30 dezembro 2024

Estudo sobre a Confissão de Fé Batista de 1689 - Aula 42: A humanidade: o homem como a imagem de Deus



ÁUDIO DA AULA 42:



Jorge F. Isah 

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TEXTO DA AULA 42:



Dando continuidade ao nosso estudo sobre o esboço da declaração de fé do T.B.B, trataremos hoje do tópico "Humanidade".

Abramos nossas Bíblias em Gênesis 1.27, que diz: "E criou Deus o homem à sua imagem; à imagem de Deus o criou; homem e mulher os criou". 

Primeiro, o que você entende pela expressão "imagem e semelhança de Deus" ou o "Imago Dei"? Se somos a imagem de Deus, não quer dizer que sejamos iguais a Deus em tudo. A imagem, ainda que reflita o ser, não é o ser, mas a aparência do ser como representação, como imitação, mas muito mais do que isto, o fato de sermos imagem divina quer dizer que Deus imprimiu em nós algo de si mesmo, deixando claramente marcas do que é, do que nos deu ser, e do que podemos vir a ser, imprimindo em nós traços, características, que nos remetem a ele, e de quem somos herdeiros. É o que ele nos revela, ao tomar do pó da terra, uma massa sem vida, e nela, pelo seu sopro, trazer à vida [Gn 2.7]. O homem é sobretudo e de forma geral, criatura divina, formada e conformada à sua vontade, carregando em si aspectos do Criador, de maneira que se não fosse por ele não existiria, nem seria o que é. É como se Deus tomasse uma página em branco [o barro] e imprimisse nela letras, palavras e frases que a dessem sentido. É ele  portanto quem nos dá significado, e por quem existimos de fato. Ao contrário do que o materialismo e a antropologia moderna dizem, o homem não é fruto o acaso, nem fortuito, mas a imagem do ser divino, sem o qual seria impossível e não subsistiria. 

A forma que Deus nos deu, de carregarmos alguns de seus atributos, como mostra da sua bondade e misericórdia, são os que chamamos de comunicáveis, os quais Deus nos transmitiu; contudo, há atributos que são inerentes ao ser divino e portanto intransferíveis, os quais somente ele tem e mais ninguém, pois há somente um Deus, e são eles que o tornam quem é. Logo, se somos imagem, somos naquilo que temos em comum com ele, sem que sejamos ele. A capacidade de amar, ser justo, o raciocínio, a bondade, a ira, etc, são alguns dos que compartilhamos, que nos tornam humanos e sem os quais seríamos qualquer outra coisa, ou não seríamos. 

É-se possível meditar no fato do que vem a ser a humanidade, uma questão que é debatida há séculos por teólogos, filósofos e antropólogos, gerando muitas dúvidas e disputas. Uns pontuam que ela seja todo o homem, corpo, alma e espírito. Outros, com os quais me identifico, acreditam que ela está reservada na alma sendo o corpo apenas o receptáculo no qual a humanidade se manifestará. Dizem que esta é uma posição radical, que rompe com a integralidade do ser humano, fazendo uma distinção forçosa entre corpo e alma, e que não espelha a verdade bíblica. Entendo que a alma é o centro da razão, da emoção, e tudo o que compõe a humanidade; e o próprio fato da Bíblia asseverar que este corpo será ressuscitado no Dia do Senhor, mas de que será um novo corpo, conformado à imagem de Cristo, já nos dá mostras de que não é ele o que nos torna em humanos. Por isso, há aqueles que dizem ser esta posição dicotômica, com a qual não concordo, mas como não é, propriamente o tema do nosso estudo, deixarei para discuti-la em outro lugar, mais adequado e apropriado [1]. Certo é que Deus nos deu algo que nos faz parecidos com ele, e que não pode ser o corpo, pois Deus é Espírito; e sem ele não seríamos humanos.  

Contudo, não podemos esquecer de que esses atributos foram corrompidos pelo pecado; e pelo pecado de um todos os homens pecaram [Rm 5.12]; de forma que os atributos comunicados por Deus são sombras do que eram em Adão, o primeiro homem. Apenas Cristo, o homem perfeito, detém a humanidade perfeita e santa, e é nele e pelo seu poder, que seremos semelhantes a ele, naquele glorioso dia, em sua santa e perfeita humanidade. Se morremos em Adão, somos vivificados por Cristo [1Co 15.20-22].

Com isso, não estou a dizer que está tudo perdido, que temos de nos resignar a não manifestar os atributos maravilhosos com os quais o Criador nos agraciou, porque somos pecadores, e, em nossa miséria, não produziremos nada de bom. Não! Cristo veio exatamente resgatar no homem aquilo que se perdeu no Éden, aquilo que ele nos deu e jogamos na lata de lixo estupidamente;  ele veio restaurar e implementar, pela ação do Espírito Santo, nova mente, novo coração, novo espírito, capacitando-nos a ser como ele é. Claramente, esse é um processo, que culminará no novo homem, eternamente imaculado. Não acontecerá da noite para o dia, pois dividimos duas naturezas que se digladiam e opõem-se: a carne e o espírito. Paulo nos alerta da luta constante que há entre elas, e, temo dizer que, na maioria das vezes, a primeira sairá vitoriosa. Mas o esplendor da segunda vitória, ainda que parcamente, se apresenta como uma esperança viva e alentadora no futuro que se avizinha: jamais o pecado nos fustigará e exercerá domínio sobre nós, pois teremos a humanidade daquele que jamais pecou. Nada disso por mérito próprio, mas por Deus que é quem atua tanto o querer como o fazer em nós, por sua infinita bondade, misericórdia e amor. 

A nossa responsabilidade é grande, pois mesmo sendo pecadores e falhos, somos luz e objetos de observação atenciosa do mundo, que nos julgará em cada deslize, em cada desacerto, em cada infração, em cada pecado, representando blasfêmia ao nome do Senhor. Se nos é dado o Mestre, aquele ao qual não somente devemos seguir mas imitar, não podemos nos imiscuir de fazê-lo; e ao não fazê-lo, deliberadamente nos colocamos no rol dos que não amam a Deus, pois não cumprimos os seus mandamentos; rejeitamos o discipulado e nos tornamos em cristãos dissimulados, quando não traidores e negadores da verdade. 

Ora, amar significa ser fiel, ainda que muitos digam-se amorosos mas infiéis. A infidelidade pode acontecer e acontecerá, mas nunca pode se transformar em um meio de vida, em um "modus operanti", do qual não nos arrependemos e rejeitamos. O amor é provado pelas boas obras, por aquilo que fazemos, e dizê-lo sem praticá-lo é o mesmo que não dizer... A fé sem obras é morta [Tg 2.17]  Ninguém se convencerá de que amamos verdadeiramente se demonstramos o desamor com nossos atos. Assim é a vida cristã, a busca incessante, tenaz, pela santidade; e estando ela plena e completamente manifestada em Cristo, não há outro a seguir e imitar. Devemos ser como ele, ainda que não sejamos, mas na certeza de que um dia seremos. Devemos obedecê-lo, em ensinamentos e prática, para assim sermos como ele. E é esta esperança que nos moverá a caminhar e trilhar a estrada que esculpiu em nossa natureza maligna, e nos afastará definitivamente de cair dos penhascos, de atolarmos na lama e sucumbirmos à morte no pântano da transgressão. Podemos até nos aventurar aos abismos e, ao perder-se o equilíbrio, prestes a se lançar na perdição, somos seguros e impedidos por aquele que não permitirá a nossa ruína e desgraça. Mas jamais, deliberadamente, devemos fazê-lo como "provocação", como se estivéssemos a tentá-lo, pois, pode ser que não sendo eleito, não haja mão que nos sustente e nos impeça de alcançar o que procuramos teimosamente: a desgraça total e final!

