04 fevereiro 2023

Desilução e Morte em "Neve de Primavera", de Yukio Mishima

 



Jorge F. Isah



Neve de Primavera é um livro belo, melancólico, intimista e apaixonante. Terminei a leitura há mais de um mês e somente agora me dispus a escrever algo sobre ele. Primeiro, ressalto o estilo refinado, elegante (diria clássico) na escrita de Mishima. Segundo, como outros autores japoneses contemporâneos, está em luta constante entre o Japão tradicional, anterior às Guerras Mundiais, e o país moderno e ocidentalizado após a derrocada no último conflito. Terceiro, a desilusão com a vida (muito distante do pedantismo e niilismo modernos, diga-se), a precariedade das relações onde as influências exteriores decretam o destino da vida à revelia dos desejos e vontades pessoais; em outras palavras, não existe autonomismo, e por mais que no Ocidente o discurso de independência seja propalado e difundido, não é real e está muito além da capacidade individual de se garantir o futuro almejado ou a felicidade... Esta consiste de momentos fortuitos, quase arrancados a fórceps, entretanto cingidos pelos temores, perigos, vicissitudes íntimas ou públicas, a proclamar a todo tempo: alegre-se, enquanto é tempo! Quarto, a morte não alivia o sofrimento, mas se torna em passagem para o mundo metafísico (transmigração da alma ou reencarnação é um dos pilares do antigo espírito japonês) onde a carne, ao menos, é libertada.

Posto isso, escrever sobre o livro não é tarefa fácil, sem deixar algum spoiler. Esforçar-me-ei ao máximo para não fazê-lo... A história gira em torno da amizade de Kiyo e Satoko, criados juntos desde a infância e pertencentes às famílias de nobres nipônicos: Matsugae e Ayakura; aquela próspera financeiramente e em ascensão na aristocracia, enquanto a segunda desfrutava dos favores imperiais, mas estava em franca decadência.

Satoko é apaixonada por Kiyo que, apesar de reconhecer a sua beleza incomum e notável, não acolhe as suas investidas. Por terem-se criados juntos, talvez a veja como uma prima, uma jovem mimada e sempre disposta a colocá-lo em embaraços. E isso agrava-se pela têmpera introspectiva, quase sombria, de Kiyoaki. De poucos amigos, conecta-se apenas com Honda, colega de escola, estudioso, inteligente e compassivo, que praticamente “mendiga” o afeto de Kiyo, que, entretanto, não retribui similarmente, nem reconhece os esforços daquele, e mantem-se envolto em suas inquietações cotidianas; e, ainda, dois príncipes recém-chegados de Sião, a complementar seus estudos (na mesma escola de Kiyo e Honda), com os quais comunica-se apenas em inglês, já que não dominam fluentemente o japonês.

Os elementos de uma tragédia clássica estão instalados, entre os sentimentos e a razão, entre sonhos e realidade, o impossível e o tangível, o sal e o doce, culminam em frustrações e dores pelas próprias escolhas ou por deixar-se arrastar na avalanche de desejos incontroláveis. E, neste aspecto, o menosprezo e o orgulho aliados à intransigência e pirraça acabam por “desencavar” o amor imersivo e torná-lo em obsessão, no desejo intenso, na excitação incomum, a perigar as próprias vidas, as famílias e até mesmo a estabilidade e a honra imperiais... Se por um lado Kiyo encontrava-se recluso em seu mundo, preocupado em não se expor ou fazer-se notado (a intimidade, partilha apenas com o tutor; ainda assim em raros momentos), num estado de letargia e desinteresse, o aflorar do amor torna-o impulsivo, descomedido, uma ameaça para si e todos ao seu redor. Nem a compaixão de Honda subsiste incólume, benéfica, ao satisfazer o pedido do amigo, a causar-lhe remorso e compunção pela falta de juízo, de avaliar corretamente a gravidade e consequências do seu ato solidário mas fatal.

Os conflitos e interesses estão todos lá, explícitos ou subentendidos, alçados pelo lirismo ou sensibilidade, pelo ímpeto ou hesitação, a simplificação e complexidade, ânimo e desespero, ou quantos mais substantivos se escreva, e ainda assim rasparão sutilmente a superfície da complexa e entrelaçada teia onde a humanidade é esmiuçada em seu exotismo e capricho.

Não é um livro pesado, a se carregar um fardo, muito menos enigmático, pois Mishima diz o que tem a dizer, e o diz tão harmônico e requintado que não se torna penoso ou suportável mas irresistível...

Yukio foi chamado de o “Thomas Mann nipônico”... Não sou crítico literário, apenas leitor compulsivo e cauteloso com o passar do tempo, mas havendo peculiaridades entre eles, não o consideraria semelhante ao grande autor alemão. Ele é Yukio Mishima, ou melhor, Kimitake Hiraoka, seu verdadeiro nome, e para mim isso basta! Compará-lo, seja com quem for, é tirar um pouco do seu gênio e qualidade, ainda que eu saiba ser impossível, a qualquer escritor, não se apoiar nos ombros de autores do passado (Mann e Mishima foram, pode-se dizer, contemporâneos), reservando a cada um suas próprias idiossincrasias.

O Japão mudaria, se modernizaria, se ocidentalizaria, para o desgosto e aborrecimento do jovem tradicional, ao vê-lo fugir das próprias raízes e entregar-se ao materialismo hespérico. O livro versa também sobre isto, a sutil invasão de elementos alheios e desfigurantes da índole e caráter nipães.

E talvez, apenas talvez, a morte não seja a verdadeira derrota.


Nota: Texto publicado originalmente na Revista Bulunga No. 13
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Avaliação: (****) 

Título: Neve de Primavera 

Autor: Yukio Mishima 

Páginas: 374


Sinopse: "Tóquio, 1912. O mundo hermético da antiga aristocracia da era Meiji está sendo invadido por ricas famílias das províncias sem o peso da tradição e com costumes e aspirações que imitam o modelo europeu da Belle Époque. Dessa elite emergente faz parte o ambicioso marquês de Matsugae, cujo filho Kiyoaki é enviado para a elegante família do conde Ayakura, membro da nobreza em declínio, para ser preparado a assumir seu lugar na corte quando atingir a maioridade."




