24 abril 2024

Os Mímicos - V. S. Naipaul

 






Jorge F. Isah
________________________



Muitas vezes, pergunto-me o porquê de ler livros acadêmicos, exclusivamente políticos ou de ciências políticas, a esmerilhar algo um tanto tenebroso, outro tanto ilusório e quase nada ou nenhuma esperança real e factível, cheias de silogismos e teorias impraticáveis ou, se colocadas em prática, aniquilaria qualquer possibilidade de dias melhores e uma sociedade, digamos, menos capenga. Ah, alguém dirá: que raios está este escrevinhador a dizer com esta linguagem amorfa, ingênua e nada formal?... A bem da verdade, estou a dizer que a política, tal qual formulada pelos estudiosos, é o mesmo que acender velas para defunto.

Aprendi mais sobre ideologias e políticas, de maneira geral e, na prática, lendo Tolstoi, Dostoiévski, Mann e Naipaul do que em qualquer manual ou tratado. “Os Mímicos”, assim como “Uma Curva no Rio”, descreve em pormenores o desastre ou catástrofe de governos e suas plataformas, de revolucionários e seus delírios, assim como a realidade os mostra, sem os floreios, malícia e despudor de ideólogos e pensadores artificiais.

Em suas mais de trezentas páginas, o romance aborda aspectos da vida do personagem principal, Ralph Singh, nativo na ilha fictícia Isabella, no Caribe, de ascendência indiana, a interagir com descendentes africanos e ingleses, as principais etnias da região. É uma ex-colônia britânica, pobre, miserável, sem DNA cultural, afeita à corrupção e embuste governamental. Ralph escreve uma biografia de sua vida, a começar pelo momento em que parte a Londres, para estudar, casa-se com uma inglesa (Sandra), retorna à ilha, e exila-se, por fim, na capital bretã.

É um emaranhado diastásico, onde o estranhamento e mal-estar parecem aflorar nas escolhas, decisões e aptidões das personagens. Quase sempre ninguém se configura convicto ou certo do que fazer. Essencialmente, a humanidade é confusa, a oscilar entre o sim e o não como se estivesse a jogar dados; mas, especialmente nas figuras criadas ou copiadas de Naipaul, esta característica afirma-se radical.

Singh é um homem, depois um menino, novamente homem e, por fim, às portas da velhice, sem rumo, sem lugar, sem motivação. As coisas acontecem instintivamente: o sexo fortuito, a beleza apoderada, padrões duplicados... como um cão, incapaz de distinguir o certo e o errado (há controvérsias, pois muitos deles parecem mais racionais e lógicos que seus donos), ele é um tanto ingênuo e simplório em suas volições. Está disposto a construir-se a partir de estímulos, influxos, sem a devida consciência do que seja e o porquê de fazê-lo; outra vez, a indiferença da vontade, aleatória, a medir-se sem parâmetro, incondicional e espontânea, porém, infestada de artificialismo. E provém do exterior, a tomar-lhe a alma, a força contra a qual não se pode ou não se quer disputar. Já, no início, pode-se notar o teor de parte da narrativa: “Ainda não conhecia as normas sociais de Londres, nem conhecia as fisionomias e cútis das terras setentrionais; assim, o Sr. Shylock me parecia um homem distinto, como um advogado, empresário ou político. Ele tinha o hábito de pegar no lóbulo da orelha e inclinar a cabeça quando escutava alguém. Achei aquele gesto atraente e o imitei”. Não sem razão, o título é apropriado, em sua simplicidade, mas também na verdade avassaladora dos homens, e Singh é um deles, sem identidade, a não ser a do grupo, coletiva. Óbvia a influência social, afinal, ao “homo sapiens” é natural o ajuntamento, participação, conluios, seja para o bem ou mal, a união de personalidades na organização e disposição para fins comuns. Em proporções muito menores, Naipaul vislumbrava não apenas os gestos e ações sem palavras, mas o embuste e a farsa contidos nos discursos e atos, algo rotineiro e habitual de onde não se podia fugir ou desvencilhar-se.

Desde a infância, era tomado pelos eventos, pelas pessoas, sem conseguir guiar-se, deslocar aonde não fosse levado, mesmo que não cogitasse ir, e ir era tão somente não ficar parado, a necessidade de não refletir e, então, caso o fizesse, tomar as rédeas da própria vida. Algo semelhante aconteceu ao pai, ao ver-se repentinamente alçado ao status de líder rebelde por alguns, salvador da pátria para outros, e lunático ao ver da maioria. Sem entender as razões a levá-lo a abandonar a família (não havia força suficiente para tanto a não ser medo e atonia), criar uma espécie de “culto”, às vezes confundido com movimentação política, outras vezes apenas com seita ou delírio coletivo; constituir nova família e cortar os laços em definitivo.

Aparentando ser apenas um livro político, a contar as relações entre Império e Colônia, entre reinos e súditos, entre ricos e pobres, e os escalões burocráticos dos “terceiro mundistas”, com as mais prosaicas e escancaradas “mutretas”, dissimulações, conchavos e traições, Naipaul está muito mais a falar da inevitabilidade da vida, construída a partir do acaso, das indecisões, ou simplesmente das escolhas irremediáveis mas também descabidas, numa espécie de fatalismo social e, por que não, existencial. Como se o caos gerasse apenas caos e dele não houvesse formas de escapulir; como um buraco negro, se é atraído para uma queda vertiginosa e sem fim. A despeito do sucesso aparente, da fortuna evidente, da ostentação desmedida, ele costurava a teia do fracasso, e nela se viu capturado... quanto mais se movia, mais se enrodilhava: “Eu tentava construir uma personalidade para mim mesmo. Era algo que eu já tinha tentado fazer mais de uma vez, e eu esperava ver a resposta nos olhos dos outros. Agora, no entanto, não sabia mais quem eu era; a ambição tornou-se confusa e depois murchou”.