Neste ponto, farei um aparte. O conceito do "salvo uma vez, salvo para sempre", tem a ideia falsa e distorcida e capciosa de que isso acontece porque o homem "autorizou" Deus de preservá-lo da condenação. Ora, essa visão é abominável! O homem, do qual o salmista diz não proceder bem algum e em quem reside apenas a imundície [Sl 53:1-3], como seria capaz desejar e almejar algo tão santo quanto a preservação do pecado e da condenação? Apenas os tolos acreditarão no som da própria voz, a dizer-lhe: "foi por seu mérito, de mais ninguém!". A esse orgulho foi que caíram Satanás, seus anjos, Adão e Eva, e todos nós. A preservação é algo que foge ao nosso alcance e poder, pois, em nós mesmos, qual abrigo teríamos? Abrigar-nos no mal? Apenas aquele que tem o lugar seguro, que é Rocha e Castelo Forte pode resguardar-nos e proteger-nos de nós mesmos, levando-nos, cada vez mais, a sermos semelhantes ao seu Filho Amado. E é nele que buscamos refúgio, fugindo de tudo aquilo que pode nos levar a voltar ao próprio vômito. E, lembre-se, tudo isso somente é possível porque Cristo, o Verbo, encarnou-se, fez-se homem e morreu na cruz em nosso lugar, tornando o impossível em possível: levar-nos à estatura do homem perfeito que ele é. 

Por isso, também, não há como aceitar a ideia antinominiana daqueles que arvoram uma graça miserável, de que quanto mais pecar, mais se revela a graça divina. A esses, como o apóstolo disse, não restam nada, apenas a inevitável perdição. O salvo deve ter aversão ao pecado, odiá-lo com o máximo de forças de que tem. Qualquer intimidade com ele significará morte, e morte eterna. Com isso, o que se pode concluir é que o homem está impossibilidade de, por si mesmo, restabelecer e restaurar-se do seu estado caído e pecaminoso. 

Mas, sobre a salvação, falaremos na próxima aula.

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Notas: 
[1] Esta posição formulei-a no texto publicado no Kálamos, que se intitula "O pecado que Cristo não levou";
[2] Aula realizada na E.B.D. do Tabernáculo Batista Bíblico;

23 dezembro 2024

Estudo sobre a Confissão de Fé Batista de 1689 - Aula 41: É pecado jurar?






Jorge F. Isah

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O irmão Bruno fez um questionamento, após a aula passada, ao qual julguei procedente considerar um esclarecimento aqui. Durante a nossa aula, foi dito que o membro da nossa igreja deveria jurar a Deus que aceitaria, cumpriria e defenderia a declaração de fé da igreja. Então, ele me perguntou:

- Mas a Bíblia não diz que o crente não pode jurar? - Certamente se lembrando do Sermão do Monte.

Eu disse-lhe que não, que não há a proibição, mas sem muita convicção, naquele momento. Decidi estudar um pouco, ontem, sobre o assunto e cheguei à conclusão de que a minha resposta estava correta, ainda que proferida sem a base bíblica claramente definida. Portanto, começaremos lendo o trecho de Ex. 20.7, cujo texto é repetido em Dt 5.11: “Não tomarás o nome do Senhor teu Deus em vão; porque o Senhor não terá por inocente o que tomar o seu nome em vão”.

Agora leiamos o Sermão do Monte, onde o Senhor Jesus diz: “Outrossim, ouvistes que foi dito aos antigos: Não perjurarás, mas cumprirás os teus juramentos ao Senhor. Eu, porém, vos digo que de maneira nenhuma jureis; nem pelo céu, porque é o trono de Deus; Nem pela terra, porque é o escabelo de seus pés; nem por Jerusalém, porque é a cidade do grande Rei; Nem jurarás pela tua cabeça, porque não podes tornar um cabelo branco ou preto. Seja, porém, o vosso falar: Sim, sim; Não, não; porque o que passa disto é de procedência maligna” [Mt 5.33-37, consonante com Tg 5.12].

O que temos aqui? Uma expressa proibição do Senhor para que não juremos? Ele está a ordenar-nos que qualquer jura é pecado ou se refere a um tipo específico de juramento? É o que veremos a seguir. Mas primeiro, definamos o termo, segundo o Michaelis:

Juramento: "1 Ato de jurar. 2 Afirmação ou negação explícita de alguma coisa, tomando a Deus por testemunha ou invocando coisa sagrada". 

Temos, no Antigo Testamento, a afirmação clara de que o homem não deve jurar em vão, ou seja, ele não pode jurar sobre algo que não pode cumprir, e se jurar, deve fazê-lo, certo de que tem de cumpri-lo, do contrário ele profanará o nome de Deus. Veja que o juramente é sempre em nome de Deus, e não em nome de alguma outra coisa. Não podemos jurar em nome de nós mesmos, pois somos inconstantes e seres caídos, sem autoridade. Nem podemos jurar em nome de outro elemento da natureza, seja o céu, a terra, as árvores, etc., porque, ao fazê-lo, colocamos o nosso juramento sobre algo criado, que em si mesmo não é fonte de nenhuma autoridade, e acabamos por invocar implicitamente o nome de Deus, que é a origem de tudo o mais, o criador de todas as coisas, e é por ele que elas vieram a existência e têm a glória e o poder que ele as deu. Ao fazê-lo, acabamos por jurar implicitamente, de uma forma ou de outra, em nome de Deus, que o princípio de todas as coisas e a causa primeira da criação.

O Senhor Jesus ordena que não se jure por nada criado, visto que os judeus, com o decorrer do tempo, usaram o artifício de jurar em nome do céu, da terra, do templo, em substituição ao juramento em nome de Deus; já que se recusavam e proibiam a pronúncia do nome sagrado, o tetragrama YHVH [Javé]. Com o tempo adotaram a fórmula de jurar em nome das coisas criadas, como um subterfúgio, um estratagema, para resolver o dilema de não se pronunciar o nome divino, considerado impronunciável por qualquer dos homens.

Cristo nos diz que não se deve proceder assim, e que assim o fazendo, cometemos pecado. Entre os judeus, especialmente fariseus, acreditou-se que o juramento, sendo em nome das coisas criadas, possibilitava o seu não cumprimento, de sorte que a autoridade para que determinado juramento fosse considerado válido ou invalido cabia exclusivamente às autoridades do templo. Com isso o homem se tornou, em última instância, a autoridade, aquele que controlava o que se devia cumprir ou não, à revelia do texto bíblico que exortava ao cumprimento de tudo o que se prometia, pois sempre era realizado em o nome do Senhor. Não há juramento que não seja em nome de Deus, pois nele está contido o poder supremo e absoluto, a autoridade absoluta e suprema. Por isso, até hoje, em muitos tribunais, os envolvidos no julgamento são obrigados a jurar dizer a verdade somente a verdade em nome de Deus, com a mão direita estendida e a mão esquerda sobre a Bíblia, implicando que aquela pessoa o está fazendo diante de Deus, em seu próprio nome. O que os judeus fizeram foi uma exceção, uma excrecência à ordem divina, e, agindo dessa forma, estavam em flagrante pecado e desobediência.

