Jorge F. Isah
É provável, em algum momento, você ter ouvido falar ou visto um dos filmes de Peter Sellers. Por três décadas, ele formatou o estilo de humor refinado, sofisticado, meio desastrado, às vezes irônico (muito humor negro), em outros, caricato, mas sempre genial. É considerado justamente um dos maiores humoristas de todos os tempos. Versátil, se aventurou por todos os gêneros interpretativos e artísticos, inclusive imitando celebridades, tocando bateria em sketchs e shows e, vez ou outra, atuava em papéis dramáticos. Como ótimo artista, se saia bem em quase tudo, do ponto de vista profissional, enquanto a vida privada se arrastava aos trancos e barrancos, em meio aos constantes ataques de insegurança e depressão. Certa vez, em uma entrevista, disse não saber o porquê de as pessoas gostarem do seu trabalho, pois odiava praticamente tudo o que fazia; à revelia das inúmeras influências deixadas em astros como Steve Martin, Robin Williams, Martin Shore, Dudley Moore e tantos outros.
Nascido em Hampshire, Inglaterra, Richard Henry Sellers, era filho de Peg Marks e Bill Sellers, artistas de Vaudeville. Desde pequeno, Richard, cujo irmão mais velho Peter nasceu morto, atuava nos palcos juntos aos pais e o avô. Estranhamente, todos na família o chamavam de Peter (talvez venha daí a sua vulnerabilidade emocional), então decidir-se pelo nome artístico não foi involuntário, apesar de haver aquela fibra de ironia e sarcasmo, típico dos seus maneirismos pessoais e caprichos estilísticos. Tornou-se no que já era ou ficou conhecido: Peter Sellers.
Dos palcos, após um interlúdio na II Grande Guerra, quando se voluntariou, migrou para o rádio onde misturava música e esquetes cômicas e entre seus colegas estava o ator Dudley Moore. Contratado pela BBC por causa do seu talento nato em imitar vozes de famosos, teve grande sucesso sob a batuta do produtor George Martin, que se tornaria o “quinto” Beatles, de quem Peter seria grande amigo.
Estreou no cinema em 1951, em Penny Points to Paradise, daí em diante não parou mais, intercalando a presença nas telas com a dublagem de filmes. Teve o primeiro grande papel em 1955, ao viver um dos criminosos em Quinteto da Morte, The Ladykillers, cujo remake teve Tom Hanks no papel principal (no Brasil, Matadores de Velhinhas, de 2004). Como protagonista estreou em 1959 em I'm All Right Jack, cujo título em português, horrível por sinal (a capacidade tupiniquim de quase invariavelmente torná-los ruins), chamou-se Papai é nudista.
Dirigiu a primeira película em 1961, Mr. Topaze (BR:A solidão da riqueza), onde também estrelou.
Contudo, o auge artístico se deu nas décadas de 1960 e 1970 onde construiu sua carreira magistral e insólita, primeiro sob a direção de Stanley Kubrick, em Lolita (baseado na obra homônima e polêmica de Vladimir Nobokov), em 1962, e posteriormente Black Edwards, com quem faria diversos filmes, inclusive a saga A pantera cor-de-rosa, onde viveria o atrapalhado e desastrado Inspector Closeau, certamente o mais icônico dos seus personagens. A partir dessa estreia, em 1963, Sellers se tornaria um nome mundialmente conhecido e seria um enorme sucesso de bilheteria.
Em 1964, novamente sob a regência do exigente e meticuloso Kubrick, Peter interpretaria três personagens, um alemão, um britânico e um americano, em Dr. Fantástico (Dr. Strangelove of: How I Learned to Stop Worrying and Love the Bomb), e lhe renderia a indicação ao Oscar de melhor ator, por sua marcante e polivalente atuação.
Ele contracenou com Sofia Loren (por quem se apaixonou, mas não foi correspondido), Goldie Hawn, o amigo Ringo Star, George Sanders, Shirley McLaine, Ursula Andress, David Niven, Robert Loggia, Melvyn Douglas, Richard Basehart, George C. Scott, Shelley Winters, James Mason e tantos outros renomados nomes do cinema mundial, como os diretores Vittorio de Sica, Billy Wilder e John Huston, além de ser o primeiro homem a figurar na capa da revista Playboy (vestido, claro!).