25 janeiro 2023

Objetivo Final















Por Jorge Fernandes Isah

     Em recente conversa, foi-me perguntado qual o objetivo de Deus para o crente. E, concluiu: seria a salvação? Pensei alguns segundos, e respondi quase de estalo: Não!
      Mas, então, qual o propósito de Deus para as nossas vidas?
Sei que o fim de tudo é a sua glória. Ele não quer nada menos que isso, que o seu nome seja louvado por toda a criação, e em especial, pelo seu povo. Esse é o objetivo final de Deus para a sua obra, que ela o exalte, revelando-o como Senhor e Criador bendito e glorioso. Acontece que essa é a resposta para outra pergunta, não aquela.
    Na verdade, pode-se dar vários significados à pergunta, e abordá-la em múltiplas formas, e em diversos contextos. Desde a importância do cristão na igreja, como parte do corpo e sua contribuição para a obra dos santos, como a sua ação individual na família, no trabalho, na escola, na comunidade. Há aspectos e áreas em que o crente atuará: nas artes, na cultura, na política, filosofia e, sobretudo, na religião. Mas nada disso se configura o objetivo divino, antes são os meios pelos quais o Senhor nos usará para realizar a sua obra, e responder à pergunta não formulada e já respondida, sobre o fim de tudo.
    Igualmente, a redenção, salvação, santificação não são os objetivos finais para o crente. Repito: Deus usará toda a sua obra para que o fim seja alcançado: a sua glória. Da mesma forma serão usados meios para que sejamos, ao final, exatamente o que ele quer que nos tornemos. Por isso, farei um resumo da Criação e Redenção, em alguns pontos específicos apenas, sem pensar em ser exaustivo.
   Deus criou o homem à sua imagem e semelhança [Gn 1.26]. Adão era para ser o “top” da Criação, a criatura perfeita, aquela que revelaria o esplendor da glória divina. Contudo Adão foi incapaz de preservar-se a si mesmo, e caiu no Éden [Gn 3.2-8]; e com ele, toda a humanidade caiu; com ele, morremos espiritual e fisicamente, de tal forma que tivemos os olhos abertos para o pecado [v.7] e fechados para Deus. É interessante como a Bíblia revela que os olhos de Adão e Eva foram abertos, e a conseqüência foi reconhecerem-se nus, necessitando guardarem-na em vestes cozidas de folhas de figueira. Ao mesmo tempo em que seus olhos estavam fechados para a comunhão com o Senhor, o que os fez esconderem-se de diante da sua face, entre as árvores do jardim [v.8].  Dali em diante, a constatação é a de que o homem se degradou progressiva e rapidamente, ao ponto da sua maldade se multiplicar sobre a terra “e que toda a imaginação dos pensamentos de seu coração era só má continuamente” [Gn 6.5]. É o que Paulo diz, também: “Porquanto, tendo conhecido a Deus, não o glorificaram como Deus, nem lhe deram graças, antes em seus discursos se desvanceram, e o seu coração insensato se obscureceu” [Rm 1.21]. O restante da história, não é preciso descrever.
                Uma pausa.
   Tudo no universo tem por objetivo revelar a Deus. O homem foi criado para isso. A Lei entregue a Moisés, também. Mas somente Cristo, o Filho Amado, foi quem o revelou [Jo 1.18]. Muito antes dos céus e terra surgirem, estava determinado que o Verbo encarnaria, far-se-ia homem como nós, para que Deus nos fosse revelado. Muito antes de Adão cair, estava certo que Cristo viria ao mundo. Pois, somente assim, seria possível conhecer o Pai na plenitude do Filho, “o qual, sendo o resplendor da sua glória, e a expressa imagem da sua pessoa” [Hb 1.3] mostrou-nos a si mesmo, Deus.
Como homem perfeito, santo e imaculado, diferente do Adão terreno, Cristo, o Senhor, o Adão celestial [1Co 15.46], encarregou-se de resgatar e formar, pelo seu sacrifício, poder e vontade, filhos verdadeiros do Deus vivo, como está escrito: “mas recebestes o Espírito de adoção de filhos, pelo qual clamamos: Aba, Pai.... E, se nós somos filhos, somos logo herdeiros também, herdeiros de Deus, e co-herdeiros de Cristo: se é certo que com ele padecemos, para que também com ele sejamos glorificados” [Rm 8.15, 17].
               Novo parênteses.
  Quando Paulo diz que com Cristo padecemos para que sejamos glorificados, descreve-nos exatamente o que aconteceu ao Senhor. Era necessário que o seu sangue fosse derramado para que houvesse paz, e “por meio dele reconciliasse consigo mesmo todas as coisas, tanto as que estão na terra, como as que estão nos céus” [Cl 1.20]. Primeiro, humilhando-se e sujeitando-se à vontade do Pai, o santo fazendo-se pecador; aquele que não pecou levou sobre si os pecados de muitos, para congregar em si “todas as coisas, na dispensação da plenitude dos tempos, tanto as que estão nos céus como as que estão na terra” [Ef 1.10]. Com isso, Paulo não está a afirmar que todas as coisas serão reconciliadas com Cristo, nem todos os homens, nem todos os anjos. Não há perdão para satanás e seus demônios, nem para os ímpios, os quais não serão restaurados e nem participarão do reino celestial. Há, porém, a necessidade de uma redenção cósmica, onde todo o universo entrou em colapso e desordem por causa da desobediência no Éden, e será restaurado a seu tempo, visto a criação gemer com dores de parto, e estar sujeita à vaidade de quem a sujeitou, o homem; esperando a libertação da servidão da corrupção para a liberdade da glória dos filhos de Deus [Gn 3.17, Rm 8.19-22].
    No grego, a palavra congregar é anakephalaiomai que tem o significado de ajuntar tudo sobre um mesmo princípio unificador, ou seja, reunir os eleitos, homens e anjos, debaixo da mesma cabeça, Cristo. Ele é quem nos une, e nos manterá unidos sobre a sua graça eternamente. O apóstolo não está a falar de uma redenção universal, no sentido de que todos serão expiados e salvos, mas de uma redenção particular, somente para aqueles que o Pai entregou ao Filho para que por ele o seu nome fosse manifestado aos eleitos [Jo 17.6].
  Segundo, humilhando-se a si mesmo até a morte, Deus o exaltou soberanamente, “para que ao nome de Jesus se dobre todo o joelho dos que estão nos céus, e na terra, e debaixo da terra. E toda a língua confesse que Jesus Cristo é o Senhor, para glória de Deus Pai” [Fp 2.10-11]. Todos, sem exceção, santos e ímpios, anjos e demônios, se prostarão diante dele, e proclamarão que reina sobre tudo e todos, eternamente. E assim como Cristo, devemos padecer até a morte [no espírito carnal e físico], para sermos, com ele, glorificados na vida [temporal e eterna].
              De volta à pergunta original.
   Podemos afirmar que a eleição, o chamado, a regeneração e salvação, e a santificação não são os objetivos finais de Deus, mas partes do processo que culminará no objetivo final: que todos os seus filhos se tornarão como Jesus Cristo; “porque os que dantes conheceu também os predestinou para serem conformes à imagem de seu Filho, a fim de que ele seja o primogênito entre muitos irmãos” [Rm 8.29]. Essa foi a resposta que dei naquela ocasião; Deus nos quer e sempre nos quis como a seu Filho Amado, de forma que tudo, desde o seu início, muito antes de fazer os céus e terra, tinha por certo isso: fazer um povo que em tudo fosse semelhante a Cristo, e pudesse reconhecer-se nele, como imagem agora perfeita, santa e imaculada, assim como ele é; assim como desfruta do amor do Pai, também o desfrutamos. Somos participantes em tudo que o Senhor também participa, a fim de que ele seja tudo em todos. Nem menos, porque a perfeição e santidade somente podem ser na medida exata de Cristo; nem mais, porque é impossível qualquer variação naquele que é, e se faz conhecido como o "Eu sou". 
           E o que ele é, jamais pode não ser.