Contudo, o próprio Senhor jurou por si mesmo: “Então o anjo do Senhor bradou a Abraão pela segunda vez desde os céus, E disse: Por mim mesmo jurei, diz o Senhor: Porquanto fizeste esta ação, e não me negaste o teu filho, o teu único filho, Que deveras te abençoarei, e grandissimamente multiplicarei a tua descendência como as estrelas dos céus, e como a areia que está na praia do mar; e a tua descendência possuirá a porta dos seus inimigos; E em tua descendência serão benditas todas as nações da terra; porquanto obedeceste à minha voz. Então Abraão tornou aos seus moços, e levantaram-se, e foram juntos para Berseba; e Abraão habitou em Berseba. [Gn 22.15-19].
E,
“Porque, quando Deus fez a promessa a Abraão, como não tinha outro maior por quem jurasse, jurou por si mesmo” [HB 6.13- ver até o verso 17].

Claramente, o juramento nos remete a Deus, o Criador e Senhor de todas as coisas, ao qual devemos honrar e do qual somos porta-vozes. O profeta antigo, que recebia as palavras diretamente de Deus, e o atual, que as recebe das Escrituras, falam em nome de Deus. E é o nosso dever falar em nome do Senhor; algo que devemos ter sempre em mente, e, assim, pelo nosso falar, somos testemunhas não somente do que Deus diz, mas também daquilo que ele fez em nós. Usar e falar em nome do Senhor, logo, não é pecado, pelo contrário.

Há a ordem explícita para que o homem jure“O Senhor teu Deus temerás e a ele servirás, e pelo seu nome jurarás... Ao Senhor teu Deus temerás; a ele servirás, e a ele te chegarás, e pelo seu nome jurarás” [Dt 6.13, 10.20].

Não podemos é usar o nome de Deus em vão, pois quem o faz comete perjúrio [Sl 24.4], a profanação do sagrado, do nome santo de Deus, que é o próprio Deus. 

Em 2 Co 1.23, Paulo invoca a Deus como testemunha de que ele não podia ir a Corinto.

Não devia ser necessário o juramento. O nosso testemunho deveria falar por nós mesmos, de forma que sempre que dissermos sim ou não, a verdade esteja evidente e patente. De que as nossas promessas serão cumpridas e não negligenciadas; de que tudo o que falamos é verdadeiro e de que não mentimos. O juramento é uma forma de confirmar o que está sendo dito, e invocamos a Deus por testemunha daquilo que dizemos ou prometemos. O fato do homem ser mentiroso nos leva a jurar em nome daquele que nunca mente [Rm 3.4]; e por ele, devemos nos guardar da mentira, sendo verdadeiros. 
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ÁUDIO DA AULA 41:

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Notas: 1 - Estudo realizado na EBD do Tabernáculo Batista Bíblico

13 dezembro 2024

Carta aos Loucos - Carlos Nejar

 





Jorge F. Isah

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Tive o privilégio de ler as provas do mais recente livro lançado pela Editora Sator, “Carta aos Loucos”, de Carlos Nejar, pelas mãos do editor e amigo, Felipe Sabino. Conhecedor do meu apreço pela poética do gaúcho, concedeu-me a honra de lê-lo mesmo antes da publicação. E o que dizer da prosa escrita pelo poeta?

 O mínimo é que, como sempre, o texto de Nejar é surpreendentemente belo, profundo e reflexivo. Onde as pistas e enigmas, como no desvendar de um mistério, nos revelam por meio dos símbolos, sonhos e pesadelos, alegrias e tristezas, dramas e comédias, o homem em sua essência diametralmente complexa. Constrói-se o integral a partir de fragmentos, reflexos, átimos da intrincada natureza e relações, muitas vezes evidentes e, outras tantas, inexpugnáveis... O leitor não tem a visão geral, do todo, mesmo diante da luz quase a cegá-lo; é necessário tatear, cuidadosa e lentamente a fim de não se ver arrastado para fora da trilha meticulosa e escavada impecavelmente na palavra. Certamente, não é um livro para o leitor apressado ou displicente, ou algo a se fazer de qualquer maneira.

 O fato de Nejar ser principalmente reconhecido por sua obra poética pode levar alguém a deduzir que se trata de um prosista menor, de segunda classe; ledo engano! As referências, citações e camadas sobre camadas de erudição não o tornam ininteligível, posto ser capaz de “traduzir” para o leitor o conhecimento e sabedoria e espírito luminares a permear cada frase, parágrafo, página, e encher os nossos olhos mortais dos encantos sobrenaturais. Ele deve ser lido. Tem de ser lido. Pode ser que a luz o sufoque, ou o afogue, caro leitor, porém a palavra estende-lhe a mão e puxa-o ao convés, o lugar seguro, onde poderá descansar a alma e não sucumbir às armadilhas das circunstâncias, do mundo a espreitá-lo, e vir a dizer como o personagem Almado: “Não me afogo”. Porque a palavra é viva e remissória, e envolve-nos em sua maravilhosa graça.

E as coisas grandiosas se embaralham às prosaicas sem que uma cause inveja ou dano à outra, e ambas, em meio às memórias, o discorrer do tempo, a razão e Assombro (nome da cidade onde se desenrola a narrativa e também da esposa do narrador, Israel Rolando, ex-capitão da marinha mercante e, portanto, alusão ao trabalho de conduzir os leitores, tirá-los do emaranhado de conjecturas e instalá-los na sã loucura), amores, perseguições e morte, seja no barulho ou silêncio, começam, desenrolam e se consumam no avassalador amor, sublime, transcendente, divino.


 Mas nem tudo são flores. Há, entretanto, o lado menos esperançoso e otimista onde o homem censura, o poder silencia, enquanto se justifica em palavras, e o subterrâneo das consciências é raso, ou profundo demais. No primeiro, está tão visível aos olhos de quem não vê que é impossível notá-lo. No segundo, impossível alcançá-lo. Mas o poeta, sabedor das dores e angustias não se entrega a elas, nem mesmo ao obstinado tempo, onde o espírito não sai ileso, posto redimido pela palavra, avesso ao tempo, na eternidade. Não se desgruda dele o dizer de Alves: “Estou louco de bem”. Até que a paz não seja mais do que o encontro de inúmeras e incessantes batalhas.

Este é um livro do homem, mas também de Deus. Do Deus-Homem. De milagres, gênesis, recomeços e ressurreições. O sarau de ironia, humor e graça, e a destrambelhada loucura, cuja missiva, “Carta aos loucos”, é endereçada a mim, a você, a todos que, diante da sabedoria dos homens não conheceu a Deus, e aprouve a ele nos salvar e se fazer conhecido pela loucura do evangelho de Cristo. De forma que a loucura de Deus é mais sábia do que a dos homens, pois se discerne espiritualmente.  

Então, tem-se a luz. E ela nada pesa.

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Avaliação: (*****)

Título: Carta aos Loucos

Autor: Carlos Nejar

Editora: Monergismo (Selo Sator)

Páginas: 180

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19 novembro 2024

O Emblema Vermelho da Coragem - Stephen Crane

 




Jorge F. Isah

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Li, há alguns meses, outro livro sobre guerras: “Nada de novo no front”, do Remarque; então, me aventurei a este, do Crane, autor completamente desconhecido para mim, e com o qual me deparei em meio às sugestões do Kindle, tendo em vista o padrão das minhas leituras. Normalmente, tenho uma “lista” de obras a serem examinadas, e, vez ou outra, algo se “intromete” e me toma a curiosidade, favorecendo-o ao invés do próximo tomo.

