02 julho 2011

Bate-papo com Esli Soares: direito de pecar e a secularização da igreja



Por Jorge Fernandes Isah

Novamente, postarei outro bate-papo por aqui. Desta vez, a "vítima" foi o Rev. Esli Soares, do blog "A cruz on-line!", com quem tenho sempre boas e edificantes conversas, a despeito de, ultimamente, estarmos ambos com falta de tempo, o que tem reduzido esse privilégio.

Nossa conversa se deu rapidamente, e muito do que foi conversado pode parecer "solto", precisando de mais explicações, as quais estamos dispostos a dar. Mas as conversas informais são assim mesmo, vamos falando e mudando de assunto sem muita cerimônia.

Como considerei os vários pontos do bate-papo importantes, decidi publicá-lo, não sem antes pedir autorização ao meu interlocutor, que gentilmente cedeu-me todos os direitos de publicação, inclusive o eventual lucro financeiro que advenha dela [rsrs].

Agradeço ao Esli, primeiramente, pela amizade, e pela gentileza em permitir a reprodução da nossa conversa.

Então, sem mais delongas, vamos ao que interessa! 

BATE-PAPO COM ESLI SOARES

Esli: Oi!
Eu: Dom Esli, tudo bem?
Esli: Graças a Deus! Ainda mais com a suspensão do kit gay.
Eu: É... mas vamos aguardar os próximos capítulos...
Esli: Sim,  claro! Tenho noção de que foi só uma suspensão, mas é o caso de agradecer ainda assim. Parece até que vivemos numa democracia...
Eu: É... O motivo é que não foi muito legal... Por causa do caso Palocci... Foi uma troca com o PT; uma barganha nada moral e ética.
Esli: Sim. Mas devemos fazer bons amigos das riquezas de origem iníquas... hehehhe.
Eu: Sei lá... Estava lendo 1Co 10, e Paulo diz que não se pode comer na mesa do Senhor e na mesa de Satanás. Então... Foi uma medida certa por um lado, e errada por outro. Mas ao menos os meninos não serão expostos a tanta imoralidade em tão tenra idade, ainda mais do que já são bombardeados pelas mídias.
Esli: Veja, devemos ir com calma, pois vivemos num tempo de grande tribulação. Estamos na antesala do trono de satanás.
Eu: Mais do que os apóstolos? Duvido!
Esli: Sem a menor dúvida! Eles tinham apenas a perseguição das espadas. Nós temos a espiritual. O inferno do tempo deles era mais imaturo, mais ingênuo, não sabiam o que estavam enfrentando... A luz dos apóstolos era firme e direta.
Eu: Não vejo dessa forma. Paulo sempre disse que a nossa luta não era contra a carne, mas contra as potestades, e ele entendia muito bem do que estava falando, muito mais do que nós entendemos.
Esli: Mas, lembre-se de que tudo isso era profético também. Enfim, cada tempo enfrenta a sua luta, e comparar não é lá muito sábio. Fiz isso para mostrar que temos de procurar as respostas na Bíblia, mas temos de ler bem mais do que na simplicidade do texto. É preciso conhecer a história, a geografia, a política, e a filosofia por traz de cada trecho; e desenterrar 2000 anos de tradições para, então, de posse da Verdade, termos a relevância que será natural.
Eu: Creio que o texto bíblico é mais simples do que isso... Senão apenas os acadêmicos a entenderiam.
Esli: Jorge, o texto nunca é simples. Ele nem pode ser simples, porque fala das grandezas de Deus.
Eu: Eu não disse que é; disse que não é tão complexo como você aponta, é mais simples do que isso...
Esli: Mas ele é eficiente, e na medida de que quem dele se aproxima, e o faz com devoção e humildade e zelo, encontrará as respostas. Não é preciso muita coisa, somente fé; e a verdadeira fé o fará buscar todos os recursos disponíveis.
Eu: Sabe, quando a gente “inflaciona” o texto bíblico com ciências humanas é que ele fica complicado, na verdade, ininteligível... É o mesmo que alguém querer caminhar sem dar um passo... não tem jeito.
Esli: Isso é verdade; mas lembre-se de que Deus escolheu nos falar assim, digo, especificamente para nós, que somos os filhos do tempo "Sola Scripturae”; não podemos desprezar tudo o q Deus nos deu... hummm... Acho que está na hora de começar a publicar textos sobre a Bíblia...
Eu: Sim. Claro. Eu mesmo gosto bastante de filosofia, mas evito misturar os conceitos filosóficos ao texto bíblico, na verdade, o texto bíblico me ajuda a entender filosofia.
Esli: Correto. Entendo você, mas o texto bíblico é filosófico.
Eu: Por isso fica mais fácil entender filosofia. E acho que assim contamino o mínimo possível a Escritura... [penso ser impossível não contaminá-la com nossos pressupostos].
Esli: Sim. Por isso devemos lutar para desenvolver uma cosmovisão redimida.
Eu: É verdade... Sim, mas como você vê a questão secular? De defender princípios seculares que não são bíblicos? O crente pode, ao mesmo tempo, defender o princípio bíblico na igreja e defender princípios seculares no mundo que se contrapõem à Bíblia? Isso seria uma cosmovisão redimida ou contemporizada?
Esli: Não, não pode haver mistura...
Eu: Mas, como você vê o crente, por exemplo, que considera o furto pecado, mas defende o direito do homem furtar? Vale para a prostituição, a mentira, a fraude, e tudo o mais que seja pecado. Pode um crente, em sã consciência, defender o direito ao pecado? Quem peca tem direito de pecar? Ou ele está cometendo uma exceção?... Uma distorção?... Uma rebelião à ordem natural?
Esli: Com muita tristeza eu li sobre tudo isso nessas últimas semanas...
Eu: Não quero nem entrar na questão de quem escreveu. Estou falando da ideia, do princípio. Provavelmente não é dele, deve ter lido isso em sites estrangeiros, liberais... Mas o que você pensa a respeito?
Esli: Sim, é provável... Veja, eu ainda continuo afirmando a verdade da Bíblia, e a falsidade do homem.
Eu: Sei. Mas eu queria algo mais prático. Por exemplo, eu sou juiz, e há uma lei que permite o aborto. Como cristão, sou contra o aborto, mas como representante da lei devo aprovar o aborto que aquela mulher quer cometer; o que valerá mais? A minha condição de cristão ou juiz? Se eu autorizar o aborto, não estarei negando os princípios cristãos? A Bíblia? E Cristo?
Esli: Sim,  estará! Como cristão você estará disposto a perder o cargo de juiz, e Deus o honrará nisso.
Eu: É assim que eu penso, também.
Esli: Mas se você tiver modos de evitar tomar essa decisão ou subterfúgios para não ter de desobedecer a lei humana, deve usá-los.
Eu: Não entendi. Como assim, não desobedecer as leis humanas? Se elas ferem o Evangelho, e se voltam contra ele, devo desobedecê-las.
Esli: Sim, a desobediência civil é moralmente correta. O que digo é que existem subterfúgios, por exemplo, não aceitar o cargo que trata dessas questões. Se declarar incapaz de julgar o caso, ou usar de ferramentas para resolver a questão a favor da lei de Deus. Sabe, precisamos usar a tesoura e não só a pedra.
Eu: É, mas há casos em que isso será difícil, quando não, impossível, então, creio que renunciar ao cargo é o dever do crente; se essa for a situação.
Esli: Não antes de tomar a decisão correta... hehehe... Impedir o aborto, e deixar que o inimigo se levante; isso é, não saia da posição, afinal a nossa luta não é contra a carne e nem o sangue.
Eu: Ah, sim! Resistir até o fim. Como está em Hebreus: não resististe até o sangue.
Esli: Isso! Olha, Deus usa até um ímpio para nos proteger.
Eu: É verdade. Mas não consigo entender como um cristão pode defender o direito do homem pecar. Isso está me incomodando... E me parece algo muito perigoso. Pois podemos ter atitudes cristãos e atitudes anticristãs que originalmente se conflitam com a consciência tranqüila de que estamos fazendo o certo mesmo agindo erradamente. É aí que entra a ética cristã, mas parece que muitos estão mais interessados em resguardar os seus próprios interesses do que em preservar a moral e a ética estabelecidas por Deus.
Esli: É um erro horroroso, e está apoiado em uma falácia gigantesca!
