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Jorge F. Isah
Nota: Talvez você não entenda o que
escrevi, já que não fiz uma sinopse ou resumo do romance. Raramente o faço. Mas
bastará lê-lo para confirmar o que digo.
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Avaliação: (****)
Título: Um Conto de Duas Cidades
Autor: Charles Dickens
Editora: Nova Fronteira
Páginas: 502
Jorge F. Isah
Dalrymple é mais conhecido por suas obras
de não-ficção, sobre a pós-modernidade, onde aspectos culturais, sociais,
educacionais e políticos apontam para um mundo em franca degradação. Ao
aprofundar-se nas causas e consequências desse “projeto”, a dissociação da
sociedade com a realidade torna-se impressionante, mas não impressionável, ao
menos para os “engenheiros” sociais e sua militância histérica e
simplória. Tudo precisa ser modificado para se encaixar aos novos tempos, e o
começo sempre é com o desmonte da língua e o uso de termos e expressões que, se
analisados, demonstrar-se-ão incompatíveis e heteróclitos, para dizer o mínimo.
Cada vez mais, o
homem tem se tornado ambíguo ao entregar-se a ideias vagas e atitudes
problemáticas, a expô-lo em permanente risco. Não raro, crimes, brutalidade,
ataques e mortes têm ganhado o apoio de tantos, enquanto pensar fora das caixas
ideológicas é sinal de ameaça e extremismo. Nunca se viu um amor tão raivoso e
hostil; e talvez essa seja a maior de todas as provas do declínio humano, a
hipocrisia oficial e oficiosa, onde as palavras negam os fatos e atos, e
vice-versa. Em suma, a modernidade se especializou em demolir a moral e a
tradição, enquanto subestima a responsabilidade individual, inocenta o mal
enquanto “demoniza” o bem. Em tempos em que a razão é tão alardeada, o
sentimentalismo é a motivação de uma massa disposta a comprar o discurso de que
“o importante é ser feliz”, mesmo que para isso outros tenham de se “matar”
para arranhar a casca dos seus infortúnios.
O universo de Dalrymple (pseudônimo de Anthony Daniels), como um dos grandes
intelectuais modernos, penetra em várias nuances e camadas, e a minha tentativa
é resumir, a quem o desconhece, elementos presentes em quase todas as suas
obras (li 3, ao todo, além deste); e não há como negar: os seus esforços em
colocar no papel tudo aquilo que o establishment quer ocultar, derivam de
décadas de trabalho como psiquiatra na África e Inglaterra, onde, inclusive,
serviu como médico em penitenciárias. Ele fala do que viu e ouviu; mas, qual o
peso disso em nossos dias? Nada que um joguinho de palavras não possa
substituir ou camuflar.
“Tanto por fazer”, seu primeiro romance, é o monólogo do personagem Graham
Underwood, um serial killer, o “Monstro de Eastham”, condenado à prisão
perpétua por matar e enterrar no próprio quintal 15 vítimas (zombeteiro, alega
serem 22). Criado na pobreza e brutalidade, utiliza-se disso para justificar
parcialmente seus crimes; o que não o impediu de, na juventude, ler tanto
quanto podia os filósofos gregos, os clássicos, e praticamente tudo sobre os
assuntos pelos quais se interessou e descobriu. Em relação à maioria das
pessoas, pode-se considerá-lo culto e inteligente; um tipo semelhante, ou
alude, ao “Conde Fosco” de Wilkie Collins, “Long John Silver” de Stevenson, e
“Juiz Holden” de Cormac McCarthy, todos cruéis e sanguinários a despeito da
erudição e intelecto apurado.
Em princípio, pareceu-me o relato de um criminoso, mas, à medida em que se
desenvolvia, o tom “humorístico”, irônico e sarcástico tomou conta da história.