09 janeiro 2023

Doutor Fausto, de Thomas Mann: tomando o lugar do diabo

 





Jorge F. Isah


Os livros de Thomas Mann não são fáceis de ler, muito menos explicar. Estão carregados de símbolos, analogias, referências históricas, literárias, filosóficas e religiosas que fazem a cabeça de qualquer um andar em círculos, feito barata tonta ou como o camundongo na roda, sem sair do lugar. Por isso, não é uma leitura a se fazer célere, mas requer tempo, ainda mais a necessidade de meditar em seu conteúdo parcimoniosa e diligentemente. Mann é meticuloso, detalhista e parece fazer uma pesquisa rigorosa dos temas e assuntos abordados em suas obras de forma a não apenas conhecer o assunto mas conhecer o suficiente para expô-lo como um mestre. Ele não se permite vacilos ou linhas supérfluas, pois tudo tem um propósito, cada personagem, lugar, ideia e ato. Óbvio ser um autor culto, no sentido mais reverente e erudito do termo, por isso não é igualmente fácil, e até aprazível, a leitura dos seus romances, novelas, contos e ensaios. É como alguém escavar uma grande rocha utilizando-se apenas de talheres: é preciso tempo, empenho e obstinação. Conheço algumas pessoas que desanimaram antes de uma dezena de páginas, alcunhando-o de pedante. Nada é mais injusto ou desproporcional do que isso. Eu mesmo vivo a indicá-lo a amigos e conhecidos, e depois de algum tempo, quando os interrogo, sempre me deparo com as justificativas: não tive tempo ou não gostei, é por demais grandiloquente. De minha parte, apesar de todas as dificuldades, impostas mais por minha própria defasagem do que alguma eventual falha intelectual-literária dele, insisto, e me deparo, não raramente, deslumbrado e arrebatado durante a leitura.

Fiz esta introdução para alertar o leitor de que as minhas impressões a seguir não são exaustivas ou dão a dimensão do universo “manniano”; são apreensões e impressões muitas vezes insatisfatórias e limitadas, na tentativa de arrastar um e outro para esse mundo complexo (não há aqui qualquer sugestão de hermetismo; fique claro!), entretanto fascinante e irresistível.

Quase todo mundo já se deparou, ao menos uma vez na vida, com a história de Fausto, o sábio humanista que vendeu a sua alma ao diabo (Mefistófeles) em troca da satisfação dos seus desejos. Mann utiliza-se da tragédia escrita por Goethe para fazer uma alegoria entre o personagem principal, Adrian Leverkühn, e a Alemanha, mais especificamente a Alemanha Nazista. Ao contrário de Goethe, o “Dr. Fausto” de Mann é implacavelmente derrotado; se em Goethe o “Fausto” alcançava a redenção, em Mann ele é punido severamente.

Mas antes de entrar nesse aspecto, há de se ressaltar o volume assombroso de informações contidas na narrativa sobre teologia, filosofia e, especialmente, música. Thomas teve o auxílio de Theodor Adorno (filósofo, musicólogo e compositor alemão pertencente à Escola de Frankfurt), que se tornou seu conselheiro, entre outros músicos e amigos, a elaborar os inúmeros detalhes e diálogos sobre composição musical. Chega a ser asfixiante o número de informações apresentadas, que para leigos e nada iniciados na arte criativa de ritmos e harmonias de sons como eu (em um trecho encontra-se pormenores a respeito do “dodecafonismo” criado por Leverkühn; entretanto, na vida real era originalmente de Schoenberg, e levou o autor a se retratar em edições posteriores, a reconhecer a técnica como criação desse), se apresenta instigante mas ao mesmo tempo intimidadora. Mann é sempre assim, ele não deixa nada apenas na superfície; escava várias e várias camadas até atingir as profundezas da alma humana, o conhecimento e a realidade como poucos autores são capazes de alcançar.

A história versa sobre a vida e obra de Adrian Leverkühn contada pelo amigo e admirador Serenus Zeitblom. Ambos vão estudar na universidade de Wittenberg (alusão a Lutero e o protestantismo), e Adrian pretende se formar em teologia. Entretanto, ao ouvir uma palestra de um musicólogo, Kretzschmar, que não acredita na subordinação da música e cultura à religião (esteticismo), se interessa por polifonia e harmonia, e segue para Leipzig a fim de estudar com o seu novo mestre. Com o passar do tempo, ele abandona a polifonia e os princípios tradicionais da composição clássica e se aproxima dos elementos atonais e sua caótica “organização”; era a história e os valores tradicionais sendo escamoteados em favor de uma nova ordem liberal e moderna, e levou ao colapso a maior parte do mundo. Assim, quando o narrador, ao vê-lo abandonar a teologia em favor da música, e as mudanças radicais de composição, começou a temer pelo futuro do amigo, em vista da sua abrupta mudança de objetivo: o afastar de Deus e achegar-se perigosamente ao mal. Com o passar do tempo e o envolvimento com estranhas companhias, se deparou com uma personalidade demoníaca, ao isolar-se, a demonstrar uma “frieza” até mesmo com a música, algo meramente racional e pragmático, apesar da sua genialidade.

Lá pelo fim do segundo terço, ocorre o pacto entre Leverkühn e Mefistófeles (um diálogo magistralmente composto por Mann), e este concorda em dar àquele a genialidade criativa, a fama e o reconhecido talento musical. Em contrapartida, existe um senão: Adrian está impossibilitado de amar e, consequentemente, ser feliz, além de sofrer com fortes enxaquecas e dores abdominais advindas da sífilis contraída com a amante, Esmeralda. Pouco a pouco a sua personalidade se tornará cada vez mais sombria, orgulhosa, desumana, ao ponto de o devotado Serenus (a antítese do temperamento irrequieto de Adrian) introverter-se, sintoma do agastamento pelas mudanças negativas. A degradação física, moral e espiritual de Adrian tem a Alemanha como pano de fundo. A sífilis tal qual uma ideologia totalitária a desprezar os valores morais e éticos do cristianismo em prol do niilismo e do esteticismo nacionalista (uma fusão destrutiva com o fim de se sobrepor e aniquilar qualquer forma de influência moral e cultural tradicionais), levará Adrian e a Alemanha ao mesmo fim, vitimados pela própria arrogância e autonomismo, levados à loucura e delírio máximo pelo narcisismo. Adrian se confunde com a história alemã do entreguerras, e perde a noção da ruína na qual se formou. E por causa do pacto diabólico, mesmo o pouco amor e empatia que lhe restava, transformou-se em tragédia na qual se arrasta a si e a outros pela vida.