Primeiro, veio o aguçar do interesse pelo título, não raro me vejo ceder a esse estímulo. Segundo, ao saber que se tratava de um romance sobre a Guerra Civil Americana, a atenção redobrou. Como estava a ler “Os Demônios”, envolvido pela narrativa magnética de Dostoiévski, resolvi concluí-la e somente depois enveredar-me em Crane.

Antes de concluir o livro, não li nada sobre ele ou o autor, não tinha qualquer referência ou parâmetro; e assim faço com obras desconhecidas e mesmo a de autores já conhecidos, para não carregar uma lida partidária ou guiada. Interessante que a maioria dos “couchs literários” defendem exatamente o contrário, como se o leitor fosse incapaz de reconhecer o terreno onde pisa, mesmo se apalpando. Apenas depois de ler, no geral dois a três dias, aventuro-me ao prólogo, prefácio, posfácio e notas complementares, caso existem.

                                         


Surpreendi-me com a maturidade da escrita de Crane quando concebeu e desenvolveu a obra, aos 24 anos. Não teve muito tempo para mais, por falecer aos 29 anos. Todavia, apesar de haver gênios em várias artes a começarem cedo, raramente se depara com uma escrita ao mesmo tempo concisa e profunda.

Nele temos a história do anti-herói que posteriormente se descobre herói, por acaso, diga-se, reconhecido por colegas e superiores. Ela não é complexa, hermética, sinuosa, muito menos falsa. Henri Fleming é o protagonista, a despeito de se poder assegurar serem os combates personagens não menos importantes. Ele é um jovem, na casa dos 20 anos, um matuto da roça, que ajuda a mãe no trabalho intenso e rigoroso do campo. Sonha em alistar-se e ir para o front combater os dissidentes sulistas, opositores ao governo republicano de Abraham Lincoln e dispostos a dividirem a América em duas.

Fleming é um sonhador, ingênuo, a se imaginar enfrentando os inimigos, destruindo-os e a voltar com a pompa de herói. A mãe não comunga com os seus ideais, e teme pelo filho e pelo próprio futuro sem ele. Henry, contudo, não tira da cabeça o desejo de vestir o uniforme da União; e temos o primeiro conflito de visões: a mãe realista e temerosa, o filho sonhador e confiante na glória.

Crane não imprime nenhum viés romântico, patriótico, ou transforma os jovens em super-homens. A narrativa é sobretudo pragmática e objetiva, muito mais envolta em dúvidas, trapalhadas e golpes fortuitos da sorte do que em um planejamento detalhado e logístico. As batalhas se davam muito mais pelas exigências da guerra do que propriamente por estratégias militares. Muitas vezes era tão somente ímpeto cego, de um lado e do outro. Talvez, por isso, não haja tantos personagens marcantes além do próprio Henry e os embates. Muitos surgem e perdem-se, para quase sempre não serem mais lembrados.


Isso leva Fleming, e o leitor, a perceber o quão prosaica é a figura do soldado: não passa de número, um grão de areia na praia que ninguém vê ou sabe existir. Havia apenas o batalhão entre outros batalhões, um soldado entre milhares de outros, e a morte era o detalhe final a torná-los dispensáveis e incógnitos.

Depois do treinamento e meses acampados, partem para o front, e Henry não sabe se terá coragem de lutar. Não raro, durante boa parte da narrativa, esta é a suspeita a atormentar e a levá-lo quase sempre a hesitação e pensamentos de deserção. A guerra é brutal, e o sangue (o emblema vermelho) é muito mais produto das fraquezas do que da coragem. Ela é praticamente o desespero, a negativa da razão, prudência e bondade. É o clímax da agonia e desilusão. O homem é, via de regra, uma fantasmagoria do projeto divino, eivado em seu intelecto, sentimento, razão e emoções pelo pecado. A queda da qual não pode resistir, a não ser pelos efeitos benéficos e libertadores de Cristo. E se há esperança, ela reside integralmente nele.

Crane, em momento algum, evoca essa máxima, empenhado em desnudar o ufanismo, os defensores de uma causa perdida, mesmo na vitória. Em guerras, somente os que dela não participaram são os vencedores, a despeito da pecha de covarde e poltrão, pois a morte e a destruição parecem dominar os corações mais do que qualquer outro pretexto a encobrir os reais impulsos. Se não se mata, morre; e mata-se para morrer, e morre-se para matar, de algum jeito, em cada resquício de humanidade a sobreviver pelo imago dei. A vida se torna em mero detalhe, muito menor do que a ruidosa barafunda de brados, gemidos, tiros e lâminas cortando o ar... e o silêncio profundo dos corpos estirados ou mutilados no chão. Para sobreviver é necessário outros sucumbirem ao perigo, e alguém a contar essa história.


A realidade, entretanto, é de não haver vitória, nem mesmo aos não integrantes, pois as consequências de atos tão vis e malignos lançam seus venenos sobre o mais inocente, ermo e esquecido cidadão. Isso é um fato. Há, porém, outro fato: os afetados, mas não dispostos a povoar o front com crueza e ódio, não os geraram, ou foram causa: sofreram os efeitos, sem colaborar para eles. Alguém pode dizer: mas foi a covardia que os condenou. Será, cara-pálida? Ao decidirem pela vida, que culpa têm na morte? E se faleceram, não participaram do “jogo”, logo, não existe autoria. Ela se restringe aos que mataram, e havia somente eles, seja nos planos, interesses ou execução. Jamais de quem se opôs à beligerância. Guardadas as devidas proporções, é como o indivíduo que, ao explodir a casa do inimigo, atinge também a do vizinho, talvez um amigo. Ele foi apanhado pela contingência das decisões e sucedidos; e se todos agissem assim, a listar as consequências, não haveria mortos e feridos, destruição e ruína... Seria sonhar demais, e esta pode ser uma discussão melhor desenvolvida em outro lugar e momento.

Por hora, faço a seguinte distinção: “Nada de novo no front” é um líbero pacifista, onde a guerra se revela brutal, cruel e deliberadamente injusta. Remarque está mais empenhado em denunciar a imoralidade dos conflitos. Em “O emblema vermelho da coragem”, Crane, em meio à fraqueza dos partícipes, quer destruir o nacionalismo e a ideia de uma pátria de cada um e, por conseguinte, de todos. Mas ela é, na verdade, de poucos, e o homem comum é um pião solto em meio a tantos obstáculos que, mesmo rodando, não ficará muito tempo em pé. Nada mais absurdo e mais natural. Afinal, os homens se unem e se amontoam, na maioria das vezes, para destruir e reconstruir o que não devia ser destruído.

Em ambos, é o grito do homem dentro do homem, quase inaudível ao próprio homem.

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Nota: Texto publicado originalmente na Revista Bulunga

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Avaliação: (****)

Título: O Emblema Vermelho da Coragem

Autor: Stephen Crane

Editora: Penguin-Companhia

Páginas: 216

 

22 setembro 2024

Os Demônios, de Fiódor Dostoievski




 


Jorge F. Isah

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Antes de entrar propriamente na narrativa, algo a me incomodar sobremaneira na leitura (e-book) foi o trabalho de produção e diagramação da Sétimo Selo, algo deplorável e irritante. Além de pequenos erros ortográficos, havia uma constante “unificação” das palavras, ligadas umas às outras, a acontecer mais de uma vez em cada página; não me recordo se houve ao menos uma a não conter o erro e tornar a leitura desagradável, truncada, como se fosse um “caça-palavras”. Ademais, ultimamente, tenho percebido um trabalho desleixado e sofrível quanto à produção de vários e-books na Amazon. Talvez por haver necessidade de corte de gastos ou mesmo autores independentes não se prestarem a contratar um profissional e fazerem eles mesmos a revisão, a verdade é que os trabalhos editorais têm perdido muita qualidade. Esse certamente é o senão da obra.


