04 fevereiro 2024

Nada de Novo no Front - Erich M. Remarque

 



Jorge F. Isah

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Este livro estava em minha lista já havia um bom tempo, na verdade, quase uma década. É interessante como fazemos relações dos itens a ler no ano seguinte e, ao término dele, muitos títulos foram abandonados, substituídos por outros ou simplesmente ignorados. Assim foi com “Nada de novo no front”, de Erich Maria Remarque.

E o que dizer?

O autor nos fisga com uma narrativa ao mesmo tempo cínica, humanista e transparente dos horrores da guerra; sem heróis, sem vilões, sem princípios ou razão, sem nobreza ou virtudes. Se existe algo a aprovar e contemplar seriam as relações interpessoais, a cumplicidade, o auxílio mútuo, as almas engatadas ao intento comum de sobreviver e tornar-se, um dia, página virada na história geral mas também individual... A despeito dos motivos históricos, da soberania das nações, das provocações e tudo o mais a conflagrar as guerras, a estupidez e malignidade do “espetáculo” não é casual ou imprevisto, mas meticulosamente programado. O erro, se assim pode-se dizer, está em nenhum dos lados admitir a derrota, mesmo que seja iminente e também precisamente calculada. Talvez, por isso, Remarque não perca tempo descrevendo a motivação ou incidentes a suscitar a guerra. Qualquer que seja, não existe razão a não ser a natureza diabólica do homem em destruir e ansiar o caos em sua forma mais organizadamente desvairada.

O livro é pacifista. O pano de fundo é a 1ª Grande Guerra. O autor, ele mesmo, em sua juventude, foi para a frente de batalha a defender a loucura dos loucos. E o realismo da narrativa se baseia essencialmente em suas experiências no front, entre explosões, ricocheteios, sangue, ratos, gases, doenças, mortes e tudo o mais a envolver a sanha encarniçada humana.

Um grupo de garotos, na faixa dos 20 anos, se vê na frente de batalha, a empunhar um rifle que, de tão gasto, já não conserva a mira correta e acaba, como o personagem principal relata, por abater os soldados do próprio pelotão. As condições são miseráveis. A Alemanha está às portas de perder a guerra que começou, e os recursos são escassos: comida, medicamentos, armamentos, munições, e sem dispor das técnicas mais modernas de combate. Se vê irremediavelmente suplantado pelos britânicos e americanos; mesmo assim, recusa-se a encarar a previsível derrota e alista mais e mais soldados em idade cada vez mais tenra, lançando-os sem qualquer treinamento prévio nas trincheiras e campos onde são dizimados às centenas e milhares pelos modernos e letais aviões da RAF, por tanques e artilharia sofisticada. Do lado germânico, cavalos e homens se amontoam nas valas e buracos das bombas, quando não são destroçados e espalhados por elas.

O princípio de tudo é o patriotismo, a defesa intransigente da nação, como se a existência individual não pudesse prescindir à estatal. O ser é determinado por onde você nasce ou vive, as cores da bandeira, o brasão nacional, o rei e seu governo (à época do evento), a glória e integridade pátrias. A recusa significa covardia e desonra, enquanto o prestígio está a serviço do país, mesmo se significar a morte e uma condecoração póstuma; e a sobrevivência garante ao “morto” a perpetuação do luto, angústia e desgosto tal qual uma pena capital em vida. Por isto, os mantras cívicos invocam sempre para a repetição de um amor e dedicação unilateral; o culto a fórceps, a subordinação a ferros... E a liberdade propalada é o “mote” para a escravidão.

Quando vejo as pessoas a brigar, segregar e estigmatizar conterrâneos que desconfiam das intenções de governos e políticos, sejam eles quais forem (e não vale citar os casos “raros”, pois esses nunca chegarão ao “verdadeiro poder”), e se debruçam em promessas e discursos nitidamente velhacos e patifes, algo de muito podre está a corroer a consciência e a suposta racionalidade. Por falar em racionalidade, as guerras de maneira geral, e a 1ª Grande Guerra em especial, derrubou o iluminismo e o racionalismo de várias gerações, e, por si só, já seria suficiente para desancar de uma vez as raízes das “luzes”, apontando-a como fraude e embuste. Afinal, se o homem é essencialmente racional, qual a lógica em promover (e, pior, defender cegamente) massacres, torturas e devastação em nome da razão? E fabricar mortos aos borbotões?

