22 novembro 2010

Pagando a dívida, e ainda devedor [Comentário a Gl 2.20]













Por Jorge Fernandes Isah

    Gálatas 2.20 é um versículo precioso, poderia dizer, inigualável. Não somente porque foi o versículo da minha conversão [que descrevi no texto O dia em que Cristo me fez], mas porque, de uma forma singular, poder-se-ia resumir a vida cristã ou, ao menos, descrevê-la plenamente. É também o alvo, o de um dia poder dizer: “Já estou crucificado com Cristo; e vivo, não mais eu, mas Cristo vive em mim”. São palavras que me acalentam, me dominam, me compungem a encontrar-me nelas. Poderia ser a epígrafe cravada na minha sepultura, porém, muito mais a quero gravada em meu coração. O resumo de tudo o que almejo e quero experimentar. Mais do que isso, ser. E desde aquele momento, decorei-as, como se decora a melodia da mais bela entre todas as canções. Como se ouvisse a sinfonia perfeita, inefável, a síntese do mais puro e santo sentido, ainda que com palavras indizíveis em sua verdade absoluta e extraordinária. Como se estivesse a construir algo que sei impossível, por mim mesmo, construir. De certa forma, invejo a Paulo por ter sido ele e não eu a proferi-las; mas creio que saídas de sua boca, elas têm o som da minha voz, o som da sua voz, o som da voz de todos os santos, daqueles que são um em Cristo, e por ele vivem.
     
       Mas, o que levou o apóstolo a proferi-las?
    
     A mensagem central de Gálatas é a disputa: Lei x Evangelho. Em vários momentos, parece haver o desprezo de Paulo pela lei, como se fosse descartável e não existisse mais nenhum sentido nela. Mas esse não é o caso. Em outra carta, ele diz: "E assim a lei é santa, e o mandamento santo, justo e bom” [Rm 7.12]. E, ainda: “Anulamos, pois, a lei pela fé? De maneira nenhuma, antes estabelecemos a lei” [Rm 3.31].
    
   O que está em disputa entre Paulo e os judaizantes é a lei como instrumento de salvação. Eles pregavam contra o Evangelho, ao afirmar que era necessário se cumprir toda a lei para salvar-se. Por isso, o apóstolo diz: “Se a justiça provém da lei, segue-se que Cristo morreu debalde” [ 2.21]. Ora, se para ser salvo o crente deveria cumprir toda a lei, qual a razão de Cristo encarnar, padecer, e morrer na cruz? Por isso o homem não é justificado pelas obras da lei, mas pela fé em Jesus Cristo [2.16]. Desta forma, Paulo constrói a defesa do Evangelho da Graça, sem que haja nenhum tom antinominiano [1] em seu discurso, pelo contrário: “É porventura Cristo ministro do pecado? De maneira nenhuma. Porque, se torno a edificar aquilo que destruí, constituo-me a mim mesmo transgressor” [2.18].

     Se Cristo pagou na cruz a dívida que tínhamos para com Deus, e se está paga, definitivamente paga, o que mais podemos fazer que ele não fez? Fico a imaginar Paulo rindo-se da tolice desses homens, mas entristecendo-se pelo caráter sutil e maligno de distorcerem a fé a fim de enganar incautos, e anular a graça.  Cristo, ao destruir o pecado e seu caráter condenatório sobre os eleitos, não poderia restituí-lo novamente, ao ponto em que seria exigido o cumprimento da lei para a salvação. Se a justiça foi decretada na cruz para os que crêem, se o pecado foi morto, ressuscitá-lo significaria dizer, entre outras coisas, que a obra do Senhor não foi eficaz, e de que, loucamente, ao trazer a justiça, trouxe a injustiça.

  O apóstolo está a condenar aqueles que anteriormente pregavam o Evangelho da graça, para agora viver pela lei, tornando-os em transgressores, porque quem não está morto para a lei, vive para ela, ou seja, vive para a morte, pois pela lei ninguém pode ser justificado perante Deus [3.11],  antes está debaixo da maldição da lei. Ao contrário, quem está morto para a lei, vive para Deus, eternamente. Paulo ensina a teologia correta, a doutrina correta, mas muito mais do que isso.

      Ele disse que estava morto para a lei.

      Que estava crucificado com Cristo.


      Que vivia, não mais ele, mas Cristo.


      Que Cristo o amou, e se entregou a si mesmo por ele.


      Então, o que levou o apóstolo a proferir o verso 2.20?