Gostei bastante da tradução direta do russo para o português de Nina e Felipe Guerra; comparando alguns trechos com a tradução do Oleg de Almeida, não percebi diferenças em sentido e intensões deixados pelo autor. Enfim, o problema não é a tradução, mas revisão e diagramação relapsas.

Quanto ao livro, como já devem saber, fui leitor assíduo do russo em minha adolescência e juventude. É verdade não ter sido capaz de absorver a centésima parte dos sentidos. Na medida do possível, tenho relido as suas principais obras, e agregado novas e inéditas traduções.

O que dizer de “Os Demônios”? Talvez seja o livro mais profético de Dostoiévski. Com a precisão de um “oráculo” ele descreve não somente os primórdios mas os desdobramentos do que se viria a conhecer como a Revolução Russa e as demais a seguirem-na no universo marxista. O que para a maioria, ainda hoje, era inconcebível e improvável, para alguém capaz de penetrar na alma, sabedor de haver um estado de “depravação total”, colher as informações do passado (desde o Éden à Revolução Francesa), e os seminais passos dos revolucionários utópicos e “científicos” ou messiânicos, era de se esperar coisa que não prestasse. Na mesma toada, se você tem o “privilégio” de ouvir um funk carioca, crianças do maternal em poses e gestos dignos de “escorts”, a malandragem geral, censuras, perseguições, o fim da ordem, dos valores como família e igreja; a divinização do homem e a “morte” de Deus, todos esses elementos e muitos outros eram propostos e defendidos nos insurgentes do “Círculo”, o grupo com ímpetos de incendiar a Rússia.


Engana-se quem espera um livro apenas político, pois Dostoiévski é, sobretudo, o leitor da humanidade, o observador das relações interpessoais e movimentos sociais, o crítico dos fúteis e vaidosos e também dos orgulhosos e irritadiços, descrentes em Deus e crentes em si mesmos. Seja para o bem quanto o mal, ele os disseca, sob a ação de Cristo, dos apóstolos e da igreja. Para ele, a verdadeira redenção é individual, a partir do arrependimento (vide Vierkhoviénski, pai, saído do ateísmo místico e ativista para a verdade do Evangelho), jamais coletiva, e nela reside a verdadeira salvação ou solução para os dilemas da vida. Com isso, não insinua a extinção dos impasses; ao menos se terá o norte correto e absoluto ao qual se deve guiar e buscar. Perguntas que muitos de nós ainda fazemos, e gerações futuras farão, respondeu-nas Dostoiévski, não a partir de sistemas ideológicos e teóricos, mas pela realidade, a vivência, inclusive quando tais sistemas se perpetravam. Há quem não queira ver mas, para ele, não existe solução além de Cristo e o Cristianismo. Ao não reconhecer a própria fragilidade, os próprios erros e pecados, e buscá-los no outro, o homem se torna invariavelmente no pior dos animais.

Para situar o leitor, sem entrar nos pormenores da história, ela se baseia em um fato ocorrido na Rússia, em 1868, quando um grupo de revolucionários marxistas (no livro, “o círculo”) trama e executa a morte de um dos seus dissidentes. Este é o start de Dostoiévski para construir o romance, e a partir do destrinchar dos fatos, descobrir-se-á o envolvimento da quadrilha em outros crimes tão ou mais bárbaros.

O líder, Vierkhoviénski, filho, (alusão ao próprio diabo) em sua inveja, perfídia, manipulação e inflexível crueldade, revela o quanto sistemas “messiânicos”, com o fim de resolver todos os problemas do mundo a fórceps, pela violência, se valendo da presunção e arrogância das pessoas, independente da classe social, tornou-o em um dos mais malignos personagens da literatura. Ele seduz e, melifluamente, induz aristocratas (Varvara e Yúlia), assim como populares (Lipútin, Virguinski), ou idólatras (Erkel e Tolkatchenko), enquanto nutre um sentimento ambíguo pelo seu ídolo, Stavróguin.

Em um momento crítico, quando havia dúvidas em relação à execução da tarefa, Vierkhoviénski, filho, ordena:

“Ai daquele, entre os senhores, que tente agora fugir! Nenhum dos senhores tem o direito de abandonar a causa! Podem dar-lhe os beijinhos que quiserem, mas não têm o direito de trair a causa comum pela garantia de uma palavra de honra! Isso é o que fazem os porcos subornados pelo governo!... Subornados, meus senhores, são todos os que se acovardam no momento do perigo. Por medo, encontra-se sempre um imbecil que, no último momento, correrá gritando: ‘Ah, perdoai-me, mas vou trair toda a gente!’... Além disso, não poderiam fugir da outra espada. Ora, a outra espada é mais afiada do que a do governo.”

Neste trecho, a coação é uma arma poderosa de manipulação. Contudo, nenhum dos envolvidos é inocente, todos são culpados: fúteis e esnobes fidalgos quanto trabalhadores, pobres e utilitários. Todos, via de regra, se viram emaranhados na própria teia. Foram presas fáceis do próprio ufanismo, ao não perceber o quanto eram vulneráveis e suscetíveis aos apelos falsos e controladores. Não havia inocência, mas soberba e empáfia, na esperança de serem o “novo homem”, construído à força pelo delírio ideológico acrítico, e assim alcançar o paraíso terreno. Para isso, era fundamental a dessacralização, a extinção do divino, a negação do absoluto, do Messias, e, sem os rejeitar, como pavimentar o caminho sangrento e tortuoso e disruptivo? Fazer da utopia outro desastre humano? O Éden a se repetir novamente; uma coleta onde a sacola não tem fundo.

Tal qual hoje em dia, a rotulação do certo e errado é “relativa”, a depender dos interesses e o quão benéfico pode ser negar ou desvirtuá-los, era fundamental, um samba do crioulo-doido. Da mesma forma, tornar moral em imoral e vice-versa conferia e garantiria a lealdade cega e a consciência mantida em coma. Tudo a fim de garantir uma “fé” indubitável no movimento, e tornar os sectários em eficientes e dóceis guerrilheiros adestrados. Na maioria das vezes, os iludidos são tão somente aqueles a não ver o que lhes está posto diante dos olhos, e se empenham em enxergar além do horizonte, em um futuro a repetir em hipérboles o presente não sentido, não reconhecido, ou simplesmente vislumbrado, ao imaginar não haver o bem, logo, o mal também inexistirá. Como Santo Agostinho disse, o mal é a ausência do bem, e alimentar um é enfraquecer o outro. Portanto, prescindir do bem não excluí o mal, antes o emancipa e robustece, e a consequente desumanização nada mais é do que a tentação de fraudar, aniquilar o direito natural. Com isso, se criam tantas aberrações e distorções quanto a consciência produz ao distanciar-se da verdade. Dostoiévski cria na pessoa de Cristo, no seu Evangelho, como a suprema expressão da moral e da ética no mundo.

Muitos leem “Os Demônios” apenas pelo viés político, quando vai além desse escopo. Sobretudo, fala das relações a degringolar e lançar caos, angústia e dores aos personagens, e quais deveriam ser os seus papéis no mundo, se não fosse controlado por “anjos caídos”. Mas o diabo, assim como Piotr Stepánovitch, fugiu de cena e deixou o trabalho sujo nas mãos dos asseclas.

