ao livro 

"A Viga Oca Sob o Teto"


           "Ao ler as páginas, os conflitos familiares, as dores vividas, os questionamentos em cada parágrafo, é nítido que você verá um pouco de si em cada uma delas. Talvez do vizinho, amigo, parente, aquele colega distante, ou até a pessoa não afetuosa, que trará à sua memória os dilemas humanos.     
            Se sofreu um pouco de rejeição, ou rejeitou a outrem. Se pensou a si mesmo como o defensor dos pobres, ou rejeitou a alguém. Se viu um morto com indiferença, ou sentiu medo da própria morte, pode sentir-se confortável em se assentar nas poltronas da viagem de trem, aquela vagarosa, por cujas histórias ele, Jorge, o conduzirá.   
            Se a viga está oca, o teto sucumbe. As relações modernas e frágeis estão aí implícitas, para que o leitor faça uma reflexão de si e veja as fragilidades nas relações humanas. Não perca esta oportunidade!       
            Seria muito comparar ao mestre das letras Dostoievski, mas há um pouco do estilo dele aqui. Se o autor negar, pode bater-lhe na face, pois ele estará a mentir (risos).      
            Espero que cada um seja induzido à reflexão e, principalmente, à percepção de que, em cada situação, o humano perde muito de si ao não olhar para o alto, o Criador."



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À venda em amazon.com.br



07 junho 2021

Lançamento: "A Viga Oca Sob o Teto"

 


        Em 15 de Junho, a Kálamos Editora lançará um novo livro. Chama-se "A Viga Oca Sob o Teto", e estará disponível na amazon.com.br

        Será disponibilizado em formato ebook e físico. 

        Nos próximos dias, darei mais detalhes da presente edição. Por hora, fique com um dos vídeos promocionais, ainda inédito em outras redes sociais: 





15 março 2021

Um pouco sobre o cristão, políticas sociais e salvação

 




Jorge F. Isah


    Li o seguinte comentário no facebook, cuja autoria foi apontada ao Ariovaldo Ramos (não há indicação da fonte; mas, como foi um comentário elogioso, não vejo motivos para duvidar da autoria. Entretanto, esquivar-me-ei de aludir ao seu nome como arquiteto do comentário, a fim de não fazer-lhe injustiça, caso não seja o seu mentor. O chamarei apenas de "Ideólogo").
    Farei um pequeno comentário ao final do texto copiado:
    Mateus 25.31-40:  O grande julgamento