O tempo ia e vinha, independente das conquistas sexuais, financeiras, profissionais, políticas, tudo se voltava, novamente, ao ponto de partida. Por mais que se esforçasse, a resposta sempre parecia ser determinada pelo absurdo, o sem sentido, o ceticismo e o relativismo das verdades e valores tradicionais. Nada funcionou, nada funciona, nada funcionará; não existe saída além da barreira intransponível ao final do beco. A esperança não passa de conquistas, do sucesso em mantê-las o máximo possível, pois o fim é a única mola absoluta... sempre a impulsionar ao vazio, ao nada. Este também é absoluto, para onde convergem todas as demais coisas relativas. A fuga do caos, e a caça à ordem sempre o fazia retornar à desordem.

No fim das contas, resta apenas a solidão, aquela máxima popular: nasce-se sozinho, morre-se sozinho. O passado se afasta, confiscado pelas próprias lembranças; o presente vive dos restos de imagens (o que sobra ao biógrafo?), e a frouxidão, a escassez no iminente futuro. Singh não tinha nada e acabou por perder o que tinha. Não existe amargura, arrependimento, redenção, tão somente o homem a andar na roda como o rato, enquanto a exaustão não chega e os favores se dissolvem. Até quando se repetem, repetem, em sucessão de equívocos e indefinições?... “Mas certas sensações saltam por cima dos anos. Foi justamente esse tipo de inquietação que senti quando comecei a escrever este livro. Naquele momento, eu não tinha medo algum de que desabasse o hotel ou o bar, os dois únicos lugares que eu frequentava – e ainda frequento -, pude identificar, no entanto, com repulsa, aquela sensação de estar preso, ameaçado por perigos externos, aquela dor de sentir que todo um mundo foi destruído e anulado. Talvez fosse consequência do esforço de escrever”.

Por mais que ele se sentisse liberto das amarras do passado, da colônia e das tramoias políticas, dos surtos psicóticos socialistas, da vida panfletária no último terço do livro, Singh tinha por certo a vida ser algo propositalmente ilusório, espúrio. Não existe saída a não ser continuar esse “modus vivendi”, e mesmo nas batalhas encontrar a paz apócrifa, ilegítima. Qualquer outra prerrogativa era inadmissível; só existe liberdade dentro do ciclo, ao qual não se quer cair, mas é melhor se acostumar à queda.

“Ficava a me perguntar o que aconteceria se, de repente, um belo dia, de minha mesa atrás da coluna, eu visse Sandra entrar sozinha na sala. Sei perfeitamente o que faria naquela época; a pergunta não passava da manifestação de um desejo. Agora, porém, constato que estou mais próximo de minha posição original. Mais uma vez encaro meu casamento como um episódio entre parênteses; todas as emoções por ele provocadas me parecem profundamente fraudulentas. Assim, a atividade de escrever, apesar das distorções iniciais, termina por esclarecer, e chega mesmo a ser um processo de vida”.

E a vida parece, cada vez mais, o esconderijo da morte.

______________________________

Avaliação: (***)

Título: Os Mímicos

Autor: V. S. Naipaul

Editora: Cia. Das Letras

Páginas: 320

______________________________

Notas: Texto publicado originalmente na Revista Bulunga



19 abril 2024

Conta-gotas: 1 - Ao mal chamam bem


Jorge F. Isah


➺➺➺➺➺

    
          Como nós, os holandeses primeiramente liberaram a maconha e outras drogas. Agora eles praticam o extermínio assistido ou eutanásia de idosos e doentes. E tudo isso porque, negar o Cristianismo e o Deus bíblico, é uma batalha interminável.
         Tudo começa com a falsa ideia de se garantir direitos individuais a partir do direito coletivo, para depois negar que o indivíduo tenha direitos. E como caminhamos para a legalização das drogas, do aborto, do homossexualismo, da pedofilia, zoofilia, etc, preparemo-nos para a eutanásia ou eugenia estatal. 
         Se Deus não tiver misericórdia, será apenas questão de tempo, como em outros países. Pois o mal é persistente, reinventa-se, e ilude muitos com uma “aparência “ de bem. Como disse o profeta: "Ai daquele que chama o bem de mal e mal de bem" (Isaías 5:20).


➺➺➺➺➺


16 abril 2024

Turista Incidental

 




Jorge F. Isah

________________________________ 



Durante as férias, aconteceu dois incidentes deveras estranhos. Não citarei o local para não mexer com a suscetibilidade provinciana e os defensores, seja lá do que for, mais preocupados em aparecer a qualquer custo e fazer carreira no mainstream político ou midiático; vulgarmente apelidados de “lacradores”. Fui visitar uma “picota” e, já na entrada, alguém me abordou. Sem cerimônias, pegou-me o punho e foi amarrando uma fitinha de certo santo.  Agradeci, educadamente, me recusei a usá-la, e tomei de volta o meu braço. Ele insistiu, e puxou-me com mais vigor; eu disse:

- Amigo, não quero usar a fitinha... – Pensei em explicar-lhe os reais motivos, mas não me senti obrigado a fazê-lo

- Por quê? – Falou com uma agressividade incompreensível e quase psicótica.

- Ora, porque não quero... – Fui o mais gentil possível, dentro das circunstâncias; sem arroubos e melindres.

- Isso é um absurdo! – Ele disse; com a fisionomia tão neurastênica, que imaginei tratar-se de uma “pegadinha” – É o maior insulto que já recebi na vida!