Os argumentos de Graham eram “ipsis litteris” as alegações utilizadas por
governos e seus gestores, pela mídia e seus propagandistas, pelos políticos,
juristas, professores e toda a “intelligentsia”, para anular a realidade e
forjar outra segundo o discurso ideológico. A maioria não se apercebe disso,
mas Graham notou e, não por acaso, levantou a lebre da contradição e
irracionalidade do sistema, capaz de condená-lo pelos mesmos motivos que
inocenta outros tantos milhares. Vá lá, nada do que ele diz, ou a maior parte,
faz sentido, a não ser para ele mesmo que se considera injustiçado, já que se
vê como benfeitor, disposto a fazer o que as vítimas não eram capazes (queriam,
mas não podiam, segundo ele), dar-lhes alívio e eliminar um problema social.
“Não,
senhoras e senhores, a conclusão é inescapável: pode-se ser um assassino ético.
E eu fui um assim” (pg. 41)
Ao abordar vários aspectos sociais, as relações entre os poderosos e a plebe,
tece críticas ao comportamento geral, permeado pelo relativismo moral e a
ideologia que tende a minimizar e até mesmo inocentar criminosos confessos. A
pós-modernidade criou um mundo impessoal e cínico, irresponsável e injusto,
inquisidor e hipócrita. E ao provocar, espera ganhar a compreensão e
simpatia da assistência.
Em momento
algum, Graham se considera culpado ou demonstra arrependimento; ele é orgulhoso
e jacta-se da sua inteligência e cultura, dos seus vícios e crimes, da
racionalidade, da ausência de sentimentalismo, tem ares superiores, despreza
qualquer um com facilidade, faz analogias e compara situações que desnudam o
rei, enquanto todos continuam a vê-lo vestido.
“Eu
sou moralmente superior a vocês porque, como o médico que pratica a eutanásia,
eu não mato ao acaso; eu escolho quem deve morrer pelas minhas próprias mãos,
de acordo com critérios racionais e humanos... vocês matam como o louco que
entra num supermercado e massacra os clientes até que ele seja subjugado ou
mesmo executado.” (pg. 60)
Aqui, médico e
assassino se juntam em um mesmo propósito, e se um pode ser justificado
socialmente, por que não o outro? No frigir dos ovos, aborto, eutanásia e
homicídio são faces da mesma moeda. E tudo isso reafirma o seu ponto: ele é a
vítima, ou mais um a vitimizar-se; o algoz, a sociedade. Onde mesmo já lemos e
ouvimos isso?
Dalrymple detalha-o com esmero e cuidado, tal qual se biografa um progressista,
um ativista, ou o mero replicador urbano. Graham é vegetariano, ateu e
ecologista. Se considera íntegro, consciente, livre, ético, herói, e no direito
de matar sem ter de dar satisfação.
“Permanece
uma única possibilidade, portanto, para explicar a legitimidade da
transformação do cidadão normal em um assassino aprovado: que alguém pode
legitimamente se tornar um assassino desse tipo quando, e somente quando, ele
julgar que é certo fazer isso.” (pg. 41)
Ao se utilizar da mesma retórica vigente e comumente alardeada na educação,
administração, mídia, artes, academia e tutti quanti, ele tenta em si o
antídoto que neutralize o veneno enquanto morre. Seu jogo não é probatório da
razão; é tomar do sistema as armas com as quais ele o atacará ou, em última
instância, o fará igual a todos, e tornará todos iguais a si. Não existe a
verdade, mas quem se apregoa verdadeiro, mesmo na enxurrada de mentiras e
falácias.
“Não
que eu espere que alguém tome conhecimento de minhas ideias, eu não sou tão
ingênuo a ponto de pensar nisso. Um profeta não só não é honrado em sua própria
terra, mas em sua própria época.” (pg. 105)
Graham expõe a estupidez, de maneira hilária, das chamadas lutas pelas
minorias. Em dado momento, o “lobby canhoto” exigiu das autoridades o direito
de aposentar-se antes dos destros, porque segundo os dados (sempre as tais
estatísticas das quais nunca se sabe nada) os canhotos viviam dez anos menos
que os destros; o retrotreinamento dos falsos destros em verdadeiros canhotos,
a fim de reconquistarem a própria identidade; e, por fim, acabar com a
linguagem ofensiva manidestra, “e eliminar
do departamento: termos como sinistro e gauche, carregados de conotações
depreciativas a respeito dos canhotos e do canhotismo.” (pg. 111).