Quanto a Serenus, a sua passividade em relação à autodestruição do amigo e consequente destruição de quem está próximo (o Midas ao contrário, onde o toque do mal produz apenas mal), inspira a reflexão em relação aos negligentes diante da possibilidade de resistência, à qual rejeitaram, deixando-se entregar à enxurrada de desgraças, conformados em deslizar a favor da correnteza. Ele mantém o relacionamento com Adrian numa espécie de cumplicidade, o fazer vistas grossas, ao receber alguma dignidade pelo tratamento familiar e exclusivo dispensado por Adrian, e o orgulho de participar do seu círculo de amizades. Não havia o porquê de confrontar o amigo, bastava acompanhá-lo, o mais próximo, em seu declínio moral e espiritual.

Em tempos onde o mundo é soterrado pela própria aspereza ideológica, política, cultural e intelectual, bem aos moldes da Alemanha pré-nazista, e potencializado por ela (o mesmo vale para qualquer governo marxista, socialista ou que o valha), onde os ideias revolucionários, juntamente com as chamadas “políticas sociais” e o liberalismo, são motes para o controle, manipulação e reengenharia da sociedade, os alertas de Dr. Fausto deveriam ecoar como sirenes antiaéreas, iguais às usadas na Europa durante a I e II Grande Guerra, pois a história é cíclica, de tempos em tempos se repete, e a tragédia fáustica parece próxima de se concretizar, todavia, em caráter global. Não à toa, a obra máxima de Leverkühn, o Apocalypsis cum Figuris, afigura-se literalmente o rumo maligno que a vida de Adrian/Alemanha tomaram ao desprezar os valores ordenadores da vida (refiro-me aos princípios cristãos), substituindo-os pelo colapso mortal e inevitável de uma ilusão de autonomia e tentativa de reconstruir o homem e o mundo. Em outras palavras, ao afastar-se de Deus e de sua condução, a humanidade depara-se consigo mesma em sua pior performance.

Ao descrever o pacto diabólico ficcional, Mann expõe a realidade do inferno, a insensatez e desvario de milhões, quiçá bilhões de adãos ao entregarem-se à cilada da serpente e desejar ser como Deus.


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Avaliação: (****)

Título: Doutor Fausto - A Vida Do Compositor Alemão Adrian Leverkühn Narrada Por Um Amigo

Autor: Thomas Mann

Páginas: 624

Editora: Cia das Letras

Sinopse: Último grande romance de Thomas Mann, Doutor Fausto foi publicado em 1947. O escritor fez uma releitura moderna da lenda de Fausto, na qual a Alemanha trava um pacto com o demônio - uma brilhante alegoria à ascensão do Terceiro Reich e à renúncia do país a sua própria humanidade. O protagonista é o compositor Adrian Leverkühn, um gênio isolado da cultura alemã, que cria uma música radicalmente nova e balança as estruturas da cena artística da época. Em troca de 24 anos de verve musical sem paralelo, ele entrega sua alma e a capacidade de amar as pessoas. Mann faz uma meditação profunda sobre a identidade alemã e as terríveis responsabilidades de um artista verdadeiro.




27 dezembro 2022

Teeteto: A imagem de Deus neutralizando o mal






Jorge F. Isah


Sócrates descreveu como exceção, para todos os tempos, mas tornou-se regra nos últimos cem ou mais alguns anos, e é quase unanimidade nos dias atuais, seja por dolo, seja por ignorância e incapacidade de muitos percebê-lo; seja por descuido, apatia ou o desejo de copiar o "espírito" do senso comum. Vamos, então, a ela!

Ao mesmo tempo em que afirmou o "Imago Dei" no homem, ele também descreveu que, quanto mais o homem se afasta de Deus e de sua santidade, mais o "Imago Dei" se esvanece e sucumbe à natureza pecaminosa. Ou seja, aquilo que Agostinho reproduziu séculos depois, e que foi afirmado por profetas, apóstolos, pela igreja em geral e, especial e necessariamente por Cristo, era uma ideia compartilhada com o filósofo gregos.

Evidente que o povo de Deus tem a melhor resposta, na verdade, a única resposta: pois o Deus bíblico e pessoal, na pessoa do Pai, Filho e Espírito Santo é o único Deus. Todos que se aproximarem dele, verdadeiramente (não vale a adesão nominal, quando o coração está voltado e focado no serviço ao pecado), estarão mais distantes dos efeitos noéticos, e do mal a sucedê-lo.

Infelizmente os tolos pensam que não pagarão pelos seus desvios, enquanto um bando de medrosos alisam sua própria vaidade, distraídos o suficiente para não se aperceberem tolos e ludibriados pelo próprio orgulho e presunção.

Mas é, contudo, a imagem de Deus que neutraliza o mal, segundo Sócrates. O que, mesmo não sendo dito dessa maneira pelo Cristianismo, acaba por ser uma percepção cristã: mais próximo de Deus, mais distante do mal. Mais distante de Deus, mais próximo do mal. 


Vale a pena a reprodução do trecho do livro:

"Sócrates: As demais aparências de habilidade e de sabedoria, quando se mostram no exercício do poder público, são conhecimentos grosseiros, nas artes, vulgaridade. Assim, quando alguém é injusto ou ímpio, por ações ou palavras, será melhor não conceder-lhe que todo o seu êxito se baseia na astúcia, pois esse indivíduo se envaideceria com o reparo, muito ancho por ter ouvido dizer, segundo crê, que não é néscio ou fardo inútil sobre a terra, porém homem como terão de ser os que melhor sabem vencer na vida pública. A esses tais é preciso dizer-lhes a verdade: que são tanto mais o que julgam não ser, quanto menos sabem o que são. De fato, todos eles desconhecem qual seja o castigo da injustiça, o que menos do que tudo não se pode ignorar. Não é o que todos pensam; castigos corporais e morte, de que os malfeitores muitas vezes escapam, sendo penalidade a que ninguém se exime.

Teodoro: A que penalidade te referes?

Sócrates: Na própria ordem das coisas, amigo, há dois paradigmas: um divino e bem-aventurado; outro, contrário a Deus e miserabilíssimo. Porém nada disso eles percebem; a enfatuação e a demência em grau máximo os impedem de sentir que com suas ações injustas eles se aproximam do segundo e cada vez mais se afastam do primeiro. São castigados pela vida que levam, conforme ao modelo de sua preferência. E se lhes dizemos que se não renunciarem àquela habilidade, depois de mortos não serão recebidos no local estreme de maldades e aqui em baixo terão de levar vida conforme seu caráter; os maus convivendo com a maldade; tudo isso eles escutam, sabidíssimos e astuciosos, como palavreado vazio, de pessoas desprezíveis"

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Livro "Teeteto"

Autor: Platão

Ebook gratuíto na Amazon




20 dezembro 2022

Agostinho: a aflição do homem e o descansar em Deus



- Pequena reflexão a partir do livro II de

 “Confissões”, de Agostinho -








Por Jorge F. Isah

No livro, Agostinho trata do pecado, mais especificamente, dos seus pecados. O tema é a depravação humana a partir dos seus exemplos pessoais e da experiência pecaminosa adquirida; do seu afastamento de Deus; da sua desobediência à lei divina; do gozo e prazer com tudo o que se podia configurar "mundano".