Eu: Até pensei em escrever algo sobre isso, mas achei que tenho coisas mais importantes para escrever... E, sinceramente, não quero polemizar. Mas alguém disse no Facebook que os gays devem ter os seus direitos assegurados, inclusive o de pecar, baseado em Rm 1, deixá-los à própria sorte e iniqüidade... Agora, me diga, esse é o outro lado, o lado extremo da questão, mas é justo que nós, cristãos, deixemos os outros pecarem, e até estimulemo-os ao pecado,  para a própria destruição deles? Enquanto se minimiza a questão, esse irmão [que é pastor nos EUA] defendeu que devemos deixar os ímpios pecarem, sofrerem na carne por seus desejos ilícitos... E veio com a desculpa de que se dois gays moram juntos, vivem juntos, etc, eles devem ter o mesmo direito de um casal, pois se alguém morrer ou ficar impossibilitado de administrar seus bens, o outro o fará por ele, em seu nome... Mas já há leis que dizem, por exemplo, que se eu quiser fazer uma procuração para alguém administrar os meus bens, caso eu me torne incapacitado ou morra... Não é preciso ser gay e estar "casado" para se ter esse direito. Qualquer um pode fazer em vida... Por que eles não fazem? Mas aí entra outra questão, a da imitação do natural, querendo que algo antinatural seja natural, seja visto naturalmente pela sociedade, ao desejarem se equiparar a um casal. Não é questão legal, é a rebelião contra a vontade de Deus, contra o natural, contra tudo que grita diante dos olhos deles que o estilo de suas vidas é antinatural...
Esli: Sim; só lembrando que aqui a pessoa em vida não pode legislar sobre os seus bens depois da morte.
Eu: Há testamento, para isso.
Esli: No mínimo 50% deve seguir as leis de sucessão. Testamento é coisa de americano, aqui não rola desse jeito.
Eu: Mas muitos gays não têm herdeiros, logo, podem destinar seus bens para quem quiser. Nem pais ou irmãos poderão ingerir em suas decisões em vida.  O problema é não se fazer um testamento e o suposto beneficiário quiser reivindicar a herança depois da morte do parceiro.
Esli: É. Concordo.
Eu: Mas falo é de lá mesmo, dos EUA, pois esse pastor mora lá.
Esli: Outra questão é que ninguém tem direito de pecar. Existe a possibilidade de perdão, mas direito de pecar não existe. Como o Estado é laico, ele apenas deve legislar para que a liberdade de cada um não interfira na do outro. Em se tratando dos gays, ele deve aplicar a lei com rigor a favor ou contra eles, sem considerá-los mais ou menos privilegiados que os demais mortais... Não criar leis especiais.
Eu: Outro problema é: Qual o critério para se saber a qual pecado o homem tem direito? Qual pecado deve-se defender e qual não se deve defender? E por qual critério?
Esli: Cria exeções... Nenhum pecado é legítimo para o homem; nenhum homem tem direito ao pecado.
Eu: Por que um gay pode e um pedófilo, não?
Esli: Por uma questão simples...
Eu: Ou um mentiroso, ou um ladrão?
Esli: Os gays têm liberdade, e se sua liberdade não interferir na vida de ninguém eles podem fazer o que quiserem, afinal o Estado é laico. O pedófilo, o mentiroso, ou o ladrão, sempre cometem um crime contra alguém e, por isso, e somente por isso, devem ser punidos pelo Estado.
Eu: Mas laicidade não é isenção nem neutralidade... O sexo está nas ruas, nos outdoors, e é algo que deveria ser privativo, ser mantido entre 4 paredes... Falo isso tanto para “héteros” como para “homos”; mas se defendo a postura homossexual de esfregar o pecado deles na minha cara, por que uma prostituta não pode? Por que um pedófilo não pode? Por que um ladrão não pode? Essa é a questão. Quando defendo o direito ao pecado, defendo o direito de qual pecado? Se de um, de todos, visto todos serem pecados diante de Deus? Logo, terei de reconhecer os outros, se reconheço apenas um deles. E isso não cabe ao cristão. Usar a justificativa de que existe o pecado para defendê-lo. A questão é que se os cristãos não defendem a moral e a relativizam, o que podemos esperar do mundo?
Esli: Sim, mas não mistura as coisas. Volto a dizer que o homossexualismo é errado moralmente, em se tratando o que a Bíblia diz, porém, nas relações particulares o Estado admite sua incapacidade de julgá-los sob o aspecto moral; então, não podemos misturar as coisas.
Eu: Não estou misturando as coisas. Veja bem, a questão é: um crente, mesmo vivendo num Estado secular ou laico, como queira [ainda que não exista Estado laico, o que existe é Estado anticristão ou antireligioso], deve defender o direito ao pecado? E quais os critérios para tal defesa? Até quando eu posso vestir-me de laicista para defender um princípio antibíblico? É essa a questão.
Esli: Não deve. Não deve nem mencionar tal idéia.
Eu: Ou seja, até que ponto um pecado pode me levar a defender outro pecado? Ou um estado de pecaminosidade pode me levar a defender o direito ao pecado? Não seria o nítido conflito entre luz e trevas, ao qual Paulo se refere em Coríntios? De que qual comunhão é possível entre o bem e o mal? Ao ponto que um cristão possa defender o direito ao mal? Mesmo que seja o mal para quem o pratica?
Esli: Está errado defender um Estado laico; está errado defender uma democracia; porém, o cristão tem de viver o hoje. Se o Estado é laico temos de saber como defender a nossa causa nessa situação. Se vivemos numa democracia temos de nos defender nos moldes possíveis dentro de um regime democrático.
Eu: Mas se os próprios cristãos defendem o direito ao pecado, e não é somente um, mas li opiniões favoráveis de vários [alguns faziam defesas apaixonadas] que esperar do Cristianismo? Nesses moldes, como cumprir o ide de ser sal e luz neste mundo caído?
Esli: É, ai é mau. Sempre tenho falado que não posso defender essa ordem natural do mundo capitalista e democrático, mas sempre me confundem, dizem que eu estou defendendo o comunismo... O Estado livre é o estado que permite e incentiva o pior pecado, o qual é  o homem se achar Deus; e em assim sendo, Deus mesmo os entregará a praticas repugnantes e torpes, em contra partida.
Eu: Os regimes de governo humanos são assim mesmo, uns piores dos que os outros. Por isso, penso que o dirigir-se pela Lei de Deus tornaria justa a sociedade; seria bom para todos, menos para os criminosos contumazes. O fato é que, no mundo atual, não há lugar para arrependimento, apenas para a ostentação degradante do pecado. E é isso que alguns de nós defendem por aí, ainda que digam que não. Mas se não estão defendendo esse direito, estão defendendo o quê? Penso que a pior torpeza não é a de quem a pratica, mas a daquele que vê o outro praticando e se cala ou bate palmas.
Esli: Quanto à aplicação da Lei de Deus, creio que isso não vai acontecer. É ai é que divergimos...
Eu: Mas posso defendê-la... O acontecer pertence ao Senhor.
Esli: Eu acho que devemos como Igreja, e não como força política. Nossa ação é na sociedade e a sociedade redimida vai pressionar o governo e esse vai fazer algumas coisas por pura pressão dos homens redimidos.
Eu: De certa maneira, foi o que aconteceu com o Kit Gay... São as regras do jogo político.
Esli: Devemos ser gratos, pois Deus nos protegerá nesses tempos de angústia.
Eu: Certamente. Mas outra questão é: se defendemos o direito ao pecado, é sinal de que não amamos o pecador. Pelo contrário, está nítido o nosso desprezo por ele.
Esli: Sim; como tenho sempre dito, se proibirem falar contra o homossexualismo, serei preso toda semana, se bem que eu raramente fale desse assunto.
Eu: Não precisa falar, mas não tem porque não falar. O fato é que, mesmo se não falar, alguém pode acusá-lo de homofóbico, de perseguidor de gays, e irá preso do mesmo jeito.
Esli: Por isso disse que serei preso toda semana. Será bom, pois os presos ouvirão o Evangelho e se converterão; sabendo que a população carcerária é cada vez maior, vamos tomar o Brasil para Cristo.
Eu: Por que a lei contempla o pecado, infelizmente! E a sociedade estimula os pecadores; estimula o conceito de pecado, para depois, quando é prejudicado por eles alegar injustiça e frouxidão do Estado. Mas se esquecem de que são os primeiros a defender a impiedade, como um salvoconduto para pecar livremente. Isso é comum entre os homens naturais, só faltava os cristãos defenderem-no também, agora, não falta mais [rsrs].
Esli: Hehehe... Sim, mas há 7.000 que não se dobraram a Baal.
Eu: Amém!... Meu irmão, terei de sair. Foi muito bom o papo!
Cristo o abençoe! 
EsliAmém!
Nota: Indico o texto do pr. Josafá Vasconcelos, "Decisão do STF: Direito de pecar?!"