Entreolhamo-nos; eu sem entender a reação destemperada e abusada do homem, e ele sem aceitar a minha decisão. Então, para acabar com o mal-estar, peguei a fitinha, agradeci, coloquei-a no bolso, e virei-me para descer a ladeira. Ao notar que não a usaria, puxou-me bruscamente o braço, pela terceira vez:

- Não vai usar a fitinha?

- Não, vou levá-la de lembrança.

- Vai nada!

Arrancou-a dos meus dedos, virou-se para as pessoas ao redor (a rua e calçadas estavam apinhadas de turistas), e disse, a plenos pulmões:

- Veja bem, é isso que dá ser educado e gentil com pessoas que mereciam umas boas porradas!

Deixei-o falar, segui à frente e, mesmo alguns metros depois, podia ouvi-lo imprecar e maldiçoar o monstro perverso que eu era.

Mas ainda não havia terminado.

Logo à frente, avistei um vendedor de chapéus; havia algum tempo que desejava um. Aproximei-me e apontei o modelo.

- Quanto é esse?

- 90 reais! – Pegou o artigo para colocá-lo em minha cabeça.

- Não, eu não vou querer... – O valor era mais do dobro de outros quiosques.

- Dá pra fazer por 70... – E, de todas as formas, quis colocá-lo em minha cabeça.

- Amigo, não tem tamanho maior?

- Não, mas ele serve! – E insistia, a despeito da minha cabeçorra, em ajustar o apetrecho com o maior dispêndio de força, puxando-o para baixo pelas abas.

 - Calma, não está vendo que o chapéu é pequeno demais para a minha cabeça?

- Faço por 50...

- Amigo, nem se for de graça! Definitivamente, ele não entra!

E quanto mais eu argumentava, mais ele se impacientava e queria, a todo custo, adequar o atavio ao meu crânio avantajado, dando descontos a cada 5 reais... Ainda fiz um esforço, com as próprias mãos, para ele ver a inadequação de se colocar uma melancia em um vidro de azeitonas.

- Viu! Não tem como! – Devolvi-lhe o chapéu. Novamente, quis botá-lo; dei um passo atrás e mantive a distância.

- A menos que tenha uns três ou quatro números maiores, esse aí não serve... – Rumei para o meu caminho, quando ele me peitou, e disse:

- É por essas e outras que não gosto de gente folgada!

- Ah?! – Lembrei-me do personagem humorístico (não me recordo o nome), que ao ser confrontado repetia: “Ah, é, é!... Ah, é, é!...” para dias depois sair com uma resposta matadora, mas que de nada lhe serviria.

- É isso mesmo, você é um folgado! – Quase fez uma linha no concreto, cuspiu no chão, e me chamou a atravessá-la, se fosse homem.

Nisto, minha esposa puxou-me o braço de um lado e minha filha do outro, e arrastaram-me pela rua.

Na pousada, contei a história para um funcionário, e ele segredou:

- Você fez bem em não usar a fitinha, ela é uma espécie de senha para os trombadinhas e larápios saberem quem é turista e o enganar...

- E quanto ao vendedor de chapéus? O que tem a dizer?

- Aqui os vendedores são loucos, e esse deve ser, com certeza, o dono do hospício.

_________________________________________________ 

Nota: Texto publicado originalmente na Revista Bulunga


12 abril 2024

A Estrada, de Cormac McCarthy: Luz em meio as trevas






Jorge F. Isah
___________________________



Este é um daqueles livros que, após terminá-lo, gastamos um bom tempo ruminando...

Tenho a mania de tentar resumi-los, ao final, em, no máximo, uma palavra ou frase. Pode ser interpretado como uma heresia para muitos, mas, no meu caso, a síntese demonstra o quanto compreendi ou não deles... Quanto mais palavras, mais distante do entendimento. 

Quebrei a cabeça com A "Estrada", e ao estilo de McCarthy, suscito, não pude desvencilhar-me do termo "esperança". Mesmo nas situações mais dramáticas (e o livro é um grande drama a perpassar por cada uma das páginas) há um sussurro, quase inaudível, a lembrar personagens e leitores de que nem tudo está perdido. 

Como vocês sabem, não sou de contar a história, senão alguns poucos detalhes, para não tirar o gosto e o prazer do futuro leitor; no caso deste livro, posso dizer que pai e filho, os personagens centrais da história (os quais não são nominados, e cujo passado é minimamente revelado nas lembranças do "homem"), vivem em um mundo apocalíptico, onde a vida foi praticamente extinta... Não há animais, plantações, as instituições se desfizeram, o canibalismo está em voga, a barbárie se apresenta como o único estilo de vida, onde a moral não passa de um entrave à sobrevivência, tão dependente da destruição alheia e do próximo (se o mundo pós-moderno fosse uma construção real, os relativistas se vergariam, no primeiro instante, diante da realidade; associando-se, ou sendo posto fora dela pelo extermínio). 

O mundo é um campo minado; e as pessoas, inimigos terríveis, dos quais se deve afastar e temer. O homem se encontra despido de qualquer sentimento que não seja o de não sucumbir, pouco importando os meios pelos quais isso aconteça. É o mundo do vale-tudo; onde o mal não tem freios nem pode ser freado. 



Neste contexto, encontramos no "filho" um coração ingênuo, puro, amoroso e fraterno (uma referência de Cormac ao Cristo, o Filho Unigênito do Pai?), o qual é o "freio" do homem (a sua consciência perdida; o imago dei a lembrá-lo de quem é), disposto a tudo para salvaguardar a própria vida e a do seu rebento. O garoto, diante de um universo frio, cruel, egoísta e sanguinário, não se adapta as consequências naturais do "novo mundo", por não entender ser necessário abrir mão, por completo, da compaixão, da piedade. Ele vai na contramão, no caminho inverso em que todos os demais parecem se dirigir; e, nesse aspecto, apresenta uma força interior muito maior do que a do Pai, o qual reage como o protetor, disposto a fazer o preciso para sobreviverem, mas como uma reação natural da própria debilidade. 

