Por Jorge Fernandes Isah
Há um dilema: como o crente deve se relacionar com o mundo? É possível ao crente ter uma vida voltada para Deus, em santidade, e se apropriar dos benefícios que o secularismo proporciona, por exemplo, na cultura? Há oposição entre fé e o intelecto? Ou podem coexistir harmoniosamente? O mundo não tem nada de bom a nos oferecer? Devemos prontamente afastar-nos de tudo o que ele oferece?
O primeiro passo é definir o que seja mundo. O homem tem gravado em seu coração a imagem e o conhecimento de Deus, o qual pode ser revelado pela natureza, e o homem é capaz de percebê-lo [Rm 1.19-21]. É claro que isso não dará o conhecimento pleno de Deus, como Ele é, mas levará à consciência da Sua existência e poder; porém é completamente incapaz de revelar a Sua natureza, essência, o Seu todo [ainda que pareça impossível conhecer Deus plenamente, acredito exeqüível o conhecimento daquilo que nos foi revelado. E creio que Deus se fez conhecer na Escritura como é, ao menos no fundamental para que compreendamos a Sua natureza e propósito]. Ainda assim o incrédulo pode-se tornar instrumento da graça de Deus [graça não voltada para o ímpio, mas com o nítido objetivo de, usando-o, revelá-la ao eleito], beneficiando tanto crentes como incrédulos, segundo o propósito divino.
Veja bem, o objetivo é Deus se revelar ao eleito, como o alvo do Seu amor, graça e misericórdia, pois o réprobo não é alvo do amor, nem da graça, nem da misericórdia de Deus, mas colabora para que todos os Seus propósitos se realizem, inclusive, sendo ele mesmo beneficiário, do ponto de vista temporal, na realização histórica, ainda que do ponto de vista eterno esteja-lhe assegurada a condenação.
Portanto, mundo, no conceito bíblico que nos interessa no momento, refere-se ao pecado, ou melhor, à pecaminosidade e seus reflexos entre os homens, os quais são os meios pelos quais o pecado tomará forma, e efetivamente agirá.
Outro conceito de mundo, que também faz-se necessário definir, é o formado pelo número de crentes e incrédulos; o local onde habitam uns e outros, vivendo e interagindo-se, porém, sem jamais escapar do soberano controle e propósitos divinos. O que vale dizer é que, tanto eleitos como réprobos não são autônomos, estando submetidos à vontade decretiva de Deus que estabeleceu, antes da fundação do mundo, todos os atos, pensamentos e vontade das criaturas.
O problema é que tanto o "primeiro" mundo, como o "segundo", encontram-se sobrepostos, intercambiados, de tal forma que muitas vezes não é possível dissociá-los, nem distingui-los corretamente. E tanto o mundo pecaminoso como o mundo habitável podem ser um, ou prolongamentos um do outro, ou simplesmente se confundirem em seus objetivos. É por essas e outras que se deve ter muito cuidado, pois ao se defender um "mundo" pode-se estar a defender o outro também. E ao crente é importante ter o discernimento de que, quer seja um ou outro, a prudência, sabedoria e entendimento da Palavra são os únicos meios pelos quais poderemos evitar a aliança com o inimigo, e a propagação de sua ideologia diabólica, malévola, pecaminosa.
O segundo ponto é entender que a ação do diabo é limitada ao que Deus lhe concede fazer. Portanto, ainda que a inclinação da carne [e do mundo] seja o pecado e a rebeldia, o Senhor limitar-los-á a fim de que a natureza humana e o mal proveniente e advindo dela sejam restringidos.
Contudo, o mundo não é um campo de batalha dualista onde o mal degladia-se com o bem. Para o crente, mesmo o mal pode ser bom, porque todas as coisas colaboram para o bem daqueles que amam a Deus [Rm 8.28]. Tudo, mesmo o pecado, pode representar o bem para o eleito. É possível? O verso diz que sim. A questão é que isso estará sempre compreendido dentro da vontade de Deus, a qual conhecemos por inferência bíblica: Deus é Todo-Poderoso, supremo ordenador e governador do universo, mas desconhecemos as particularidades do processo e o objetivo final de cada um, ainda que no geral saibamos que tudo resultará na Sua glória, na santificação dos eleitos, e na condenação dos iníquos.
Voltamos à questão: é possível o crente se beneficiar e se apropriar daquilo de bom que a cultura secular produz? E como a Igreja pode influenciar a cultura ao ponto em que ela reflita mais adequadamente a imagem de Deus, tornando o homem e a sociedade mais justos? Não será pela pregação do Evangelho de Cristo? Pelo cumprimento da Lei Moral?
Um autor reformado respondeu: "A fim de julgar as nossas idéias, temos que conhecer duas coisas da melhor maneira que pudermos: as forças do mundo que formam os nossos pensamentos, e as verdades da Escritura, que corrigem os nossos pensamentos e revelam Deus e suas promessas de salvação para nós. Os que não se preocupam em ler livros seculares serão empobrecidos e suscetíveis à sedução sutil e indireta, enquanto os que não se preocupam em estudar com cuidado a Escritura perderão o seu único fio de prumo para julgar a verdade em contraposição ao erro, a crença em contraposição à incredulidade, o certo em contraposição ao errado. Os que conhecem a Escritura e a sua cultura têm a capacidade de reconhecer a verdade e rejeitar a falsidade quando a escutam ou lêem - seja na literatura secular ou do púlpito" [1].
Segundo o autor, somente se poderá influenciar beneficamente o mundo conhecendo-o e ao Evangelho. Mas a Bíblia não nos fala do mundo? Melhor do que qualquer compêndio acadêmico? Não nos revela o mundo também? Como algo de que devamos repelir? E da mesma forma que cada um de nós tem a imagem de Deus, não temos a imagem corrompida do mundo? Sinceramente não sei até que ponto devemos interagir com o mundo. De qualquer forma, excluir-nos dele é impossível, mesmo que isso represente habitar um mosteiro ou uma caverna.
Ao final, acho que a resposta é: ir até onde o Evangelho nos proibe prosseguir. E para isso, tem-se de conhecer a Escritura, senão corre-se o risco de ser enganado pelo mundo, e por falsos evangelhos.
Nota: [1] O Cristão e a Cultura - Michael Horton - Ed. Cultura Cristã - pag 61-62