Agostinho abre a sua alma a Deus; o livro é uma grande oração, onde o seu coração é posto no lugar adequado: em Cristo, sua misericórdia e sacrifício.

Ele tece um longo poema em que as palavras fluem ritmadas; em que busca as mais profundas e límpidas expressões para retratar o que sentia à época em que era incrédulo, e também da sua alegria após a conversão e a reconciliação com Deus. "Confissões" é um fluir e brotar do espírito quebrantado e submisso ao Senhor.

Não há a preocupação em explicitar a teologia, ainda que ele faça teologia no livro. Não há lugar para o debate teológico, ainda que se possa discutir suas idéias. Por exemplo, ao afirmar que a cada dia se afastava mais de Deus, podemos entender que:
1)Havia um distanciamento maior, uma impossibilidade de se aproximar dele; e de que se encontrava cada vez mais afastado, a partir do afastamento inicial.
2)Ou pode-se ter a impressão de que em algum momento o homem esteve próximo de Deus e, com o decorrer dos dias e dos pecados, vai-se afastando naturalmente dele.
Aqui, nitidamente, Agostinho aponta para o conceito 1), a partir da separação inicial, o homem vai-se distanciando ainda mais da comunhão e santidade divinas. 

Há de se entender que Agostinho acreditava na doutrina da pré-existência da alma, o que pode levá-lo a crer, em algum momento, que essa alma estava com Deus. Ao encarnar-se, assumindo a carne, ela irá afastar-se de Deus, em virtude do pecado original. 

De qualquer forma, sem entrar em todos os pormenores que envolvem a questão, a afirmação de que quanto mais o homem peca, mais se afasta de Deus, é bíblica e correta. Apenas esse homem já está afastado, nunca teve comunhão com o Senhor, e labora para ir ainda mais para longe dele em seu estado de rebeldia.
Em toda a sua vida iníqua, em que o prazer ilícito e o desejar desfrutá-lo trazia-lhe uma alegria fortuita, ele reconhece a misericórdia divina em perdoá-lo de todos os seus pecados; reconhecendo a obra de Deus em resgatá-lo da podridão em que se encontrava; e, ao experimentar o seu amor e graça, percebeu a perenidade desse amor e da felicidade advinda dele, e a fugacidade daqueles outros "amores" terrenos: "Eis o meu coração, Senhor, o coração que olhaste com misericórdia no fundo do abismo. Que o meu coração te diga, agora, o que procurava então, ao praticar o mal sem outro motivo que não a própria malícia" [pg. 55].

O autor declara o estado em que se encontrava antes da conversão, o estado de impiedade; um aliado do mal; um coração aprisionado e atormentado, antes de Deus retirá-lo, por sua misericórdia, do fundo do abismo. 

As declarações que se seguem, e as descrições que as acompanham, indicam uma alma depravada e impossibilitada de se aproximar de Deus; a cada dia mais envolvida com o pecado, desejando-o; e desprezando a Deus; completamente afastada dele.

Agostinho afirma a quase suficiência das obras más na vida do homem caído: "As próprias obras é que prejudicam os malvados" [pg 58]. Mas em qual sentido? Estariam elas independentes da vontade do homem? Seriam maiores que ela? Ou até mesmo do homem? Ou ao se concretizarem, sendo obra consumada [a realização temporal, prática, efetiva do pecado] é que os tornaria em homens perversos?

Agostinho considera o homem que comete tais obras como já sendo mau. Não há bondade nele, e o que acontecerá nada mais é do que a vazão pecaminosa indicando-lhe o caminho de perdição e de pecado, que culminará na condenação daquele que não creu no poder regenerador e salvífico do nosso Senhor Jesus Cristo.

Ao citar o dia em que ele e os amigos invadiram uma propriedade e furtaram pêras, pelo simples prazer do furto, para lançá-las fora, resumiu: "O fato é que não eram os frutos que me atraíam, mas a ação má que eu cometia em companhia de amigos que comigo pecavam" [pg 61]. 

Claramente, ele notifica não a fome, nem a beleza dos frutos, nem o seu sabor, ou o desejo de ganhar algum dinheiro com eles, nada disso. Agostinho nos fala apenas da ânsia de cumprir na sua carne o mal que habitava nela; a realização do desejo suficiente em si mesmo, e vivendo por si mesmo. 

Mas há nele, agora, o arrependimento: "Eu, miserável, que frutos colhi das ações que cometi então e que agora recordo envergonhado, especialmente daquele furto que me satisfez pelo furto em si e nada mais? De fato, ele em si nada valia, e por isso me tornei ainda mais miserável!" [pg 61].

Para em seguida perguntar [sentenciando]: "Quem me pode responder senão aquele que me ilumina o coração e lhe dissipa as trevas?".

Falando da paz pela santidade, conclui: "Quem mergulha em ti, 'entra no gozo do seu Senhor', não terá mais receio, e permanecerá sumamente bem no Bem supremo. Desandei longe de ti, meu Deus, e na minha adolescência andei errante sem teu apoio, tornando-me para mim mesmo um antro de miséria" [pg 62].
O homem arrependido dos seus pecados e submisso a Deus, glorifica-o, e não tem parte no mundo, está nele, mas não é parte dele: "A amizade a este mundo é de fato adultério, prevaricação e infidelidade a ti" [pg 36 – referindo-se a Deus]. 
Que o bom Deus nos dê um coração quebrantado e submisso ao nosso Senhor Jesus Cristo, que pagou alto preço para que fosse derramado sobre nós a sua graça e misericórdia eternas e infinitas.



17 novembro 2022

Sebo & Arte - Livros teológicos, filosóficos, políticos, literatura de ficção, poesia e muito mais!

 




    



   Jorge F. Isah





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24 outubro 2022

Deus é vermelho: o evangelho sem cor!

 



 

Jorge F. Isah

 

O autor, Liao Yiwu, não é cristão. Está mais interessado no movimento de resistência ao comunismo na China do que propriamente com o Cristianismo, ainda que o Cristianismo tenha-lhe chamado a atenção como um "movimento de resistência". Ou seja, seus interesses são muito mais voltados para a política, sociologia e antropologia (e até mesmo a história do Cristianismo na China) do que o Cristianismo como fé bíblica. E isso é normal, pois qual interesse um descrente envolvido com a revolução à contrarrevolução teria com o Cristianismo?

