22 janeiro 2017

Para onde vão as almas dos infantes?



JORGE F. ISAH


Esta é uma resposta difícil de dar, especialmente porque a Bíblia pouco ou quase nada diz sobre o assunto diretamente, o qual há séculos intriga e inquieta muitos cristãos. Por isso, não estou aqui para colocar uma pedra sobre ele dando uma solução infalível, ou abandonando-o; pelo contrário, acho que revolvê-lo-ei um pouco mais.
Primeiro, acreditamos que todos, sem exceção, têm uma alma e de que nela encontram-se o nosso intelecto, emoções, sentimentos, razão e vontade, sendo a nossa parte imaterial, contudo, ligada inexoravelmente à parte material, o corpo. É o que a Escritura nos diz quando Deus criou "o homem do pó da terra, e soprou em suas narinas o fôlego da vida; e o homem foi feito alma vivente" [Gn 2.7]. Isso nos leva a pensar na completude do homem e de que ele somente pode ser analisado por inteiro, sem menosprezar, como faziam os gnósticos, o corpo, na qual consideravam estar a alma "aprisionada" e de que somente separado dele seria livre [essa doutrina parte da dicotomia defendida por Platão, segundo o qual a realidade se dividiria em dois mundos, o dos sentidos, transitório e imperfeito, e das ideias, eterno e perfeito]. Esse é um disparate, ainda que possa, do ponto de vista filosófico, ser considerado engenhoso, por aparentemente solucionar o problema do mal e do pecado. Porém, se atermos ao fato de que os desejos e a vontade estão diretamente ligados ao intelecto [o que é-se discutível, visto, por exemplo, a fome e a sede procederem do corpo para a mente,  e dela retornar ao corpo para satisfazê-la; estando aí a inseparabilidade corpo/alma de que falei, uma unidade, onde os vários aspectos que movem o homem são indissociados], em princípio, o mal e o pecado originar-se-iam na alma e não no corpo. Mas este não é o foco do presente estudo, mas afirmar, conforme o ensino bíblico, que o homem tem uma alma.
O segundo ponto é: quando a alma se une ao corpo? Acreditamos que isso acontece na concepção, e a Bíblia nos apresenta várias evidências nesse sentido, por exemplo, Deus diz que santificou Jeremias "antes que saísse da madre" [Jr 1.5], e Paulo diz agradou-se Deus de, desde o ventre, tê-lo separado, e chamado-o pela sua graça [Gl 1.15]. Há ainda o fato de João o Batista ter saltado de alegria no ventre de sua mãe, Izabel, com a proximidade de Jesus que ainda estava no ventre de Maria [Lc 1.41-44]. Temos que, uma criancinha, ainda no útero, se alegrou e saltou ao encontrar-se com o Messias, que motivou-lhe tamanha emoção. Esse é um dos relatos mais pungentes da Escritura, quando percebemos que um bebê ainda não nascido se regozijou, exultou-se, ao encontrar-se com seu Senhor que, também, não havia ainda nascido. É uma passagem emblemática revelando não somente o fulgor de Cristo mas a sua divina imagem de, mesmo no útero, provocar o êxtase a outro nas mesmas condições, também ainda não nascido. Há ainda o fato de João o Batista ser seis meses mais velho do que Jesus [Lc 1.24-25;36-38], e ao visitar a sua prima, Maria ficou com ela três meses, vindo João nascer depois de sua partida, o que nos leva a concluir que Jesus havia sido concebido havia poucas semanas [menos de um mês]. Se Cristo é humanamente igual a nós, à exceção do pecado, embriões e fetos já têm em si a alma na qual está a identidade, o que os faz ser o que são. Bastaria somente essa passagem maravilhosamente sublime para que muitos cristãos se convenção da pecaminosidade do aborto e de sua origem maligna.
Partimos então para o terceiro ponto, que é a condição imortal da alma. Mesmo diante da deterioração progressiva do corpo resultando na morte e na sua volta ao pó, a alma não morre, no sentido de ser destruída ou transformada em outra coisa, como uma espécie de energia a integrar-se a uma consciência cósmica universal, reivindicada por budistas e teosofistas, por exemplo.
A alma do salvo retorna para Deus, enquanto a alma do ímpio irá para o inferno [Lc 16.22-23]. Partimos então do princípio de que a alma é imortal, e de que somente aquela que crer em Cristo será salva [Jo 3.36]. Para mais informações sobre esta doutrina, leia e ouça as aulas ...
Então, para onde vai a alma do infante que morreu?
