15 fevereiro 2024

Irmão Marx: três que valem por cinco

 



                 Os Irmãos Marx juntos com Charles Chaplin e Buster Keaton formam, provavelmente, o triunvirato do humor cinematográfico, os verdadeiros reis da comédia. Se Keaton era um ator excepcional e fazia rir sem mudar o menor traço em suas feições (o oposto dele seria Jerry Lewis, outro grande comediante), Chaplin era um mímico formidável, e The Brothers Marx  eram o verdadeiro caos, a babel instalada nos palcos e na tela, porém com uma precisão incrível. Todos vieram de famílias que trabalhavam no mundo do entretenimento, mais especificamente o gênero vaudeville (no Brasil, algo do tipo mambembe), cujos limites não estavam restritos à simples interpretação mas também afeito ao estilo circense, sendo, portanto, bastante popular na Europa e América, e incluía músicas, danças, animais treinados, acrobacias, mágicas, e tudo o que pudesse fazer a diversão dos espectadores, inclusive a comédia, certamente o ponto alto dos shows.

                Nesse ambiente os Irmãos Marx foram introduzidos, ou melhor, estavam inseridos, portanto nada mais natural foi seguir os passos da mãe e do tio (Abraham Elieser Adolf Schönberg que adotou o nome artístico Al Shean), e desenvolver habilidades para os palcos. Aprenderam música, tornaram-se instrumentistas, interpretes, eram palhaços, acrobatas, quase tudo apreendido de maneira intuitiva, assistindo a repetição exaustiva dos mais velhos, entregando-se ao exercício de imitar e reproduzir-lhes as performances, e assim aprimorar esses estilos.

                Nascidos em Nova York, filhos de imigrantes judeus (a mãe era alemã, de Dornum, Frísia Oriental, e chamava-se Minnie Schoenberg, e o pai, Samuel Marx, francês, de Mertzwiller, uma aldeiazinha na Alsácia), fizeram boa parte das apresentações do início de carreira na cidade, principalmente na região onde moravam, Upper East Side, bairro formado por imigrantes irlandeses, alemães e italianos.  Diz a lenda, que o pai, “Sam”, era melhor cozinheiro do que alfaiate, profissão que abraçou a fim de sustentar a família de forma regular, pois o teatro, cheio de altos e baixos, nem sempre era suficiente para custear as despesas.

                                

                                          Minnie Marx com os netos Maxine e Arthur                                   “Sam” Marx e os filhos Zeppo, Chico, Groucho e Harpo

                                                                                                                             
                                      Sam e Minnie tiveram seis filhos e uma filha adotiva. O primogênito, Manfred (Manny), morreu aos sete meses de enterocolite com astenia, em 1886. Os demais, em ordem cronológica, e a origem provável dos seus cognomes, foram:

                Chico nasceu Leonard Marx, em 22.03.1887, e existem duas hipóteses para o apelido. A primeira, por perseguir as “galinhas” ou garotas fáceis em seus tempos de adolescente. Então, nada mais simples do que chamá-lo de Chico (pronuncia-se Chick-o), derivado de “Chicken” em inglês. A segunda, se deve ao seu significado em italiano, garoto ou rapazinho. Muitos relatos dão conta de ser ele o preferido da matriarca, Minnie (na certa por vir após a morte de Manny), e geralmente causava ciúme em Groucho.

 


               Harpo nasceu Adolph Arthur Marx, em 23.11.1888. A origem do apelido é bem mais simples, pois vem do seu virtuosismo em tocar Harpa, que aprendeu sozinho, pois a família não dispunha de recursos para pagar um professor.



 Groucho nasceu Julius Henry Marx, 02.10.1890. Ele usava sempre uma bolsa dependurada ao pescoço, chamada de “grouch bag”, onde levava moedas e outras quinquilharias. Daí a origem do apelido.



 Gummo nasceu Milton Marx, em 23.10.1892. Seu apelido é mais simples e advém dele sempre estar mascando chicletes ou goma, “gum” em inglês. Alguns sugerem também ser pelo fato dele usar galochas de borracha.



 

                Zeppo nasceu Herbert Marx, em 25.02.1901. Consta que o apelido se deve à primeira viagem do dirigível Zeppelin à América coincidir com o seu nascimento.



                 Polly, a irmã mais velha, era uma prima que o casal Marx adotou desde a mais tenra idade, nascida em janeiro de 1885.

                 


                                                                                                  A família Marx nos primórdios em N.Y.

                         No início, estabeleceram-se como músicos, algo que os pais estimularam desde cedo. Minnie nutria o desejo de vê-los progredir e prosperar no teatro, e, quem sabe, alcançarem a fama e realização que lhe faltou como artista. Tratou logo de empresariá-los, promovendo-os em pequenos palcos e viagens pela América. Chico tocava piano como ninguém jamais tocara. Sua mãe lhe dava 5 cents semanais para o pagamento das aulas, mas ele os gastava em apostas, e acabariam por levá-lo à miséria, se não fosse a ajuda sistemática de Harpo e Groucho.  Harpo era exímio harpista, talentoso até mesmo para os moldes eruditos da época, e chegou a tocar bem mais outros cinco instrumentos. Groucho violonista e cantor. Em 1907, Groucho e Gummo apresentavam-se como cantores, ao lado de Mabel O’Donnel; formavam o “The Three Nightingales”. Um ano depois, Harpo se uniu ao grupo, sendo o quarto “rouxinol”. Em seguida, o grupo foi rebatizado para “The Six Mascots”, com a adesão da mãe Minnie e da tia Hannah, mas não durou muito. Entretanto, em 1912, quando se apresentavam em uma cidadezinha do Texas, foram interrompidos pelos gritos histéricos a respeito de uma mula. O público saiu para ver o que estava acontecendo. Groucho então, furibundo, quando a plateia retornou, fez comentários sarcásticos: “Aqui está cheio de baratas” e “o burro é a fina flor do Tex-burro”. Todos caíram em gargalhadas. A família percebeu a veia cômica e aumentou os quadros humorísticos, com o tempo, em suas exibições musicais. Estava aí a grande virada, e sacada, na carreira dos Marx.

                                                  Os “Seis Mascotes”                                                                                             O’Donnel e Groucho

Poster publicitário em que Harpo já se encontra integrado aos Nightingales

                   Por essa época, quando a comédia ganhou cada vez mais destaque nas apresentações musicais dos Marx, os seus personagens foram se aprimorando e ganhando as características a torná-los em grande sucesso, primeiro, nos teatros e cabarés e, por fim, na Broadway, depois as telas dos cinemas. Groucho começou a usar o bigode pintado toscamente e o andar curvado. Chico, sempre envolvido com garotas, brigões e jogos, desenvolveu seu personagem para um trambiqueiro incorrigível e detentor de um falso sotaque italiano. Harpo, optou pelo mutismo, adotou as buzinas e a mímica incomparável como forma de se expressar. Curioso notar o fato de Harpo decidir não falar mais porque suas falas não faziam sucesso nos palcos.  E o caminho, não tão óbvio mas sábio, foi o mutismo. Zeppo era o galã, o mocinho a encantar as donzelas, servindo de “escada” para os demais irmãos. Ele substituiu Gummo na trupe quando eclodiu a I Grande Guerra, e Gummo foi chamado a servir no exército. Na verdade, detestava atuar e considerava qualquer coisa, até ir para o front, melhor.  Pode se ver, portanto, que muitas das características dos personagens se assentavam em suas personalidades e traços peculiares.