25 junho 2011

O julgamento de Deus*




















Por Jorge Fernandes Isah

         Se há um absurdo, esse é o de se transferir para Deus a responsabilidade que nos pertence. Em nome de uma pretensa liberdade humana, que nada mais é do que a liberdade de ser livre de Deus, ou autonomia humana, ou a liberdade da indiferença, os proponentes dessa idéia de liberdade, sem a qual não haveria responsabilidade, ao ver deles, transferem-na para Deus quando confrontados com inúmeras passagens bíblicas que afirmam a plena e completa soberania divina. Mais que um disparate, fruto da incompreensão e distorção de conceitos escriturísticos, essa tentativa de defesa é um ultraje.
         O argumento é mais ou menos o seguinte: se Deus escolheu e decidiu tudo, então não se é culpado de nada, logo não se é responsável, e se houver culpa e culpados, Deus é injusto. Aparentemente se tudo, inclusive a ação humana, é determinada pelo Todo-Poderoso, então o homem não pode ser responsabilizado por nenhum dos seus atos, estando desde já inocentado pelo que faz ou vier a fazer. Nesse molde, o argumentador conclui o mesmo que o interpelador de Paulo: “Por que se queixa ele [Deus] ainda? Porquanto quem tem resistido à sua vontade?” [Rm 9.19]. Se tudo foi decretado, até mesmo os mínimos detalhes, pensamentos e desejos, como se pode ser responsabilizado pelo que se faz? Já que ninguém pode resistir-lhe, por que ainda se queixa contra nós? Não seria Deus injusto ao nos condenar por fazer aquilo que não temos como evitar? Que nos é impossível resistir? E que não temos como não realizar? Sem chance alguma de fugir da realidade pré-ordenada? Como ser responsável se não há liberdade na escolha?
       Há de se analisar alguns pontos:
      1)Responsabilidade não pressupõe liberdade, de tal forma que ninguém pode ser livre de Deus simplesmente porque, como diz a Escritura, é ele quem opera em nós tanto o querer como o efetuar segundo a sua boa vontade [Fp 2.13]. Por querer, entende-se a vontade de, ter a intenção de, almejar, anelar, intentar algum ato. Por efetuar, levar a efeito, consumar, realizar ou fazer determinado ato. E o que significa isso? Deus, do alto de sua autoridade como único legislador e administrador do mundo, decretou, ordenou e exigiu que todas as coisas se cumprissem segundo a sua vontade; porque “fez tudo o que lhe agradou” [Sl 115.3].
       É o que Jó também diz: “Mas, se ele resolveu alguma coisa, quem então o desviará? O que a sua alma quiser, isso fará. Porque cumprirá o que está ordenado a meu respeito, e muitas coisas como estas ainda tem consigo. Por isso me perturbo perante ele, e quando isto considero temo-me dele. Porque Deus macerou o meu coração, e o Todo-Poderoso me perturbou” [23.13-16].
     Jó não vê a chance de sequer argumentar com Deus; de tentar dissuadi-lo de abandonar o seu propósito eterno; até porque reconhece que o Senhor ordenou tudo a seu respeito, e de que tudo ordenado se cumprirá infalivelmente. E quando considera essa situação,    ao invés de se revoltar ele teme e se perturba, porque tudo o que o Senhor quiser, assim fará, independente do homem ser livre ou não, porque como está escrito, não depende de quem quer ou quem corre, mas de Deus querer ou não [Rm 9.16]. Ao ponto em que Jó teme e se perturba, pois sabe impossível não acontecer o que Deus decidiu, e ele não arvora para si nenhuma inocência ou não-responsabilidade, e reconhece que Deus o macerou. Macerar aqui tem o significado de sujeitá-lo, de submetê-lo à vontade divina, colocando-o completamente sob o seu domínio. E mesmo se considerarmos o termo como sinônimo de dilacerar, afligir, não estaríamos errados, pois parece ser também esse o sentimento de Jó ao reconhecer-se perturbado.
      2)O livre-arbítrio ou libertarismo propõe que os indivíduos escolhem, agem e são moralmente responsáveis pelas suas escolhas e ações, e para isso é necessário que ele possa escolher fazer “A”, mas também possa evitar e não escolher fazer “A”. Ele teria o que se chama de “controle duplo da vontade”, de se poder ir para uma decisão ou outra pela “liberdade da indiferença” ou seja, a capacidade de escolher entre duas alternativas sem  inclinação ou tendência tanto para uma como para outra. Partir-se-ia da neutralidade, da isenção, sem qualquer coerção externa ou interna. Isso é simplesmente impossível, pois nenhuma decisão é neutra, e nem é possível sê-la [1]. Acontece que todos os homens, sem exceção, “se extraviaram, e juntamente se fizeram inúteis. Não há quem faça o bem, não há nem um só” [Rm 3.12]. Ora, estando debaixo do pecado, como se pode ter a mesma capacidade de escolher entre o bem e o mal? Entre o certo e o errado? 
       3)A melhor definição para responsabilidade é a que define-a como a obrigação de responder pelas ações próprias; o dever de dar conta de alguma coisa que se fez ou mandou fazer. Em linhas gerais é imputar, atribuir acerto ou erro a alguém pelo que se faz, pelos atos que praticou. Não há implicação em se ser livre para se ser responsável. Ainda que os elementos objetivos ou subjetivos que o levaram a tomar a decisão estejam implícitos na decisão. Ela não aconteceu por si só, mas pela vontade do indivíduo. Mas essa vontade não é livre, nem livre de causação. De tal forma que a causação ou coerção sobre a vontade do homem não elimina a sua responsabilidade.
      Com essas idéias em mente, por que o defensor da liberdade humana, para se ser moralmente responsável, diz que não havendo liberdade o homem não pode responder por seus atos? E se for, Deus é injusto?
     De certa forma, esse advogado defende uma causa errada, porque Deus, e não o homem, é quem estabeleceu o que é justo e injusto, o que é certo e errado, o que é bom e mau, e assim todas as coisas são ordenadas conforme a sua sabedoria, sem que nada possa escapar ao seu juízo. O que acontece é que ele não está disposto ou inclinado a reconhecer a verdade. Com isso não estou excluindo-o do rol dos santos. Não é isso. Há equívocos, e mesmo os grandes heróis da fé os cometeram: Noé, Abraão, Davi, Pedro, João, etc. E nem por isso foram eliminados da fé uma vez dada aos santos [Jd 3]. O que estou a dizer é que, de alguma maneira, a verdade é-lhe tão dura, inflexível, humilhante e dolorosa que prefere se contentar com a mentira ou com uma falsa-verdade. E ele é responsável por isso, não Deus; mesmo que esteja fazendo-o com a melhor das intenções: absolvê-lo de ser o autor do mal.  
