Jorge F. Isah
É um livro fabuloso, em vários sentidos, e não poderia abarcar todos em uma simples resenha, talvez em um longo ensaio, mas não é este o objetivo. Quero ater-me à capacidade impressionante, e quase hipnótica, com a qual Dickens seduz e captura o leitor. De maneira que se torna impossível abandoná-lo, mesmo diante de quase mil páginas. Sim, é volumoso não apenas quanto ao número de laudas, mas quanto a profusão de personagens, lugares, descrições e sentimentos aflorados, expressos ou implícitos. Talvez, por isso, tenha me sido difícil sequer iniciar a escrita desta resenha, tal o grau de complexidade da narrativa se apresentava. Vinha-me tantas coisas à cabeça, ao mesmo tempo, que não sabia ao certo por onde começar. Porém, tudo tem um começo, e o meu se dá assim, em dizer ao caro leitor: escrevo não para desnudar a obra, mas apresentá-la do melhor jeito a fim de que se interesse em lê-la e desvendá-la.
Simplesmente, não há como ser ou ficar indiferente a uma só linha, a uma descrição, ação ou reação no enredo. Pode-se gostar ou não, e gosto não é, na maioria das vezes, a melhor forma de se avaliar um livro, música, filme ou qualquer outra coisa. Antes ele deve se subordinar ao caráter objetivo, intelectual e emoção à qual se está exposto. O crivo para a crítica jamais pode ser algo apenas questão de ânimo, simples paladar ou sensação, sem a habilidade e análise dedicada e criteriosa. Ou seja, literatura de qualidade não é apenas diversão, mas se mede com o equilíbrio da meditação e discernimento, o escrutínio de frases, parágrafos, capítulos, necessários à compreensão da mensagem, ou mensagens, entregue pelo autor. Não é uma ciência exata, algo a se imprimir rigor extremo, porém não pode tornar-se banalizada pelo capricho ou achismo, sem o exame íntimo, a capacidade de influenciar e alertar o leitor para as verdadeiras e essenciais questões a trazer sentido e revelação sobre a vida. Portanto, ao ler, ouvir ou ver qualquer obra de arte, não diga que é “bonitinha”, “engraçadinha” ou “legalzinha”, mesmo que a deteste profundamente, fuja do clichê, confronte-a consciente, e dê a definição, mesmo que não seja precisa e exata, do seu conteúdo, e o porquê de abominá-la.
Posto isso, o que dizer de “Grandes Esperanças”? Em muitos aspectos a temática do jovem órfão (tanto de Oliver Twist ou David Copperfield) está presente, com todos os aspectos trágicos, dolorosos e injustos aos quais os desamparados estão sujeitos. Não é diferente com “Pip”, sem pais e criado pela irmã, inflexível, severa e cruel, casada com Joe, um homem simples, ingênuo, bondoso e cujo coração é incapaz de revidar as agressões da mulher, habituada a tratá-lo com desprezo e violência física. Ele é uma alma terna, branda, benigna, e vê em Pip não o fardo ao qual a esposa se refere sempre, mas o amigo de infortúnios, cúmplice das mazelas pelas quais a vida arrocha. Ambos têm na comunhão, nos poucos momentos de solidão mútua, o descanso e alívio para o dia a dia conturbado, no qual esposa e irmã insiste em impor-lhes.
Quase todas as personagens à volta de Pip lhe são hostis, à exceção de Joe, como dito, Bitty, a amiga e professora, Herbert, futuro amigo de Londres, Wemmich e Magwitch, o “anjo da guarda” do órfão. Então, não é difícil imaginar as diversas situações em que o caráter de Pip é testado, diante de pessoas incapazes de agirem sem o desejo (mesmo inconsciente) de prejudicar e subjugar a pobre alma. E, entre elas, Dickens expõe as misérias sociais, mas também, e sobretudo, as moléstias e feridas individuais, sem as quais a sociedade não seria como era, ou não seria como é. Ou seja, ele fala, descreve, a humanidade, a nossa essência, de tal maneira que é possível, em um único ser, coabitar o mal e o bem, a mentira e a verdade, moral e cinismo, indiferença e arrependimento... Todos, não somente eles mas também nós, estamos diante dessa realidade, enquanto alguns satisfazem-se na perpetuação do mal, o descaso com o próximo, notabilizando-se naquilo a torná-los mais execráveis e hediondos, outros buscam a redenção, transformar, aperfeiçoar-se e serenar todas as guerras, em busca da paz interior, a despeito de haver ou não trégua do lado de fora.