Trocar a expressão “He left his flat” por “He vacated his flat” ou “He leaved
his flat”, já que “left” em inglês serve tanto para designar o verbo deixar e o
substantivo esquerda, é o teste máximo a sujeitar a maioria.
O fato de se dirigir aos leitores como “senhoras e senhores” demonstra como
está a utilizar de eufemismo, assim como o mainstream insiste em enfiar goela
abaixo da sociedade regras e normas descabidas, tudo em nome de uma suposta
igualdade e justiça.
O seu desprezo é
notório:
“Elas
(as pessoas) têm a força de um touro, o cérebro de um frango e a moral de uma
hiena” (p. 131)
Os argumentos se seguem, entre choro e ranger de dentes, e Dalrymple escreve,
pelas mãos de um serial killer, a insanidade, o misto de burrice e insolência,
com as quais se quer reconstruir este mundo. Nisto, acerta em cheio. Porém, as
ideias e teses de Underwood se repetem, repetem (talvez, efeito pretendido pelo
autor), e a maluquice “lógica” do bandido parece opiniões saídas de telejornais
e dos apologistas do mal: pedagogos, juristas, terapeutas, e tantos outros
incapazes de perceber a ferida e o sangue após atirarem nos próprios pés.
O romance poder-se-ia chamar filosófico; e trata do homem na busca incessante
por revoltas e motins, e acaba por se tornar, ao mesmo tempo, vítima e
carrasco.
O Éden pós-queda se repete, repete, e quase não se consegue mais sair dele.
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Avaliação:
(***)
Autor:
Theodore Dalrymple
Editora:
É Realizações
Páginas:
184
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Jorge
F. Isah
Judas é um tipo literário muito próximo de Jó, o
personagem bíblico, em suas agruras, aflições e dores. Ao passo em que Jó sofre
exatamente por sua fidelidade a Deus, e pelo desejo sincero de retidão e
justiça (o que acaba por despertar a maldade objetiva de Satanás), Judas deseja
apenas se ver livre das amarras sociais, numa espécie de autonomismo e
independência, acreditando que suas decisões cabem apenas e exclusivamente a si
mesmo, sem se importar, ou vislumbrar, com as consequências dos seus atos. A
liberdade de Judas é pueril e enganadora; e arrasta-o para dentro do “Mal”.
O livro escrito por Thomas Hardy (um entusiasta
apaixonado pelas ideias de Darwin) foi escrito em 1895, e carregado do
naturalismo em voga, que não deixou de influenciar a literatura. Judas, por
mais que tente, ao seu jeito, fugir do destino que lhe é traçado, sucumbe à sua
inexorabilidade (referência ao personagem bíblico que traiu Jesus?)¹.
Como não sou de fazer resumo dos livros, também não
o farei neste. Apontarei, contudo, o que mais me chamou a atenção, sem fazer
spoilers, e sem desestimular o futuro leitor a emprenhar-se nas aventuras e
desventuras do protagonista:
1) Judas tenta “mudar” o seu destino, algo que os
naturalistas, e, em especial Hardy, não crê possível. Para ele, Judas será o
que é, nascido um pária, morrerá como tal.
2) Ciente do que lhe espera, Judas apela para um
autonomismo impossível, como se pudesse viver no mundo alheio ao mundo, sem que
seus atos trouxessem consequências para si e seus queridos. Pouco a pouco, no
decorrer da história, parte para a negação de Deus, fazendo do Cristianismo o
“bode expiatório” do seu sofrimento. Em uma sociedade cristã, a culpa de todas
as convenções e males se deve, portanto, ao Cristianismo, num apelo tresloucado
à razão, como sendo-a santa, pura e perfeita; de maneira que, se todos os
homens a aplicassem por completo, negando suas crenças e fé, todos seriam
felizes. Acaba-se por criar e defender um dualismo “fé x razão” no enredo, o
que é, no mínimo, reducionista, simplório.