     Quando o determinismo bíblico é levantado, e a questão da liberdade versus responsabilidade deixa de estar na esfera humana para se encontrar na esfera divina, as coisas se tornam claras, e fica evidenciada a verdade bíblica. O determinismo bíblico é comumente confundido com fatalismo, que nada mais é do que “forças” indefinidas como o destino, o azar, a sorte, o acaso, etc, agirem e determinarem todas as coisas. O fatalismo é aleatório, injusto, imperfeito e não tem nenhum caráter onisciente e providente. Já o determinismo estabelece que Deus é quem ordenou e decretou todas as coisas no universo, de tal forma que elas acontecem por sua sabedoria, santidade e perfeição, segundo a sua vontade, uma vontade providente que levará a cabo o final decidido e fixado por ele no transcorrer do tempo e da história. Enquanto o fatalismo é impessoal, o determinismo é pessoal. Enquanto o fatalismo é imperfeito, o determinismo é perfeito. Enquanto o fatalismo é indefinido, não tendo uma causação delimitada, o determinismo tem como causa primeira o próprio Deus, e por ele é posto em execução.
       Mais do que buscar um sentido moral no homem, o sentido moral está no Todo-Poderoso o qual estabeleceu o que venha a ser moral e imoral, bem e mal, certo e errado, verdade e mentira... E isso tem-se de entender: por mais que se queira proteger a Deus, não podemos ser tolos ao ponto de considerar que alguma coisa pode ter sido criada alheia à sua vontade, ou sem que quisesse. Se tal ocorresse, não estaríamos a falar de Deus, mas de deuses. O fato de todas as coisas existirem, e nelas incluídas o mal, o pecado, satanás e seus demônios, o inferno... acontecem por deliberada resolução divina. Não passiva, mas ativamente. Não que um problema tenha-lhe sido colocado nas mãos para resolver sem que esperasse ter de resolvê-lo, mas todas as coisas existem por sua vontade e estão postas diante de si mesmo antes de existirem; muito antes de haver o problema, Deus já tem pronta a solução.
       Então se Deus determinou tudo, como o homem pode ser considerado responsável por aquilo que fez, mas que não poderia deixar de fazer?
      Foi assim que um inquiridor cínico interpelou Paulo: “Por que se queixa ele[Deus] ainda? Porquanto quem tem resistido à sua vontade?”. Ao que Paulo respondeu: “Mas, ó homem, quem és tu, que a Deus replicas? Porventura a coisa formada dirá ao que a formou: Por que me fizeste assim? Ou não tem o oleiro poder sobre o barro, para da mesma massa fazer um vaso para honra e outro para desonra? E que direis se Deus, querendo mostrar a sua ira, e dar a conhecer o seu poder, suportou com muita paciência os vasos da ira, preparados para a perdição. Para que também desse a conhecer as riquezas da sua glória nos vasos de misericórdia, que para glória já dantes preparou, os quais somos nós, a quem também chamou...?” [Rm 9.20-24].
      Não há a menor chance de tentar fazê-lo responsável pelo que somos ou realizamos. A alegação de que algo foi feito sob coerção impossível, visto vir do decreto e da determinação de Deus em nada ajudará o indivíduo, nem poderá absolvê-lo. Usar essa desculpa não o fará inocente diante de Deus. A culpa está no ato praticado, e quer se queira ou não, fazemos o que queremos, pois o fazemos. Se os nossos atos estão em comunicação direta com a nossa vontade, a qual decidirá efetivamente o que se tornará real, não importa se a vontade é dirigida ou não; importa que o faremos por querer, e assim procedemos em cumprir a nossa vontade. A coerção é um detalhe irrelevante, visto Deus condenar o homem não por ser constrangido ou não, mas por praticar o mal. Se praticar o mal, por coerção, o que determinará a condenação será o ato praticado. Se praticar o mal, sem coerção, o que determinará a condenação será o ato praticado. Seja um ou outro, o que definirá a culpa ou não será se o homem transgrediu ou não transgrediu a Lei de Deus. Portanto os homens ficarão sempre indescupáveis, pois tendo o conhecimento de Deus, “não o glorificaram como Deus, nem lhe deram graças, antes em seus discursos se desvaneceram, e o seu coração insensato se obscureceu” [Rm 1.21].
      Porém, há um agravante. Quando julgamos a Deus [“Por que se queixa ele ainda?], incorremos novamente na completa impossibilidade de nos tornarmos desculpáveis diante de dele, pois, “és inescusável quando julgas, ó homem, quem quer que sejas, porque te condenas a ti mesmo naquilo em que julgas a outro, fazes o mesmo” [Rm 2.1]. Se Deus aqui julga os hipócritas, aqueles que condenam os que fazem exatamente o que eles mesmos fazem sem que profiram condenação a si mesmos, o que dirá daqueles que pretendem, ainda que inconscientemente, julgar o Senhor? Se tornarão indesculpáveis, condenados pelo próprio pecado, pelo ato de supor ou formar um conceito errôneo a respeito de Deus, e de quererem enquadrá-lo em seu esquema imperfeito e injusto. Acusar o Senhor disso ou daquilo em nada facilitará as coisas para o homem, pois não somos responsáveis segundo o nosso padrão, nem seremos julgados por ele, mas exclusivamente por aquele que tem toda a autoridade e poder para julgar.
       Deus pode condenar? Sim. Pode absorver? Sim. Criou as regras? Sim. Há outro julgamento igual ou mais perfeito que o dele? Não. Há possibilidade dele errar? Não. De ser injusto? Também, não. Então, por que não se reconhece que, sendo Senhor e Criador de todas as coisas, pode controlar nossas decisões? E de que, mesmo sob o seu controle, continuamos responsáveis pelo que fazemos? O princípio da responsabilidade está na autoridade divina e não na liberdade, porque o homem jamais será livre de Deus, mas Deus sempre será autoridade sobre o homem. E ninguém poderá alegar injustiça, porque Deus não é injusto [Rm 9.14]de maneira que cada um de nós dará conta de si mesmo a Deus” [Rm 14.12].

Nota: [*] Texto publicado originalmente em em 04.10.2010, aqui mesmo, o qual reproduzo juntamente com os comentários à época, sempre mais esclarecedores que o próprio texto. Como estou escrevendo outro  que tem semelhanças com este assunto, considerei a sua republicação, como uma introdução.
[1] Para saber mais sobre a incoerência do livre-arbítrio, clique AQUI

17 junho 2011

Disciplina & Sofrimento [Pregação sobre Salmo 30 - última parte]



Por Jorge Fernandes Isah

Continuando a meditação no Salmo 30 [leia a primeira parte], dissemos na semana passada que este é um cântico de louvor e agradecimento, mas também de súplica, de clamor de Davi a Deus.

Os quatro primeiros versos foram de agradecimento a Deus por tê-lo livrado das mãos de seus inimigos. De forma que ele conclamou todos os santos a bendizer e louvar o Senhor.

No verso 5 é-nos dito que mesmo passando por tribulações e dores, Deus age em nossos corações trazendo a certeza da esperança, a confiança de que um dia nossas lágrimas serão enxugadas.

Chegamos então ao versículo 6: "Eu dizia na minha prosperidade: Não vacilarei jamais". Davi reconheceu a sua presunção e autoconfiança, nos dias em que não havia aflição, nem angústia, nem privações; de que pelo seu esforço, capacidade e dons, não cairia dessa condição. Ele se orgulhava do quanto havia conquistado, de como era próspero e não necessitava de nada.