Alguém pode aludir que esse estado de coisas nada mais é do que egoísmo disfarçado de superioridade, mas inquiro-o: é possível fazer a paz com o mundo se existisse a guerra no íntimo? O orgulho promove a guerra interna e externa, enquanto a caridade, em princípio, vê no outro aquilo a ser visto em si mesmo, com todas as suas implicações para o bem ou o mal. É entender o outro como deseja ser entendido, mesmo que não seja, e se não é possível o acordo e o fim das disputas, deve-se, no mínimo, não encorajá-la, antes esmorecê-la. Como Jesus diz: “Amai a vossos inimigos, bendizei os que vos maldizem, fazei bem aos que vos odeiam, e orai pelos que vos maltratam e vos perseguem” (Mateus 5:44)... Desta forma, Pip descobre, com o passar dos anos, a verdadeira essência da vida, e de as “grandes esperanças” inicialmente vista como acaso ou sorte, se declarar providência e servir, ao mesmo tempo, de queda mas também de escada para compreender o seu lugar no mundo, e se relacionar saudavelmente com ele. Foi preciso adentrar a escuridão completa para desejar a luz e apreciá-la... Não é assim com todos, em maior ou menor grau?... Há, contudo, aqueles incapazes de anelar e perseguir a luz; para eles existem apenas breu e trevas, nada além da própria cegueira.
Algo notável em Pip é o fato de, em boa parte da infância, viver com o estigma do medo, da apreensão, à espera de castigos, reprimendas e sanções. À medida em que os anos se passavam, e sua vida se transformava radicalmente, persistiam medo e apreensão, não mais em relação aos outros, mas a si mesmo, de as grandes expectativas se transformarem em fracasso, de não alcançar aquilo que sempre desejou, de frustrar a si e suas promessas. Não é difícil notar o desregramento, a futilidade, a ingratidão, e o esforço estéril em fugir do passado, do presente, sem perceber o quão distante e improvável era-lhe as ambições futuras... O curso da vida sinalizava-lhe um horizonte nada auspicioso; talvez, por não levar a sério os alertas, optou em desprezá-los, não conseguindo suprimi-los ou derrotá-los.
Se você espera apenas se distrair, esqueça “Grandes Esperanças” ou qualquer outra obra de Dickens. Se busca um enredo histórico, saiba que ele transcende, em muito, a este detalhe. Se for uma trama de época, vale a mesma observação. Se for curiosidade, talvez se satisfaça, não pela curiosidade em si, mas pelo que ela o incitará a descobrir, ou, em outras palavras, descortinará de si mesmo enquanto lê; pois está a falar do âmago humano, do qual todos somos partícipes, uns mais outros menos, sem exceção.
Charles Dickens, como a maioria dos autores do século XIX, escrevia seus romances em periódicos, semanalmente, e foi um dos mais famosos de seu tempo, se não o mais famoso. Alguns dizem ser o equivalente aos autores de best-seller da atualidade, em nível de popularidade e vendas. Não consigo, por mais esforço dispenda, encontrar um único autor líder de vendas que seja ao mesmo tempo simples e profundo, pessoal e universal, peculiar e geral, característico e abrangente, como Dickens. A expressão “best-seller” tornou-se sinônimo de vulgar, ruim, comercial e descartável ao longo do tempo, e se existe uma coisa da qual Dickens não pode ser acusado é disso. Reputá-lo também como um mero contador de históricas ou fazedor de tipos, seria reduzi-lo a algo que jamais foi ou será, bastando ler qualquer das suas obras para se certificar desse engano... Talvez, e somente talvez, haja um “torcer de nariz” por conta da linguagem acessível, límpida e fluída, elegante e refinada, quase poética, a compor o texto, sem hermetismos, dubiedades e pedantismos típicos a agradar boa parte dos críticos e vanguardistas das artes. Para esses, se uma obra não for ininteligível, confusa e estanque não é arte, mesmo que se disserte e delongue sobre o extenso vazio de sua concepção. No caso, Dickens não somente tem muito a dizer, mas o diz, para leigos e peritos, doutos, eruditos ou simples mortais. Qualquer um pode, na medida do possível, apreender e apropriar-se da diegese, da realidade a fluir das suas centenas de páginas.
Portanto, sem citar Estela, Miss Havisham, Mr. Jaggers, Drummie, Mr. Pumblechook e tantos outros vultos imprescindíveis à compreensão da história e repletos de humanidade, deixo ao leitor essas parcas impressões que, contudo, espero ser suficientes para aflorar o desejo de tomar esta obra em suas mãos, degustá-la (mesmo indigesta, em vários pontos), e então compreender toda a complexidade, íntima e abissal, do homem. E Dickens é um dos maiores embaixadores ou representantes do espírito e coração a emanar da nossa natureza.
Leitura recomendadíssima!
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Avaliação: (*****)
Título: Grandes Esperanças
Autor: Charles Dickens
Páginas: 704
Editora: Penguin
Sinopse:
“Grandes Esperanças” é, sobretudo, um romance de redenção e perdão de seus protagonistas: Narra a história de Philip Pirrip, ou simplesmente Pip, órfão criado pela irmã EM um ambiente de pobreza, Pip vive na casa de sua irmã mais velha, casada com um ferreiro do vilarejo. São pobres, mas não miseráveis, porém, o que aflige Pip, e seu cunhado e único amigo Joe Gargery, é a truculência com que são tratados por Mrs. Joe"