Ainda que ele chame pastores, missionários e líderes cristãos de "ativistas" (um claro exemplo de como a mente revolucionária funciona, ao vislumbrar posicionamentos como meros arquétipos ideológicos), se permite relatar as declarações de fé que deveriam mover o cristão: Jesus Cristo como Senhor e Salvador do homem. São poucos esses momentos, tenho de convir, mas eles existem; e alguns são realmente tocantes, revelando o amor à verdade e a entrega em proclamá-la, mesmo com o risco de prisão e morte.

Ele se atém mais à questão do Cristianismo como movimento histórico que sobreviveu aos tempos de chumbo do governo Maoísta, momentos críticos nos quais homens, mulheres e crianças, diante da expropriação dos bens das igrejas, a perseguição aos cristãos professos, prisões, morte, tortura, e tudo o mais que envolve um regime totalitário onde o estado e o seu líder máximo são considerados "deuses", cultuados e venerados como se o fossem, suas vidas abrirem-se sob os pés.

A revolução cultural de Mao foi apenas isto: uma tentativa de tornar todos os chineses em um só corpo e mente (o corpo rotundo e atarracado de Mao, e a mente patológica e destrutiva do “estado chinês”); mas eles mesmos perceberam não haver força capaz de destruir a fé do povo (boa parte da população campeou e se iludiu com os clichês revolucionários dos vermelhos, enquanto outra, não tão iludida, viu-se obrigada a aceitá-la em troca da própria sobrevivência); por isso, criou-se uma igreja oficial e estatal, onde as regras eram ditadas pelo Partido Comunista, numa forma um pouco menos explícita de se corromper a alma, ainda que mantendo-se o mesmo objetivo (regimes comunistas e fascistas são pródigos em controlar tudo, desde bens, trabalho, vida, pensamentos e, se possível fosse, até mesmo o espírito de cada um).

Ele parece não entender como uma religião que chegou ao país havia pouco mais de um século e não tinha raízes na cultura milenar chinesa, sobreviveu a todas as tentativas de erradicação.

A criação de uma religião nacional e estatal, aos moldes da religião oficial do Nazismo no III Reich¹, onde os cristãos eram obrigados a renegar a sua fé em favor da fé no estado chinês e em seu líder máximo, parecia resultar na destruição de qualquer influência cristã no império do centro. Entretanto, para a surpresa geral, e do próprio autor, ele encontrou uma igreja perseguida, à margem da sociedade, escondida em lares e cavernas, a florescer e crescer em meio ao maior país ateísta do mundo, ao menos em termos geográficos e demográficos, a despeito de todos os esforços do partido comunista no combate insistente a qualquer manifestação que não seja o culto a seus ídolos criados à força, leis e decretos despóticos e insanos.

O Cristianismo vai muito além de simples "fenômenos" sociais e antropológicos, pois é fruto da ação sobrenatural e direta do próprio Deus na alma humana. Liao Yiwu não entende isso, e parece não se importar com isso. A descrição de prodígios é escassa; o autor não parece se interessar ou se dispor muito a eles; os relatos até aqui do mover de Deus no meio do povo ocorrem na forma de uns poucos milagres,  narrados com nítida descrença e ceticismo, mesmo diante das evidências e vários testemunhos oculares, fontes primárias.

Ele tenta relacionar o Cristianismo com outros movimentos religiosos que se opõem à igreja oficial chinesa, como se fossem quase a mesma coisa, diferindo apenas no tipo de "Deus" que cada um cultua e na forma em que se rebelam, ou se revelam. Não faltam relatos comoventes de cristãos perseguidos, presos, torturados e mortos pelo regime mais assassino do mundo em todos os tempos, e isso dá a verdadeira dimensão daquilo a diferenciar boa parte da igreja no Ocidente, confortável, preguiçosa e negligente quanto a proclamar o evangelho de Cristo; e o Oriente e suas grandes batalhas, a despeito das terríveis consequências pelas quais terá de pagar pela desobediência jurídica. Tal qual a igreja primitiva, nossos irmãos não se calam, levam luz e sal onde estão, e não se negam a fazê-lo mesmo pagando alto preço.

E, de certa forma, fico pensando que raios de cristãos são os que defendem a conciliação entre marxismo e o Cristianismo². É algo impossível e inimaginável para qualquer cristão que não se ilude com a mentira e falácia de que o marxismo é inofensivo. Por mais que as evidências e os fatos históricos comprovem as atrocidades, perseguições, execuções e a tentativa de destruição da fé, alguns de nós não querem ver, ou teimam não ver, o quão maligno e anticristão são os fundamentos e premissas marxistas. Desta forma, o ateísmo somente pode ser substituído pela religião do estado³, onde líderes são cultuados, venerados, como entes sobrenaturais, enquanto faz apenas apontar para aquilo de mais depravado e ignóbil carregam em seus íntimos desejos.

Liao escreveu um livro de leitura fácil, agradável, e que, a despeito de não tocar nos pontos cruciais à fé: a perseverança sobrenatural diante da mais virulenta e sangrenta perseguição, o flagelo a corroer e dizimar vidas, cuja única finalidade é a tentativa de controle integral e absoluto das pessoas (a falsa liberdade de se estar livre enquanto arrasta-se em cadeias), não deixam de ser relatos a fazer os entrevistados testemunhas de Cristo, e de o evangelho não parar e continuar em sua missão de revelar o amor e a graça divinas, a subsistir não pela força humana, mas pelo poder do Espírito; não por leis e decretos, mas pela justiça e martírio de Cristo; não por promessas passageiras e irrealizáveis, mas pela viva esperança e o juramento de Deus a torná-las reais e efetivas, não em um futuro distante, porém agora, já!

Em princípio, a leitura deste livro é o suficiente para os cristãos verdadeiros fugirem de qualquer aliança com o marxismo, ainda que seja apenas por simpatia, pois, como Paulo diz, que união há entre luz e trevas? Entre Cristo e Belial? A questão é, sem querer demonizá-lo, de o marxismo ser fruto do desejo de aniquilar qualquer traço divino na Criação, e qualquer traço divino no homem, feito à imagem de Deus. Para isso, há de se controlar não somente o corpo e alma mas também o espírito humano. E se isto não é diabólico em sua proposição, em seu axioma mais furtivo e sigiloso, nada mais o é!  

