13 março 2023

Homem Comum, de Philip Roth: Atulhar o vazio

 






Jorge F. Isah



O homem e suas contradições, contraposições, escolhas e rutilantes incertezas... Mesmo a mais convicta das pessoas se vê, vez ou outra, metida em paradoxos e desfechos indesejados, cruéis e ordinários. Isso ocorre com todos, excepcionais ou comuns, de sorte que ninguém escapa aos dilemas e embaraços do cotidiano. Assim também são os personagens de Philip Roth, e a bem da verdade de qualquer bom escritor. Podemos rotular e estigmatizar pessoas ao bel-prazer de nossas definições e imprecisões, mas certamente o estereótipo será muito mais resultado de quem avalia ou interpreta do que propriamente do responsável ou causador, pois quase sempre vemos a capa ou o invólucro e pouco ou nada sabemos do íntimo, o que está por dentro da casca. Vá lá!, tem gente oca, onde existe apenas a casca, e essa na maioria das vezes fininha, diáfana, e permite observar com clareza o vácuo intimidador, mas não se pode ampliar ao todo o pertencente a alguns ou poucos, mesmo sendo muitos. A generalização é inimiga da reflexão, e o ser humano vai muito além de simples adereços ou penduricalhos a defini-lo.

O Homem Comum trata portanto de um homem comum, não tão comum, mas essencialmente comum. Daqueles possível de se encontrar em qualquer esquina ou mesa de lanchonete ou no ônibus ou metrô. Desprendido do senso moral, equilibra-se (ou tenta fazê-lo) a partir dos seus instintos, do hedonismo capaz de trazer-lhe prazer e realização momentâneas; a busca por aventuras juvenis, ao quebrar regras de convivência e em seu egoísmo deparar-se constantemente com a mais consistente solidão. As pessoas são meros instrumentos, nada que não possa ser abandonado e substituído, e a vida vai tecer-se em uma bolsa irremediavelmente vazia e despojada de sentido. Ele se dá relativamente bem no âmbito profissional, e poderia ser ainda mais bem-sucedido se não fosse tão somente uma exigência dentro das suas necessidades: o desfrute e os prazeres, independente dos seus efeitos.

Ao envelhecer e aproximar-se da morte, várias vezes a espreitá-lo em suas recentes internações e cirurgias, começa a ter, mesmo parcialmente, a visão realista da sua vida e sobretudo do modo em dispô-la. Algo tornava-se insuportável em sua inevitabilidade, cada vez mais ostensiva e inegável. Algo se tornava irreconciliável pelos anos e anos de disputas, pela instabilidade emocional, muito mais do que física, pelos desprezo aos vínculos, à lealdade, ao convívio superficial e instantâneo com que teceu os relacionamentos e, por que não, a própria relação consigo mesmo. Estranhamente ou melhor, ordinariamente, o protagonista de Roth é a multidão de vozes da humanidade, em especial neste tempo onde as certezas e esperanças absolutas não são cultivadas mas ignoradas em favor das incertezas e do pessimismo a tornar as vidas em amontoados de acidentes, contingentes e circunstanciais, uma armadilha tosca, primitiva mas terrivelmente eficiente. É aquela mosca, no exercício da sua plena liberdade, capturada na teia estática e quase invisível aos seus inúmeros olhos. Apanhada, não tem como escapar, e se torna naquilo sequer imaginado, pensado, sugerido, a despeito dos embustes a circundá-la. Ao negar não ver, a própria visão torna-se espólio na cilada.

Tal como o “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, o morto reflete sobre a sua vida, sem qualquer possibilidade de alterá-la, de redenção, talvez servindo de alerta aos leitores, o gemido transcendente a ecoar em ouvidos vulgares, como a dizer: fujam de mim! Faz-me lembrar do Rico e do Lázaro. Mortos, o Rico sofre nas profundezas do inferno e pede a Abraão para enviar Lázaro até os seus amigos e parentes a fim de alertá-los sobre o lugar terrível para onde foi e inevitavelmente também iriam. Abraão não atende ao pedido do Rico, porque eles, os vivos, tinham Moises e os profetas a exortá-los (não vou entrar nos pormenores teológicos), mas, de alguma maneira, Roth recebe a mensagem do além e a retransmite, sem indicar a direção correta e perfeita, apenas revelando a precariedade vivida pelo nosso herói.

O livro inicia-se com o funeral e a morte é presença constante durante a narrativa. Aos nove anos, internado, presencia a morte de um garoto, e isso o impressionou tanto que carrega o sentimento de perda por toda a vida, como se aquele menino fosse também parte de si mesmo. De alguma maneira, naquele episódio, o protagonista morre um pouco, e morrerá muitas outras vezes enquanto vê partirem parentes e amigos. Ele sente-se fragmentar, esfarelar-se nos anos e décadas, e nada mais lhe resta do que escolher os prazeres porque o dia seguinte pode não mais existir. O desconforto e inconsciência refletem em amargura, aflição, suportada pelo sexo obstinado e, por meio dele, aos próprios olhos, fazer-se invulnerável, um estoico diante do destino.

Ao abandonar esposas, filhos e irmão (de quem inveja a saúde), afasta-se de si mesmo; a tentativa desesperada de fugir ao desígnio iminente e, tal qual aquela mosca, acaba aprisionando-se ainda mais a ele. Nada disso, entretanto, é capaz de aplacar a solidão e alterar-lhe o fim.

Roth, como tantos outros autores judeus, vislumbra um mundo sem Deus, sem propósito, e existências vazias reparadas somente pela morte. Ela é o “grand-finale”, quase uma divindade, terrível, o Tânatos banal e inevitável das vidas comuns (sim, todos acabarão, cedo ou tarde, se defrontando com o “esconderijo da vida”), mas aglutinadora de todos os enganos ambíguos e duvidosos, o desfecho lógico e consciente de um mundo irracional e leviano. E neste aspecto não resta outra opção a não ser entregar-se a ela, ainda que o encontro lúgubre estenda-se como em um longo velório por toda a vida.

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Avaliação: (***)

Título: O Homem Comum

Autor: Philip Roth

Páginas: 128

Editora: Cia das Letras

Sinopse: “Em Homem comum, Philip Roth explora o tema da perda, do arrependimento e do estoicismo ao voltar sua atenção para a luta de um homem contra a mortalidade. Acompanhamos o destino do protagonista a partir de seu primeiro confronto com a morte, nas praias idílicas dos verões da infância, passando pelos conflitos e pelas realizações da idade adulta, até a velhice, quando ele fica dilacerado ao constatar a deterioração de seus contemporâneos e dele próprio.”

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