Talvez, por isso, o menino seja descrito como uma alma agoniada, inconformada com a perversidade, sempre a questionar (respeitosamente, diga-se de passagem) as atitudes dos outros e, mesmo, do seu pai. Em muitos momentos, as respostas lacônicas e pouco interessadas do homem não o satisfazem, mas ele se resigna as vezes, ou reage através do choro e da tristeza para fazer o pai ver, mesmo minimamente, a beleza quase impossível das relações humanas. O desejo arraigado de conhecer os "homens bons", de acreditar na existência deles, se encontrado, seria o bálsamo a provar ao pai que nem tudo precisa ser do jeito que é. 

Não há como não se emocionar ao vê-lo conduzir o homem a mudanças de atitudes, quebrando-lhe a rudeza e deixando-lhe brotar sentimentos de fraternidade; ainda que se perceba um certo agastamento nele, em algumas situações. 

O mundo está cheio de almas aflitas, perdidas, deslocadas em meio à selvageria, mas dispostas a tudo para manterem-se livres dela. Não há providência, nem algo a se construir; sobram apenas os movimentos repetitivos como os de uma aranha tecendo a sua teia. 

Podemos chamá-lo de um "livro de emoções"; e elas brotam a cada página, numa simplicidade nada reducionista, mas enxuta, onde não há lugar para o supérfluo, o verborrágico, mas a concisão. 

A descrição do novo mundo é como assistir a "Mad Max", mas, de alguma maneira, a realidade entre pai e filho está mais próxima do "Senhor dos Anéis", onde há uma luta pelo bem, a fim de fazer o homem ressurgir das cinzas. 

Há redenção. Há esperança. Há solidariedade. Há uma força conduzindo o caos para a ordem, assim como em José do Egito, o mal se tornará em bem, pelas mãos de Deus. 

A morte do homem não está decretada, nem ele sucumbirá à própria depravação; e o filho, assim como o verdadeiro Filho, é o único capaz de juntar os pedaços, emanando bondade, e tornando zumbis em homens de verdade; fazê-los voltar à vida. 

E essa me parece a conclusão de McCarthy, a despeito de sua ligação com as trevas; uma vítima da Síndrome de Estocolmo, na qual o ofendido nutre um afeto doentio pelo ofensor. Mas entendo McCarthy, e o admiro por isso, pois ele é capaz de ver a luz em meio a mais densa escuridão. 

Leitura altamente recomendada

________________________________
Avaliação: (****)
Livro: A Estrada
Autor: Cormac McCarthy
Editora Alfaguara
240 Páginas

07 abril 2024

Estudo sobre a Confissão de Fé Batista de 1689 - Aula 37 - Martírio: o testemunho cristão





 Jorge F. Isah
_______________________________________ 



Façamos a leitura de alguns textos bíblicos:

- Mt 5.10-16;

- Filipenses 1.27-30

- 2Tm 2.8-13

- Rm 8.17

- 2Co 1.7

Na última aula, se não me engano, eu disse que a única certeza do crente era de que ele padeceria e sofreria neste mundo. Por isso selecionei alguns trechos que espero os irmãos leiam e meditem neles durante a semana.

1) Gostaria que os irmãos pensassem no que lemos. Qual a primeira coisa que lhes veio à mente?

2) Vivemos tempos de perseguição?

3) Algum dos irmãos pode dar um exemplo prático de como é ser perseguido neste mundo?

Vejam bem, o Cristianismo bíblico sempre foi atacado e perseguido em todos os tempos. Os primeiros quatro séculos da era cristã foram de perseguição e morte para a igreja. Muitos perderam a própria vida por amor a Cristo, pois era-lhes impossível negar aquele que os amou eternamente e entregou-se a si mesmo por eles na cruz. Era-lhes preferível a morte física do que rejeitar o Salvador e Senhor e a fé. Por isso, muitos foram sacrificados, e mesmo colocados como objeto de diversão nas arenas romanas. Famílias inteiras eram presas, perdiam seus bens e eram lançadas às feras: leões e gladiadores.

Há exemplos na Bíblia, desde o sacrifício do próprio Senhor Jesus, crucificado e morto injustamente, passando por:

- Estevão [At 7.54-60] [2],

- pela dispersão da igreja [At 8.1-4],

- por Tiago, irmão de João o evangelista, morto pelas mãos de Herodes Agripa [AT 12.2],

- a prisão de Pedro pelo mesmo Herodes Agripa [At 12.3-11].

O significado da palavra martírio [cujo sentido desconhecia, e surpreendi-me ao descobri-lo] vem do grego martýrion, que remete-nos ao testemunho.

Comumente se usa o termo martírio para explicar, em forma figurada, uma aflição, tortura, tribulação, dor. Quando vemos alguém sofrendo muito, seja por uma doença ou por problemas pessoais com filhos ou parentes, dizemos que a vida dele é um martírio. Mas o sentido original do termo não era este.