Enquanto obtinha estrondoso sucesso, por causa do seu temperamento difícil e encrenqueiro, fruto da insegurança e depressão, diretores e atores começaram a evitá-lo, rejeitando-o nos sets, e filmes antes inevitavelmente destinados a ele tomaram outros rumos pelas mãos de atores não tão geniais, mas menos voláteis. Instável emocionalmente, começou a beber e usar drogas, a culminar em grave lesão cardíaca decorrente de uma série de enfartes quase fulminantes, em 1964, obrigando-o a implantar um marca-passo em 1970... o seu coração jamais seria o mesmo.
Casou-se quatro vezes, sempre em relacionamentos tumultuados, nos quais os filhos acabaram sendo envolvidos e, quando morreu, a despeito de tentar anular o testamento em favor da última esposa, a atriz Lynne Frederick, ela acabou herdando toda a sua fortuna após a morte e todos os seus direitos autorais, cabendo a cada um dos filhos o valor simbólico de $800,00 (oitocentas livras esterlinas)... Mas, chega de fofocas, porque não é o que nos interessa...
Sellers foi um dos maiores gênios do cinema, e as atuais gerações pouco ou nada sabem dele. Infelizmente, a sutileza, a ironia e, porque não, o sarcasmo de seus personagens, roteiros e direção, deram lugar às peças vulgares, infames e apelativas (óbvio, não estou a generalizar, mas em sua maioria são estúpidas e sem graça) de forma que, se não fosse por um ou outro remanescente do velho humor, mesmo remodelado, o que é natural, o estilo já estaria morto. Neste aspecto, o politicamente correto, o outro lado da moeda, trabalha sempre contra o bom humor, ao enrijecer obstinadamente o discurso ideológico e pragmático. Aos apreciadores da arte, resta deliciarem-se com as fitas de Sellers, Lewis, Stan e Lauren, Cantiflas, Oscarito e Grande Otelo, Buster Keaton, Chaplin, Irmãos Marx, Mel Brooks, Golias e tantos quanto o cinema e os palcos produziram e quase não forjam mais. Ainda nos restam Rowan Atkinson, Steve Martin, Martin Shore, Jerry Seinfeld e Woody Allen, e mais uns poucos.
Peter Sellers morreu em 1980, aos 54 anos, vítima de... enfarte, desta vez fulminante. Em seu testamento pediu a execução da canção de Glenn Miller, In the Mood, em seu último ato de cínico deboche, pois odiava a música. Assim viveu e morreu o grande astro, sempre com aquela pontinha de humor inigualável, perspicaz e quixotesco.
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Citações de Peter Sellers (traduzidas livremente)
· “Sou como todos os humoristas, me divirto enquanto estou atuando”
· “Conversa como televisão em lua-de-mel... é desnecessária!”
· “As pessoas nadarão na merda se lhe derem um pouco de dinheiro”
· “Quando uma amiga se torna muito cara, não há outra escolha senão se casar com ela”
· “Houve um tempo em que meu "eu" autêntico existia, mas eu o removi cirurgicamente”
· “Aprendamos a apreciar os momentos em que descobrimos as árvores e podemos recolher os frutos”
· “Cavalheiros, vocês não podem lutar aqui! Esta é a Sala de Guerra!”
· “Quem eu sou no mundo? Ah, um grande quebra-cabeças!”
· “Não será fácil, isto porque sempre fracasso onde outros têm sucesso!”
· “Se não consigo encontrar um jeito de viver comigo mesmo, não posso esperar que alguém viva comigo!
· “Como ‘Dr. Strangelove’ em ‘Dr. Strangelove’ (1964)”
· “Algumas formas da realidade são tão horríveis que recusamos enfrentá-las, a menos que sejamos encurralados nela pela comédia. Considerar qualquer assunto inadequado para a comédia é admitir a derrota”
· “Ver-me como uma pessoa na tela deveria ser a experiência mais monótona que você deveria querer ter”
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Nota: Texto publicado originalmente na Revista Bulunga
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