                                 Em 1920 eles haviam se tornado célebres no teatro americano, por conta do humor ácido, perspicaz e singular, ao mesmo tempo esquisito e original. Sob a batuta de Chico e Groucho, que gerenciavam toda a parte artística dos espetáculos, enquanto Minnie cuidava de agenciá-los e promovê-los, rapidamente se tornaram estrelas na Broadway. Minnie, para não ser associada à mãe da trupe, alterou o nome para “Minnie Palmer” e assim enganar quem os pudesse contratar. Daí para o cinema, foi um passo. O primeiro contrato veio com os estúdios Paramount, onde ficaram de 1929 a 1933, realizando cinco filmes. O primeiro deles foi “Cocoanuts” (Hotel da Fuzarca), e o último “Diabo a Quatro” (Duck Soup), sendo considerado o melhor dessa fase. Zeppo deixaria o grupo disposto e não mais atuar, assim como o irmão Gummo, e ambos criaram uma das maiores agências de talentos da época, em Hollywood.

 

            Pelas mãos do produtor Irving Thalberg, com quem Chico jogava cartas todas as noites, se transferiram para a MGM, e acrescentaram ao seu humor anárquico, a pedido de Thalberg, uma forte estrutura narrativa, a torná-los mais simpáticos. Em meio à comédia, mesclaram tramas românticas, números musicais sérios, e o embate com vilões óbvios, tornando-os mais acessíveis ao público acostumado à dicotomia em outros artistas da época.

                                                                         Foto dos Irmãos Marx ainda como quarteto


 Dessa época são: Uma noite na Ópera (A Night At The Opera, de 1935) e Um Dia nas Corridas (A Day at the Races, de 1937), películas onde a produção conseguiu explorar as muitas habilidades dos três irmãos, arrancando risadas incontroláveis das plateias mundo afora. Foi durante as filmagens do último que uma tragédia se abateu sobre os Marx: Thalberg morreu de pneumonia, em 1936, e a parceria foi subitamente interrompida. Groucho foi categórico ao dizer que os dois melhores filmes realizados por eles foram sob a batuta de Thalberg. Em 1937, saíram da MGM e foram para RKO.

 

                                                                                                     Thalberg com The Brothers Marx

 A curta passagem pelo novo estúdio resultou em um único filme, “Room Service”, de 1938, quando retornaram à MGM para mais três filmes:  At the Circus (1939), Go West (1940) e The Big Store (1941). Neste último, Chico e Harpo sentaram-se ao piano e interpretaram “Mamãe eu Quero”, sucesso brasileiro de 1937, composta por Vicente Paiva e Jararaca, tornada mundialmente conhecida pelas mãos (e voz) de Carmen Miranda.

 

                                                                                Cena de “Room Service”, da RKO

 Antes do lançamento do último filme, os irmãos anunciaram que o grupo se dissolveria e estavam abandonando as telas. Entretanto, em 1945, devido aos constantes e sérios problemas financeiros de Chico, proveniente de dívidas de jogo, os dois remanescentes foram convencidos a filmar novamente. Assinaram com a United Artists: Uma Noite em Casablanca (1946) e Loucos de Amor (1949), quando definitivamente aposentaram a trupe.

Nos anos seguintes, fizeram aparições individualmente e em duplas, nos teatros, cassinos, rádio e eventualmente na TV. Groucho firmou-se como apresentador do programa You Bet your Life, até o início dos anos 1960.

Eles não atingiram a fama de Chaplin, Stan e Laurel ou dos Três Patetas, mas certamente influenciaram e inovaram as comédias, com um jeito despojado, fora dos padrões da época, as vezes ingênuo mas nunca inocente. Fizeram rir multidões, e ainda fazem. Influenciaram gerações e gerações de comediantes que não se cansavam de citá-los como referência, de Woody Allen a Mel Brooks, de John Cleese aos Monty Python, passando por Alan Alda e Elliot Gould, David Zucker e Jim Abrahans.

Não vale a pena deixar as datas de suas mortes pois Os Irmãos Marx, em sua singularidade, são eternos. E as provas estão aí: pode-se assistir as suas comédias na Tv, ou comprar boxes de seus filmes digitalizados, até mesmo em Blu-Ray.

Aprecie, sem moderação!


 Da esquerda para a direita: Harpo, Zeppo, Chico, Groucho e Gummo. Foto sem data. Provavelmente em fins dos anos 1950.

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Frases de Groucho Marx


“Não entro para clubes que me aceitam como sócio.“

“Eu nunca esqueço uma cara, mas no teu caso ficarei satisfeito em abrir uma excepção.“

“A sinceridade e a honestidade são as chaves do sucesso. Se puderes falsificá-las, estás garantido.“

“Acho a televisão muito educativa. Toda as vezes que alguém liga o aparelho, vou para outra sala e leio um livro.“

“A política é a arte de procurar problemas, encontrá-los em todos os lados, diagnosticá-los incorretamente e aplicar as piores soluções.“

“Eu pretendo viver para sempre, ou morrer tentando.“

“Se acredito na vida após a morte? Não sei nem se acredito na vida antes da morte! Acho que acredito na morte durante a vida“

“Eu tenho princípios. Se você não gosta desses, eu tenho outros.“

“A filosofia é a ciência que nos ensina a ser infelizes da maneira mais inteligente.“

“Há muitas coisas na vida mais importantes que o dinheiro, mas custam tanto…“

“Eu não posso dizer que não discordo de você.“

“As noivas modernas preferem conservar os buquês e jogar fora seus maridos.“

“O humor é a razão a enlouquecer.“

“Nenhum homem desaparece antes do seu tempo - a não ser que o seu chefe saia primeiro.“

“Você prefere acreditar em mim ou em seus próprios olhos?”

“Eu não sou vegetariano, mas como animais que são.”

“Entre uma mulher e um charuto, escolherei sempre o charuto.”

“Foi um juiz que me casou. Eu deveria ter pedido um júri.”

“Ele pode parecer um idiota e até agir como um idiota, mas não se deixe enganar: é mesmo um idiota!”

“Eu quero ser cremado. Um décimo das minhas cinzas devem ser dadas ao meu agente, assim como está escrito em nosso contrato.”

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Nota: Texto publicado originalmente na Revista Bulunga

10 fevereiro 2024

Estudo sobre a Confissão de Fé Batista de 1689 - Aula 33: O poder soberano de Deus - Parte 1







Jorge F. Isah
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Durante a semana, recebi através do twitter este texto, e como estava preparando esta aula, achei providencial analisá-lo, pois ele trata exatamente do mesmo assunto ao qual daremos continuidade no estudo da C.F.B. Pensei que seria uma boa oportunidade para discutirmos a questão de uma maneira, digamos, mais prática, e uma chance de mudar um pouco o curso de como estamos a estudar. Será feita a leitura do texto, e os comentários estarão entremeados a ele, em itálico.
Então, sem mais delongas, vamos à leitura e análise do texto, o qual é:


Deus pode criar, hipoteticamente, uma pedra que não possa carregar?

O ateu se acomoda no banco da praça, olha sobre o ombro e percebe que há um jovem padre amarrando os sapatos.
- Com licença... O senhor é Padre?
O jovem ergue as sobrancelhas com admiração! [como não reconhecem um clérigo de batina nos dias de hoje?]
- Sim, sou, respondeu o padre ajeitando-se no banco, exibindo o clergyman e um sorriso irônico.
- O senhor ainda crê mesmo? O senhor...
- Sim creio... E o senhor, não crê?...
- Acostumei-me a tolerar a ignorância dos homens...
- Então, temos algo em comum... Revidou o padre, olhando o relógio.