E a história expandiu-se, e virou ela mesma muitas outras histórias... e tragédias.

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Avaliação: (*****)

Título: Os Demônios

Autor: Fiódor Dostoiévski

Editora: Sétimo Selo

Páginas: 1.150

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Nota: Texto publicado originalmente na Revista Bulunga


18 setembro 2024

Malemolência Tupiniquim

  




Jorge F. Isah

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Tem coisas que somente os brasileiros fazem, dizem por aí. Existem hábitos (para alguns, manias) típicos e quase exclusivos nossos, tupiniquins. Um deles, e talvez o mais difícil de se entender, é o de comer pizza com talheres. Normalmente, mundo afora, come-se essa iguaria com as próprias mãos, aos moldes alimentares dos nossos queridos “hermanos” silvícolas. Para os “gringos” é abominável degustar tão saboroso (e gorduroso) alimento sem apalpá-lo, afagá-lo e apertá-lo entre os dedos. Chega a ser um fetiche. De nossa parte, esse negócio de comer pizza com as mãos deveria ser proibido e constar no código penal, com sentenças de 15 a 20 anos de prisão, sem direito a fiança e atenuação de pena. Deveria incluir trabalhos forçados; mas isso é sonhar demais, né!

Onde já se viu comer com as mãos? Ainda mais pizza? Já imaginou quantos micróbios e bactérias poderíamos ingerir?... E, depois, são esses “selvagens” a obrigar-nos ao uso de máscaras. Gente sem noção...




Outro particular, é a existência de cesto de lixo nos banheiros. Lá fora, eles simplesmente jogam no vaso sanitário o papel higiênico junto com os seus dejetos. Parece lógico, já que conservar restos fecais em cestinhos não tem nada de civilizatório e higiênico. Seria o mesmo que manter o seu Título de Eleitor em um cofre forte enquanto espalha dinheiro e joias pelas mesas e cômodas da casa. Dizem que as eleições, mais do que um dever é um direito. Ah, se fosse assim, veríamos filas semanas adentro, verdadeiros acampamentos, nos portões das seções eleitorais. Mas essa atitude é típica dos fãs de estrelas do rock, dos consumidores loucos por promoções, ou dos psicóticos usuários de iPhone. Ninguém monta barraca, literalmente, traz travesseiro, cobertor, cadeira de praia, garrafa térmica e biscoito amanteigado para votar. Nada mais justo do que abolir os cestinhos dos banheiros e qualquer esperança nos eleitores.




Brasileiro gosta de banho. Ao contrário de boa parte do mundo, é costume nacional lavar-se diariamente. Há aqueles que não se limitam a um, mas tomam dois ou três. E veem depois falar em ecologia. Querem prender a senhorinha que esfrega o passeio uma vez por semana, e o moleque que lava o carro quinzenalmente. Mas aqueles intermináveis 40 minutos de ducha, três vezes por dia, não causam qualquer impacto na natureza. É o típico cara a tirar o cisco do olho alheio enquanto mantém a trave no seu.

Aqui as coisas são tão estranhas que se criou o termostato de chuveiro, para impedir o excesso de tempo entre um enxague nos cabelos e outro nos pelos pubianos.

Essa mania se espalha a quase tudo, até mesmo nos altos escalões. Houve um tempo, não muito distante, onde se criou a “Operação Lava-Jato”, cujos efeitos foram tão rápidos e inócuos (graças a artifícios interpretativos de certa Corte) que todos os "sujões” estão a emporcalhar o país de novo. Nem uma fonte de água sanitária molhando-os ininterruptamente daria cabo desta bodega. Ou seja, não adiantam banhos, pois jamais seremos devidamente “limpinhos”.




Talvez, por sermos tão “sui generis”, o mundo desconhece que “hablamos” português, e acreditam piamente que o Brasil é um país de língua espanhola. Não sei o que os lusitanos esperam e fariam, mas, se fosse eu, ficaria quietinho e deixaria toda a culpa para os hispanos.




Se você conhece outra mania, e quer “expô-la” publicamente, mande-nos o seu e-mail com a sugestão, e um PIX para conta do editor.

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Nota: Texto publicado originalmente na Revista Bulunga

12 setembro 2024

O infante das pernas tortas

 




Jorge F. Isah




O que você imaginaria de uma pessoa que tivesse estrabismo (desvio de um olho em relação ao outro), obliquidade pélvica (desequilíbrio na bacia), seis centímetros de diferença de comprimento entre as pernas, o joelho direito tinha valgismo (desvio do joelho para dentro em relação ao eixo central) e o esquerdo varismo (desvio do joelho para fora em relação ao eixo central)? Provavelmente você diria: está de muletas ou numa cadeira de rodas. Ledo engano, camarada! Pois estamos a falar de um dos maiores jogadores de todos os tempos, que superou esses e muitos outros problemas para se tornar em um ícone do futebol mundial: Garrincha.

Em meio aos salários astronômicos dos astros do esporte na atualidade, e mesmo os menos votados acumulam fortunas, Garrincha ganhava o equivalente a um 3º reserva se ainda jogasse. É verdade que o futebol não era a máquina de cifrões que se tornou, mas era, à sua época, o esporte a mover céus e terra entre torcedores, imprensa, atletas e dirigentes. Meio amador, meio profissional, ainda que fosse um grande espetáculo, não movimentava as quantias como veio a se tornar. E para os jogadores menos organizados e incapazes de planejar o futuro, como Mané, a curta profissão e a má administração resultariam em dívidas ao invés de dividendos.



Nascido em 1933, em Magé, Manoel Francisco dos Santos pertencia a uma família de 15 irmãos, e ele mesmo quase alcançou esse número (14), tendo filhos em dois casamentos e em vários casos extraconjugais, inclusive com uma sueca. Era boêmio inveterado, mulherengo e nem sempre tomava as melhores decisões. Muitas delas resultariam em acidentes, como o que vitimou a sua primeira sogra, em 1969, no qual foi condenado por homicídio culposo.

No dizer de muitos, era um misto de apedeuta (estudara até o segundo ano do ensino fundamental) e ingênuo, um meninão crescido e de mentalidade infantil, mesmo em meio a uma avalanche de tragédias: perdeu o pai muito cedo, vítima de cirrose. A irmã Tereza morreu aos 14 anos de barriga d’água. Outra, em um dia de festa, caiu do caminhão e também faleceu. O filho dessa perdeu a perna em acidente de trem. No dizer de outros, um gênio inigualável no gramado e com a bola nos pés... Para muitos, o maior de todos os tempos, maior até que Pelé... Difícil separar o homem do mito; e o que as gerações guardarão será muito mais a figura do mito.

Campeão mundial pela Seleção Brasileira em 1958 e 1962, chegou a ganhar muito dinheiro, mas esbanjava a maior parte pagando dívidas de amigos e conterrâneos, esquecia cheques jogados entre os brinquedos das filhas e, como sempre, era assediado por supostos amigos que lhe roubavam e exploravam o quanto podiam e ele permitia, para depois simplesmente o abandonarem; mas ele, em momento algum, parecia ou demonstrava estar ressentido, fosse com quem fosse, nem mesmo os que o ridicularizavam recebiam troco. Como o jornalista Geraldo Mayrink escreveu: “Era um louco, deliciosamente irresponsável. Quando perdeu a forma, passou a ser apenas irresponsável.”

Abandonou a primeira esposa, Nair, com quem teve oito filhas, e foi morar com Elza Soares, com quem teve um filho.