Não obstante, é impossível não notar os méritos do autor, Liao Yiwu, e reconhece-los; equivale dizer que a minha crítica inicial foi parcialmente injusta após refletir um pouco mais em pontos e narrativas a superar à minha própria suspeita e, porque não dizer, avaliação. Tendo a sua atenção voltada para o Cristianismo como movimento contrarrevolucionário na China (uma espécie de rebelião à revolução maoísta), ele abre espaço para o testemunho pessoal e de fé, com relatos de conversão, de mudança de vida e propósitos, bem diferente do ufanismo e triunfalismo atualmente vigente no Ocidente, especialmente aquele a manter de pé, sabe-se lá como, a teologia da prosperidade e no neopentecostalismo. Neste aspecto, ele construiu um relato, se não totalmente fiel à igreja chinesa, ao menos não omitiu a marca mais evidente do Cristianismo: a transformação do homem de criatura a filho de Deus, de pecador a santo, de escravo a liberto, de perverso a amoroso. Portanto, chamar de “movimento”, “contrarrevolução”, “revolução” ou qualquer outro jargão ideológico demonstrará algum grau de ignorância quanto à verdade, de não ser possível qualquer transformação profunda no homem sem o seu espírito atravessar os tortuosos caminhos do autonomismo e alcançar o caminho perfeito do servilismo a Cristo, e somente a ele. Mais vale um servo livre no amor do seu Senhor do que um autocrata insuficiente, a espalhar o seu ódio generalizado, inclusive a si mesmo.

Relatos como o do Dr. Sun, um dos mais renomados e influentes médicos chineses, e que abandonou todo o "status" que a sua profissão poderia lhe dar (dinheiro, poder, fama e holofotes) para se arriscar à ajuda humanitária nos grotões chineses (a quem poderíamos chamar de um "médico ambulante" ou itinerante), onde não havia serviços públicos e o povo vivia em miséria absoluta, proclamando o evangelho e vivendo-o, é de fazer qualquer um de nós, cristãos ocidentais, queimar de vergonha.

Outro relato contundente e pungente é o do filho do mártir cristão, o pr. Wang Zhiming, condenado única e injustamente por sua fé em Cristo, à qual teve a oportunidade de renegar por diversas vezes, e se manteve firme, assim como sua família, e assistiu à brutal e despótica execução de um inocente. Curiosamente, mais de uma década depois da morte do pr. Zhiming, ele foi inocentado pelo próprio governo que o assassinou.

Por essas e outras exposições, "Deus é vermelho" faz-se necessário, inclusive para aqueles acostumados com o "modus operandi" esquerdista/marxista/fascista. Nossa fé, de certa forma, é colocada à prova diante dos testemunhos inimagináveis dos verdadeiros e fiéis servos de Cristo que, perseguidos, humilhados, execrados e, muitas vezes mortos, permanecem firmes na Rocha, recusando-se a negar quem os amou eternamente, se entregou completamente e se fez maldição para que o seu povo fosse bendito.

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Notas: 1- As similaridades entre Comunismo e Nazismo não param aí, no endeusamento dos seus líderes, que assumem um caráter "messiânico", de salvadores da nação e do povo. Existem outras tantas semelhanças que os tornam quase gêmeos; esta porém, o culto ao líder, é o elemento "religioso" a uni-las.

2- É um movimento crescente na igreja reformada, especificamente entre os proponentes da TMI e outras vertentes liberais.

3-  Já que o ateísmo em última análise é o culto ao homem, à natureza, às leis cósmicas, à ciência ou qualquer outra coisa a considerar “não religiosa”, mas acaba por se tornar, em seus efeitos, tão ou mais religiosa como qualquer outra religião, pois o homem não pode prescindir do culto e adoração; e não será a falta de “deuses” a impedir-lhe de concretizar este desejo entranhado em sua natureza.

4- Na verdade, Deus não é vermelho. O autor quis afirmar algo impensável até mesmo para o adepto mais pessimista do comunismo, e até para o fiel mais otimista entre os cristãos, de que Deus não abandonou o seu povo sob a égide marxista na China (a alusão à cor dos símbolos da esquerda é evidente). Nesse sentido, Deus é sim, vermelho. 

5- A China está constantemente na lista do “Portas Abertas” como um dos países que mais perseguem cristãos no mundo, de maneira cruel, pérfida e insana. Juntamente com Coreia do Norte, Cuba, Laos, Vietnam, Nicarágua e outros mais, parecem ter o objetivo de aniquilar o “inimigo comum”. Em alguns casos, nem mesmo os estados islâmicos, outros contumazes assassinos de cristãos, usam de táticas tão violentas e desumanas como países de comunistas.

6- O livro encontra-se esgotado até mesmo em sebos. Não consegui uma única cópia, mesmo fazendo uma pesquisa detalhada na web. Normalmente não indico baixar ebooks gratuitos, a não ser livros em domínio público. Neste caso, contudo, deixarei o link de uma página que disponibiliza o exemplar em epub, pdf ou mobi: Lê Livros

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Avaliação: (***)

Título: Deus é Vermelho

Autor: Liao Yiwu

Editora: Mundo Cristão (esgotado)

No. Páginas: 240

Sinopse: "Na China comunista, sob o regime de Mao Tsé-tung, todas as práticas religiosas foram banidas. O comunismo tornou-se a religião nacional e Mao foi entronizado, deificado e adorado. Apenas a igreja oficial era permitida, mas em seus cultos, apenas palavras de honra e louvor ao regime e ao líder Mao. Mas debaixo de tanta opressão, a semente do cristianismo brotou e floresceu. Deus é vermelho percorre pequenos vilarejos e grandes cidades, trazendo narrativas emocionantes e assombrosas sobre dezenas de milhões de cristãos chineses que vivem a fé debaixo do duro regime socialista. Indo de casa em casa, reunindo-se porões e sótãos, vivendo à margem da religião oficial do Estado, assim caminham os cristãos chineses. Correndo perigo de prisão, castigos e até morte, assim vivem os que desafiam o regime para manter e cultivar a fé em Jesus Cristo. Conversas sussurradas, códigos cifrados, bíblias e material evangelístico contrabandeados, assim o evangelho é pregado cotidianamente. Deus é vermelho é o relato tocante e desafiador de uma Igreja viva que cresce e floresce no regime mais fechado do planeta.”




10 outubro 2022

A montanha (in)acessível em "A Montanha Mágica", de Thomas Mann





 

Jorge F. Isah

 

           

Demandou-me cerca de um ano a leitura do calhamaço de Thomas Mann, pois desde o início percebi não ser uma obra para se prescrutar rapidamente, dada a profundidade dos assuntos, personagens, e quaisquer conclusões levianas e precipitadas impossibilitará o leitor de apreender, e se aprofundar cautelosamente, do pensamento requintado e, porque não dizer, laborioso do autor. Ninguém pode se aproximar de “A Montanha Mágica” se não estiver imbuído do espírito de tenaz analista e decodificador. Não é, portanto, um livro de passatempo (mesmo sendo), ou de amenidades (ainda que se encontre), ou de perífrases a suavizar a realidade (talvez, uma ou outra aqui e acolá). Mann conta histórias dentro da história, e até mesmo a História, íntima e intensamente detalhada, tal qual um observador dedicado, nada relapso ou estouvado.