Na cruz, Cristo nos deu o seu testemunho. Sendo santo e justo, morreu pelos injustos e pecadores, apagando os nossos pecados e nos reconciliando com Deus. Então, tem o significado de alguém que, por sua morte, testemunha o amor por outrem ou é capaz de morrer no lugar de outro, a substituição vicária. Um adendo: é importante ressaltar que Cristo foi um homem sem pecados ou máculas, o homem perfeito que, como Filho, em tudo agradou e serviu ao Pai. Portanto, ele não levou sobre si nada além dos pecados daqueles que o Pai entregou em suas mãos, ele nos substituiu, tomou o nosso lugar, pagando o preço que nos era impossível pagar. Ali, ele testemunhou o amor pelo Pai e por aqueles que o Pai entregou em suas mãos, pagando o preço com o seu sangue; testificando também o amor e a fidelidade do Pai para com o seu povo, a aliança eterna que realizou conosco por intermédio do seu Filho Amado. Ele, em todos os sentidos, é um mártir, ao nos unir completa e eternamente ao Pai, uma união indissolúvel e perfeita.

No aspecto moderno do termo, todo homem é um mártir em potencial, pois a vida, em decorrência do pecado, trará mais aflições e tribulações ao homem quanto maior o seu  distanciamento de Deus, e, quanto mais distante mais o sofrimento se acentua... A separação de Deus testemunha o sofrimento e a angústia que a vida rebelde projeta na alma do homem, refletindo nele a realidade da qual tenta desesperadamente evitar, revelando a impotência que insiste em não ver mas que se revela evidente.


Porém, nós, que somos filhos de Deus, podemos experimentar a dor e o sofrimento e a angustia de maneira diferente, pois, ainda que sejamos tão humanos como os rebeldes, temos o refrigério e o consolo divinos através dos seu Espírito, que nos consola e conforta com maravilhosas promessas, mas também pelo martírio dos santos que, a despeito de toda a perseguição e sofrimento, foram capacitados a rejeitarem a si mesmos em favor da obediência ao Senhor, na certeza de que Deus, nos momentos mais difíceis, cuida e jamais abandona os seus filhos... O que nos remete, invariavelmente, à ordem de Cristo de segui-lo, tomando a nossa cruz e negando-nos a nós mesmos. 


Um exemplo, que sempre me chamou a atenção, foi o de Pedro. No livro de Atos, após a morte de Tiago, ele foi preso pelo rei Agripa, que pretendia martirizá-lo para satisfazer ao desejo homicida do povo de Israel. Contudo, maravilhosamente, sabendo que morreria no dia seguinte, Pedro, algemado entre dois soldados e com guardas à porta para escoltá-lo até o local da execução, dormiu tranquilamente, de forma que foi necessário o anjo do Senhor tocar na sua ilharga para acordá-lo.

Podemos imaginar o que Pedro pensava da sua condição?

E nós, como portaríamos em seu lugar?

Pedro estava disposto a se sacrificar, a testemunhar com a própria vida a vida que Cristo lhe dera. Interessante que no A.T. as ovelhas eram sacrificadas para anular os pecados do povo de Israel. O sacrifício de Cristo veio livrar-nos e apagar definitivamente os nossos pecados, trazendo para si um povo. E agora Pedro estava disposto a seguir o exemplo do Senhor e morrer em nome daquele que lhe dera perdão e vida. O martírio era um testemunho de que nada neste mundo poderia impedi-lo de servir ao seu Senhor.

Pedro deu-nos uma demonstração de fé, de que mesmo na morte é possível perder a vida para louvar e bendizer o nome do Senhor. Não foi isso o que o Senhor disse? Aquele que guardar a sua vida  perde-la-á, o que perdê-la ganha-la-á [Mt 16.25]. Pedro se importava com a sua vida apenas se ela servisse para a obra do Senhor, usá-la para louvor do seu nome santo; não havia outro motivo pelo qual guardá-la, e mesmo na morte ele não a perderia.

No ano 391 da era cristã, um monge chamado Telêmaco foi a Roma, após ter ouvido o chamado de Deus para ir até lá. Entrando na cidade, em dado momento, ele se viu cercado por uma turba de pessoas alvoroçadas, e impelido por elas, entrou no Coliseu onde se reiniciariam os jogos dos gladiadores. Constantino havia proibido a morte nas arenas setenta anos antes, mas o novo imperador, por pressão popular, decidiu legalizá-los novamente. Ao ver a fúria dos gladiadores lutando e matando-se mutuamente, o velho monge desceu as escadarias e entrou na arena se colocando entre os lutadores, dizendo: "Em nome de Cristo, parem!". A turba se enfureceu com ele e incitou os gladiadores a hostilizá-lo. Colocado de lado por um deles, ao ver a luta se reiniciar, colocou-se novamente entre os dois, e foi atingido mortalmente por um golpe de espada. A turba, até então ruidosa, calou-se. Em meio ao silêncio das 80.000 pessoas pode-se ainda ouvir o moribundo dizer: "Em nome de Cristo, parem!". Um a um os espectadores sairam em silêncio. Com a morte de Telêmaco, definitivamente os jogos de gladiadores foram extintos no Império Romano.

Hoje os testemunhos, com raras exceções, são meros discursos ou palavreado vazio e sem sentido, onde, na maioria das vezes, o que se diz é diametralmente oposto ao que se faz. Cristo viu isso em seu tempo entre os fariseus, os mestres de Israel. Ele disse ao povo para segui-los no que diziam, que era a própria revelação de Deus, mas jamais fazer ou agir como eles faziam e agiam. Utilizavam-se da retórica para, erroneamente, proclamar algo que vai muito além das palavras. Sabemos que sem a linguagem humana o Evangelho não seria proclamado. Mas, muitas vezes, o testemunho [e lembre-se que testemunho é sinônimo de martírio] falará muito mais do que um milhão de palavras. O testemunho de Cristo falou por si mesmo. Assim como os já citados.

