“Eu, porém, endurecerei o coração de Faraó, e multiplicarei na terra do Egito os meus sinais e as minhas maravilhas. Faraó, pois, não vos ouvirá; e eu porei minha mão sobre o Egito, e tirarei meus exércitos, meu povo, os filhos de Israel, da terra do Egito, com grandes juízos. Então os egípcios saberão que eu sou o Senhor, quando estender a minha mão sobre o Egito, e tirar os filhos de Israel do meio deles” [Ex 7.3-5].
Ouvi muitas explicações sobre estes versículos. Algumas, patéticas. Outras, nem tanto. Mas, de certa forma, há sempre uma disposição em não imputar a Deus o endurecimento do coração de Faraó. Como se isso fosse uma afronta ou algo impossível. Mas não é o que os versos revelam, nem o que a Bíblia revela. Ater-me-ei aos dois conceitos mais aceitos entre os cristãos, que se apresentam inofensivos, mas são altamente danosos para o conhecimento divino, sugerindo um “deus” não apenas alheio às Escrituras, mas que se opõe flagrantemente a ela.
CONCEITO UM:
Há os que não afirmam o endurecimento, mas o pré-conhecimento divino de que Faraó se endureceria, num ato livre. Mas, nesse caso, Deus é mentiroso, porque suas palavras são: “Eu, porém, endurecerei o coração de Faraó”. O agente aqui não é o monarca egípcio, mas Deus. O verbo é transitivo direto, demonstrando uma ação objetiva e deliberada do sujeito. O coração de Faraó sofre a ação de endurecimento, não há nada referindo-se a autoendurecimento, logo, Faraó é passivo, sem escolhas, nem opções, diante do agir divino. Ocorre que para defender o famigerado livre-arbítrio ou algum conceito de liberdade humana, o endurecimento tem de ser pela vontade livre de Faraó. Mas como aconteceria nos termos em que Deus nos apresenta o fato? Estaria Ele escondendo algo? Ou estar-se-ia a ler além do que escreveu e que nos foi revelado?
Pesquei essa pérola da ilogicidade e irracionalidade bíblicas: “Deus nos vê ontem, hoje e amanhã; logo, ele sabe que caminhos tomará. Contudo, ele se autolimita para que nós exerçamos integralmente nosso livre-arbítrio. Nós nos predestinamos, quando aceitamos ou recusamos seu convite”[1] [grifos meus].
Não há muito o que comentar, a não se que o autor exprimiu-se com uma sucessão de conceitos antibíblicos, e como tais, incoerentes e contraditórios. E, o mais engraçado é que ele está a explicar exatamente o trecho de Ex 7.3-5. Porém, em algum momento, o texto aponta para a autolimitação divina? Para o livre-arbítrio humano? Para um convite divino? Para aceitação ou recusa do homem? Deus por acaso disse: “como vi que Faraó endurecerá o seu coração, vou endurecê-lo (sic), e assim multiplicarei os meus sinais e as minhas maravilhas sobre a terra do Egito”? Afinal de contas, os sinais e as maravilhas são de Deus ou das obras humanas que Ele vê? E, como crer que o Deus bíblico pode, diante do que vê, escolher seus caminhos? Quem afinal manda no pedaço? A criatura ou o Criador? Deus não é dono do seu nariz? Ou as atitudes humanas implicarão na decisão divina? Uma decisão subserviente e limitada à própria limitação humana? O que, em última instância, indica a fragilidade, vulnerabilidade, inconsistência e servilismo de Deus, que mantém, sabe-se lá por quê, sua vontade completamente subjugada à vontade do homem. E, esse homem, é que se faz poderoso, pela debilidade divina, numa nítida inversão de papeis. O resumo da tragédia é: Deus deixou ser Deus. Mas, onde lemos que isso aconteceu? É possível Deus não ser Deus? Ainda que queira? E, por que quereria? Para que fóssemos livres? Mas livres de quê? De Deus? Pode alguém ser livre de Deus? Se pode, esse alguém é maior do que Deus. E, então, Deus finalmente deixará de ser o que é, para ser o que não é, o que nunca foi. Contudo, todas essas possibilidades são nada mais nada menos do que a mais estúpida e vergonhosa mentira. Uma corrupção da mente, uma afronta, que leva mesmo a cogitar-se na incredulidade dos seus propositores. No mínimo, é prova de ignorância escriturística.
