10 março 2010

Elmer Gantry: Entre Deus e o diabo

 












Por Jorge Fernandes Isah

Assistindo ao filme Elmer Gantry1, "Entre Deus e o Diabo", estrelado por Burt Lancaster e Jean Simmons, não pude deixar de me impressionar com a estarrecedora descrição e semelhança com o movimento reavivalista evangélico americano. Há de tudo um pouco: falsos e eloquentes sermões, e técnicas para atrair, comover e impactar a platéia. De certa forma, muitos grupos religiosos da atualidade se baseiam, ou muito bem poderiam ter se baseado, em cenas do filme. Seria o caso da realidade imitando a ficção.

É claro que o filme tem um toque caricato, farsesco, como o de uma sátira, mas pela impressionante semelhança com os movimentos evangélicos atuais (os neopentecostais e movimentos da fé), não é difícil reconhecer também a caricaturização das quais muitas igrejas tornaram-se reféns. Como na vida real, no filme há de tudo um pouco: mercantilismo, charlatanismo, pragmatismo, exibicionismo, megalômanos a exalar o fétido odor diabólico.O púlpito é um palco. Os ministradores, atores. E a igreja, uma assistência patética.

Há apelos, comoção, cartaxe, latidos, gritos, convulsão, e tudo o que de pior o sincretismo tem produzido nas últimas décadas, numa espécie de "orgia" espiritual. Em muitos momentos, tem-se a impressão de estar em um culto na igreja evangélica mais próxima, na desordem sonora, na metalinguagem espaventosa, nas encenações abusivas e licenciosas, buscando resgatar através do sentimentalismo e da banalização um "novo cristianismo", explosivo em sua profusão cênica, porém, burlesco, deformado e inócuo em seu caráter religioso. 

Abriu-se mão do princípio para se valorizar apenas os meios, desde que o fim se tornasse exequível e imediático. No fim das contas, é um show como outro qualquer, onde se tem de mobilizar a platéia, criar empatia, fazer valer cada centavo gasto e ganho, iludi-los com uma espécie de salvação onde Cristo não está evidente, nem é-se possível encontrá-lo ou distingui-lo na mensagem, mesmo entre aparente piedade, mesmo que na ingenuidade.

Elmer Gantry é um ambulante, uma espécie de caixeiro viajante, que lança a sua lábia sobre os incautos, vendendo produtos imprestáveis por preços extorsivos. É um bêbado, mulherengo, mentiroso e fanfarrão, que, da noite para o dia, se vê alçado ao posto de pastor; de vendedor ambulante fracassado a pastor itinerante de sucesso.

A interpretação histriônica de B. Lancaster confere um ar de comicidade e zombaria ao seu personagem, capaz de rir-se de si mesmo e da sua imoralidade. É um homem sem escrúpulos, que vê naquela oportunidade a chance de fugir de sua vida miserável. Não há como não vê-lo como um bufão,que em sua tolice consegue enganar uma multidão de tolos ainda maiores do que ele. Burt consegue dar uma áurea de simpatia ao personagem, e, em muitos momentos, é possível acreditar que todo o seu empenho não passou de uma diversão, uma brincadeira ingênua, na qual sequer acreditou. Mas à medida que os "frutos" vão surgindo: conversões em massas (os números são meticulosamente citados), o volume de ofertas, o auxílio de igrejas e organismos religiosos, e os convites para novas "campanhas" em cidades grandes fazem aumentar substancialmente a fama da "tenda evangelística", Gantry começa a acreditar no seu poder de mobilizar milhões de pessoas e dinheiro. Ele crê literalmente na sua força.

Inicialmente ele é a sombra da irmã Sharon Falconer, uma profetisa/evangelista errante, sem vínculo denominacional, extremamente carismática (em todos os sentidos), e que arrebata uma platéia cativa à sua elegância e suavidade quase angelicais. Jean Simmons (uma atriz fantástica) tem uma interpretação diametralmente oposta a de Burt L. Ela é contida, delicada, quase diáfana, como se flutuasse por entre os cenários, mas alcança um brilhantismo poucas vezes visto em Hollywwod. Por isso, talvez a dúvida que se tem: se ela acreditava realmente em sua santidade ou, como Elmer, estava a aproveitar-se da situação, já que a coisa toda parecia dar certo. Não é assim que os movimentos arminianos-positivistas acreditam? Se o negócio funciona, é sinal de que Deus está a dirigi-lo e abençoá-lo, do contrário, por que daria certo? (At. 5.38-39).

Uma das frases mais emblemáticas é quando Sharon diz ao Sr.Lefferts, o qual se recusava a ajoelhar-se para uma oração (um jornalista ateu que acompanhava a "tenda" enquanto fazia pesquisas para uma futura reportagem sobre o movimento.O auter-ego de Sinclair Lewis): Você pode não acreditar em Deus, mas ele acredita em você! (citação livre, não literal do texto). Demonstrando de que forma o humanismo consegue corromper os valores cristãos, invertendo a ordem ao fazer Deus ter fé no homem, quando somos nós que devemos crer nEle, conforme ordenam as Escrituras.
 