    A consciência de tudo isso acima, mas, sobretudo, reconhecer que, sem Cristo, nada disso seria possível. Nem mesmo ele, Paulo, seria possível. De uma forma maravilhosa, Paulo reconhecia a completa dependência do Senhor, e a obra fantástica que fez para que ele pudesse reconhecer-se em Cristo. Sem ele, o que seria Paulo? Sem Cristo, o que seria eu? Você? Não haveria esperança, não haveria o perdão, nem a salvação. Apenas a tristeza assoladora de que a condenação era questão de tempo, irremediável, uma maldição a pairar sobre nossas cabeças eternamente. E se eu, antes condenado, agora salvo pelo poder de Deus, o que quereria exaltar em mim mesmo para voltar à destruição? Ou seria possível exaltar-me na ruína? Ou antes, arrependendo-me de mim mesmo para ser um dia como Cristo é? Pois se olharmos para nós, como somos, sem Cristo, não haverá nada além de  condenados sem que seja preciso esperar o castigo, pois estamos já a “curtir”, sobre nós, a ira de Deus. Se olhar para mim, descobrirei apenas que sou miserável, e nu, e cego. Se olhar, e apenas me ver, há um pecador naufragando em pecados. Se sou o futuro, não há futuro; apenas o passado de morte, de sofrimento e angústia. Ao contrário, se vejo Cristo em mim, assim como Paulo o via em si, as coisas mudam de figura. Já não sou mais um condenado, antes justificado. De pecador, a santo. De maldito, a bendito. De desgraçado e vil, a agraciado e amado.

    A teologia de Paulo [2] estava certa. Ela lhe trouxe esperança, certeza, convicção. E abriu-lhe os olhos para a mais surpreendente e inesperada verdade, de que ele já não era mais ele, mas Cristo a viver nele. E trazia no seu corpo as marcas do Senhor [6.17], marcas profundas que não o impediam de se ver como era, de reconhecer o que era, de gloriar-se nas fraquezas para que o poder do Senhor em si habitasse [1Co 12.9].  Porém, antes era necessário que compreendesse e conhecesse isso, para depois sentir; pois, como sentir o que não se conhece ou não compreende? Como alguém desejará o que não conhece?

    Como qualquer homem, ele tinha de nascer, crescer e amadurecer na fé. Mas ninguém nasce por si mesmo; era necessário que fosse gerado por Cristo; que o sangue do Senhor não somente o limpasse dos pecados, mas corresse em suas veias e bombeasse no seu coração a vida. A vida que somente o Senhor poderia dar, e deu, a despeito de todo o desejo de nos apossar dela como se fosse nossa por direito, e não por dádiva, misericordiosa, e graciosamente entregue pelo amor com que Deus nos amou. O caminho nos é mostrado, mas não há nada que nos faça andar nele, se não nos for revelado. Quem não pode ver, como saberá onde andar?

    O certo é que, como João o Batista disse, era necessário que ele diminuísse e Cristo crescesse [Jo 3.30].

      E assim será para todos os que foram crucificados e mortos com Cristo.

     Se ele não viver em nós, a morte viverá.

Nota: [1] Antinomianismo significa “antilei”. É o oposto de legalismo, e como ele, uma heresia. Para os defensores do antinomianismo, o crente não tem de obedecer à lei de Deus, pois Cristo à pregou na cruz. E se a pregou na cruz, está-se livre para viver como quiser, inclusive pecando o quanto quiser; ao ponto de até mesmo distorcerem o sentido de graça, ao afirmar que, quanto mais se peca, mais a graça se manifesta.
[2] Paulo, ao defender magistralmente o Evangelho da graça, afirmando a justificação somente pela fé no sangue derramado de Cristo na cruz, defende também a sua autoridade e ministério contra os falsos-mestres, os detratores que buscavam difamá-lo e desqualificá-lo como apóstolo. E nada mais verdadeiro do que reafirmar que estava morto para si, para viver para Cristo, enquanto aqueles queriam viver por si mesmos.
[3] Aguçado pela conversa com uma querida irmã, lembrei-me que devia um texto sobre Gl 2.20. E, por mais que escreva, sempre serei devedor a Deus por tê-lo dado a mim.
[4] Não entrei muito na questão da impossibilidade da lei como meio de salvação, a qual farei brevemente em outro texto.
  

16 comentários:

  1. Uma coisa que ninguém em tempo algum nesse país disse nesse blog: "excelente texto" em defesa da graça meu irmão.

    Um abraço querido irmão!!!