Nos últimos tempos, após a separação com Elza, a quem ele traiu, humilhou e agrediu, vivia uma série intermitente de problemas financeiros e pessoais. Morreu aos 49 anos, de cirrose hepática, em 1983. No seu féretro, milhões de pessoas o acompanharam, rendendo-lhe homenagem. O homem partia, derrotado em seu último desafio, enquanto o mito continuaria a desfilar nos gramados imaginários mundo afora, nos playgrounds de corações definitivamente encantados.


Hoje, mesmo sendo lembrado, e existem aqueles a desconhecê-lo completamente, Garrincha, ou simplesmente Mané, ainda aguça a curiosidade, de como um homem cheio de limitações conquistou o mundo, ou parte dele, com a magia das pernas tortas e dribles perfeitos.

Em sua passagem pela Itália, nos anos 1970, jogando por um time amador de açougueiros, em Torvaianica, alguns repórteres perguntaram-lhe, surpresos, por que participava de um torneio de operários? Ao que respondeu: “Eu faço isso para me divertir e me manter em forma.” O time dele perdeu por 5x4.

Era o fim do jogo.




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Nota: Texto publicado originalmente na Revista Bulunga

04 setembro 2024

Ouro de Tolo

 




Jorge F. Isah



Muito se tem falado nas últimas décadas de poluição do meio-ambiente e a necessidade de preservá-lo para o bem da humanidade. Há até mesmo aqueles, mais radicais e insanos, que defendem o fim da humanidade para que o meio-ambiente seja conservado. Eu só gostaria de saber se os idealizadores dessa ideia “genial” seriam os primeiros da fila de extermínio; ou estão apenas em busca de holofotes ou de tratamento psiquiátrico gratuito? A verdade não é outra senão o fato do homem ser o mordomo deste mundo, a quem Deus (quer você queira ou não) designou como administrador. A natureza é uma criação, assim como o homem, e não algo autogerado e, sendo o homem capaz de modificá-la, é necessário fazê-lo com sabedoria, conhecimento e bom senso. As intervenções devem acontecer de forma prudente, organizada e com o menor impacto justificável. Nem sempre é possível, mas aconselhável... Não colocaria esta responsabilidade nas mãos apenas do governo, da iniciativa privada, de ONGs ou exército de mercenários. Nem tão pouco nas mãos de plantadores de coca, marijuana ou ópio, ou a cargo de índios ou grileiros. Muito menos na massa de palpiteiros que assumem a preservação como um modismo, assim como se usava polainas no passado e agora usam-se havaianas. Não sobrou muita gente, é verdade, e esse pessoal, incapaz de conciliar-se, atira um no outro e no próprio pé.

Não quero me ater a esse tópico, mas falar de outro que não ganha, aos olhos do Ibope, dos povos e organismos, a mesma relevância, e está muito mais ligado ao ambiente do que se possa imaginar, ao menos para os insanos padrões do establishment: a poluição anímica. Senão, vejamos:

1) Qual foi a última vez em que você estava lendo, ouvindo sua banda ou cantor predileto, ou assistindo aquele melodrama na TV, ou simplesmente tirando aquela soneca depois do almoço, e não se viu sacudido pelo terremoto sonoro do “mano” e seu funk morbo a perambular na rua ou estacionando o seu Corsa duas portas de primeira geração bem debaixo da sua janela?



2) Ao flanar pela cidade, não teve o desagradável vislumbre de paredes e muros pichados, garatujas do mais péssimo gosto, a emporcalhar a visão?

3) Prédios e monumentos assimétricos, construídos sabe-se lá por qual alma penada, mais parecidos com cubos empilhados por um prematuro?



4) E o que dizer de homens e mulheres dispostos à inconveniência e descortesia, a fazer dos seus dias o suplício dos outros? Entre berros, grosseria e má-educação?

5) Sem falar nos ferretes epidérmicos (vulgo tatuagens e afins) que, para o bem dos higienistas mentais, deveriam se resumir às partes mais íntimas, longe dos olhares perturbáveis (do jeito que as coisas andam, nem estas partes são garantias de exposição dispensável)?



6) Ah, mas ainda não chegamos ao pior: naquele vizinho que faz um “gato” na luz, água ou TV a cabo, e você é quem paga a conta. Naquele político que desvia a verba do SUS e você acaba mandado de volta para casa, com uma costela quebrada ou o apêndice supurando, e ainda paga a conta. Ou as várias e múltiplas formas de existir uma casta privilegiada, muito além do que produz ou seja capaz de produzir, regalias adquiridas por meios ditos legais mas antiéticos; e a conta é sua. E outras ilegais e ainda mais antiéticas, com o ônus para você...



Portanto, antes de se preocupar com a extinção do pau-brasil (muitos acreditam ser a madeira verde e amarela) ou da arara-vermelha (tem a maior parte do corpo em azul), olhe-se no espelho ou faça um exame de consciência e veja se este mundo não é simplesmente o reflexo do que você e eu somos, e, neste caso, não há lei ou protesto que o despolua. Como está escrito: “Hipócrita, tire primeiro a viga do seu olho, e então você verá claramente para tirar o cisco do olho do seu irmão.” (Mateus 7:5)

Pois o pecado não é de mais ninguém, a não ser seu... E não adianta dizer que é meu, senão vou escrever outro artigo impugnando-o!

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Nota: Texto publicado originalmente na Revista Bulunga

21 agosto 2024

Fome, de Knut Hamsun

 




Jorge F. Isah

 


Lá pelos meus dezenove, vinte anos, li este livro por indicação de Charles Bukowski, autor que sorvia compulsivamente, cujo estilo “despojado” de escrita admirava. Investi esforço e saí à caça de “Fome”, de Knut Hamsun, autor, inclusive, laureado com o Nobel. Até então, para mim, noruegueses eram pródigos na produção de bacalhau e petróleo; não imaginava que tivessem uma literatura “parruda” e um Nobel, apesar da Academia se instalar concomitantemente em Estocolmo e Oslo, jamais ouvira falar de um grande escritor, não obstante, seria suficiente como sinal de alerta, das coisas não serem como pareciam ser. Pois bem, acabei por encontrar uma reedição publicada pela Civilização Brasileira, com tradução de Carlos Drummond de Andrade.

Exemplar em mãos, passei à leitura, e, depois de três décadas, não me recordava de muitas coisas a não ser as andanças do personagem principal por Cristiânia (atual Oslo) em busca de trabalho, comida e abrigo, e notar algumas tênues semelhanças com Raskolnikov, de Crime e Castigo.

Ao passear pela Amazon, deparei-me com a nova edição da Editora Itatiaia, e resolvi lê-lo novamente. Algumas coisas se confirmaram: para um livro publicado em 1890, “Fome” tem uma simplicidade narrativa e estrutural quase inéditas. Não me lembro, no momento, de outro título, à época, a assumir essa posição.

Durante a leitura, foi possível notar a influência de Hamsun em autores como Hemingway, Fitzgerald, Miller e outros tantos, inclusive o próprio Bukowski. A cada página uma estranheza indefinida vinha intermitente, inexplicável, como alguém a girar em torno de si mesmo sem parar, feito piorra. Entretanto, engana-se quem não percebe as entranhas de “Fome”. O autor vive em constante dilema, seja no aspecto físico, a realidade da sua penúria e miséria, seja no insucesso da sua carreira de escritor, no amor, e em algum auxílio da sociedade, já àquela época tão preocupada e resguardada nas aparências. Se antes era um homem promissor, autor alvissareiro, bajulado por uns e outros, gradualmente se viu obrigado a penhorar livros, objetos pessoais, roupas e até mesmo os botões do seu casaco. Restaram-lhe as roupas de mendigo, sujas, puídas, desbotadas. Seria uma analogia ao seu estado de espírito? À degradação da sua alma? Como Dorian Gray no seu retrato?