Um minuto... Temos aqui, inicialmente, uma conversa entre o padre e um ateu em um banco de praça. O que se percebe é que o jovem avistou o clérigo e provocou-o com uma questão. Até então, o padre sequer havia notado ou percebido a presença do ateu, mas este percebeu-o e dirigiu-se a ele, inquirindo-o. É importante saber que os nossos inimigos estarão sempre lado a lado conosco, nos tentando. Pedro nos advertiu de que o diabo está ao nosso redor à espreita, buscando a quem possa tragar. Igualmente, os seus servos também querem demover-nos da fé, de forma que reneguemo-la; fruto, primeiramente, do ódio e desprezo a Deus e que se transfere de alguma maneira para nós. 
Uma das formas mais usuais deles é a argumentação sutil, cavilosa, sofismática, de maneira que fiquemos numa posição de dúvida. Devemos, portanto, estar preparados para, onde estivermos, seja no trabalho, na escola, no lar, entre amigos, parentes e vizinhos, e até mesmo dentro da igreja, saber que seremos confrontados por pessoas que são instrumentos do inimigo, e eles próprios inimigos de Deus, para nos tentar. O que o padre está sofrendo é uma tentação. Pode parecer apenas uma conversa trivial, mas ele está sendo tentado pelo ateu. 
Continuemos...

Dobrando o jornal que estampava a figura do último show de rock, troca as pernas numa cruzada e, olhando para o padre, pergunta:
- Como pode crer no que foge à lógica?
- O que não é lógico em crer?
- Muita coisa... Por exemplo: o senhor deve crer que Deus tudo pode...
- Sim, não é só verdade que creio, como é verdade que Ele tudo pode.

Rapidamente o ateu chega ao ponto principal do seu intento: afirmar que a fé não é lógica, a partir de uma pergunta capciosa: Deus tudo pode? 
Sabemos que esta é uma verdade bíblica, e de que ela está presente em uma série de versos, como tais:
Jó 42.2: “Bem sei eu que tudo podes, e que nenhum dos teus propósitos pode ser impedido”
Mt 19.26: “E Jesus, olhando para eles, disse-lhes: Aos homens é isso impossível, mas a Deus tudo é possível” [1].
Lc 1.37: “Porque para Deus nada é impossível”
Sl 47.2-3: “Porque o Senhor Altíssimo é tremendo, e Rei grande sobre toda a terra. Ele nos subjugará os povos e as nações debaixo dos nossos pés”
Sl 97.2-5 - "Nuvens e escuridão estão ao redor dele; justiça e juízo são a base do seu trono. Um fogo vai adiante dele, e abrasa os seus inimigos em redor. Os seus relâmpagos iluminam o mundo; a terra viu e tremeu. Os montes derretem como cera na presença do Senhor, na presença do Senhor de toda a terra"
Não devemos nunca temer os ataques dos inimigos quando estamos diante da palavra do Senhor. Ela deve ser buscada sempre, consultada nos momentos em que mais temos dúvidas. Eu trouxe este texto pois é uma situação que pode acontecer com qualquer um de nós, e não devemos nos turbar, mas estar preparados, como já disse. Somos questionados o tempo todo em nossa fé, e há uma ação do mundo em fazer-nos parecer tolos ou ultrapassados, ou revelar que a nossa crença é algo insano ou fruto da ignorância. Jamais nos esqueçamos de que a Escritura não tem apenas aspectos doutrinários, mas ela nos orienta a tudo: desde como viver com as demais pessoas até como deve ser o nosso relacionamento com Deus. Ela nos revelará toda a vontade de Deus para a nossa vida, não somente como uma crença mas como a forma correta e santa de se viver, seja em qual tipo de relação estivermos; e assim glorificaremos a Deus em todas as coisas e aspectos, não somente nos momentos em que estamos na igreja.
Nesse Salmo temos descrito o poder de Deus. O salmista se utiliza de uma linguagem poética para descrever o poder absoluto de Deus. Deus reina absoluto sobre todas as coisas. De forma que nada é impossível para Deus, pois ele tem o poder de fazer qualquer coisa. Mais a frente, entenderemos que o poder de Deus é absoluto, mas limitado em alguns aspectos. Fiquem tranquilo, não estou a proferir nenhuma heresia, nem aderi repentinamente à Teologia do Processo ou Relacional, na qual se prega um "Deus" limitado, frágil e titubeante como o homem é... um "Deus" feito à semelhança humana. Não é isso. 
Prossigamos...

-Então, me responda... Deus pode criar, hipoteticamente, uma pedra que não possa carregar?
- Sim. Claro!
O ateu ficou surpreso pela resposta instantânea do sacerdote. E julgando que tivesse sido apressado, tentou explicar a pergunta:
- Mas, veja: Se Deus pode tudo e pode criar algo que não possa erguer, no fim ele não pode tudo, porque não poderá erguer a pedra.

O inimigo lança então o seu o ardil; e penso que devemos ter cuidado com as respostas instantâneas. Ele proferiu uma "pegadinha" com o objetivo de colocar o padre em contradição ou mesmo ridicularizá-lo, de forma que ele se envergonhe da sua fé. Quando estivermos diante de questões que não conhecemos ou de discussões que não passaram por nossa mente, nem foram alvos dos nossos estudos, o melhor a fazer é calar-se, evitando ser imprudente. Está escrito que até o tolo, em silêncio, parece sábio. Se estamos diante de questões que não refletimos, nem cogitamos refletir [e sempre devemos ter em mente que todas as questões devem ser meditadas à luz da Escritura], a nossa resposta deve ser: não sei! Não há pecado em não se saber algo. Muitas vezes, por causa do nosso orgulho, somos tolos o bastante para cair nas armadilhas que nos são postas, como se fosse uma obrigação ter uma resposta para tudo. É necessário saber que não temos, e jamais teremos. O apelo racionalista é de que eles têm, quando não têm. E o fato de não termos, aos olhos deles, nos tornam inferiores, quando reconhecer a nossa limitação é sábio e não o contrário. 
Pedro diz que devemos estar sempre prontos a mostrar a razão da nossa fé. E qual é ela? Ora, o Senhor Jesus Cristo. E isto podemos mostrar e revelar para qualquer pessoa em qualquer situação. Falar que ele nos resgatou, nos livrou da perdição, nos ligou novamente a Deus, que transformou a nossa mente e nos fez novas criaturas, isto podemos falar o tempo todo para qualquer pessoa. Ao invés de darmos atenção para pegadinhas como a proferida pelo ateu, a qual é absurda e não quer dizer nada. O único objetivo dele é confundir e fazer o padre desacreditar a sua fé; e devemos ser prudentes diante de situações como essas. 
Mas o que pensam do fato de a Bíblia dizer que Deus pode criar até mesmo o impossível, pois para ele, nada é impossível? Deus pode criar absurdos? Ou criar algo que não esteja conforme a sua vontade? Não seria a sua vontade o limitador para que Deus crie qualquer coisa? Há limites para Deus?... Sim!
Deus, por exemplo, não mente:
- Nm 23.19: “Deus não é homem, para que minta; nem filho do homem, para que se arrependa; porventura diria ele, e não o faria? Ou falaria, e não o confirmaria?” 
- 1 Sm 15.29: “E também aquele que é a Força de Israel não mente nem se arrepende; porquanto não é um homem para que se arrependa." 
Deus não pode mudar: 
- Sl 102.27: “Mas tu és o mesmo e os teus anos nunca terão fim” 
- Is 48:12: “Dá-me ouvidos, ó Jacob, e tu, ó Israel, a quem chamei; eu sou o mesmo, eu o primeiro, eu, também, o último” 
- Ml 3:6 “Porque eu, o Senhor, não mudo” 
- Hb 1:12 ”E como um manto os enrolarás, e como um vestido se mudarão, mas tu és o mesmo, e os teus anos não acabarão” 
- Hb 13.8: “Jesus Cristo é o mesmo, ontem, e hoje, e eternamente” 
- Tg 1:17 :“Toda a boa dádiva e todo o dom perfeito vêm do alto, descendo do Pai das luzes, em quem não há mudança nem sombra de variação.” 
Então temos que Deus pode fazer tudo, mas ele fará tudo segundo a sua natureza e vontade, de forma que mesmo sendo o Deus do impossível, e devemos entender que isso se refere ao que ele pode fazer como possibilidade, mas não ao que ele pode fazer indo contra a sua natureza, pois tanto a santidade, como a justiça e a perfeição impedem-no de praticar o mal, por exemplo, ou de pecar.
Outro exemplo está em Mt 3.9, em que João o Batista diz, falando aos fariseus: “E não presumais, de vós mesmos, dizendo: temos por pai a Abraão; porque eu vos digo que, mesmo destas pedras, Deus pode suscitar filhos a Abraão”.
É claro que o objetivo principal do profeta era derrubar a arrogância e soberba dos fariseus, comparando-os com as pedras do rio Jordão, mas há nesse verso a verdade de que Deus realmente pode tudo, mas isso não quer dizer que ele fará tudo, pois o fará segundo a sua natureza santa e perfeita, e segundo a sua vontade igualmente santa e perfeita [Is 46.10: "Que anuncio o fim desde o princípio, e desde a antiguidade as coisas que ainda não sucederam; que digo: o meu conselho será firme, e farei toda a minha vontade”]...