Na teologia há um termo que se chama "ortopraxia", o qual refere-se à prática correta. É preciso aliar a teologia correta ou a crença correta [ortodoxia] com a prática correta. Penso que Tiago [Tg 2.18], ao se referir às obras mortas, falava exatamente disso, do discurso vazio que se acomoda intelectualmente mas não produz resultado prático ou os frutos aos quais o Senhor Jesus se referiu. E como toda a árvore que não dá bons frutos é cortada e lançada no fogo eterno, assim será para os que têm o correto na mente mas não o aplicam no seu dia-a-dia. Eles enganam a si mesmos [Mt 7.15-20].

Então, gostaria de finalizar com um trecho da biografia do pr. William Carey. Em uma carta, de 17.08.1831, escrita a Jabez Carey, quando estava em Serampore, Índia, ele disse:

"Hoje estou fazendo setenta anos, o que é um monumento à misericórdia e bondade divina, apesar de, numa revista de minha vida, eu encontrar muitas coisas pelas quais devia ser humilhado no pó. Meus pecados ostensivos e concretos são inumeráveis, minha negligência no trabalho do Senhor foi grande, não promovi sua causa nem busquei sua glória e honra como deveria. Apesar de tudo isso fui poupado até agora e ainda sou mantido em sua obra, queria ser mais consagrado ao seu serviço, mais santificado, praticando as virtudes cristãs e produzindo frutos de justiça, para louvor e honra do Salvador que deu sua vida em sacrifício pelo pecado".


Que cada um de nós seja capaz de testemunhar, até o sangue se preciso, a gratidão a Deus pelo amor infinito com que nos amou.
______________________ 
ÁUDIO DA AULA 37: 
 
______________________ 
Notas: 1- Aula realizada na E.B.D. do Tabernáculo Batista Bíblico;
2- Este trecho, e algumas passagens não citadas no presente texto, encontra-se melhor explicado no áudio da aula.

02 abril 2024

Louis-Ferdinand Céline: o "gaiato" maldito e genial!

 





Jorge F. Isah



Em 1982, por causa de uma crítica no caderno literário (ou cultural, sei lá), da extinta Revista Veja (se não morreu definitivamente, deve ser um defunto em decomposição, ao menos quando a li pela última vez), ouvi falar de um certo Louis-Ferdinand Destouches, ou mais adequadamente, Louis-Ferdinand Céline ou Céline para os íntimos. Neste ponto, deve-se ressaltar que a troca dos sobrenomes Destouches para Céline ocorreu pelo desprezo ao pai e o apreço e carinho pela avó; desta maneira, desfazia-se do passado doloroso, triste e rude, especialmente na infância, e adotava algo a remetê-lo aos poucos momentos de afeto e que talvez esperasse reencontrá-los no futuro. Entretanto, não foi bem assim; muito do inclemente e hostil relacionamento com os pais, professores, colegas e outros projetou-se exponencialmente nos anos que se seguiram. Para não atropelar os eventos cronológicos, voltarei à questão inicial.

 

                      


Pois bem, no início dos anos 1980 a editora Civilização Brasileira publicou em terras tupiniquins a obra “Morte a Crédito” (o título me deixou hipnotizado), segundo livro do autor. Eu desconhecia Céline quase completamente, mas me lembro de, anos antes, ler a respeito das influências de Henry Miller e o seu nome apareceu com moderado crédito. Não sei a razão do nome ter se fixado na memória, apesar de transcorridos três ou quatro anos; entretanto, ali estava, diante de mim, alguém cujo nome não era totalmente estranho, mesmo sem entender o porquê de ele ter sido abrigado no subconsciente, de um jeito involuntário mas proposital. Nisso consistia a minha conexão com Céline, não a partir dele mesmo, mas de Miller.

     

                                   Edição Brasileira                                                    Edição Italiana (Tea)                                           Edição Francesa   

Instigado pelo artigo da revista (não me lembro o nome do crítico a fazê-lo), fui até uma livraria, não sei se Leitura, Acaiaca ou Nobre, presumivelmente uma delas, sem a convicção de sê-lo, e comprei o exemplar recém lançado. Tinha em mãos o livro do escritor maldito, como o crítico o identificara, e nada melhor para um jovem com delírios reformistas do que alguém ou algo acompanhado da alcunha “maldito”. Era instigação e afetação em estado puro, quero dizer, não tão puro, meio viciado meio turvo, um pouco deficiente outro tanto falso, mas jamais insincero ou fingido (via de regra, não representa nada; ao menos me isenta da alcunha de hipócrita ou desonesto). Lembro-me de ser um dos primeiros livros comprados, já que a maioria das minhas leituras se restringia aos empréstimos da Biblioteca Pública de Minas Gerais... Não são, contudo, as minhas reminiscências o objetivo deste texto, mas contar um pouco do autor. Vamos a ele, então.


Céline nasceu em 1894, em Coubervoie, espécie de distrito na periferia de Paris, à margem esquerda do rio Sena. Filho de um corretor de seguros, era de classe média-baixa, e teve uma educação básica, sem destaque ou grandes expectativas. Estimulado pela avó, foi à Saxônia (Alemanha) e Inglaterra, por volta de 1908, estudar línguas. Em 1912 alistou-se no exército francês para, dois anos depois, lutar na I Grande Guerra, aos vinte anos, no 12º regimento de cuirassiers. Distinguiu-se em várias operações, muitas de alto risco, recebendo uma condecoração: a medalha militar em 1914, e posteriormente a Cruz de guerra, até ser ferido gravemente no braço e receber um tiro de raspão na cabeça, o que gerou um Tinnitus (o famoso “zumbido” no ouvido) a carregar por toda a vida. Considerado inválido, deu baixa no exército em 1915, e afastou-se definitivamente do conflito europeu.