Há três vertentes mais difundidas entre os cristãos. A primeira é de que todas as crianças vão para o céu, baseada em Is 7.16 que fala de uma idade antes de que o menino saiba rejeitar o mal e escolher o bem, defendendo a tese de que há um período na infância em que a criança não é moralmente capaz de escolhas, não podendo ser-lhe imputado o pecado por conta da sua incapacidade, de ainda não ter atingido a "idade de responsabilidade". Outro trecho que parece corroborar essa ideia é aquele em que Davi, após a morte do seu primeiro filho com Bate-seba, diz que não teria como fazer a criança voltar, pois "eu irei a ela, porém ela não voltará para mim" [2Sm 12.23], demonstrando a convicção e certeza de que a encontraria na eternidade. Com isso, se diz que todas as crianças, desde que não tenham ainda a capacitação moral são puras como os anjos celestiais. Muitos até mesmo acreditam, literal e sincreticamente, que elas se tornarão em anjos após a morte. Mas, e quanto ao fato da criança, desde o ventre, ser pecadora e herdeira do pecado, como o próprio Davi afirmou, "eis que em iniquidade fui formado, e em pecado me concebeu minha mãe [Sl 51.5]? E, Paulo, ao dizer que "todos pecaram, e destituídos estão da glória de Deus"? [Rm 3.23], e ainda, "portanto, como por um homem [Adão] entrou o pecado no mundo, e pelo pecado a morte, assim também a morte passou a todos os homens por isso que todos pecaram" [Rm 5.12]. Adão, no Éden, representava toda a raça humana formada por crianças e adultos, logo, quando ele caiu, todos nós caímos juntamente com ele. Ora, o próprio fato de bebês e crianças [e embriões e fetos] morrerem já é prova de que estão sob o efeito da natureza pecaminosa, já que a morte física é uma das consequências do pecado. E se todo pecador está morto espiritualmente diante de Deus, ele já se encontra em um estado de depravação natural, e, portanto, a alegada incapacidade moral de escolha do bem e rejeição do mal não se aplicaria para absolvê-lo. O mesmo acontece com aqueles que nasceram mentalmente incapazes, pois assim como aquelas também carregam em seus lombos a natureza pecaminosa, e ninguém tem direito à salvação pelo princípio da ignorância ou da  inocência, visto que todos são pecadores e são inescusáveis diante de Deus.
Outra hipótese defendida é a de que somente as crianças que viriam a crer iriam ao céu, de que, caso tivessem vivido, creriam em Cristo. Este ponto se baseia no fato de Deus conhecer o princípio e o fim de todas as coisas [Is 46.10], e de que ele conhece todas as possibilidades, mesmo as que não se realizarão, o que é verdade, mas o interessante é que ele não fala de possibilidades, de fatos possíveis mas não realizáveis, pelo contrário, o Senhor diz: "anuncio o fim desde o princípio, e desde a antiguidade as coisas que ainda não sucederam, que digo: O meu conselho será firme, e farei toda a minha vontade". Ora, o Senhor não está a falar de hipóteses, mas de coisas que acontecerão e que ele já as conhece, pois são frutos da sua vontade. O que temos é a afirmação divina da sua soberania, de que nada escapa-lhe ou foge ao controle, e de que nenhuma folha cai da árvore sem que seja da sua vontade. Ele se revela como um Deus ativo, providente, onde não há passividade, nem de que as suas decisões serão tomadas por meio de suposições ou daquilo que não aconteceu nem acontecerá. A Bíblia é um livro de fatos, em que a realidade está presente constantemente, não cabendo esse tipo de conclusão a que alguns se entregam, como se Deus não fosse capaz de cobrar a cada um segundo aquilo que cada um fez, e de prover que ele o faça. A própria questão da responsabilidade se torna discutível nesse caso, pois como alguém que não teve a oportunidade de reconhecer Cristo como Senhor e Salvador pode ser condenado por presunção, ainda que divina? Ou ele é condenado porque já o é desde o ventre, ou ele ouvirá o Evangelho e se converterá, salvado-se. Veja bem, não estou dizendo que Deus não pode fazer algo, pois ele pode tudo. O que ele nunca será é incoerente e omisso, por isso a Escritura o revela como o Deus presente e ativo em todos os fatos e eventos. Portanto, parto do mesmo princípio de responsabilidade moral no qual os defensores dessa tese se fundamentam. Se a eleição e a predestinação não são justas, ao ver deles, por que a tese da vontade presumível ou atribuída seria? Onde há injustiça? Entre alguém que nasceu corrompido pelo pecado, morto para Deus, pecou deliberadamente e, eleito de Deus por sua graça e misericórdia, creu em Cristo como seu Senhor e Salvador? Ou aquele que nasceu corrompido mas não pode crer, e ainda assim foi salvo porque poderia vir a crer, quando não creu?