No final, para concluir seus delírios, ele afirma: “Não devemos endurecer o coração para Deus. O convite bíblico é outro: você, que hoje está ouvindo a voz de Deus, não endureça o seu coração (Hb 3.8)”. Não que ele esteja errado em dizê-lo. A Bíblia nos exorta a não endurecer o coração, mas o verso 7 de Hebreus 3 diz: “Se ouvirdes hoje a sua voz, não endureçais os vossos corações, como na provação, no dia da tentação no deserto”. Ora, é preciso, primeiro, ouvir a voz de Deus. Então, pergunto, quem está apto a ouvi-la? O incrédulo ou o crente? O homem natural ou o homem espiritual? O eleito ou o réprobo? O santo ou o ímpio? Como ficam passagens que diz que Deus cegou o homem? Que Ele impediu que esses homens vendo, não vejam, ouvindo, não ouçam, para não terem o entendimento? O que dizer da afirmação do Senhor de que se Tiro e Sidom vissem os milagres que fizera em Betsaída e Corazim, se converteriam, e, portanto, não houve pregação em Tiro e Sidom? [Lc 10.13-15]. Cristo não fez milagres por lá, e assim, eles não "puderam" se converter. Cristo não fez milagres nelas, mesmo sabendo que, caso vissem, se converteriam; ao passo que preferiu pregar e operar milagres nas outras, sabendo que não se converteriam. Isso não pode ser somente presciência [parece que sim, mas não é; pois Cristo "viu" que em Tiro e Sidom eles se converteriam caso fizesse milagres, mas não os fez, a despeito da presciência], mas o poder de Deus de condenar tanto uma como outra cidade. Naquelas, por não operar ali os milagres que os levariam à conversão, mesmo considerando que eles teriam olhos para ver; e, nestas, por operar milagres e cegar os olhos a fim de que não vejam e não se convertam. Os réprobos irão ao inferno porque Deus estabeleceu que eles iriam; da mesma forma, os eleitos não irão porque Deus determinou que não fossem.
Novamente, a idéia a que tentam favorecer, o livre-arbítrio, está acorrentada aos desígnios divinos, não sendo, portanto, livre em nenhum aspecto.
CONCEITO DOIS
Muitos calvinistas, comumente, respondem à questão da seguinte forma: pela graça comum, Deus restringe o homem de tal forma que ele não agirá segundo a sua natureza, não dando vazão completa à sua pecaminosidade. No caso do Faraó, aconteceu que Deus “retirou” a sua restrição, expondo-o inteiramente à sua condição miserável de endurecer o próprio coração. Desta forma, Faraó se viu livre para agir como queria, na máxima capacidade de iniquidade.
Não vejo muita diferença no conceito de Deus determinar o fato e Deus retirar aquilo que Ele mesmo restringiu para que o fato ocorra. De qualquer maneira, o fato ocorrerá segundo o plano de Deus[2]. No final das contas, é o que importa. E em qualquer situação, seja na natureza de Faraó, seja na restrição a Faraó, seja na não restrição a Faraó, Deus está agindo ativa e positivamente para que o monarca realize efetiva e infalivelmente aquilo que Ele estabeleceu na eternidade.
A idéia da retirada da restrição a Faraó apenas favorece a idéia do agente-livre, mas que, contudo, está preso e acorrentado ao final que Deus planejou. Em linhas gerais, dizer que Faraó agiu segundo a sua natureza, de que Deus suspendeu a barreira que o impedia de pecar, em nada ajuda na questão. Ela é apenas um malabarismo com a tola premissa de que Deus precisa ser isentado de endurecer-lhe o coração, quando Ele mesmo afirma, por mais de dez vezes, que endureceu o coração de Faraó para que através dele o Seu nome fosse glorificado, e tudo o que havia determinado se cumprisse. Ao retirar a restrição [se é que havia restrição, segundo o critério de graça comum], Deus impeliu-o a agir segundo a Sua vontade; e o próprio ato de restringir não seria uma forma de Deus demonstrar a Sua soberania? Afinal, Deus não restringiu a liberdade de Faraó? O que implicaria em dizer que os pecados cometidos por Faraó foram controlados por Ele de uma forma ou de outra, seja na restrição, seja na não-restrição, para que o monarca realizasse exatamente aquilo que Deus havia estabelecido que fizesse.
No caso de Faraó, a não-restrição foi específica para que ele resistisse em não libertar o povo de Israel. Ela não teve nenhum outro efeito, apenas o de dirigir e "forçar" Faraó a resistir cada vez mais aos sinais que Deus realizou. Do ponto de vista prático, a não-restrição nada mais é do que Deus conduzindo Faraó a se rebelar, pecar, e realizar exatamente o que Deus traçou, em obediência mesmo na insurreição. Pouco importa dizer que Deus levou-o a pecar e praticar o mal, ou que Deus retirou a Sua mão e "liberou-o" para resistir, pecar e praticar o mal. O resultado é sempre o mesmo: Deus no controle de todas as coisas, mesmo do pecado e do mal. Deus no controle de todas as coisas, quer sejam pensamentos ou ações. Deus no controle de todas as coisas, quer seja no endurecimento do coração ou não; quer seja em mantê-lo como pedra ou transformá-lo em carne. A síntese é a de que Deus ordena tudo no universo soberanamente, e o homem obedece-o, inapelável e inexoravelmente. Como está escrito: "Bem sei eu que tudo podes, e que nenhum dos teus propósitos pode ser impedido" [Jó 42.2].