Aqui temos o relato de um homem que, em sua soberba, reputou que não seria abalada a sua felicidade. Ele se considerou autônomo, independente, de tal forma que não considerou que tudo o que tinha era pelo favor de Deus para consigo mesmo.

Provavelmente Davi se considerou um homem forte, inabalável, poderoso, rico, trazendo-lhe a falsa ideia de que tudo o que conquistou era fruto exclusivamente do seu talento em obtê-los. Entre todos os pecados, o seu maior pecado, o qual confessou neste verso, foi acreditar na sua independência de Deus, não reconhecendo que o Senhor era quem, por sua providência, havia tornando-o em um homem próspero.

Vejamos o que Paulo tem a nos dizer em 2 Co 12.

Paulo foi arrebatado até o paraíso, e lá ouviu, como mesmo disse, "palavras inefáveis, que ao homem não é lícito falar" [v.4]. Provavelmente, Paulo se orgulhou de ser escolhido para ver e ouvir o que viu e ouviu no paraíso, e que mais ninguém viu e ouviu. Talvez tenha se considerado um homem especial, até mesmo um super-homem, envaidecido-se, e se ensoberbecido com o privilégio que havia recebido de Deus.

Por isso, Deus lhe deu um "espinho na carne", um mensageiro de Satanás para o esbofetear, a fim de não se exaltar [v.7]

Foi o que Deus fez com Davi. Fortaleceu-o, fez forte a sua montanha, para depois encobrir dele o seu rosto. Deus acrescentou à vida de Davi tudo o que era-lhe necessário e muito mais, de forma que ele se sentiu como uma montanha, inexpugnável.

Então, Deus retirou-lhe o favor, como se o deixasse à própria sorte, de maneira que Davi se perturbou, e pode reconhecer a dependência que tinha de Deus [v.7].

Foi necessário que Deus disciplinasse Davi, porque ele disciplina aquele que ama, como está escrito: "Filho meu, não desprezes a correção do Senhor, e não desmaies quando por ele fores repreendido; porque o Senhor corrige o que ama, e açoita a qualquer que recebe por filho" [Hb 12.5-6].

O salmista pode então reconhecer que era fraco, que nada do que supunha ser pelo seu poder era-o de fato. Pode reconhecer que sem Deus, sem a sua providência, misericórdia e graça, ele não passava de um homem "desgraçado, e miserável, e pobre, e cego, e nu" [Ap 3.17].

Ele suportou a correção, porque estava sem disciplina; e, por isso, clamou e suplicou a Deus por misericórdia, para que Deus retirasse o castigo, tirasse a vara dos seus lombos: "A ti, Senhor, clamei, e ao Senhor supliquei" [v.8]
Assim como ele, Paulo também orou três vezes a Deus para que o "espinho" fosse desviado dele [2Co 12.8].

Davi, novamente, se sentiu como morto; havia a iminência de morte, pois ele reconheceu que sem Deus, a vida não é possível; a vida é impossível; sem Deus, ele não passaria de um inútil, carne e sangue e ossos mortos, lançados numa cova, e que não teriam proveito algum [v.9].

E, ao fazê-lo, reconheceu a sua pequenez, e de como fora tolo por considerar a sua força aparte de Deus; e constatar que a vida está presente no homem somente quando ele tem comunhão com Deus, somente quando ele o serve, em adoração e louvor; em Espírito e em verdade.

Creio que Davi quis dizer o mesmo que Paulo, ainda que não tenha usado as mesmas palavras do apóstolo: "Fui néscio em gloriar-me" [2Co 12.11]. Por isso, ele clamou a Deus para que lhe fosse devolvida a vida, pois estava morto em si mesmo, e, assim, como poderia adorá-lo e louvá-lo? Como anunciaria ele a tua verdade? [v.9].

Mais uma vez, o salmista clama a Deus por vida, pelo perdão, pela misericórdia, para que Deus se apiedasse dele e, enfim, o auxilasse, e o curasse: "Ouve, Senhor, e tem piedade de mim, Senhor; sê o meu auxílio" [v.10].

Um pequeno aparte: Davi nos deu o testemunho de como devemos estar dispostos e prontos a nos arrepender diante de Deus, constantemente, a cada momento, por nossos pecados, buscando o seu perdão.

O fato de nos considerarmos fortes e suficientes em nossa convicção de que jamais cairemos, como o salmista acreditou, apenas nos fará reconhecer a queda depois que quebrarmos a cara no chão.

Paulo nos diz, sabiamente, que "aquele, pois, que cuida estar em pé, olhe não caia" [1Co 10.12].

Davi tomou um tombo enorme; ele caiu do alto da sua presunção, do alto do seu orgulho e arrogância, e não viu o chão até bater-lhe a cara. Mas, ao invés de praguejar e murmurar, colocando a culpa em Deus, reconheceu o seu erro e a necessidade de se arrepender.

Num momento, em que, cada vez mais, os cristãos estão indolentes, insensíveis, diante da obrigação de cumprir os preceitos divinos; cada vez mais queixosos e rebeldes; cada vez mais orgulhosos e abusados em cobrar de Deus seus supostos direitos, o salmista nos deu um grande exemplo de submissão e de aceitação das suas fraquezas. Não por estar resignado a elas, como se dissesse: "Sou assim, não posso fazer nada! Vou-me conformar com o que sou e viver o que sou. Nasci assim, vou morrer assim".

Esta é a fala de um tolo, do estúpido, que ao invés de se arrepender e buscar a graça divina, contenta-se em se exaltar e se conformar em seus próprios pecados. Como se  o pecado pudesse ser bênção, aceito e não rejeitado. Pelo contrário, Davi, ao compreender suas fraquezas e desatino, pode se alegrar no sustento que Deus lhe deu, em como o fortaleceu, de tal forma que se cumpriu nele a palavra de que o Senhor transformaria todo o pranto em gozo, e em lugar da tristeza daria consolo e alegria [Jr 31.13].

É o que o salmista nos diz no verso 11: "Tornaste o meu pranto em folguedo; desatastes o meu pano de saco, e me cingiste de alegria".

É possível que, mesmo no sofrimento, nas tristezas, em nossas fraquezas, possamos glorificar e louvar a Deus por elas. Porque nelas temos a prova da nossa fé, purificada, mais preciosa do que o ouro, por amor de Cristo [1Pe 1.6-7].

Aqueles que precisam dos sinais para se ter fé, na verdade, não a têm, porque a fé é o firme fundamento das coisas que se esperam, e a prova das coisas que se não vêem [Hb 11.1].

Assim, Paulo nos diz:

“De boa vontade, pois, me gloriarei nas minhas fraquezas, para que em mim habite o poder de Cristo. Por isso sinto prazer nas fraquezas, nas injúrias, nas necessidades, nas perseguições, nas angústias por amor de Cristo. Porque quando estou fraco então sou forte” [2Co 12.9-10].

Nem sempre as aflições e angústias da vida vêem por causa de um pecado específico. Nem sempre são punições por algum erro específico. Certo é que, como pecadores, deveríamos sofrer não somente os castigos incessantes, mas a pior de todas as punições: não ter comunhão com o bom Deus. Não temos direito à paz, à felicidade, ao gozo e à alegria. Isso não nos pertence por direito. Mas nos é dado por Deus pelo seu favor, por sua graça e infinita misericórdia. Pelo amor com que nos amou; o amor pelo qual deu o seu Filho unigênito para nos resgatar para si.

Não temos direito algum a não ser o direito à morte. Mas pela eterna bondade de Deus foi-nos abolido esse   direito; na cruz, Cristo pagou por nossos pecados e passamos a ter, por sua exclusiva graça, o direito à vida que não tínhamos.