3) Hardy não escreveu uma única linha em que não
destilasse a sua aversão ao Cristianismo, se não explicitamente (como em muitos
diálogos e pensamentos), deixou-os subliminarmente evocados em ações e
comportamentos. Porém, o Cristianismo descrito pelo autor é o que podemos
chamar de “cristianismo secular” ou “nominal”, onde a aparência cristã é
utilizada para justificar o farisaísmo e a hipocrisia do homem. Veja bem,
farisaísmo e hipocrisia não são, nem de longe, aspectos do verdadeiro
Cristianismo, mas a “máscara” daqueles que o próprio Senhor Jesus denunciou a
seu tempo. Talvez, por isso mesmo, o autor escolheu o nome “Judas” para o seu
protagonista que, mesmo vivendo por mais de três ano na companhia do Cristo,
não se furtou a traí-lo.
4) Ao fugir das convenções e de aspectos morais que
regulavam o convívio social, se viu pagando um preço alto, vivendo como um
“cigano”, juntamente com a sua família. O capricho de não querer se enquadrar
ao escopo da sociedade colocou-o na situação mais miserável que o enquadramento
social lhe destinaria. Em sua rebeldia juvenil e ingênua, acreditava possível
passar ileso, sem traumas, quebrando regras. Judas não se considera responsável
por si, mas “a chorar as pitangas” contra o inimigo a destruir-lhe a felicidade: a
sociedade; enquanto aplica-se em cavar para si e os seus o caminho de ruina.
Este é um aspecto, em que o mal dentro do homem procura uma versão de mal fora
de si, e o distrai e afasta do julgamento correto, da seriedade correta, da
conclusão correta, onde o relativismo é o tiro certeiro no vazio, e o atirador
se convence de ter acertado o alvo, como um Quixote a lutar com monstros e
demônios apenas na imaginação.
5) Outro aspecto, fruto dessa visão vitimista e
malévola, inegável em Judas e sua esposa, Sue, é o orgulho e presunção de, ao
não se curvarem aos hábitos da sua época, serem superiores aos seus
concidadãos. A prova encontra-se nas inúmeras vezes em que exaltavam suas
inteligências, raciocínios e um apelo à razão como a essência de todas as
virtudes; por conseguinte, sendo os seus detentores, consideravam-se também
especiais, enquanto eram apenas jactantes, desdenhosos e antipáticos.
6) Nem mesmo o sacrifício pessoal, como o do prof.
Richard, parece um ato isento de soberba, de autoexaltação obstinada, dominada
pela “pureza” racional.
7) Entretanto, não há como não se compadecer da
“má-sorte” e os rumos que suas vidas tomaram. Ao ponto de, sem qualquer
esperança, sobrar-lhes a loucura e o definhamento.
Judas, o obscuro, é um livro pessimista, áspero,
quase inóspito. Mesmo nos momentos mais ternos e belos, a angústia, dúvidas e
desespero estão entranhadas nas palavras, sentimentos e reações. Não é um livro
fácil de ler, pois os lampejos de esperança são quase imediatamente dizimados
por uma realidade sufocante e cruel, pela teimosia de não mudar ou ceder, e a
incapacidade de tornar à vida, de encará-la de maneira menos fatalista, onde a
liberdade individual, via de regra, é quase inexistente diante do apelo
opressivo e coercitivo do destino.
Entretanto, é possível encontrar momentos de
ternura, elegância, acabando por tornar verossímil os personagens e o enredo
como um todo.
A linguagem é
simples, sem rebuscamentos. A narrativa parece se arrastar um pouco,
especialmente na primeira metade do livro. Contudo, em sua bissecção final, ela
flui sem delongas.
Judas, o obscuro é um bom livro? Sim, sem dúvidas.