O ateu ficou surpreso pela resposta instantânea do sacerdote. E julgando que tivesse sido apressado, tentou explicar a pergunta:
- Mas, veja: Se Deus pode tudo e pode criar algo que não possa erguer, no fim ele não pode tudo, porque não poderá erguer a pedra.
O padre se ajeitou no banco novamente e, apoiando os braços sobre as pernas, explicou:
- O senhor propõe que Deus faça duas coisas contrárias: criar algo que não possa carregar e, ao mesmo tempo carregá-la. Parece que o senhor ainda não decidiu o que quer que Deus faça... Há um problema na sua pergunta, uma armadilha sofística... Mas, de qualquer modo: Ele pode, sim, fazer ambas as coisas.

Deus não pode tudo? Se ele pode tudo, pode criar qualquer coisa, mas temos de entender que ele fará tudo conforme a sua vontade. Ele não tem de provar nada para nós, muito menos provar-nos o seu poder, pois ele o tem inerente ao seu ser.
Mas a questão é que o ateu propõe uma “pegadinha” e formula algo contraditório: Se Deus pode tudo, pode criar uma pedra incapaz de movê-la; mas se ele não pode movê-la não é onipotente nem todo-poderoso. Ele formulou duas afirmativas que se contradizem, o que é chamado de sofisma, que é um raciocínio falso com a intenção de enganar, ludibriar, de induzir alguém ao erro.
Na verdade, Deus não pode criar uma pedra que não possa carregar, pois ele pode tudo, inclusive carregar algo de massa e peso inimaginável ou mesmo impossível de se carregar por qualquer outro ser, menos ele, que, novamente afirmo, pode tudo, sendo a exceção aquilo que vá contra si mesmo, contra o seu ser perfeito. A característica de um poder absoluto não é fazer tudo o que se pode fazer sem critérios ou juízo. O poder absoluto denota autoridade, e Deus é uma autoridade sábia, perfeita e santa, que não fará sandices, nem agirá ilógica e desproporcionadamente. O poder absoluto de Deus se refere ao fato dele ser o ser supremo sobre tudo e todos, mas também de que ele é absoluto em perfeição e santidade e justiça e sabedoria. Fazer algo insano é impossível para Deus. Fazer algo despropositado, também. Então temos que Deus tem limites sim, circunscritos à sua natureza e vontade, ou seja, aos aspectos intrínsecos do seu ser, pois se assim não fosse, ele iria contra si mesmo...

O ateu franziu a testa, com curiosidade. 
Continuou, então, o padre:
- Deus criou essa pedra. Ela existe... Ou pelo menos existiu:
Quando Jesus ressuscitou Lázaro, está lá nos Evangelhos, Ele ordenou que tirassem a pedra para que Lázaro viesse para fora... Ora, para o senhor, o que é mais fácil? Trazer um morto à vida ou retirar uma pedra?
- Em tese, trazer o morto à vida...

Na próxima aula, continuaremos a meditar sobre este texto.

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Notas: [1] Este e outros trechos são analisados mais detidamente no áudio.
[2] Aula realizada no Tabernáculo Batista Bíblico.
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                 ÁUDIO DA AULA 33: 

04 fevereiro 2024

Nada de Novo no Front - Erich M. Remarque

 



Jorge F. Isah

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Este livro estava em minha lista já havia um bom tempo, na verdade, quase uma década. É interessante como fazemos relações dos itens a ler no ano seguinte e, ao término dele, muitos títulos foram abandonados, substituídos por outros ou simplesmente ignorados. Assim foi com “Nada de novo no front”, de Erich Maria Remarque.

E o que dizer?

O autor nos fisga com uma narrativa ao mesmo tempo cínica, humanista e transparente dos horrores da guerra; sem heróis, sem vilões, sem princípios ou razão, sem nobreza ou virtudes. Se existe algo a aprovar e contemplar seriam as relações interpessoais, a cumplicidade, o auxílio mútuo, as almas engatadas ao intento comum de sobreviver e tornar-se, um dia, página virada na história geral mas também individual... A despeito dos motivos históricos, da soberania das nações, das provocações e tudo o mais a conflagrar as guerras, a estupidez e malignidade do “espetáculo” não é casual ou imprevisto, mas meticulosamente programado. O erro, se assim pode-se dizer, está em nenhum dos lados admitir a derrota, mesmo que seja iminente e também precisamente calculada. Talvez, por isso, Remarque não perca tempo descrevendo a motivação ou incidentes a suscitar a guerra. Qualquer que seja, não existe razão a não ser a natureza diabólica do homem em destruir e ansiar o caos em sua forma mais organizadamente desvairada.

O livro é pacifista. O pano de fundo é a 1ª Grande Guerra. O autor, ele mesmo, em sua juventude, foi para a frente de batalha a defender a loucura dos loucos. E o realismo da narrativa se baseia essencialmente em suas experiências no front, entre explosões, ricocheteios, sangue, ratos, gases, doenças, mortes e tudo o mais a envolver a sanha encarniçada humana.