São muitos os exemplos, mas gostaria de deter-me nos diálogos espetaculares (ou debates) entre Naphta e Settembrini, um primor, em vários aspectos. Além da qualidade dos argumentos e dos temas, existe a cumplicidade entre ambos, a despeito da divergência de posições e defesas intransigentes. Mesmo sem o desejo de reconhecer a necessidade um do outro, cujos antagonismos parecem tornar ainda mais imprescindível a coexistência intelectual, não existe ódio ou desprezo, pelo contrário, parecem se alimentar mutuamente, o que não é mau, e pode, talvez, fazer um e outro adequarem os seus pensamentos ao escrutínio da verdade. Bem diferente dos tempos hodiernos, em que a maioria dos intelectuais prima pelo “orgulho” de ouvir a própria voz (quando muitos dos próprios pares), e afastam-se do espírito a permear a cultura por milénios: as ideias se façam audíveis, seja ela qual for, e as inconsistentes e amorfas sucumbam à própria incapacidade de respirar, e não por serem asfixiadas, com a finalidade de haver o monopólio de uma única ideia, seja ela filosófica ou não, ideológica ou não, científica ou não. Em tempos de monomania intelectual e do politicamente correto, Mann sinaliza para o debate, a discussão, sem a necessidade de destruir ou silenciar o oponente, pois somente através dele e de seus argumentos pode-se crescer e aperfeiçoar a verdadeira, e a tão pouco desejada experiência humana de coexistir pacificamente, sem a obrigatoriedade de todos se tornarem unânimes neste ou naquele aspecto.

Por isso, faço questão de ressaltar não somente os diálogos/debates entre o padre comunista e o humanista italiano, mas também dos demais membros da confraria do “Sanatório”, em Davos, nos Alpes, onde se desenrola a narrativa. Perceber-se-á divagações e furos no pensamento de todos, mas assim não é o homem?... Contudo, pode-se ter uma aula, inclusive de convívio organizado (mesmo havendo algum grau de superioridade, presunção, de um em relação ao outro, quanto ao que pensam) com os longos debates entre eles, cujas testemunhas são sempre o Hans Castorp e Joachim (primo de Hans), os jovens a observarem os embates dos velhos.

Este capítulo, em especial, é um exemplo do nível de escrita do autor, e se chama : "Da cidade de Deus e a redenção do mal", inequívoca alusão a Santo Agostinho e o seu “A Cidade de Deus”. Ele aponta para a interessante afirmação de os movimentos revolucionários modernos, p. ex. a Revolução Francesa, Russa, etc., serem fomentados pelos escritos de Tomás de Aquino, e disseminados pelos tomistas, séculos depois. Algo realmente inusitado mesmo entre os clássicos; um nível de debate altíssimo e muito pouco visto ou lido.

No mínimo, uma experiência filosófico-teológica em estado puro.

De todos os capítulos, este foi um dos mais chamativos, por tratar de questões reais mas, também, indo além em termos metafísicos e subjetivos, sem deixar de adentrar no "mundo dos vivos". Questões como liberdade, responsabilidade, revoluções, política, juventude, movimentos de massa, teologia e muita filosofia, estão presentes, ainda que alguns pontos sejam tocados superficialmente e de maneira incipiente, os diálogos são capazes de aguçar a mente do mais desinteressado leitor. O título do capítulo, já citado, é "A cidade de Deus e a redenção do mal", e constitui-se em algo primoroso, escrito por Mann, revelando o alto grau de conhecimento e informação (com certeza decorrente de anos e anos de estudos) para imprimir, durante tantas páginas, uma discussão incomum e detalhada, e, ao mesmo tempo, prender a atenção do leitor sem levá-lo ao tédio ou exaustão, mas chamando-o para o diálogo, e a tirar por si mesmo as necessárias conclusões.

Mann defende exatamente o mesmo que advogo: os escolásticos, e boa parte da igreja romana medieval, foram os reais fomentadores do comunismo e dos movimentos revolucionários posteriores.

Ao contrário do que alguns católicos "iluminados" afirmam, não foram os Reformadores, mas eles próprios a semente do marxismo, muitos séculos antes. Na verdade, trabalharam, e muito, por ele. E ainda trabalham, na companhia de evangélicos, em sua minoria, e também, e especialmente, de boa parte da mídia, celebridades e intelectuais que desconhecem, por ignorância e preguiça em sua quase totalidade, as verdadeiras raízes do que defendem.

A exposição é muito mais longa, e muito bem detalhada no referido capítulo. Deixo apenas a indicação, a quem se interessar, para ler a partir da página 543. Asseguro, vale cada palavra; e a igual meditação, sem se precipitar, lembre-se!

Falando um pouco do livro, no geral, ele não é para qualquer um. O autor parece não estar nem um pouco interessado em "agradar" o leitor comum, pois não temos reviravoltas, surpresas, mudanças repentinas de atitudes e ações abruptas (notadamente aquelas colocadas para assustar ou impactar). O livro está em um desenvolvimento lento, progressivo, e, ao nos depararmos com um movimento menos convencional, não somos pegos desprevenidos, pois ele fora insinuado e se desenvolveu páginas antes (no geral, muitas).

Por outro lado, há um circunlóquio necessário (insinuei, no 1º parágrafo), diria imprescindível, faz o leitor se apaixonar, pouco a pouco, e cada vez mais, com a narrativa. E crie intimidade, empatia com os personagens, tão díspares e ao mesmo tempo tão comuns, como qualquer um de nós, a compartilharem suas angústias, medos, alegrias, esperanças, trivial e complexa humanidade. O ponto central da obra, e me arriscarei a ser confundido entre a ousadia e petulância, refere-se à morte, mais detidamente a descoberta da morte e todas as suas consequências para o bem e o mal... Após algumas dezenas de páginas, não há volta: está-se fisgado até o final.

Também é necessário paciência; não é um livro para apressados. Como em uma lauda refeição, se comer a entrada rápida e vorazmente, não haverá espaço para degustar o prato principal, quiçá a sobremesa.

Mas, certamente, o leitor será contemplado e recompensado com uma farta, deliciosa e inesquecível refeição, para a maioria dos apreciadores. Entretanto, sempre haverá aqueles com indigestão. Para esses, não haverá antiácido a aliviar-lhes a aguda perturbação.

 

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Avaliação: (*****)

Livro: A Montanha Mágica

Autor: Thomas Mann

Páginas: 865

Editora: Cia das Letras

Sinopse: “Neste clássico da literatura alemã, Mann renova a tradição do Bildungsroman - o romance de formação - a partir da trajetória do jovem engenheiro Hans Castorp. Durante uma inesperada estadia em um sanatório para tuberculosos, Hans relaciona-se com uma miríade de personagens enfermos que encarnam os conflitos espirituais e ideológicos que antecedem a Primeira Guerra Mundial. Um dos grandes testamentos literários do século xx e uma das obras inesgotáveis da ficção ocidental.”