Para estar no rol dos melhores de todos os tempos, como comumente é citado nas
grandes listas? Tenho dúvidas. Talvez, precise ruminar ainda um bom tempo a
história, e, quem sabe, fazer uma nova leitura, no futuro. Certo é que, tirando
a defesa “intransigente” do racionalismo e de um certo determinismo
naturalista, a “aversão” ao Cristianismo (criando um estereótipo, uma espécie
de espantalho), o livro se sai bem.
Notas: 1- Pode-se levantar a questão de que Judas traiu a si e sua família, como alguns apontam, mas não vejo fundamento. Por outro lado, é possível que Hardy tenha se utilizado do personagem Judas, do Novo Testamento, para dizer o quanto o caminho daquele era inevitalmente lúgubre, e, de alguma maneira, não se fez a devida justiça a ele; sua culpa não era inerente mas advinda do contexto social no qual vivia. Alguns teólogos e teóricos liberais concordariam, se não no todo em parte, com essa hipótese.
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Avaliação: (***)
Autor: Thomas Hardy
Editora: Abril Cultural
Páginas: 461
Jorge F. Isah
Indicado
pelo amigo Felipe Sabino, esta biografia trata do, talvez, maior editor
americano de todos os tempos. Evidente que é impossível mensurar quem foi o
maior ou não, mas certamente pelo volume de autores descobertos e publicados, gente
da estirpe de Fitzgerald, Hemingway e Wolfe, para citar o triunvirato dos
maiores e mais relevantes escritores dos seus tempos, e ainda o são mundo
afora, nos dá a real dimensão do trabalho engenhoso a que Maxwell Perkins se devotou
em quase cinco décadas de ofício, chegando ao cargo de Vice-presidente da
Charles Scribner’s Sons, a mais conceituada e importante editora americana na
primeira metade do século passado.
Lendário caçador e burilador de talentos, Max, como
era chamado, entendia o seu trabalho não como uma simples profissão, mas um
ministério, ao qual se entregou de
corpo, alma e espírito, e foi um dos mais relevantes, senão o maior, para os
novos rumos que a literatura tomou a partir de suas descobertas e inspiração
para autores e seus textos.
Antes de entrarmos na pessoa de Max, devo
acentuar algo: o trabalho meticuloso de pesquisa, condensação e o mergulho às
profundezas de Perkins e seus pupilos geniais. A. Scott Berg transpõe em
palavras as emoções, frustrações, lealdade e desvelo do editor com a literatura
e seus criadores. É um livro delicioso de ler, e ele consegue transportar à
simplicidade as complexas relações entre os vários protagonistas e inúmeros
figurantes. É quase impossível abandoná-lo. À medida que Berg tecia a sua rede,
é irremediável tornar-se presa, já no início da construção. Por muitas vezes,
vi-me descuidar de outros afazeres para devotar, e devorar, mais algumas
páginas e tempo na companhia de tão ilustres personalidades. Scott Berg
construiu, com talento e sensibilidade, o gênio e seus gênios, sendo ele
também, sem exagero, um deles.
Por fim, a biografia serviu de base para uma versão
cinematográfica de 2016: “O Mestre dos Gênios”(ainda não assisti, e o farei em
breve; talvez até poste a resenha aqui), com Jude Law, Colin Firth, Guy Pearce e
Nicole Kidman. E, se praticamente todas as versões cinéfilas de livros nunca
conseguem sequer igualar a obra original, não espero algo de proporções
similares quanto ao resultado, mesmo sabendo que são formas de comunicação e
arte distintas. Desejo, contudo, que a produção e direção consigam agarrar o
“espírito” do livro e transpô-lo para a tela. Já seria um grande feito.
William Maxwell Evarts Perkins, nasceu em
1884, em Nova York, filho de Elizabeth Evarts (filha de William M. Evarts,
proeminente jurista, procurador e político) e de Edwards Clifford Perkins,
advogado. Viveu a maior parte da infância em Plainfiel, New Jersey. Formou-se em
economia na prestigiada Harvard University, em 1907; e, quando se decidiu pela
carreira de editor, foi auxiliado pelo professor de literatura Charles Copeland
que se tornaria um grande amigo. Nesse período, trabalhou no New York Times
como repórter (1907 a 1910).