Há ainda a tese de que o batismo infantil é capaz de limpar o infante de seus pecados. Por isso a urgência de se fazê-lo o mais rapidamente possível após o nascimento, como um testemunho de fé dos pais e padrinhos, mas também como redentor da pequena alma. E, no caso das crianças abortadas, e dos que nasceram mas não foram batizados? Tem-se a crença de que existe um "limbo" onde elas ali passarão e serão purificadas pelas orações e encomendas da sua alma, de um lugar de passagem para um lugar definitivo no reino dos céus. A verdade é que nada disso é bíblico ou tem respaldo bíblico. Há, como no caso dos defensores da responsabilidade atribuída, uma presunção, uma alegação hipotética para se induzir uma falsa doutrina, no primeiro caso, de que Deus não é soberano, no segundo caso, de que a igreja detém uma autoridade que não lhe é devida, a de purificar e limpar os pecados através de um rito sacramental.  Alguém pode considerar que estou sendo excessivamente duro, e de que o meu argumento é simplista e reducionista demais ao rejeitar as três hipóteses. Mas penso que, primeiro, ele deve explicar em quê o meu raciocínio está equivocado, e se a conclusão lógica ao que eles propõem não é a mesma em que cheguei; e em que eles estão corretos.
O problema maior é que acaba-se por criar vias diferentes de salvação que não seja exclusivamente pelo sangue de Cristo derramado na cruz do Calvário. O que estão a propor é que há outra[s] forma[s] do homem, criança ou adulto, assegurar-se no céu. Mas o certo é que a Bíblia é clara em nos mostrar que apenas pela obra de expiação, substituição e justificação o homem pode ser salvo. Acrescente-se a obra de santificação pelo Espírito Santo. Sem isso, nada pode ser feito, e a alma perecerá no inferno. O que eles querem é, via de regra, tirar a glória de Deus e transportá-la, ainda que parcialmente, ao homem, seja em seu caráter individual ou coletivo como igreja. Contudo, não se tem respaldo bíblico para nenhuma dessas vertentes doutrinárias apresentadas. Então, para onde vão as crianças? perguntaria o impaciente interlocutor imaginário.
Pois a minha resposta é: apenas o eleito, regenerado e lavado no sangue de Cristo, salva-se. Com isso quero dizer que todas as crianças são eleitas? Ou há crianças eleitas e que passarão a eternidade no céu, e não eleitas que passarão a eternidade no inferno?
Apenas naquele dia, em que tudo nos será revelado, saberemos todas as respostas, inclusive a estas perguntas. 


Nota: 1- Os que acreditam que é possível haver crianças não eleitas que morrem na infância, entendem que a expressão se refere também ao modo como as crianças que morrem na infância são salvas, mas limitando o número dessas crianças apenas às eleitas. Assim, a Confissão de Fé estaria ensinando que “as crianças que morrem na infância, se forem eleitas, são regeneradas e salvas por Cristo.” É como interpreta G. I. Williamson, quando afirma: “Esta parte da Confissão ensina:
1) que há alguns seres humanos ‘que são incapazes de ser exteriormente chamados pelo ministério da palavra,’ 
2) que esses tais podem ser eleitos, e 
3) que nesses casos o Espírito opera quando, onde e como quer.”. 
A seguir declara, referindo-se ainda à  Confissão de Westminster:
'Ela apenas diz “crianças eleitas, que morrem na infância,” sem especular quantas dessas pessoas, muitas ou poucas, possa haver. E o mesmo é verdade com respeito a “todas as outras pessoas incapazes de ser exteriormente e chamadas pelo ministério da palavra.” Pode-se supor que sejam muito poucas em número, ou muitas. O ponto importante é que, desde que a Escritura não o diz, não podemos nem ousamos dizer também. Entendemos que este último é o modo correto de interpretar o texto confessional.'

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