Davi e Paulo foram afligidos por causa da tolice humana, a mesma tentativa iniciada no Éden e que nos quis alçar ao nível de Deus, e até mesmo nos colocar em seu lugar, nos fazendo como ele. Foi assim com Satanás e seus demônios. Foi assim com Adão e Eva. Foi assim conosco. Mas como o apóstolo nos disse, quem somos nós para dizer a Deus o que ele deve fazer? Ouçamos a sua voz: "Porque, quem compreendeu a mente do Senhor? ou quem foi seu conselheiro? Ou quem lhe deu primeiro a ele, para que lhe seja recompensado? Porque dele e por ele e para ele, são todas as coisas; glória, pois a ele eternamente. Amém" [Rm 11.34-36].

Muitas tribulações acontecerão na vida do crente; e nem todas entenderemos, mas em todas Deus tem um   propósito definido, santo, perfeito. E qual é ele? Nos santificar, nos conformar à imagem do seu Filho Amado, Jesus Cristo, o qual foi rejeitado, desprezado e homem de dores [Is 53.3]. Se o Senhor sofreu, sem merecer, o justo pagando pelos injustos, por que havemos de reclamar do sofrimento quando somos injustos e merecemos o justo castigo?

Mas, é quando o Senhor entra em ação, e nos liberta da injustiça, fazendo-nos justos pela justiça de Cristo.   Para que, como Davi, não nos calemos. Para que, mesmo fracos, como Davi, sejamos fortes. Para que o louvemos, como Davi. Para que, como Davi, a glória que nos foi dada por Deus seja para o louvor do seu nome; e, para que nele, o nosso coração se regozije, e a nossa carne e espírito repousem seguros em tuas santas e benditas mãos.
  
Sermão pregado em 01.06.2011, no Tabernáculo Batista Bíblico

28 maio 2011

Deus limpará toda a lágrima [Pregação sobre Salmo 30:1-5]



















Por Jorge Fernandes Isah

Primeiramente, queria dizer que este Salmo é um clamor e um agradecimento que, ao mesmo tempo, o Rei Davi faz a Deus.

Davi louva o Senhor pois, mais uma vez, ele o havia livrado dos seus inimigos.  Davi era o rei de Israel; mas antes, foi alvo do ódio de Saul que o perseguiu e intentou a sua morte. Tenho para comigo que durante o reinado de Saul, ele não se preocupou nem mesmo com o seu povo, nem em servir a Deus, mas exclusivamente ele tinha o objetivo maligno de destruir Davi; como um ferroz inimigo daquele que o próprio Deus chamou de um homem segundo o seu coração [1Sm 13.14].

Deus se alegrava em Davi, o qual executou toda a sua vontade. E quem ouviu isso da boca do profeta Samuel? Saul. Naquele momento, ele soube que havia sido rejeitado por Deus, porque não guardou o que o Senhor havia lhe ordenado. Saul soube que Davi era amado do Senhor, e de que ele e o seu reino não subsistiriam. Daí em diante, Saul não mais seguia o Senhor, e não cumpriu as suas palavras, ao ponto em que Deus diz se arrepender de tê-lo posto como rei [1Sm 15.11]. Perseguir Davi não foi o pior pecado de Saul. O pior pecado de Saul foi a desobediência, o desprezar constantemente os mandamentos de Deus, entregando-se ao estado de permanente rebeldia a ele. Por isso ele perseguiu Davi enquanto teve vida; e não soube reinar conforme os mandamentos divinos. 

Davi, portanto, era um homem acostumado ao perigo. Mesmo entre os do seu povo, e mesmo entre os da sua própria carne. Davi foi perseguido, traído e desejaram e maquinaram a sua morte. Era um homem de dores. Não como o Senhor Jesus, mas um tipo do Senhor Jesus nesse aspecto. Interessante que, como àquela época, ele hoje é desprezado por muitos irmãos! Temos uma tolerância absurda e desproporcional para com os ímpios, para conosco mesmo, com os nossos pecados, mas em se tratando de Davi e, também, de Pedro, por exemplo, somos intolerantes... O que vem à nossa mente é sempre o adultério do rei com Bate-seba, e a traição do apóstolo para com o Senhor, momentos antes da Crucificação. 

Esperamos que eles fossem super-homens, quando nos assemelhamos a sub-homens em relação a eles. Nem Davi, nem Pedro, ou qualquer outro homem foi alguma coisa por seus próprios méritos. Como um instrumento inútil, eles foram feitos úteis pelo poder de Deus. Assim como nós, não fizeram nada além do que lhes era devido fazer, contudo, muito, mas muito mais do que fazemos. Esquecemo-nos de que ambos foram poderosos nas mãos de Deus; de como Deus os escolheu para obras grandiosas, para feitos que resultassem no louvor e glória do seu nome. Deus os usou como nenhum de nós jamais será usado. E por isso, Deus os exaltou em Cristo. 

Por outro lado, eles também sofreram na carne o que jamais sofreremos; e souberam, mesmo nas tribulações, nas lutas, na injustiça, permanecerem firmes e confiantes no Senhor, em uma fé inabalável de que Deus não somente os sustentaria mas os ergueria caso caíssem; uma fé que muitos de nós, nos menores reveses da vida, colocamos em dúvida, perdemos a esperança, e nos entregamos à murmuração e ao desalento. Nos tornamos no pior tipo de ingrato, aquele que é incapaz de reconhecer todos os favores que lhe foi dado por Deus. Sem merecimento algum. Sem mover um dedo para alcançá-lo. Exclusivamente pela bondade e graça do nosso Senhor, quando a nossa recompensa, por aquilo que não fizemos e deixamos de fazer, seria a condenação e o inferno. 

Cada um de nós deveria se espelhar no exemplo desse herói da fé, que a todo momento sabia que Deus era aquele que o livraria dos seus inimigos, e lhe daria a vitória sobre eles [v 1]. Quando Davi diz: "Exaltar-te-ei, ó Senhor, porque tu me exaltaste", podemos ter a ideia errada de que o louvor a Deus deve ser dado somente se recebemos algo de que queremos ou precisamos em troca. O fato é que Deus não é um negociador. Tudo o que recebemos é por sua graça, de tal forma que não há mérito algum no homem que obrigue a Deus dar uma resposta que atenda os desejos e anseios humanos. O que Davi está fazendo aqui é reconhecendo o favor de Deus, colocando-se na posição de favorecido, de alguém que recebeu uma graça, e que, por isso, como um agradecimento, uma forma de reconhecimento ao que Deus fez, ele o exalta. 

Pedro nos alertou de que sem humilhação não seremos exaltados: "Humilhai-vos, pois, debaixo da potente mão de Deus, para que ao seu tempo vos exalte" [1Pe 5.6]. Davi se humilhava diariamente diante do Senhor, reconhecendo a sua dependência, e por isso, Deus o exaltou diante dos seus inimigos, os quais eram também inimigos de Deus. 

Por isso ele disse "clamei a ti, e tu me saraste" [v.2]; porque a cura da dor, da aflição, do temor, da angústia e de todos os males, somente pode vir do bom Deus. Hoje, esperamos por um alívio que venha de vários lugares. Esperamos na ciência, em terapias, nos prazeres, no poder, na diversão... de que sejamos capazes de curar a nós mesmos; mas esquecemos que apenas Deus pode curar nossas feridas. Novamente, Pedro nos diz: "Lançando sobre ele [Jesus] toda a vossa ansiedade, porque ele tem cuidado de vós" [1Pe 5.7]; e o profeta nos garantiu:"Verdadeiramente ele tomou sobre si [Jesus Cristo] as nossas enfermidades, e as nossas dores levou sobre si" [Is 53.4]. Como o próprio Davi pode confirmar, ao dizer: "Entrega o teu caminho ao Senhor; confia nele, e ele o fará" [Sl 37.5]. Ele sabia, claramente, que no momento da angústia e da aflição, de uma enfermidade, de uma injustiça, apenas Deus poderia curá-lo; por isso, ele clamava pela misericórdia que somente podia vir do alto.