Um grupo de garotos, na faixa dos 20 anos, se vê na frente de batalha, a empunhar um rifle que, de tão gasto, já não conserva a mira correta e acaba, como o personagem principal relata, por abater os soldados do próprio pelotão. As condições são miseráveis. A Alemanha está às portas de perder a guerra que começou, e os recursos são escassos: comida, medicamentos, armamentos, munições, e sem dispor das técnicas mais modernas de combate. Se vê irremediavelmente suplantado pelos britânicos e americanos; mesmo assim, recusa-se a encarar a previsível derrota e alista mais e mais soldados em idade cada vez mais tenra, lançando-os sem qualquer treinamento prévio nas trincheiras e campos onde são dizimados às centenas e milhares pelos modernos e letais aviões da RAF, por tanques e artilharia sofisticada. Do lado germânico, cavalos e homens se amontoam nas valas e buracos das bombas, quando não são destroçados e espalhados por elas.

O princípio de tudo é o patriotismo, a defesa intransigente da nação, como se a existência individual não pudesse prescindir à estatal. O ser é determinado por onde você nasce ou vive, as cores da bandeira, o brasão nacional, o rei e seu governo (à época do evento), a glória e integridade pátrias. A recusa significa covardia e desonra, enquanto o prestígio está a serviço do país, mesmo se significar a morte e uma condecoração póstuma; e a sobrevivência garante ao “morto” a perpetuação do luto, angústia e desgosto tal qual uma pena capital em vida. Por isto, os mantras cívicos invocam sempre para a repetição de um amor e dedicação unilateral; o culto a fórceps, a subordinação a ferros... E a liberdade propalada é o “mote” para a escravidão.

Quando vejo as pessoas a brigar, segregar e estigmatizar conterrâneos que desconfiam das intenções de governos e políticos, sejam eles quais forem (e não vale citar os casos “raros”, pois esses nunca chegarão ao “verdadeiro poder”), e se debruçam em promessas e discursos nitidamente velhacos e patifes, algo de muito podre está a corroer a consciência e a suposta racionalidade. Por falar em racionalidade, as guerras de maneira geral, e a 1ª Grande Guerra em especial, derrubou o iluminismo e o racionalismo de várias gerações, e, por si só, já seria suficiente para desancar de uma vez as raízes das “luzes”, apontando-a como fraude e embuste. Afinal, se o homem é essencialmente racional, qual a lógica em promover (e, pior, defender cegamente) massacres, torturas e devastação em nome da razão? E fabricar mortos aos borbotões?

Remarque não explica a guerra, muito menos está preocupado em justificá-la, mas levantar a reflexão sobre a própria condição humana e sua capacidade de produzir o mal em níveis e proporções heterogêneas, contudo, incessante. O homem é mal, aponta, e o ódio ao inimigo não está simplesmente no instinto de viver, mas de destruir. A distância favorece a indiferença, mas quando ela se torna próxima, seja dos correligionários ou não, o impacto da vida esvair-se é doloroso e antinatural. Em dado momento, o protagonista, ilhado em uma cratera em meio ao detonar de granadas e bombas e o ribombar das metralhadoras, se depara com a visita de um soldado francês; ele desfere algumas facadas e o inimigo agoniza mortalmente. Enquanto ali, a ouvir o respirar aflito e os gemidos torturantes, o vê como a si mesmo, um homem comum, com mulher, filhos, lar, trabalho, uma vida igual à sua. Tenta ajudá-lo, sem sucesso. Tem remorsos por feri-lo (não consegue, porém, “consumar o seu feito”); jura gastar a sua existência para honrar aquele inimigo, assegura-se de saber o máximo sobre ele: nome, profissão, família, etc, a partir de dados e fotos da carteira. Após sobreviver, e passarem-se alguns dias, sequer se lembra do soldado, e abandona qualquer tentativa de cumprir as promessas feitas no covil. O remorso faz parte da história, esquecida e longínqua, e as lembranças não têm lugar na memória, na alma, na inconsciência do dever cumprido, seja lá o que isso represente.

Remarque escreve de maneira fluída, onde as descrições de eventos, lugares e pessoas é minuciosa, disseca as angústias, medos, desejos e o artificialismo nas trincheiras e descampados, sem deixar de pontuar trechos lúdicos e outros bucólicos. Pode-se encontrar até movimentos poéticos, se o leitor tiver a devida atenção.

O livro é impactante, daqueles difíceis de esquecer. O senão, a meu ver, é o final. Apesar de condizente com a narrativa, eu preferiria dar-lhe um aspecto mais, digamos, indefinido e, quem sabe, otimista. Contudo, em nada diminui ou anula o valor da obra.

Um ponto a se considerar, e me levou a refletir, é quanto a perceptível ausência de elementos metafísicos. Talvez, porque a guerra é dos homens, e a eles apenas deve ser imputada, jamais a Deus. Talvez, porque Remarque considera o homem abandonado por Deus e, como tal, não poderia invocá-lo a seu favor. Talvez, porque a guerra seja o inferno profetizado, seus atores condenados, e nada possa mais ser reparado. O fato é que, enquanto o homem se perder em si mesmo, achará apenas mais de si, e isso, na maioria das vezes, significa a batalha inglória e sem fim.

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Avaliação: (****)

Título: Nada de novo no front

Autor: Erich Maria Remarque

Editora: L&PM

Páginas: 208

Sinopse: “Aos dezoito anos de idade, Erich Maria Remarque (1898-1970) conheceu as trincheiras alemãs da Primeira Guerra Mundial. Foi ferido em três ocasiões. Saiu do conflito profundamente marcado e perplexo com a crueldade da guerra. Durante a década de 20, enfrentava a insônia carregada de fantasmas tomando notas sobre os horrores que viu e viveu no front. Os rascunhos formavam o núcleo de um romance. Publicado em livro no ano de 1929, "Nada de novo no front" firmou uma posição radicalmente pacifista em um mundo que ainda via a guerra como uma alternativa política e determinou o perfil antibelicista que habita a literatura ocidental até hoje.”

Nota: Texto publicado originalmente na Revista Bulunga


29 janeiro 2024

Estudo sobre a Confissão de Fé Batista de 1689 - Aula 32: Ainda sobre a vontade de Deus











Jorge F. Isah





UMA OU DUAS VONTADES?

Muitos afirmam que Deus tem duas vontades. De que ele decretou tudo [a sua vontade decretiva] e de que estabeleceu preceitos, os quais podem ser "resistidos" pelo homem que os desobedece [sua vontade preceptiva]. Em linhas gerais, esse esquema tem por objetivo esclarecer alguns conflitos que a Bíblia nos apresenta entre a vontade soberana e aquela vontade que é "quebrada" pelo homem. Acontece que a vontade divina é inquebrável, irresistível e impossível de não se manifestar. Ninguém resiste a Deus, como o profeta diz: "E todos os moradores da terra são reputados em nada, e segundo a sua vontade ele opera com o exército do céu e os moradores da terra; não há quem possa estorvar a sua mão, e lhe diga: Que fazes?" [Dn 4.35].

Vejamos mais alguns textos: 

"Mas o nosso Deus está nos céus; fez tudo o que lhe agradou" [Sl 115.3];
"Bem sei eu que tudo podes, e que nenhum dos teus propósitos pode ser impedido" [Jó 42.2];
"Que anuncio o fim desde o princípio, e desde a antiguidade as coisas que ainda não sucederam; que digo: O meu conselho será firme, e farei toda a minha vontade" [Is 46.10]; 

"O Senhor dos Exércitos jurou, dizendo: Como pensei, assim sucederá, e como determinei, assim se efetuará... Porque o Senhor dos Exércitos o determinou; quem o invalidará? E a sua mão está estendida; quem pois a fará voltar atrás?" [Is 14.24,27] 

O que vocês acham disso? É possível que a vontade de Deus seja resistida ou anulada por suas criaturas? Ou por forças contingentes? 

