09 setembro 2023

O Menor espetáculo da Terra

 





Guido Malaparte¹


        Quase ninguém da grande mídia noticiou o esquema bizarro, vil e criminoso envolvendo uma ong de direito dos animais. Por mais estranho que pareça, quase imediatamente após a prisão da principal acusada de arquitetar e executar hedionda barbárie, uma decisão judicial impediu qualquer alusão à ONG, sua diretiva e, por conseguinte, dos incriminados, sob pena de prisão e multas progressivas, sem que houvesse em toda a decisão forense um único argumento plausível e legal, restando ao magistrado justificar-se com o ditério: preservar a democracia e impedir atos antidemocráticos.

        Talvez, por isso, mas não somente por isso, houve um silêncio perverso em noticiários, noticiosos e ordinários, somente quebrado por eminente portal que imediatamente, após veicular a manchete, teve bloqueadas as suas contas bancárias, receitas e multada em U$ 1.404.040.404,40, valor tão sugestivo como a própria multa; e o boca-a-boca tratou logo de associá-la a certa história das mil e uma noites, e a chamá-lo, o incidente, de “fecha-te-sésamo” .

        O referido Portal (tornou-se proibido citar, mencionar ou se referir nominalmente a ele), em um último estertor, publicou na edição seguinte denúncias contra o cercear da imprensa, o fim da democracia, o acoitamento de bandidos e a injustiça com os cidadãos de bem, além de manipular fatos, dados e omitir a realidade em favor de fábulas corporativistas.

     A verdade é: se não fosse o tal portal, ninguém, hoje, amanhã ou depois, saberia do ocorrido. E mesmo com as ameaças, punições e reclusão de quase todo o corpo jornalístico, enquanto foi possível manifestaram-se veementemente contra o fim da liberdade. Durante isso, os demais periódicos especializaram-se em abarrotar páginas e telas com receitas culinárias, moda outono-inverno, o mais novo escândalo das apostas esportivas e o esmiuçar-se dos detalhes mais sebentos e frívolos dos reality-shows e novelas.

    Estou aqui como um jornalista independente, mesmo trabalhando como escravo para a Revista Bulunga, o que não me torna independente nem escravo, talvez as duas coisas ou nenhuma... se considerar entre uma e outra, pode ser provável o escravo trabalhar independente do dono, mesmo sendo ele o seu próprio dono e, até mesmo dono do dono que lhe paga, independente de quanto paga e quanto se recebe... Ah, importa mesmo dizer que este textículo não tem nada de elucidativo ou interpelativo, e seja de fato tão somente apelativo à ignorância do leitor e de quem vos escreve... Ao meu editor, não tenho nada a dizer, já que ele não me deixou dizer o que devia quanto mais deixará que eu diga o que queria, mas se me chamar para um churrasco ou chimarrão, estarei disposto ao sacrifício e a passar por cima de tudo. Isso não o isenta de culpa, mas ao menos me fará ser sempre indolente e contemporizador e, como vingança, comerei até estourar as presilhas da cinta abdominal...

    A verdade, nua e crua, é que ele não me permitiu citar o ocorrido, dar nome aos bois e vacas, e cumprir a minha vocação profissional. Entendo as necessidades do veículo, de ainda não ser grande o suficiente para peitar o mainstream pusilânime e intransigente. Reconheço: não é tarefa para muitos; e até mesmo os maiores grupos editoriais colocaram a violinha no saco. De qualquer maneira, pelo menos, posso dizer o que não quero dizer e não dizer o que quero dizer, sem perder o emprego e ir parar em um gulag equatorial.

    Então, nada mais justo do que terminar este texto falando do que todo mundo anda alardeando como a notícia do ano, não, da década, talvez, do século: o casamento da Mulher Jaca com Zangão, um dos anões do circo Catatau, autodenominado “o menor espetáculo da terra”; não tão pequeno a ponto de o país inteiro poder assistir a essas e muitas outras gabolices... Ao mesmo tempo em que me preparo para dormir às três da tarde...

    Bons sonhos!

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1) Guido Malaparte é jornalista e redator na Revista Bulunga
2) Texto publicado na Revista Bulunga e republicado aqui sob autorização do autor e editor

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