                        
             Céline no exército francês                                                                                                 Céline no início da I Grande Guerra

 

Em 1916 foi para Camarões a trabalho numa madeireira, onde contraiu malária e desinteria, motivos a fazê-lo retornar à França para tratamento (1917). Concluiu o ensino médio em 1919, e casou-se com Edith Follet, filha do diretor da escola de medicina, onde começara seus estudos universitários, e com quem teve a única filha, Colette, nascida em 1920. Dois anos depois, licenciou-se em medicina, defendendo a tese sobre os trabalhos do médico húngaro e sanitarista Ignaz Semmelweis, nascido em 1818 e falecido em 1865 (o livrinho “A vida e obra de Semmelweis” foi publicado pela Cia. das Letras, e, como praticamente toda a obra de Céline traduzida no Brasil, encontra-se fora de catálogo).

 

   

              Publicado em 1998                                   Semmelweis defendeu a higiene básica, algo desconhecido até então, como lavar as mãos

 

Em 1924 tornou-se clínico em Rennes. Após um ano, decidiu abandonar a família e trabalhar para a Liga das Nações, sempre em viagens pelo mundo, quando conhece a América, Canadá e Cuba. Em 1928 retorna a Paris e abre um consultório em Montmartre. Por volta de 1931 começa a se dedicar à escrita (aos 37 anos), e são desta época os primeiros esboços e páginas do livro que o consagraria mundialmente, “Viagem ao Fim da Noite”, lançado em 1932, e que ganharia o renomado prêmio nacional Renaudot. Obra de cunho autobiográfico, relata as aventuras e desventuras de Ferdinand Bardamu durante a I Grande Guerra, dos suburbios parisienses à miséria da Africa Colonial, e daí para a América incrivelmente mecânica e rica, pós conflito. O tom do livro é niilista e nitidamente antropofóbico; uma aversão especial e bárbara à humanidade, suas instituições e a vida em geral. Para ele, existir era algo completamente absurdo, cruel e, por isso, digno do seu desprezo e ódio. É triste, pessimista, e quase nada de bom pode se ler, não raro nos deparamos com incursões cínicas, de humor cáustico e mordaz, em uma linguagem coloquial, cheia de gírias e palavrões, embaladas por uma erudição estilística meticulosa e perceptível; artefatos utilizados com maestria para ressaltar e explicitar o seu furor quase patológico contra a sociedade (hoje, passados quarenta anos, não sei se suportaria a leitura de Céline, realmente não sei. Preciso voltar a elas, e avaliar se tudo aquilo percebido nos longinquos anos 80 persiste encantando-me ou ser-me-á insuportável).

                 

                  Edição Brasileira                                                              Ed. Portuguesa                                             Manuscritos Completos


Erroneamente, muitos o reputaram como um autor esquerdista, e logo se tornou uma celebridade nesses ambientes, ganhando a simpatia, elogios e publicidade de Sartre e Beauvoir, por exemplo, da mulher de Louis Aragon, a russa Elsa Triolet (Ella Yuryevna Kagan, de origem judia), que traduziu a obra para a sua língua materna. Stálin também o considerou seu livro de cabeceira. E Trotsky não ficou atrás. Com tanta receptividade entre os marxistas, nada mais natural do que receber o convite para uma visita à URSS. Ao voltar, indignado com o que vira, escreveu o manifesto “Mea Culpa”, em que desanca o comunismo sem dó ou piedade, não deixando pedra sobre pedra, revelando toda a sua decepção com o estado geral daquele nação. A partir de então, os antigos “aliados” voltaram-se contra ele e jamais o perdoaram por seu líbelo anti-soviético.


                                                         Céline e Lucette a bordo do navio Meknès em direção à U.R.S.S (1936)

 

Em 1936 lançou “Morte a Crédito”, escrito ficcional mas de cunho também autobiográfico como “Viagem ao Fim da Noite”, utilizando-se dos mesmos recursos estilisticos aplicados anteriormente, e de certa forma aprimorados, onde descrevia a infância caótica do protagonista. É deste período o abuso do uso de reticências, de frases soltas, aparentemente desconexas, mas a imprimir no absurdo e sofrimento uma continuidade quase infinita... uma amargura sem fim.

Entre 1938 e 1941 lançou três panfletos antissemitas, nos quais se considerava “o maior inimigo dos judeus”. Isso lhe trouxe a pecha de maldito e também, pelos “méritos” do antigo admirador Jean Paul Sartre, o rótulo de colaboracionista com o Nazismo. Na verdade, Céline além de algumas entrevistas insanas, um ou outro artigo de jornal, nada fez diretamente que apoiasse o Nazismo e sua máquina de guerra. Para um escritor antimilitarista e flagrantemente contra as guerras e suas atrocidades nem em pensamento era de se supor o apoio à essa “causa perdida”. Muitos escritores taxados de colaboracionistas por gente como Sartre e Beauvoir foram linchados publicamente (o editor de Céline teve esse fim), cometaram suícidio (como Drieu La Rochelle), e outros como Malraux, Gidé e Du Gard tiveram suas reputações destruídas por acusações infundadas. O fato era que, como a maioria dos intelectuais franceses, Céline queria apenas continuar a escrever, publicar e receber os seus direitos autorais.

                   
                 Escrito antissoviético                                                                  Dois de três livretos antissemitas escritos entre 1938 e 1941

            

Quando eclodiu a II Grande Guerra, Céline tentou de todas as maneiras convencer os franceses a não entrarem em outro conflito mundial. As lembranças brutais ainda impregnavam as suas retinas, e não desejava ver a nação em novo confronto onde não haveria vencedores. Mesmo assim, alistou-se como médico voluntário em um navio francês, posteriormente afundado pelos nazistas. Na verdade, dotado de mente inquieta, odiava tanto alemães como aliados; para ele eram ambos portavozes de tragédias, destruição e morte.