O fato é que o conselho de Deus, que também é chamado de vontade, é irresistível, eterno e santo. Não pode ser alterado nem adulterado, pois se fosse possível transtorná-lo, acarretaria na desordem, e sabemos que Deus não é Deus do caos. Pois quando vemos o andar da história, o seu desenrolar diante dos nossos olhos, onde o homem cada vez mais se afasta do Criador, desprezando-o e, por sua tolice, reservando para si mesmo a ira vindoura; mesmo entre todas as confusões que a vida nos revela e das quais o homem é o único culpado, ainda assim tudo está conforme Deus estabeleceu eternamente, como parte do seu projeto perfeito e santo. Onde mesmo a imperfeição e todas as deficiências originárias dela; onde o mal e tudo o que ele traz de mais doloroso e injusto; onde a desobediência levará às punições mais severas e duradouras; ainda assim tudo isso faz parte do plano geral arquitetado por Deus e que tem como objetivo a sua glória e revelar-nos a sua sabedoria, graça, misericórdia e santidade. 

Alguns podem dizer que nada daquilo, se partiu da mente de Deus, faz dele sábio ou bondoso. Mas, pergunto: se Deus não é sábio e bom, de onde viria a sabedoria e a bondade? 

O certo é que: 

1) A vontade de Deus é soberana, e nada pode frustrá-la.
2) Tudo o que Deus pensou e quis fazer, assim será.
3) Nem os anjos nem os homens podem frustrar os planos de Deus.
4) Tudo foi decretado e estabelecido por Deus eternamente, de forma que acontecerão infalivelmente.
5) Mesmo a desobediência dos anjos e homens está dentro do decreto e plano divinos.

Dentro de todos os esquemas teológicos existentes, entendo que em Deus há duas vontades: a revelada, a qual é possível ser conhecida por qualquer homem, como possibilidade, e que nos é apresentada em detalhes pela Escritura Sagrada, e a secreta ou oculta, aquela que somente Deus tem conhecimento e da qual todos nós desconhecemos, ignorando-a completamente. É o que nos diz o profeta: "As coisas encobertas pertencem ao Senhor nosso Deus, porém as reveladas nos pertencem a nós e a nossos filhos para sempre, para que cumpramos todas as palavras desta lei" [Dt 29.29]. 

De forma que não são duas, mas apenas uma vontade, a qual o homem conhece parcialmente, mas Deus a retém integralmente, sem que nada lhe esteja encoberto. Na verdade há uma vontade apenas, de forma que a vontade revelada está subordinada, sujeita à vontade oculta, que é todo o conselho divino. 

O problema é que ficamos conjecturando algumas vezes a partir da Escritura, outras vezes por fontes não confiáveis, qual seria o teor da vontade secreta de Deus. E esse é um esforço inútil e tolo, revelando o nível de imperfeição e limitação humana ao elaborar, e muitas vezes se satisfazer com o esquema proposto, algo que escapa completamente a sua capacidade. Por isso, desde sempre, satanás tem incitado o homem ao ocultismo, a buscar meios sobrenaturais de desvendar qual seja essa vontade. Porém sabemos que esses meios nada mais são do que a própria ação diabólica em iludir e confundir o homem, de sorte que ele se apresente preso ao desconhecido ao invés de se libertar naquilo que Deus deu-lhe a conhecer, no que pode ser conhecido. 

A adivinhação não somente é um engano como uma provocação e afronta a Deus; como se criaturas imperfeitas, pecadoras e tolas pudessem explorar sua mente perfeita e santa. Com isso não estou a dizer que tentar racionalmente dar compreensão a algo insondável e inescrutável seja maligno ou tolice. Nem sempre é, apesar de na maioria das vezes ser. Os esquemas humanos parecem funcionar para nós, mais ou menos como um placebo "cura" o hipocondríaco. Parece que a coisa é real, que estamos indo bem, mas na verdade ela não chegou a existir, verdadeiramente. É tão remotamente impossível como se curar uma doença inexistente [não que o hipocondríaco não seja doente, mas não o tipo de doença que ele considera ter, e a cura que diz buscar].

Da mesma forma, os esquemas humanos podem auxiliar-nos, mas sempre devemos ter em mente que eles estão longe de resolver questões para as quais somos completamente inabilitados. E o que se refere à vontade oculta de Deus é ainda mais impossível, se é que há algo mais que impossível. Por mais exaustivos que sejam os esforços eles não passarão de sombras daquilo que realmente é. Por isso evito processos muito elaborados e complexos para definir algo simples, mas de uma simplicidade inatingível, e que seria melhor reconhecê-la como não definível pela linguagem humana.


UM EXEMPLO PRÁTICO 

Mas, a questão é, agora: Pode a vontade de Deus ser frustrada?

Em Atos 4.26-28 lemos: "Levantaram-se os reis da terra, e os príncipes se ajuntaram à uma, contra o Senhor e contra o seu Ungido. Porque verdadeiramente contra o teu Santo Filho Jesus, que tu ungiste, se ajuntaram, não só Herodes, mas Pôncio Pilatos, com os gentios e os povos de Israel; para fazerem tudo o que a tua mão e o teu conselho tinham anteriormente determinado que se havia de fazer"

Alguém pode aventar que temos aqui apenas uma predição. Que Deus, conhecendo o futuro, viu o que os homens fariam com o seu Filho. Mas sabemos que o texto não diz isso. Ele diz mais, muito mais do que uma simples “visão” divina:

- É certo que Pilatos, Herodes, os judeus e os gentios se juntaram contra Cristo. Interessante que todos eles colaboraram para a morte de Cristo, a qual não se deu por todos eles, no sentido de que Cristo não morreu por todos os homens, mas especificamente pelos eleitos, pela sua igreja, para trazer a Deus um único povo.

- É certo que eles, ao se levantarem contra Jesus, também se levantaram contra Deus. 

- Muito mais do que Deus tendo uma "antevisão" do que iria acontecer, ele decretou e determinou que Cristo fosse preso, humilhado e morto por eles.

- A "mão de Deus" é uma figura de linguagem que se refere ao decreto, à vontade, ao que Deus predeterminou que aconteceria, e não simplesmente "viu" algo que estava além do seu poder e da sua vontade. A mão de Deus nos dá a idéia de que ele conduziu todo o processo de forma que acontecesse, sem qualquer chance de não acontecer. Foi o que nos diz o profeta: “Todavia, ao Senhor agradou moê-lo, fazendo-o enfermar; quando a sua alma se puser por expiação do pecado, verá a sua posteridade, prolongará os seus dias; e o bom prazer do Senhor prosperará na sua mão. Ele verá o fruto do trabalho da sua alma, e ficará satisfeito; com o seu conhecimento o meu servo, o justo, justificará a muitos; porque as iniqüidades deles levará sobre si.” [Is 53.10-11]. Note-se que o evento da crucificação não aconteceu à revelia de Deus, mas em seus mínimos detalhes esteve sob o seu controle. De forma que o Senhor se agradou, e o mesmo Senhor viu o seu trabalho e se satisfez, representando uma obra conjunta da pessoa do Pai e do Filho e do Espírito.