Sem muitas expectativas com a carreira
jornalística, mas com alguma influência nos círculos literários da Big Apple, é
contratado para o departamento de publicidade da Charles Scribner’s Sons,
editora considerada “conservadora” e que detinha títulos de autores como Henry
James, Sherwood Anderson, Rudyard
Kipling, Robert Louis Stevenson, John Galsworthy e Edith
Wharton, entre outros nomes considerados ultrapassados pelo mainstream da
época. Muitos dos autores emergentes, durante o pós-Primeira Grande Guerra,
jamais seriam publicados se não fosse o trabalho investigativo e “depurador” de
Perkins, uma vez que o conselho diretivo da Scribner’s não somente era
reticente, mas se opunha aos novos rumos em que a linguagem literária se
aventurava, mantendo-se firme na disposição de investir nos clássicos. Com leitores
fiéis, não estava disposta a romper a sua tradição editorial e investir em
livros experimentais: novas estruturas, conceitos e estéticas.
Em pouco tempo, foi promovido para uma espécie de
“auxiliar de edição”, onde ajudava na leitura e avaliação de textos originais e
inéditos. Nessa época, chegou-lhe às mãos um livro intitulado “The Romantic Egotist”, de um jovem
desconhecido, F. Scott Fitzgerald. Enquanto os colegas recusaram o livro, com a
alegação de não estar de acordo com a linha editorial, Perkins leu-o de uma
sentada e ficou maravilhado; então, rapidamente, escreveu ao autor sugerindo
algumas modificações a fim de convencer o velho “Charles” a publicá-lo. Scott
empenhou-se em reescrevê-lo, e alguns meses, entregou-o a Max com todas as
alterações propostas. Após um embate interno, Max persuadiu o “chefão”, e
recebeu o aval para publicá-lo.
Em 1920, é lançado “Este lado do Paraíso”, e
o livro se tornou um sucesso de crítica e público, lançando quase instaneamente
Fitzgerald ao estrelado, confirmando o acerto de Max e seu “feeling” editorial.
Apesar da resistência de parte da equipe, Perkins
começava a ganhar admiração e chamar a atenção. Foi ele quem lançou todos os
livros de Scott, a quem tinha por amigo, a quem aconselhou e orientou, não
somente em relação ao aspecto profissional, mas também financeiro e emocional.
A relação do autor com a esposa, Zelda, era conturbada, e Scott se submetia a
despesas enormes, um padrão de vida ostentador, noites e mais noites envolvidas
no “glamour” a que Zelda impunha o casal. Com isso, Fitzgerald teve, por muitas
vezes, que escrever literatura de segunda, terceira linha (Hemingway, de quem também
era amigo, acusou-o várias vezes de prostituição, e de desperdiçar um talento
inestimável em troca de dinheiro para munir os caprichos de Zelda), roteiros
para Hollywood (Max considerava essa opção um verdadeiro desastre na carreira
do pupilo), e palestras que odiava. Ao mesmo tempo em que Scott era um escritor
talentosíssimo, tinha as suas fragilidades: o vício do alcoolismo, ostentação social
e a indigência financeira, arrastando-o para um final onde a degradação
artística, por fim, fez claudicar e aniquilar a pessoa.
Berg ressaltou:
“Anos depois, em Paris é uma festa, Hemingway
resumiu a carreira de Fitzgerald com a imagem que primeiro chamou sua atenção
quando lia ‘O Último Magnata’: ‘Seu talento era natural como desenho feito
pela poeira nas asas de uma borboleta. A certa altura sua compreensão dele não
era maior do que a que tinha a borboleta e ele não sabia distinguir se estava
comprometido. Mais tarde, tornou-se consciente de suas asas danificadas e da
estrutura delas e aprendeu a pensar e não pôde mais voar porque perdera o amor pelo
voo e só constituía se lembrar de quando ele não exigia esforço’”.