CONCLUSÃO
O que ocorre são contorcionismos mentais, malabarismos retóricos, uma maneira de turvar a água límpida através de subjetivismos, quando a Escritura é objetiva ao afirmar, reafirmar e confirmar que Deus não muda [Tg 1.17], é perfeito [Dt 18.13], santo [1Pe 1.16], soberano [Cl 1.16-17], e Senhor de todas as coisas [Sl 10.16].
Quer o homem aceite ou não.
Nota:[1] Por questões óbvias, não vou indicar a fonte da transcrição. Mas uma rápida pesquisa no Google poderá satisfazer os interessados.
[2] A idéia de graça comum é outra coisa que vem me quebrando a cabeça. Em vários aspectos, considero-a nociva ao entendimento da vontade de Deus. Começo a crer que há apenas um tipo de graça: a graça eletiva de Deus para com os eleitos. O restante, tanto as criaturas, como o universo, funcionam para que o amor de Deus pelos eleitos se manifeste. De outra forma, como explicar Deus derramando a Sua graça sobre os ímpios, os quais estão debaixo da Sua ira? Me parece ilógico e antibíblico.
[3] Hoje, depois de meditar muito sobre a questão, não entendo que o homem seja uma marionete nas mãos de Deus, mas que, ao ter o coração endurecido por Deus, Faraó também queria endurecê-lo ou, ao menos, viu no endurecimento uma acolhida para a sua atitude pecaminosa, como se ele deitasse em uma cama de pregos e refestelasse-se. Ainda não entendo muito bem como a coisa funciona, nem sei se entenderei, mas de alguma maneira inexplicável (ao menos no momento) Deus endureceu ativamente o coração de Faraó que, contudo, ansiou (a sua vontade; nada a ver com livre-arbítrio, não façam confusão) endurecer-se também. Ao pecar, como consequência do endurecimento divino, ele alegrou-se e sentiu o prazer que todo pecado traz ao pecador, ainda que momentâneo, sem nenhum arrependimento ou revisão do seu pecado. Por experiência própria, sei que ao pecar sinto-me alegre, ainda que por raros segundos; logo, não há como eu não me alegrar, nem pecar, se eu não quisesse o pecado. Desculpe aos amigos deterministas se pareço compatibilista, mas acredito que estou distante do compatibilismo; e não há como não reconhecer a realidade do pecado, como algo desejado e desejável, na vida do pecador, no caso acima, de Faraó.
[2] A idéia de graça comum é outra coisa que vem me quebrando a cabeça. Em vários aspectos, considero-a nociva ao entendimento da vontade de Deus. Começo a crer que há apenas um tipo de graça: a graça eletiva de Deus para com os eleitos. O restante, tanto as criaturas, como o universo, funcionam para que o amor de Deus pelos eleitos se manifeste. De outra forma, como explicar Deus derramando a Sua graça sobre os ímpios, os quais estão debaixo da Sua ira? Me parece ilógico e antibíblico.
[3] Hoje, depois de meditar muito sobre a questão, não entendo que o homem seja uma marionete nas mãos de Deus, mas que, ao ter o coração endurecido por Deus, Faraó também queria endurecê-lo ou, ao menos, viu no endurecimento uma acolhida para a sua atitude pecaminosa, como se ele deitasse em uma cama de pregos e refestelasse-se. Ainda não entendo muito bem como a coisa funciona, nem sei se entenderei, mas de alguma maneira inexplicável (ao menos no momento) Deus endureceu ativamente o coração de Faraó que, contudo, ansiou (a sua vontade; nada a ver com livre-arbítrio, não façam confusão) endurecer-se também. Ao pecar, como consequência do endurecimento divino, ele alegrou-se e sentiu o prazer que todo pecado traz ao pecador, ainda que momentâneo, sem nenhum arrependimento ou revisão do seu pecado. Por experiência própria, sei que ao pecar sinto-me alegre, ainda que por raros segundos; logo, não há como eu não me alegrar, nem pecar, se eu não quisesse o pecado. Desculpe aos amigos deterministas se pareço compatibilista, mas acredito que estou distante do compatibilismo; e não há como não reconhecer a realidade do pecado, como algo desejado e desejável, na vida do pecador, no caso acima, de Faraó.