- Temos de entender que a vontade de Deus ou é soberana, e por soberana eu digo um poder absoluto, sem restrições ou neutralizações, aquele revestido de autoridade suprema, potente; ou não é, e então o homem, caso possa subjugar a vontade divina, é quem detém o real poder. Mas sabemos que o homem é nada diante de Deus, e apenas cumpre os seus propósitos. 

- Certo é que eles planejaram, intentaram e executaram o plano de matar o Filho de Deus, e assim fizeram, e por isso foram culpados, e serão condenados. Eles não deveriam tê-lo feito, mas não havia como não fazerem. Entendam que a responsabilidade não está no fato do homem poder resistir, quando a sua natureza pecaminosa insiste em que ele não resista, pois não pode, mas no fato dele deliberadamente assumir o erro e praticar o crime. O crime é que o torna em criminoso. Se ele podia ou não resistir é outra história. Ninguém é condenado pela hipótese da resistência, se queria ou não, se era ou não capaz, mas por agir em oposição à lei. E ao fazê-lo, ele infringe-a, tornando-se culpado.

- De certa forma todos são culpados pela morte de Cristo, no sentido de que, qualquer um de nós que estivesse no lugar de Pilatos, Herodes e dos judeus e gentios gritaríamos também "crucifica-o!". Acontece que eles não se tornaram culpados e réus de morte a partir da crucificação do Senhor, mas como está escrito, eles, desde sempre eram culpados, pois "quem não crê já está condenado, porquanto não crê no nome do unigênito Filho de Deus" [Jo 3.18].

Em tudo isso o importante é saber que Deus é também Senhor da nossa vontade, ainda que não saibamos como isso se dá; certos porém de que, por mais que queiramos, ninguém é independente ou autônomo de Deus.
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Notas: 1- Aconselho, aos que ainda não o fizeram, a ler o texto "Deus não tem escolhas". Alguns pontos descritos aqui podem ficar mais claros. 
2- Aula realizada no "Tabernáculo Batista Bíblico" .

ÁUDIO DA AULA 32:

21 janeiro 2024

Revelação: O Deus irredutível - Parte 1























Por Jorge F. Isah



Se há algo que tem me marcado ultimamente, e o qual tenho sido ensinado através das Escrituras, é Deus revelar-se em poder, glória e majestade na sua Criação; de que a revelação natural manifesta ao mundo todo o esplendor, infinitude, domínio, e intensidade do eterno poder divino [Rm 1.20], ao ponto do mais ignorante dos homens, e até mesmo os ainda mais ignorantes que ele [os ateus], não estarem livres de formular conceitos e ideias sobre Deus, numa disposição, o “sensus divinitatis” [1], de que existe o Criador. Ela perpassa todos os homens, crentes ou não; e o próprio fato do cético afirmar a sua descrença é a declaração de que, mesmo opondo-se a Deus, ele não pode se ver livre dele. Ao negá-lo, apenas revela a consciência, mesmo deturpada, caída, corrompida, de que ele possui a consciência de Deus.

Na verdade, o ateu, ao se debater e se bater para provar a não existência do Criador, dá o testemunho secreto da alma de que ele existe. A prova está em como essa rejeição toma-o de assalto, de tal forma que ela preenche a sua vida tornando-o indissociável da ideia de Deus, ainda que negativamente. O objetivo passará a ser opor-se-lhe, com o empenho, dedicação e esmero digno de um adorador, porém um adorador disposto a destruir o objeto de adoração. Pois, em sua ignorância, ao negá-lo, nega-se a si mesmo. Da mesma forma que ele não pode se cortar sem sentir dor, é impossível a vida sem Deus. Se a morte precisa da vida para existir; se o bem não houvesse, não existiria o mal; se o feio carece do belo para ser; a vida também depende de Deus para subsistir. Não uma antítese, como nos casos citados anteriormente, mas sem ele nada haveria ou poderia simplesmente existir ou ser feito [Jo 1.3].

Ninguém nasce ateu; o ateísmo é o ápice da rebeldia contra a autoridade divina, e acontece numa fase temporária, como se o homem estivesse em coma e perdesse a sua consciência. O ateu é um inconsciente, a autoministrar-se doses regulares de pecaminosidade, ao ponto de se considerar autônomo, sendo a sua independência irreal sustentada pelos anestésicos que o mantém em estado de torpor, e assim é-lhe incapaz ter a noção exata do que se passa em torno dele ou com ele. Julgando-se habilitado a desafiar a Deus, convencido de estar procedendo em coerência com a sua percepção geral, ele estaria na mesma condição de, por exemplo, alguém afirmar estar em terreno seco quando a água está-lhe a cobrir a cabeça. Quem nega a revelação natural e, por conseguinte, Deus, incorre em autoengano, quando a sublevação instala-se violentamente ao ponto de se auto-afirmar ser necessário repudiá-lo, renunciar à sua vontade, não admitir a sua existência a qualquer custo, e, então, ainda que seja pela vontade, uma vontade delineada pela injustiça, chegar ao estágio em que todo homem almeja, no íntimo, alcançar: autoproclamar-se deus. Com isso, o que consegue é apenas iludir-se com a idéia de que assentou definitivamente no trono quando nem mesmo ainda entrou nos limites do castelo: mudar a verdade em mentira [Rm 1.25].

Há o negar-se Deus para reafirmar o homem. Há o negar-se o conhecimento para se desconhecer. Há o negar-se a culpa para se viver impiamente. Há a não glorificação de Deus para se autogloriar na escuridão do coração insensato. Há o desprezo à sabedoria para o louvor da loucura... E, assim, diz “o néscio em seu coração: não há Deus” [Sl 14.1]. Somente o tolo pode não se aperceber disso, mas o simples fato de imbuir-se de uma cruzada contra o Criador, exclui qualquer possibilidade de não-consciência da realidade de que ele existe; apenas não quer aceitá-la; na recusa de confessar-se a imagem dele, ainda que esteja distorcida pela Queda e o pecado. Seria o mesmo que alguém visitasse uma “sala de espelhos”, onde as imagens de si mesmo são disformes, e dissesse: “como é possível eu me reconhecer nelas se não se parecem comigo? Se não se parecem comigo, não sou eu; e se não sou eu, como posso me reconhecer?”.

A lógica, ou a falta dela, é mais ou menos o que o homem pode apreender de si mesmo a partir de uma imagem deformada de si. E teimar em negar Deus a partir da imagem deformada que construiu, ou da sua destruição interior, e insistir em perguntar: como posso reconhecê-lo? Porém o Senhor nos deu não somente indícios, mas evidenciou todo o seu poder e glória através da Criação; que se pode considerar como o som produzido por ele para o deleite dos nossos ouvidos. Ocorre que há os surdos, os impossibilitados de ouvir [2], e pelo fato de não ouvirem, alardeiam aos quatro cantos que não existe som, de que ele é uma ficção ou apenas uma muleta para provar-se que a língua, cordas-vocais, palato e os lábios têm um significado e não são inúteis, assim como os ouvidos também têm de ter um propósito que justifique-lhes a vida. É o mesmo que se dispor a crer no poder do acaso e da aletoriedade, supondo   que compreendem a realidade ou até a criaram, como se a "roleta-russa" [3] fosse capaz de projetar a arma, o projétil, o crânio e o sangue a jorrar-lhe, ou o simples estalido seco da câmara vazia do revólver. 