“Sentado no banco, e absorto nessas reflexões, sentia-me cada vez mais azedo com relação a Deus, por causa de suas insistentes provações. Se ele supunha chamar-me para junto de si e aperfeiçoar-me pelo martírio, acumulando mortificações em meu caminho, estava um tanto enganado, podia garantir-lhe. Levantei os olhos para o Altíssimo, quase chorando de orgulho desafiador, e disse-lhe essas coisas uma vez por todas, mentalmente.” (pág. 23)

Esta mania que o homem moderno tem de eximir-se invariavelmente de qualquer culpa ou responsabilidade atribuindo-a a outrem, à sociedade ou a Deus, em última instância é apenas o reflexo do Adão perdido no Éden após a sua queda: culpa-se tudo e todos, menos a si mesmo, ao seu desejo ilícito e a sua imoralidade disfarçada, mas não menos exposta e saliente, como a se ver em meio às sombras, a fugir para a escuridão pensando ir à luz.

Se existe algo a propor loucuras na mente é a fome. Se há o “start” da fraqueza, é ela. Não subsistem os princípios morais, éticos e humanitários. Como a avalanche: é capaz de arrastar quem estiver por perto, sem muito esforço.

O personagem principal, cujo nome verdadeiro não sabemos, ao adotar vários no decorrer da trama, em seu orgulho e jactância, desce a escala moral em direção ao fundo do abismo. Entrega-se à mentira, dissimulação, furto, cobiça e tudo o mais que o seu estado deplorável permite. Entretanto, é incapaz de impedir a humilhação, o descrédito e a pilhéria. Vê-se, também, paranoico, enrolado e imerso na própria confusão criada. É a receita do desastre, agravado pelo desprezo à sociedade, à agitação urbana, aos valores impregnados na maioria das pessoas; ainda que, uma e outra, ao perceber-se alvo da gentileza e compaixão alheias, reconhece-as bondosas, mas trata quase imediatamente de despojar-se delas e as suas ações. Não pouco, me vi a perguntar: “Por quê?... Qual o sentido disso? De não se precaver e ser racional?... Parece não haver apenas uma indigência corpórea, mas espiritual; ao perder os sonhos, se encontrava igualmente desnorteado, sem identidade, sujeito às atitudes mais absurdas e levianas. Pode-se dizer estar às portas da loucura, produzida pela empáfia e cinismo. Logo, apesar do estado de penúria, os momentos de arroubos ufanos, predem-no a um mundo intolerável e indigno.

“Não obstante, aquele cobertor verde me importunava. Por outro lado, não condizia com a minha dignidade carregar semelhante pacote debaixo do braço, à vista de toda gente. Que iriam pensar de mim? Caminhando, procurava lembrar-me de um lugar onde pudesse guardá-lo até nova ordem.” (pág.34)

A miséria transtorna e o leva a laivos de hipocrisia. Ao considerar-se melhor do que os outros, incapaz de agir pelos meios deles, de infringir as leis naturais, de ter consciência pura e inocente, numa ilusão e delírio, se mete nos mais banais e caricatos pecados. Vive em paradoxo, onde é incapaz de manter a honra e inocência, e acaba por meter-se num emaranhado desconexo de indulgências e lamentos. Sim, ele é um vitimista, onde todos os problemas, via de regra, concentram-se no exterior, à parte dele. Raramente se dá conta do próprio fracasso e de como contribuiu peremptoriamente à decepção e abandono.

“A consciência de minha honestidade subiu-me à cabeça, inundando-me com o sentimento grandioso de que eu era um caráter, um farol de extrema claridade em meio ao oceano lamacento dos homens, entre destroços flutuantes.” (pág. 43)

Para ele, a fome é a causa de todos os seus problemas, a razão dos dilemas, inclinações e máculas, e não o contrário; dela ser tão somente a consequência das suas escolhas, hábitos e frustrações, guiados pelo orgulho às vezes maior, outras, menor, mas sempre efetivo em algum aspecto nas suas decisões. Paulo escreveu: “Aquele, pois, que cuida estar em pé, olhe que não caia.” (1 Co 10:12).

Ele é um homem que vive na escuridão, com entremeios dispersos de luz ou penumbras, ao ponto em que, de consequência a fome tornou-se também em causa da degradação, em todas as esferas e facetas do ser, a afundá-lo mais e mais na desilusão, em devaneios e reações descabidas. Faltou-lhe o prumo, e o estado famélico elevou o desequilíbrio, em constante amálgama de sonho, delírio e realidade modelados pelo âmago caótico, mas a julgar proveniente do exterior. Se a fome aparenta simplicidade, as emoções, razão e sentimentos são atormentadoramente complexos, às vezes controláveis, na sua maioria exaltados e indômitos.

“Expliquei o caso, contando a mesma história da véspera; menti de olhos abertos, sem pestanejar, menti com sinceridade: ‘infelizmente, farreei um pouco além da conta num café, e perdi a chave...’ ...ninguém me ofereceu um bônus, e não tive coragem de reclamá-lo. Instantaneamente, isso despertaria desconfiança. Começariam a remexer em minhas coisas, descobririam quem eu era realmente. E me deteriam por falsa alegação. De cabeça erguida, com a atitude de um milionário, de mãos presas ao forro do paletó, retirei-me do Depósito” (pág. 67).

Neste círculo vicioso, o protagonista não parece ter saída para a sua alma atribulada, cheia de angústia, humilhada, mas segura em uma altiva inutilidade, incapaz de satisfazer-lhe no desejo mais simples e trivial, a comida. Tudo o afasta dela, e ele é o único promotor a garantir e manter o distanciamento. A despeito da ajuda aqui e acolá, em seus ímpetos atarantados e evasivos, ambíguos e artificiais; pois a fome não lhe dera outra personalidade, apenas a manifestou, retirou-a das entranhas e expô-la, e produziu um tipo de sinceridade traiçoeira e impostora.

“Deixava-me dominar pelo orgulho, saltava à primeira provocação, do alto da minha soberba, atirando dez coroas ao vento, e ia-me embora... Censurei-me severamente por haver deixado o quarto e ter-me posto de novo em apuros.

Afinal, para o diabo com tudo isso! Não pedira aquela nota de dez coroas, mal a tivera na mão, e, logo a passara adiante, em pagamento a alguém que nada significava para mim, e que nunca mais veria.” (pág. 166)

Se o grão não morre, fica só; mas se morrer, produz muitos frutos. Para o personagem sobreviver era a resposta, e de alguma forma, ser herói de si mesmo, bastava-lhe. A solidão e o isolamento persistiram enquanto marinheiro, indo para Leeds. Assim como a sua alma errática. Se trocarmos o homem pelo grão, restar-lhe-ia o quê? Na solidão?

Por fim, seja pela sobrevivência ou a conclusão lógica de todo o aprendizado, se entregou à ajuda, se dispôs à solução, tão óbvia, mas que postergou ao esgotamento, até quase sucumbir.

E, então, “disse adeus por essa vez a Cristiânia, a todas as casas, a todos os lares, a todas as luzes que brilhavam e rebrilhavam nas janelas.”

 

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Avaliação: (***)

Título: Fome

Autor: Knut Hamsun

Editora: Itatiaia

Páginas: 171