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  2. Sem a Graça em nada adiantaria todos os méritos humanos. Com a Graça todo esforço no crescimento cristão tem seu valor e propriedade. Graça faz contraste com mérito e nunca com o esforço de desenvolver a salvação com tremor e temor. Excelente texto. A nós cabe enaltecermos a eterna Graça de Jesus.
    Um abraço
    Em Cristo

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  3. A graça é uma estupenda resposta tanto ao legalismo quanto ao antinomialismo. E é tão extraordinariamente simples que pode ser compreendida pelo analfabeto e pelo erudito, pela criança e pelo adulto. O ímpio se escandaliza, por exemplo, quando ouve falar que um facínora na cadeia foi salvo por Cristo e é agora nova criatura. Mas há cristãos, igrejas e até denominações inteiras que também não conseguem entendê-la. Eu mesmo fui criado numa denominação legalista na qual jamais ouvi um único sermão a respeito da graça de Deus. Uma redescoberta desta doutrina em nosso meio evangélico promoveria uma grande Reforma no cristianismo de nosso País.

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  4. Helvécio e pr. Luiz Fernando,

    obrigado por suas visitas e comentários.

    A graça é algo tão fantástico que, somente por ela, estamos aqui a glorificar e bendizer o nome do nosso Senhor Jesus Cristo, o qual é o seu doador para que sejamos cheios dela.

    Grande abraço, meus irmãos!

    Cristo os abençoe!

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  5. Vanderson,

    obrigado pela visita e comentário. É raro vê-lo por aqui; precisa vir mais vezes.

    Em relação à sua criação numa denominação legalista que não pregava a graça, pergunto: o que pregavam, então? [rsrs].

    Cristianismo sem Cristo não é cristianismo. Assim como pregação sem graça, não é pregação. Pode ser qualquer outra coisa, mas o caráter máximo de uma pregação é a graça, seja para aqueles que ainda não conheceram ou mesmo para os que vivem debaixo dela.

    Graças ao bom Deus que ele o tirou do jugo da "desgraça" para trazê-lo para a vida em sua maravilhosa graça.

    Grande abraço, meu irmão!

    Cristo o abençoe!

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  6. Nada muda ou altera os meus elogios ao seu texto e a sua abordagem. Entretanto vale considerar que as posições doutrinárias da igreja tem muito a ver com a cultura e época em que estão inseridas. Pessoas que crêem em Deus mas cuja teologia leiga ou popular na América do Norte e Europa tendem ao antinomianismo. Cristãos vivendo em uma religiosidade compromissada tendem a compensar o mundanismo a sua volta com o legalismo relativo que preservem a sua pretensa "santidade" . Ambos são comportamentos ou posições extremadas de pessoas que detém um certo grau de fé na existência de um Deus que se afasta para menos ou para mais do Deus Bíblico. São sintomas de uma visão de Deus construída a parte da comunhão com Ele mesmo. Daí a experiência pessoal com Deus acima da teologia ou só conhecer de ouvir falar de Deus. Uma pessoa com algum relacionamento pessoal com Deus sabe que não consegue atender por hipótese o alto padrão divino e o que temos de mais simples na vida, até naturalmente falando, não o temos por nossos próprio meios em última instância...

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  7. Continuando...

    Se um homem aparentemente ateu, por não professar uma religião e confessar uma crença num deus pregado pelas religiões, do alto de seus 102 anos, declarou diante das câmeras que
    " o homem não é nada, é apenas um sôpro,ele chega e logo vai..." alguém com conhecimento bíblico relativo e prática religiosa evangélica, não pode ser soberbo. De fato o grande e irretocável resgate da reforma foi a salvação pela graça. Quem não entende o valor dessa redescoberta não entendeu nada.

    Um abraço a todos.

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  8. Helvécio,

    não se pode confundir posição doutrinária da igreja, que pode estar correta ou não, com a posição doutrina da Escritura, a qual está sempre certa. Os gálatas, ou parte deles, estavam entregues aos judaízantes [legalistas] e, foi preciso que Paulo os repreendesse e lhes mostrassem o erro. Ou o homem é salvo pela graça de Deus, ou por méritos próprios. Não há como ser parcialmente salvo pela graça, e parcialmente por méritos.

    Então, Paulo, em meio a uma doutrina e teologia opostas à Palavra, revela a teologia correta, fundamentando-a magistralmente. O que sempre me agradou em Paulo é a sua mente analítica; ele se preocupa com todos os detalhes, de tal forma que não haja possibilidade de dúvidas. É claro que estou falando de Paulo usado poderosamente por Deus, para nos trazer o entendimento daquilo que estava oculto ou era-nos difícil entender.