    "Quando vier o Filho do Homem na sua majestade e todos os anjos com ele, então, se assentará no trono da sua glória; e todas as nações serão reunidas em sua presença, e ele separará uns dos outros, como o pastor separa dos cabritos as ovelhas; e porá as ovelhas à sua direita, mas os cabritos, à esquerda; então, dirá o Rei aos que estiverem à sua direita: Vinde, benditos de meu Pai! Entrai na posse do reino que vos está preparado desde a fundação do mundo. Porque tive fome, e me destes de comer; tive sede, e me destes de beber; era forasteiro, e me hospedastes; estava nu, e me vestistes; enfermo, e me visitastes; preso, e fostes ver-me. Então, perguntarão os justos: Senhor, quando foi que te vimos com fome e te demos de comer? Ou com sede e te demos de beber? E quando te vimos forasteiro e te hospedamos? Ou nu e te vestimos? E quando te vimos enfermo ou preso e te fomos visitar? O Rei, respondendo, lhes dirá: Em verdade vos afirmo que, sempre que o fizestes a um destes meus pequeninos irmãos, a mim o fizestes."
    Agora, o Ideólogo interpreta a exortação do Senhor Jesus à "luz" de Marx:
    "Somos salvos pela graça, logo, esse texto não se enquadra na perspectiva da salvação pessoal. Este texto é sobre o juízo das nações.
    O Senhor Jesus julgará as nações, e o critério será o que chamamos de políticas públicas.
    Será acolhida a nação que tiver desenvolvido políticas de socorro aos mais vulneráveis.
    As demandas divinas exigem contrapartida: tive fome - política de segurança alimentar; tive sede - política de saneamento; era forasteiro - política de direitos humanos; estava nu - política de moradia, transporte e educação; enfermo - política de saúde; preso - política penitenciária.
    O Senhor Jesus está atento aos movimentos em relação aos mais necessitados.
    Há uma demanda de Jesus por políticas que diminuam a desigualdade social, e que promovam um tratamento justo, e que promova recuperação do ser humano, inclusive aos que estão em estado prisional.
    Em tempo de voto, estes são elementos a serem levados em conta, diante da urna indevassável" (grifo em amarelo para acentuar o comentário do Ideólogo) .
    Bem, não me assusta tal discurso, demonstrando uma completa ignorância bíblica, na qual o Ideólogo distorce o Texto Sagrado para enquadrá-lo ideologicamente em suas convicções pessoais (algo que Pedro condenou como "particular interpretação"¹).
     Cristo está a falar de amor e piedade individuais, de cada crente para com o seu próximo, assim como ele também ensina na parábola do Bom Samaritano; mas o Ideólogo consegue colocar palavras na boca do Senhor que jamais disse, a favor de "políticas sociais" patrocinadas pelo estado (se não é essa a sua intenção, por que aludir ao julgamento de nações, como se o Brasil ou EUA ou Cuba pudessem ir para o Inferno; e ao "voto" em época de eleição?). Novamente, a mente marxista (e que nada tem de Cristo) remete a responsabilidade individual do cristão ao estado (um deus?!!), transferindo algo inalienável e sem o direito de fazê-lo a um terceiro que não é cristão nem pode sê-lo, não tem vontade própria nem pode tê-la.
    Outro aspecto a ser notado é que o Senhor Jesus está a falar de salvação, sim. Por "ovelhas" temos não um arranjo social/governamental/político ou algo que o valha. Por "ovelhas" temos aquelas pelas quais o sumo Pastor juntou para Si, pela sua morte expiatória e redentora na cruz. "Ovelhas" jamais podem ser nações, ongs, partidos políticos, embaixadas, cortes, parlamentos ou qualquer outra invenção humana. Assim como, por cabritos, está a falar daqueles pelos quais não morreu na cruz, nem levou sobre Si os pecados desses, e jamais teve o objetivo de ajuntá-los.
    Outrossim, o bem em ajudar o próximo é prerrogativa das "ovelhas", pois são as únicas capazes de cumprir adequadamente (em fé, propósito e meios necessários) a vontade de Deus. Cujo fim sempre é a glória do próprio Deus. O que sabem disso nações, estados, congressos ou repartições governamentais? Já que são eles, em sua maioria, os proponentes de mortes, miséria, torturas e injustiças? Muitas com a alegada falsa piedade de fazer justiça?². Mas ainda assim, não são as repartições e órgãos a serem responsabilizados, pois não haverá nações e países no Tribunal de Cristo, nos últimos dias. Serão os homens condenados pelo que fizeram ou deixaram de fazer, não como causa, mas consequência do desprezo e pouco caso com a obra redentora do nosso Senhor. Ou seja, em última instância, homens e mulheres sem a fé salvadora, e que jamais creram em Jesus como único e suficiente Salvador e Senhor. E o juízo, por mais que possa ser coletivo, no sentido de multidões serem lançadas no inferno ou mesmo sujeitas às desgraças mundanas, é sempre individual, mesmo estando muitas delas juntas ou agrupadas. Não serão as ações estatais, corporativas ou legais a salvar o homem do juízo vindouro; o estado apenas pode empurrá-lo um pouco mais para dentro do fogo.
   Então, mesmo o Ideólogo tentando, de todas as maneiras, fazer malabarismo e distorcendo vergonhosamente as palavras de Cristo, a ideia de justiça social nada mais é do que uma construção humana bem moderna, diga-se, e nada tem a ver com o Evangelho e a missão de resgatar vidas. Em outras palavras, o Ideólogo está estabelecendo dois tipos de salvação; equivalente a dois tipos de redenção; dois tipos de sacrifícios; indicando haver dois tipos de salvadores, cuja eficiência, se não é a mesma em termos sobrenaturais, é em termos práticos: absolver as pessoas da ira divina através de ações e justiça social, seja lá o que isso represente na mente confusa de pastores impregnados por ideologias, e que nada tem a ver com piedade, perdão e misericórdia, no fim das contas. É, quase sempre discurso para "boi dormir"; e fazer os adeptos dessa diabólica teologia presas da própria presunção, orgulho e pedantismo.
     A própria igreja institucional, cuja missão é reunir os crentes para realizar o obra de Deus, não pode salvar, muito menos aplacar a ira sobre aquele que, mesmo sendo membro local, não é eleito, não foi regenerado nem salvo, mas permanece morto em seus delitos e pecados, porque nunca teve o encontro pessoal com Cristo. Portanto, resta condenar a mentira descarada do Ideólogo, condenável em todos os aspectos, digno de ser colocado no rol dos falsos-mestres, daqueles que, caso Deus não os converta das trevas à luz, serão alvos da sua santa e justa ira, sem que possam apelar para o estado e seus pares, incapazes de lhe dar qualquer escudo ou proteção.
    
Notas: 1- II Pedro 1:20;
2-"Tendo aparência de piedade, mas negando a eficácia dela. Destes afasta-te." (2Tm 3.5)
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