Próximo do fim da guerra, partiu em uma viagem de fuga à Dinamarca, e os relatos podem ser lidos na trilogia “De Castelo em Castelo”, “Norte” e “Rigodon”, livro póstumo e inédito no Brasil. Na companhia da esposa Lucette e do gato Bérbert (seus fiéis e inseparáveis escudeiros), foi para o exílio salvar-se da prisão e da morte, pois já havia sido condenado publicamente. Perdeu todos os bens, confiscados pelo governo, e viveu até a morte na penúria. Morou vários anos em Copenhagen, conseguindo livrar-se da extradição, mas passou um ano e meio na cadeia. Anistiado, voltou em 1951, clínicando para uma freguesia paupérrima em Meudon, na casa onde viveria até a falecer, em 1961, vítima de aneurisma.

                             


                                                                                                Lápide de Céline, e Lucetteem Meudon, França   



                                                                                                                                 Céline, Lucette e o longevo gato Bérbert                                                               Céline e sua esposa Lucette 

            Céline é das figuras mais complexas e inexpugnáveis da literatura no século XX. Odiado por uns, amado por outros, há aqueles que conseguem distinguir o homem da sua obra, mas também aqueles que desprezam a obra pelo desprezo ao homem. De pensamento e posições contraditórias, alinhavá-lo ou melhor enquadrá-lo em algum grupo e sistema é praticamente impossível. Havia tão somente ele, o gênio criador e a criatura bestial, uma espécie de Dr. Jackyll e Mr. Hyde, onde frases minuciosamente escritas, a amálgama do erudito e do vulgar, da poesia e sonoridade musical, do furor e tristeza, da ira e o humor ousado, atrevido, fez dele, ao mesmo tempo, um autor admirado e desprezível, amado e detestado, condenado e absolvido, em cuja obra se misturam realidade e ficção, sem medidas exatas, sem proporções definidas; a dignidade literária contrastando-se ao palavreado cotidiano. Certamente, muitos dos seus inimigos não podem, nem poderiam, tirar-lhe os méritos literários; era admirado e citado como referencia por inúmeros autores: Henry Miller, Bukowski (e por tabela toda a geração beat), John Updike, Joseph Heller, Pedro Juan Gutierrez, Philip Roth (que afirmou: “na França, meu Proust é Céline”), entre outros. Não esqueçamos da banda “The Doors” que compôs a música “End of the night” influenciada pelo trabalho do Dr. Destauches.


                                                           Céline e seus cães, o gato Bérbert deitado e se lambendo à esquerda, e outro felino

           Antes de morrer, distante do inseparável Bérbert que havia partido, Céline perguntou a sua mulher, Lucette: "Por que escrevo?". E, no mesmo átimo, respondeu a si e a quem pudesse ouvir: "Para tornar os outros escritores ilegíveis." E assim, de alguma maneira, ele se despediu deste mundo como sempre viveu, um “gaiato” a provocar censuras mas também aplausos efusivos.


Lucette, vestida de bailarina, com um desenho de Céline


                              ___________________________                                   


Frases



“Eu nunca votei na minha vida... Sempre soube e entendi que os idiotas são a maioria, então é certo que eles vão ganhar.”

“Confiar nos homens é já deixar-se matar um pouco.”

“A pura verdade, devo admitir, é que nunca estive realmente bem da cabeça.”

“A tristeza do mundo tem maneiras diferentes de chegar às pessoas, mas parece ter sucesso quase todas as vezes.”

“Ser médico é uma tarefa ingrata. Quando é pago pelos ricos, corre o risco de ser considerado como um criado, quando é pago pelos pobres, um ladrão.”

“Estar sozinho é treinarmo-nos para a morte.”

“Uma cidade desconhecida é uma coisa boa. Essa é a hora e o lugar em que você pode supor que todas as pessoas que conhece são legais. É hora dos sonhos.”

                                                                                 Charge de Céline                                                                          Rascunho de “Viagem ao Fim da Noite”



“Quando não se tem imaginação morrer é pouca coisa, quando se tem, morrer é demasiado.”

“Não há tirano como um cérebro.”

“Tudo se expia, tanto o bem como o mal, cedo ou tarde se pagam. O bem é mais caro, forçosamente.”

“A alma é a vaidade e o prazer do corpo são.”

“O começo da genialidade é ficar com medo de merda.”

“Quanto à beleza, pelo menos sabemos que acaba por morrer, e por isso, sabemos que existe.”

“Não existe vaidade inteligente.”

“Meu problema é a insônia. Se eu sempre tivesse dormido direito, nunca teria escrito uma linha.”

“A experiência é uma lâmpada fraca que só ilumina quem a carrega.”

“A verdade é uma agonia sem fim. A verdade deste mundo é a morte. É preciso escolher: morrer ou mentir. E eu nunca me consegui matar.”

“Não é porque ela fosse feia, não, ela poderia mesmo ser considerada bonita, como tantas outras, mas era tão prudente, tão desconfiada que parava à margem da sua beleza, como à margem da vida.“

“A melhor coisa a fazer quando você está neste mundo, é sair dele. Louco ou não, com medo ou não.”

“É dos homens, e apenas deles, que se deve sempre ter medo.”

“Muitos homens são assim, suas inclinações artísticas nunca vão além de uma fraqueza por coxas bem torneadas.”

“Quando se torna realmente impossível fugir e dormir, então a vontade de viver evapora por conta própria.”

“Você pode se perder tateando entre as sombras do passado.”

____________________________________ 

Nota: Texto publicado originalmente na Revista Bulunga