Qualquer pessoa, em qualquer lugar do mundo, pode se aperceber da verdade de que Deus é o Senhor do universo, porque "no princípio criou Deus os céus e a terra" [Gn 1.1]. Por onde andamos, para onde olhamos, no que tocamos, está evidenciado que o mundo é o lugar onde Deus diz muito de si, a gritar a sua sabedoria e poder; a ordenar aos homens que o adorem; porque “os céus declaram a glória de Deus e o firmamento anuncia a obra das suas mãos... não há linguagem nem fala onde não se ouça a sua voz. A sua linha se estende por toda a terra, e as suas palavras até o fim do mundo. Neles pôs uma tenda para o sol” [Sl 19.1,3-4].

Mesmo se uma pessoa tivesse nascido em uma ilha deserta, sem qualquer contato humano, inclusive com os pais, somente pela obra das mãos divinas seria possível a esse homem vê-lo, pois além de serem feitas por ele, elas o revelam. Com isso, não estou a dizer que a revelação natural é suficiente para o homem conhecer a verdade, ainda que não houvesse o pecado e a Queda [4], mas seria suficiente para reconhecer o seu poder e glória, honrando-o como o Criador e Senhor de todas as coisas que vieram à existência por sua vontade.

Vale ressaltar que a revelação natural não pode salvar, nem trazer ao homem um relacionamento com Deus. Ela é suficiente para condenar o homem, para revelar que Deus existe, e de que é o Criador e legislador do universo. Ao se rebelar, o homem rejeita todas as evidências que ela lhe apresenta: a origem divina do Cosmos e das leis que o ordenam; a origem divina da lei moral, cuja consciência é-lhe inerente e na qual não quer se submeter. Por isso, Paulo diz que o homem é inescusável diante de Deus, por não querer entendê-las nem vê-las.

Portanto, Deus se revela na Criação, mas essa revelação não é capaz de levar o homem a vê-lo além do seu poder; pois outros atributos como o amor, bondade, misericórdia e graça somente podem ser conhecidos através da revelação especial. Assim, posso concluir esta parte com a seguinte afirmação: Deus revela através da natureza o seu poderio, mas o seu amor somente pode ser conhecido pela Palavra. E essa palavra é Cristo!

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Notas: [1] “Sensus Divinitatis”[encontrei também a grafia “divinitatis sensus”] é o conhecimento inato ou a disposição ao conhecimento de Deus inerente à mente humana, dada pelo próprio Deus. Paulo define-o assim: “Porquanto o que de Deus se pode conhecer neles se manifesta, porque Deus lho manifestou” [Rm 1.19].
[2] Analogia a Jo 12.40.
[3] É um jogo de azar onde os participantes colocam uma bala - tipicamente apenas uma - em uma das câmaras de um revólver. O tambor do revólver é girado e fechado, de modo que a localização da bala é desconhecida. Os participantes apontam a arma para suas cabeças e atiram, correndo o risco da provável morte caso a bala esteja na câmara engatilhada. 
[4] Não acredito que fosse possível ao homem [mesmo Adão, antes da Queda], o conhecimento perfeito do Criador; porque encontramos na sua Criação uma parte dos seus atributos, ainda que se possa dizer que o amor e a bondade estão manifestos nela. Deus somente pode ser conhecido através da revelação especial, e mais detidamente através do Redentor, Jesus Cristo. Como esse ponto será abordado em outro texto, deixo apenas a minha convicção de que o pecado e Queda foram decretados por Deus para que o seu povo pudesse conhecê-lo verdadeiramente. 
[5] Esta série que, se Deus quiser, publicarei, deve muito ao meu pastor Luiz Carlos Tibúrcio, o qual tem  pregado sequencialmente o livro de Salmos; porém sem qualquer participação nos eventuais erros que eu venha a incorrer. 

13 janeiro 2024

A roda quadrada ou algo parecido e inútil

 






Jorge F. Isah



    Antoine Lavoisier, o pai da Química, depois de estudar as reações e estabelecer a “Lei da Conservação da Matéria”, disse: “Na natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma”. Antes de partir para o texto em si, quero deixar outra máxima de sabedoria, desta vez, do profeta Isaías: “Ai dos que ao mal chamam bem e ao bem mal; dos que dizem que as trevas são luz e a luz trevas; dos que fazem do amargo doce e do doce amargo! Ai dos que se fazem passar por sábios e astutos aos seus próprios olhos!” (Isaías 5:20-21).

    Talvez, você se pergunte: que raios está a dizer este escrevinhador?

    Ainda que o químico afirme haver uma constante transformação nas estruturas químicas do universo, ele assegura não ser possível criar nada que não tenha sido criado. Partindo para o homem, não da composição química mas moral, existe uma constante e insistente tentativa de se corromper valores, virtudes e qualidades ao nível das bizarrices, vícios e pecados. As pessoas se acham no direito de perverter coisas básicas e elementares como o sentido da vida, humanidade, o certo e o bem. Por meio de discursos e esquemas irracionais, ilógicos e delirantes, o bem se torna em mal, e o mal em bem, a depender dos interesses, motivação e objetivos dos proponentes. Outra máxima, de os fins justificarem os meios, se encaixaria neste escopo, também.

    Mas, por que essa miscelânea de citações?

    Recentemente, uma ginecologista foi processada por um homem, quando se recusou a atendê-lo em uma consulta. Ora, bolas! O que ela esperava? Não seria mais conveniente mandá-lo arreganhar as pernas cabeludas, introduzir o espéculo (onde?? onde???), e depois agendar uma mamografia? Por que ainda temos de conviver com médicos preconceituosos, racistas e transfóbicos, que não sabem avaliar as necessidades e urgências de pessoas com vontades inclusivistas, sensíveis e umbráticas? Afinal, que culpa têm se a medicina está cega aos anseios e apelos ébrios de psiques túrbidas e enleadas? E taca-lhe um processo, e as coisas se resolverão com indenizações, retratações e mudanças nos protocolos estabelecidos por séculos e séculos de estudos meticulosos, a fim de satisfazer os cacoetes e extravagâncias de uns e outros, por meio de canetadas dos espeloteados legisladores e juristas.

    Caso semelhante aconteceu quando uma jovem fez exames de rotina, e descobriu que colesterol, triglicerídeos, glicose, plaquetas, gama GT, ácido úrico, entre outros, estavam nas alturas. O médico, ao ler os resultados, prescreveu uma série de medicamentos e indicou à paciente um nutricionista:

    - Por quê? – Disse indignada.

    - Você está obesa. Muito acima do peso. E gordura em excesso é a causa de exames tão ruins. – Não minimizou o especialista.

    - O que você tem contra gordos?

    - Nada.

   - Para mim você não passa de um fascista, racista, retrógrado e gordofóbico!

    - Não... – Tentou amenizar o médico, sem sucesso.

    A paciente pegou o celular, chamou a polícia e, enquanto esperava para lavrar um boletim de ocorrência, entre xingos, gritos e acusações, olhou para a careca do doutor e disse:

    - Pelo menos, sou gorda. Mas e você? Já que feiura não tem conserto?

    É por essas e outras que o meu filho quis fazer medicina e eu demovi-lhe da ideia, ameaçando deserdá-lo. Hoje, ele tem um estúdio de tatoos, ganha rios de dinheiro, e quanto mais gordos quiserem emporcalhar seus corpos, mais feliz ele ficará. Sem a necessidade de alertar os riscos à saúde e ganhar um processo nas fuças.

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Nota: 1) Texto publicado originalmente na Revista Bulunga, Número 24