No verso seguinte, Davi nos revela o estado em que se encontrava, como que o de um morto. E não há como não nos lembrar do Senhor, que sofreu toda a sorte de injustiças e crueldades por amor de nós, sendo crucificado, morrendo, mas ressurgindo dos mortos, como o próprio Davi revelou, profeticamente, séculos antes, em outro Salmo: "Pois não deixarás a minha alma no inferno, nem permitirás que o teu Santo veja corrupção" [Sl 16.10].

O corpo de Davi, diferentemente do corpo do Senhor Jesus, viu a corrupção, mas a sua alma foi preservada para a vida por Deus, e assim como ele, também nós não veremos a morte, pois Cristo garantiu: "Na verdade, na verdade vos digo que quem ouve a minha palavra, e crê naquele que me enviou, tem a vida eterna, e não entrará em condenação, mas passou da morte para a vida" [Jo 5.24]

Ainda que Davi esteja falando aqui sobre as aflições da vida, nas quais ele se via como um morto, dado o grau de opressão sobre a sua alma, o fato é que somente Deus pode nos livrar delas.

Então, ele conclama todos os santos, todos os irmãos, a cantar e louvar o Senhor, não por ter lhe dado um escape momentâneo, por ter solucionado um problema circunstancial, mas como forma de gratidão pela maneira como Deus cuida e concede ao seu povo o seu favor gracioso em toda a vida. Como está escrito:"E sabemos que todas as coisas contribuem juntamente para o bem daqueles que amam a Deus, daqueles que são chamados segundo o seu propósito" [Rm 8.28]. Ou seja, a vida que o Senhor nos dá é suprida em todos os mínimos e mais imperceptíveis detalhes pela sua providência e graça.

Então, somos presenteados com versos da mais rara beleza: "Porque a sua ira dura só um momento; no seu favor está a vida" [v. 5]. Que realidade fantástica o salmista nos revela aqui. Primeiro, de que somos merecedores da ira divina. Pela desobediência e transgressões, estávamos debaixo da ira de Deus. Estávamos mortos em ofensas e pecados, segundo o curso deste mundo, e éramos por natureza filhos da ira [Ef 2.1-3]. Mas graças a Deus que nos vivificou em Cristo, por sua misericórdia e o seu muito amor com que nos amou [Ef 2.4-5]

E o salmista continua: "O choro pode durar uma noite, mas a alegria vem pela manhã". O que pode ser o choro? Pode ser momentâneo, uma dor passageira, algo mesmo que não traga cicatrizes, nem marcas em nossas vidas. Mas pode durar uma vida inteira, anos e anos e mais anos em dores. O choro pode durar até a nossa morte; pode percorrer toda a vida do crente. Pode ser tão duro de suportar que somente Deus para nos manter com vida, quando o desejo é a morte iminente e o alívio da dor. O choro pode nos fazer sofrer, mesmo que seja através de uma lembrança. Mas ainda que o alívio não venha nesta vida, temos a promessa de que ele virá, enfim, na eternidade. É o que João ouviu: "E ouvi uma grande voz do céu, que dizia: Eis aqui o tabernáculo de Deus com os homens, pois com eles habitará, e eles serão o seu povo, e o mesmo Deus estará com eles, e será o seu Deus. E Deus limpará de seus olhos toda a lágrima; e não haverá mais morte, nem pranto, nem clamor, nem dor; porque já as primeiras coisas são passadas" [Ap 21.3-4]. Estejamos certos, meus irmãos, de que Cristo faz novas todas as coisas, porque, como ele mesmo nos diz: "Tenho-vos dito isto, para que em mim tenhais paz; no mundo tereis aflições, mas tende bom ânimo, eu venci o mundo" [Jo 16.33].

O fato é que, todo este Salmo é um louvor a Deus; Davi nos revela como devemos ser gratos, como devemos nos entregar à adoração, bendizendo o nome do bom Deus, porque ele é bom, e sua misericórdia não tem fim. Como filhos, devemos honrar o nosso Pai. Como filhos, devemos obedecê-lo. Como filhos, devemos reverenciá-lo. Andando em temor e tremor, porque também a sua justiça é certa. Graças a Deus por ter-nos tirado do lamaçal do pecado, e ter feito de Cristo, seu Filho Amado, a nossa justiça. Por isso, cada um de nós, irmãos, louvemos e glorifiquemos a Deus, levantando mãos santas, corações contristados, e lábios puros em agradecimento por tudo quanto o Senhor tem feito, e tem nos dado.

Nota: 1) Pregado no Tabernáculo Batista Bíblico em 25.05.2011
2) Esta é a minha primeira pregação; e agradeço a Deus pelo privilégio de poder meditar, juntamente com os irmãos da minha igreja, em sua santa e bendita palavra. 

22 maio 2011

Decreto, o mal e hipercalvinismo












Por Jorge Fernandes Isah

Recebi a seguinte mensagem do irmão Fábio, em relação aos comentários ao livro “A Soberania Banida”:

Agora, a razão mesmo de escrever é, obviamente, sobre o fato de Deus ser o autor do mal. Eu concordo contigo que tudo aponta para essa conclusão, mas o que eu gostaria de saber é porque outros gigantes da fé não ousaram dar esse passo? Veja, o próprio autor do livro que você tratou, na hora “H”, resolve frear e não afirma o fato de Deus ser o autor do mal. Várias vezes eu ouvi que seria humildade intelectual não afirmar isso. É como se Deus tivesse criado um limbo, um vácuo teológico que na nossa pequenez deveríamos assumir. Você tem algum post ou estudo mais aprofundado no qual poderíamos ver ambas as idéias e seus argumentos e refutações? 
Outra: é isso que chamam de hiper-calvinismo, não é? 
Querido, Jorge, muito obrigado pela sua atenção.
Aguardo resposta”