Após a publicação de “O Grande Gatsby”, Perkins
recebeu de Fitzgerald, a indicação de outro autor: Ernest Hemingway. Scott e
Ernest se conheceram em Paris, na casa de Gertrude Stein, local onde o círculo
de escritores se encontrava para, em primeiro lugar, abastecer o ego de Stein,
insaciável, e orgias regadas a álcool e drogas sem freios e fim (muito foi
descrito em “Paris é uma festa”). Hemingway era o oposto de Fitzgerald, o tipo
de “macho alfa”, seguro e audacioso.
Novamente, Max teve de suar gotas de sangue para a
Scribner’s publicar “O Sol Também se Levanta”, em 1926. O livro era
considerado excessivamente obsceno, ao ver da direção, e não satisfazia as
exigências editoriais. Depois de inúmeras reuniões e o jeito diplomático, mas
convincente de Max, o romance veio à lume. Novo sucesso de crítica e público. E,
até a sua morte, Perkins seria o editor de Hemingway.
Certa vez, depois de insistir muito com Max (havia
anos que não tirava férias), Hemingway levou-o para pescar em Key West,
Flórida, no Golfo do México, e contou-lhe muitas das aventuras no mar,
histórias sobre pescadores, touradas e caçadas, algumas das quais ele mesmo
estava envolvido. Perkins ouviu-as e percebeu material suficiente para “Hem”
escrever um livro até então inédito: algo sobre a pesca e o mar. Fez sugestões,
considerações e incitou “Hem” a planejá-lo. Durante anos, o autor esquivou-se
de fazê-lo, mas em 1951 publicou “O Velho e o Mar”, dedicando-o ao velho amigo,
que havia falecido em 1947.
Em 1928, chega às suas mãos um calhamaço de páginas
amarradas por barbantes, de um tal Thomas Wolfe, jovem escritor da Carolina do
Norte. Havia sido recusado por todas as editoras em que enviou a sua obra, “O
Lost: A Story of the Buried Life”. Tinha cerca de 1.100 páginas e entre
300.000 e 350.000 palavras. Era um excesso para um escritor iniciante, e fora
dos padrões de edição da época. Max leu-o, considerou a ideia genial, mas era
uma obra caótica e carecia de ajustes: um corte de 100.000 a 150.000 palavras e
a reestruturação da história. Ele as sugeriu a Tom que, mesmo não gostando da
ideia, concordou e trabalhou com o editor na nova formatação.
Marcia
Davenport descreveu:
“Tudo que Max faz visa o efeito integral do livro
(...) Ele acredita nos nossos personagens, que se tornam reais para ele (...)
Mas pode pegar algo caótico, nos dar um andaime para construirmos uma casa em
cima dele (...) Sua tarefa é grande, longa, cheia de agonia e confusão”. Berg
acrescentou: “Como tantos de seus autores, ela (Marta) descobriu ao voltar
ao trabalho que os comentários de Max eram eficazes de uma forma quase
subliminar; que ele tinha um jeito de atirar observações com delicadeza como se
atirasse seixos em um lago, criando anéis de significado que cresciam até tocar
a consciência do autor”(pg. 572).
Lançado em 1929, “Look Homeward, Angel” foi
estrondoso sucesso de crítica e público, e provavelmente pela ligação quase filial
de Wolfe com Perkins: para Max, o filho que não teve (tinha cinco filhas), para
Tom, o mentor e tutor único, a relação ia do céu ao inferno e vice-versa. A
ligação entre eles é o centro da biografia de Berg e ocupa a maior parte. É
possível ver o relacionamento ultrapassar o caráter profissional e tornar-se
pessoal, emocional, quase familiar, como já descrevi. Thomas participa da rotina
dos Perkins como se fosse um membro; e, ao mesmo tempo em que ganhava o carinho
da esposa e filhas do editor, também se metia em cenas deploráveis e cruéis, ao
ponto de causar certos “tremores” na relação.