    Ainda assim, o próprio apóstolo Pedro disse que há coisas difíceis no ensino de Paulo, e há mesmo. Se não houver o desejo de entendê-las, a disposição de estudá-las, meditá-las, continuarão ocultas para aquele que não se dispõe a compreendê-las. Mas tudo isso que digo, sem a ação direta do Espírito Santo, será letra morta, sem sentido, inexpugnável.

    Agora, quanto ao ateu, a Bíblia diz que Deus falou por meio de um jumento, e se pode falar por intermédio de um jumento, pode falar por intermédio de qualquer um. E o trecho que ele disse, se não me engano, encontra-se escrito quase da mesma forma no livro de Jó. Talvez ele tivesse acesso a ele; talvez Deus lhe deu sabedoria, ao menos uma vez.

    Abraços.

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  9. É verdade...Há o ateu que odia a Deus e todas a coisas relativas a ele e portanto néscio, e no caso de Oscar Neimeyer, alguém está tateandoe respeitosamente procura encontrar ( a Deus ). Dele se diz que é um admirador da bora do universo, e que o seu hoby é reunir amigos cientistas e falar durante horas sobre a grandeza e a perfeição do universo.

    Só por curiosidade: a palavra traduzida do grego para o protuguês aceca da profissão de José pai de Jesus e portanto de Jesus é "arquitetus" e "sem Ele nada do que foi feito se fez" . Ineressante coincidência ...não ...maravilha mesmo.

    Um abraço.

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  10. Todo mundo entendeu... onde está " odia" é odeia, e "bora" é obra. Mass o texto ainda... é de extrema importância que a mensagem da graça de Deus seja enfatizada na pregação do evangelho. Muitas as vezes os púlpitos são ocupados por mensagens que visam tornar o homem melhor, as relações humanas melhores, como se a relação homem-Deus já houvesse sido pre-estabelecida e de fato não o é até que, sob a graça esse ser humano experimente o recebimento de si mesmo por parte de Deus e o livre acesso ao Pai. A distância eliminada entre o homem e Deus é o primeiro sintoma positivo dessa graça. O estranho torna-se, agora pela graça, "amigo de Deus" e participante de Seus planos e conhecedor de Seus propósitos. Isso escapa completamente ao que qualquer religião humanamente concebida possa supor e pretenda oferecer.

    Um abraço mais uma vez meu irmão.

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  11. Jorge,

    Texto muito bom, parabéns...

    Esli Soares

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  12. Anônimo, Helvécio, ou seria assemelhado?[rsrs]

    Bem, é isso! Sem pregar a graça não há Evangelho. O Evangelho é graça, pura.

    No mais, qualquer pregação que não tenha como centro Cristo, não é bíblica. Por isso se diz muito em pregação cristocêntrica, e, infelizmente, muitos se especializaram em pregação antropocêntrica, onde o homem [e normalmente o pregador] é o mais importante.

    Abraços.

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  13. Esli,

    obrigado por sua visita, e por quase fazer um comentário [rsrs].

    Abraços.

    Cristo o abençoe!

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  14. Caro Jorge, é que deu um "tilt" na postagem de comentários e a minha senha não foi aceita e teve que ser como "anônimo" mesmo ( rs...rs...rs..)

    Bem já que estou aqui, esse texto foi tão bom que não deu nenhuma polêmica ( não que os textos dos quais eu discorde,ou que alguém faça adendos não sejam bons, talento é talento ). Qual então vai ser o próximo assunto? Pode ser até sobre política, eu gostei. Tem até o problema do sujeito espiritual querer transferir a sua "espiritualidade para as coisas seculares e errar conpletamente o que o descaracteriza-o espiritualmente em um segundo momen to - não é o seu caso. Que tal igrejas póseleiçã?

    Um abraço.

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  15. Oi, Natan!

    Para nós, crentes, a Lei serve como instrumento para nos revelar o pecado, e assim fugirmos dele. Logo, ela serve como instrumento também para a santificação, jamais para a salvação. A Lei não salva ninguém, apenas e tão somente Cristo. Esse é o teor do meu texto.

    Para os ímpios, a Lei serve como freio para que não pequem, e para que o mal seja restringido, e ainda, como instrumento de punição aos infratores.

    Ela serve também para nos revelar o caráter santo, perfeito e justo de Deus, que através dela condenará aqueles que se rebelaram e desobedeceram-no, descumprindo a Lei.

    Em linha gerais, seria isso. Nos próximos textos, se Deus quiser, falarei mais sobre ela.

    Grande e forte abraço, meu irmão!

    Cristo o abençoe!

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