Caro Fábio, 
acredito que as suas indagações são as de muitos que lêem o Kálamos e outros blog “heréticos”, net afora. Achei melhor, por ser um assunto sobre o qual vira e mexe estão me inquirindo, expor o que penso novamente, e, assim, responder a todos, mesmo os que ainda não se dispuseram a perguntar. Então vamos à resposta.
O fato é que todo calvinista acredita no decreto eterno [e não conheço ninguém que não o reconheça]; de que Deus preordenou e predestinou todas as coisas no universo, de tal forma que nada, absolutamente nada, pode frustrar a sua decisão. Esse me parece um ponto pacífico entre os calvinistas: reconhecer a soberania divina em tudo.
Há, porém, alguns elementos que são distinguíveis em algumas correntes. Por exemplo, os compatibilistas acreditam que o homem tem o poder de decisão a partir da sua natureza. Defendem que o homem, para ser responsável moralmente, tem de ser livre em sua decisão e ação. Para eles, responsabilidade está diretamente relacionada à liberdade da vontade, que é causada internamente no homem, ainda que ele não possa evitá-la. Por isso, concluem que a Bíblia afirma um paradoxo, o qual é: o Deus completamente soberano, sem que nada aconteça alheio à sua vontade, convivendo com a responsabilidade humana a partir da liberdade de decisão. Outro nome que dão ao paradoxo é o de “mistério” ou “antinomia”.
Os deterministas bíblicos, ao contrário, não reconhecem esses princípios [há de se reconhecer que mesmo o compatibilista é determinista em algum aspecto, por isso ele é chamado de determinista suave]. Escrevi alguns textos sobre o assunto: “Todos esses anos... e nunca fica mais fácil”, “Mysterium Compatibilista”, "Dupla predestinação, o barro decaído e a arbitrariedade de Deus"  e “Preso na própria armadilha”, dentre outros.
Para facilitar o entendimento, definirei alguns termos:
1)Compatibilismo: É a idéia de que não há conflito entre o determinismo e o livre-arbítrio, de tal forma que eles são compatíveis. Ou seja, é a visão de que as ações humanas são causadas por condições antecedentes, controladas por Deus, mas o homem permanece um “livre-agente moral”, pois agirá conforme a sua escolha, sem nenhuma compulsão ou restrição externa.
2)Determinismo teológico: o Deus pessoal, racional e soberano predeterminou e preordenou todos os eventos no universo, inclusive os pensamentos, decisões e ações humanas, desde o seu início, meios e  fins segundo a sua sábia vontade.
3)Fatalismo: Os eventos são predeterminados por forças impessoais, cegas e irracionais [o acaso, p. ex].
4)Paradoxo: Declaração aparentemente verdadeira que leva a uma contradição lógica. É a afirmação simultânea de duas proposições contraditórias.
Agora, leiamos um trecho da CFW, Seção III.1: Desde toda a eternidade, Deus, pelo muito sábio e santo conselho da sua própria vontade, ordenou livre e inalteravelmente tudo quanto acontece, porém de modo que nem Deus é o autor do pecado, nem violentada é a vontade da criatura, nem é tirada a liberdade ou contingência das causas secundárias, antes estabelecidas”.
Entendo que esta definição é contraditória, ainda que alguns digam que não. Nela temos a completa e total soberania de Deus em decretar tudo desde sempre, segundo a sua vontade, imutavelmente. Isso inclui todas as criaturas, eventos e “forças” existentes no universo, físicas e espirituais. Como o próprio Deus diz de si mesmo: “Para que se saiba desde o nascente do sol, e desde o poente, que fora de mim não há outro; eu sou o Senhor, e não há outro. Eu formo a luz, e crio as trevas; eu faço a paz, e crio o mal; eu, o Senhor, faço todas estas coisas” [Is 45.6-7]. E, em seguida, afirma-se que Deus não é o autor do pecado e que nem é violentada a vontade da criatura, de tal forma que os eventos secundários acontecem “livremente” pela vontade do homem. Ao se afirmar a liberdade dos eventos secundários, fico-me a perguntar: como Deus pode predestinar o final e prevê-lo infalivelmente se os homens são livres nas causas secundárias? É necessário um malabarismo danado para harmonizar os dois conceitos, o que resultará na corda esticada e vazia, e corpos estatelados no chão.
Há pessoas que relacionam a criação do “mal” com catástrofes, epidemias, e outros fenômenos físicos, por conta da Queda, de tal forma que eles ocorrem mais como uma resposta ao pecado; e assim, Deus jamais seria o criador do “mal” metafísico. Acontece que mal é mal, sejam os pensamentos ou as ações. Não vejo como distinguir um do outro, essencialmente. Mas, suponhamos que Deus criou ou ordenou o mal físico; quem criou o mal metafísico? Se ele não foi criado, resta-nos reconhecer que o mal é autocriado, uma força eterna e que se opõe a Deus desde sempre. Contudo, sabemos que todas as coisas foram criadas por Deus, e por ele são sustentadas pela palavra do seu poder [Jo 1.3, Hb 1.3].
Acontece que as pessoas reconhecem que Deus é o criador de tudo o que é bom [numa perspectiva humana do que seja bom] e de que o mal é obra das suas criaturas. De tal forma que o homem caiu no Éden por influência maligna; mas, e Satanás? Estando no céu, diante da glória de Deus, sem nenhum contato com o mal [visto não haver o mal ainda], como pode querê-lo? É-se possível querer algo que não se conhece? E com isso, ele e 1/3 dos anjos caírem? O mal, como uma força contrária a Deus e da qual ele não tem controle, ao ser criado pelo diabo, torna-o quase tão poderoso como Deus. Mas sabemos que ele não passa de uma criatura. De um lacaio de Deus, como Lutero disse. Então, a questão é: como Deus pode ser o criador do mal? Deus é o criador do mal metafisicamente falando, pois nada pode vir a existir sem que ele o faça vir a existência. Porém, quem o realiza do ponto de vista físico são suas criaturas, seja por pensamentos, ações, etc. Deus é o criador do mal, mas Deus não pratica o mal. Sabendo que, mesmo o mal, está incluído no perfeito, santo e justo plano divino. O calvinista que crê no decreto eterno e imutável não pode crer que o mal, o pecado, a queda, etc, não fazem parte da Criação. E se fazem parte da Criação, Deus é o autor deles.  
Quanto à pergunta: “Por que outros gigantes da fé não ousaram dar esse passo?”. Bem, seria bom se pudéssemos perguntar a eles. Muitos, provavelmente, repetiriam o que escreveram ou pregaram. Acontece que todos, sem exceção, chegariam à mesma conclusão, mas, no meio do caminho, optaram por recuar e dar uma explicação convencional, que agradasse a todos, gregos e troianos. Darei duas hipóteses para isso:
1)    A subscrição da CFW. Por pertencerem a igrejas que subscrevem a CFW ou outras confissões derivadas dela, em que a questão do decreto é colocada de forma compatibilista [Deus soberano e o homem livre em sua vontade], eles não querem se tornar “rebeldes” e preferem sustentar uma contradição a enfrentarem o Concílio.
2)    O “temor” de se acusar Deus de criador do mal ou do pecado [e não vejo humildade nisso, mas desprezo à verdade] e se verem numa situação desconfortável diante dos homens.  Em última instância, se Deus decretou o pecado, a Queda, e todos os eventos no universo, inclusive, tragédias, guerras, mortes, epidemias, etc, ainda que suas criaturas sejam os agentes morais, não há como não reconhecê-lo como o autor do mal por seu decreto eterno.
Ao excluir-se o mal, o pecado e as tragédias do decreto, significa dizer que Deus não é soberano, e de que essas coisas aconteceram e acontecem alheios à sua vontade. Seria, mais ou menos, o que os teólogos do processo e da teologia relacional sustentam, e que se confronta flagrantemente com o que o texto bíblico nos revela. Para se defender Deus, ataca-se o próprio Deus. Para defendê-lo, suprime-se a revelação especial, e assim, os textos em que o Senhor ordena, por exemplo, a morte dos cananeus, é visto metaforicamente, ou o povo de Israel agiu por conta própria e pôs a culpa em Deus, quebrando um dos mandamentos da Lei, mentindo. Isso levará à incredulidade, e de que a Bíblia não é a fiel e inerrante palavra de Deus. E ao descrer-se do texto bíblico, o descrédito é transmitido a Deus, o qual o revelou; de forma que não se pode conhecê-lo, pois o que foi revelado não é verdadeiro. O ciclo é de ceticismo, em que a verdade é relativizada para que a mentira prevaleça.
A sua última pergunta é sobre o hipercalvinismo. Há muita bobagem sendo dita sobre o assunto. Por exemplo, eu não creio na graça comum. Creio apenas na graça eletiva. E, por isso, sou chamado de hipercalvinista. Creio na dupla-predestinação, logo, sou hipercalvinista. Mas a questão que difere mesmo o Calvinismo do Hipercalvinismo resume-se à chamada do Evangelho. Para o hiper, a proclamação do Evangelho para se crer e arrepender deve ser pregado apenas aos eleitos. Como eles saberão quem é ou não eleito, é o grande problema; um problema insolúvel. Como disse na última postagem, por mais hipercalvinista que alguém se diga, não conheço quem seja um “caçador-de-eleitos”. Isso é tolice, especialmente porque o chamado ao crente é para proclamar o Evangelho a toda criatura, em todos os lugares e tempo. Ser hipercalvinista é estar em rebeldia e desobediência ao Senhor.
Logo, crer na dupla-predestinação, que Deus elegeu uns para a salvação e outros para a perdição, ou não crer na graça-comum, não faz da pessoa um hipercalvinista. Ela poderá ser chamada de calvinista de seis ou sete pontos, um ou dois pontos além dos cinco estabelecidos nos Cânones do Sínodo de Dort [TULIP], mas jamais será um hiper.
Resumidamente, é esta a minha resposta, Fábio. Se puder ajudar em mais alguma coisa, estou à disposição.
Abraços.