Remarque não explica a guerra, muito menos está preocupado em justificá-la, mas levantar a reflexão sobre a própria condição humana e sua capacidade de produzir o mal em níveis e proporções heterogêneas, contudo, incessante. O homem é mal, aponta, e o ódio ao inimigo não está simplesmente no instinto de viver, mas de destruir. A distância favorece a indiferença, mas quando ela se torna próxima, seja dos correligionários ou não, o impacto da vida esvair-se é doloroso e antinatural. Em dado momento, o protagonista, ilhado em uma cratera em meio ao detonar de granadas e bombas e o ribombar das metralhadoras, se depara com a visita de um soldado francês; ele desfere algumas facadas e o inimigo agoniza mortalmente. Enquanto ali, a ouvir o respirar aflito e os gemidos torturantes, o vê como a si mesmo, um homem comum, com mulher, filhos, lar, trabalho, uma vida igual à sua. Tenta ajudá-lo, sem sucesso. Tem remorsos por feri-lo (não consegue, porém, “consumar o seu feito”); jura gastar a sua existência para honrar aquele inimigo, assegura-se de saber o máximo sobre ele: nome, profissão, família, etc, a partir de dados e fotos da carteira. Após sobreviver, e passarem-se alguns dias, sequer se lembra do soldado, e abandona qualquer tentativa de cumprir as promessas feitas no covil. O remorso faz parte da história, esquecida e longínqua, e as lembranças não têm lugar na memória, na alma, na inconsciência do dever cumprido, seja lá o que isso represente.

Remarque escreve de maneira fluída, onde as descrições de eventos, lugares e pessoas é minuciosa, disseca as angústias, medos, desejos e o artificialismo nas trincheiras e descampados, sem deixar de pontuar trechos lúdicos e outros bucólicos. Pode-se encontrar até movimentos poéticos, se o leitor tiver a devida atenção.

O livro é impactante, daqueles difíceis de esquecer. O senão, a meu ver, é o final. Apesar de condizente com a narrativa, eu preferiria dar-lhe um aspecto mais, digamos, indefinido e, quem sabe, otimista. Contudo, em nada diminui ou anula o valor da obra.

Um ponto a se considerar, e me levou a refletir, é quanto a perceptível ausência de elementos metafísicos. Talvez, porque a guerra é dos homens, e a eles apenas deve ser imputada, jamais a Deus. Talvez, porque Remarque considera o homem abandonado por Deus e, como tal, não poderia invocá-lo a seu favor. Talvez, porque a guerra seja o inferno profetizado, seus atores condenados, e nada possa mais ser reparado. O fato é que, enquanto o homem se perder em si mesmo, achará apenas mais de si, e isso, na maioria das vezes, significa a batalha inglória e sem fim.

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Avaliação: (****)

Título: Nada de novo no front

Autor: Erich Maria Remarque

Editora: L&PM

Páginas: 208

Sinopse: “Aos dezoito anos de idade, Erich Maria Remarque (1898-1970) conheceu as trincheiras alemãs da Primeira Guerra Mundial. Foi ferido em três ocasiões. Saiu do conflito profundamente marcado e perplexo com a crueldade da guerra. Durante a década de 20, enfrentava a insônia carregada de fantasmas tomando notas sobre os horrores que viu e viveu no front. Os rascunhos formavam o núcleo de um romance. Publicado em livro no ano de 1929, "Nada de novo no front" firmou uma posição radicalmente pacifista em um mundo que ainda via a guerra como uma alternativa política e determinou o perfil antibelicista que habita a literatura ocidental até hoje.”

Nota: Texto publicado originalmente na Revista Bulunga


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