Muitos críticos e executivos da própria Scribner’s
acentuavam os méritos de Perkins nos livros de Wolfe, o que certamente deixou o
autor enciumado e rancoroso. É comum, após as crises intempestivas, Tom se
desculpar e buscar os conselhos do “papai”. Max, apesar de não se envolver na
vida dos pupilos, que também eram seus amigos, especificamente Scott, Ernest e
Tom, servia como confidente e orientador. Tentava, sempre que possível,
auxiliá-los em qualquer situação ou problema. Era generoso, amigo, confiável,
leal e um pacificador, no sentido de nunca promover disputas e impor sua
vontade, apesar de, quase sempre, convencê-los. Se Fitzgerald era frágil e
maleável, Hemingway impetuoso e confiante, Wolfe ficava no meio do caminho,
entre a vaidade, a insegurança e o melindre.
Sobre isso, Berg escreveu:
“Na raiz de toda a raiva de Wolfe estava a crença
geral de que sem Perkins ele era impublicável – um escritor fracassado. O
próprio Wolfe dera fôlego a essa noção, tornando públicos fatos que Perkins
lutara para manter privados” (pg. 451).
Em carta, Max ponderou com Wolfe:
“A minha impressão, porém, é de que você pediu minha
ajuda, de que a deseja(...) E também tenho a impressão de que as mudanças não
lhe foram impostas (você não é muito propenso a aceitar imposições, Tom, nem
eu, muito dado a fazê-las), mas, sim, discutidas, muitas vezes por horas”(...)
Acredito que o escritor, de todo jeito, deva sempre ter a última palavra, e
minha intenção sempre foi essa. Sempre adotei tal postura e às vezes cheguei a
ver o prejuízo que isso teve sobre certos livros, mas, ao menos, em igual
medida, o quanto também foi útil. O livro pertence ao autor”(pg. 457).
Max lidava da melhor forma com temperamentos tão
distintos, sempre gentil e econômico. Não era dado a exibições, rechaçava
elogios, e escondia a timidez no silêncio; os livros eram o refúgio para
afastar-se do mundo das pessoas, ao menos as reais.
A exceção foi a relação platônica com Elizabeth Lemmon. Durante a maior parte de
sua vida, correspondeu-se com ela por meio de longas cartas, nas quais se abria
de uma maneira singular. Ela era a sua confidente, a pessoa em quem mais
confiava, e com quem, certamente, caso não tivesse casado com Louise Saunders,
se uniria. Não houve qualquer relacionamento lascivo entre eles. Havia, sim, um
envolvimento emocional, fraterno, que poderia se estender a outros aspectos,
caso Max não fosse completamente leal à família. Algo verdadeiramente difícil,
não impossível, nos dias atuais. Sobretudo, era um homem de caráter, princípios
e, mesmo não havendo qualquer referência a algum relacionamento com Deus (algo
que a esposa, nos anos derradeiros do casamento, aceitou, ao converter-se ao
catolicismo), Max tinha em seu temperamento e atitudes um espírito cristão.
A relação entre Maxwell e Beth foi dedicada, honrada
e sincera, mas nada a permitir “avanços” ou aventuras extraconjugais. O fato de
Louise se dar bem com a “rival”, de se confraternizarem nos raros momentos em
que a distância (os Perkins moravam em Connecticut, os Lemmon em Baltimore,
distante 460 km) e a vida profissional exaustiva e compulsiva de Max
permitiram.
Perkins mentoreou e obteve, para outros dos seus
pupilos, grande sucesso, como Edmundo Wilson, Alan Paton, Erskine Caldwell, John
P. Marquand, Marjorie Kinnan Rawlings, S.S. Van Dine, Ring Lardner, James Jones
(autor de “A um Passo da Eternidade” e “Além da Linha Vermelha”), Marguerite Young, e a lista cresce...
A coletânea de cartas, publicada em 1950, “Editor
to Author”, descreve como foram os relacionamentos entre o gênio e seus
gênios. Em especial, Perkins foi não somente o pai às filhas que amava
devotadamente, mas também aos outros que adotou, quase gerou, e, enquanto pôde,
protegeu, orientou e entregou-os ao mundo.
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Avaliação: (****)
Autor: A. Scott Berg
Editora: Instrínseca
Páginas: 544