O filme é uma crítica ácida ao evangelicalismo emergente americano (o livro é de 1926),  permeado pela hipocrisia, a desfarçatez e a teatralidade, capaz de produzir a tolice e o engano ao invés de homens salvos e servos verdadeiros.

Por ter lido Lewis na adolescência, percebi que a crítica ao evangelicalismo reavivalista americano à "lá Charles Finney", subentende-se uma crítica ao capitalismo. Sinclair era um dos mais ferrenhos combatentes do "american way of life" presente em muitas de suas obras, por exemplo, Babbit (provavelmente a mais famosa). Ele usa o Cristianismo como palco para demolir o mercantilismo e a sociedade hipócrita e imoral obstinadamente servil ao dinheiro de sua época. Como crítico de costumes, Lewis até que se sai bem, apesar de ser um autor relegado ao pó do esquecimento, e que não tem nenhum apelo às novas gerações cada vez mais bestializadas e estúpidas. Não que Lewis seja um gênio. Não que o seu discurso seja verdadeiro. Na verdade, ele não é, duplamente. Mas deve ser lido e avaliado como o porta-voz de uma época; e que pode ser útil para se averiguar também a presente geração. Na verdade, ele não era um marxista, mas um liberal que rejeitava veementemente suas raízes tradicionais e campesinas.

Voltando ao filme, Lefferts, o jornalista, diz em sua matéria de capa do jornal Zenith sobre a "tenda": O que é uma caravana? Uma igreja? Uma religião? Ou um circo, onde o espetáculo são as atrações bizarras? (novamente, citação livre, não literal).

Ainda que saido da boca de um ateu (creio que Lewis o era, apesar da educação religiosa tradicional), não seriam os questionamentos do autor um alerta para o momento em que vivemos? Não estamos numa espécie de "vale-tudo", onde o desprezo a Deus e Sua palavra são tão notórios que Ele se utiliza da voz dos ímpios para condenar o que estão a fazer com a igreja? Não estamos tão obliterados, cegados pela vaidade, na crença de que temos super-poderes e somos super-homens, que um réprobo pode ser usado para nos alertar? Como diz o ditado: em terra de cego, quem tem um olho é rei.

Ainda que o mundo não seja capaz de julgar a igreja, nem o possa fazer, por que rejeitamos os alertas e persistimos em blasfemar o nome de Cristo entre os incrédulos? (Rm 2.24). 

Porém, ao final, cumprir-se-á o alerta de Cristo: "Toda a árvore que não dá bom fruto corta-se e lança-se no fogo. Portanto, pelos seus frutos os conhecereis. Nem todo o que me diz: Senhor, Senhor! entrará no reino dos céus, mas aquele que faz a vontade de meu Pai, que está nos céus. Muitos me dirão naquele dia: Senhor, Senhor, não profetizamos nós em teu nome? e em teu nome não expulsamos demônios? e em teu nome não fizemos muitas maravilhas? E então lhes direi abertamente: Nunca vos conheci; apartai-vos de mim, vós que praticais a iniqüidade" (Mt 7.19-23).

Porque o homem prudente escuta as Suas palavras, não o cainhar do lobos. 

Nota: 1- Elmer Gantry/Entre Deus e o Diabo (título em português)
Diretor: Richard Brooks, EUA, 1960
Elenco: Burt Lancaster (ganhador do Oscar de ator principal), Jean Simmons, Arthur Kennedy, Dean Jagger, Shirley Jones, Edward Andrews, Patti Page, John McIntire, Rex Ingram, Hugh Marlowe, Philip Ober
Roteiro: Richard Brooks
Baseado na novela Elmer Gentry, de Sinclair Lewis (o primeiro escritor americano laureado com o prêmio Nobel, o qual declinou receber)
Música: Andre Previn
Produção: United Artists
Cor:145 min.

7 comentários:

  1. Jorge,

    Eu assisti ao filme ainda garoto, na fase da "sessão da tarde". Aliás, assisti à maioria dos grandes clássicos naquela mesma época.

    De fato, o filme bem demonstra o evangelicalismo ainda de hoje: passa o tempo e as coisas continuam as mesmas; muda-se para contunuar o mesmo. E eu tenho experiência nessas coisas, por combatê-las.

    Às vezes a nossa vontade é "abrir a cabeça" das pessoas e enfiar a verdade na marra! Porém, devemos combater e esperar no Senhor, e, conforme está escrito em Atos 5:38-39, somente permanece a obra de Deus, a que não é de Deus perecerá, mais dia menos dia. E é somente esta certeza que nos consola e nos mantém, diante dos absurdos que assistimos.

    Excelente o texto porque mostra a continuidade herética desses movivemtos "avivalistas", pois, embora sendo ficção, era já o retrato de uma época.

    Grande abraço!

    Em Cristo,

    Ricardo

    ResponderExcluir
  2. Ricardo, meu caro!

    O que me impressionou no filme foi a forma realista como o reavivalismo a "la Finney" é tratado, bem como os métodos e as estratégias para mobilizar o público, tão presentes e em formas ainda mais mercadológicas do que àquela época.

    Foi como ver um filme que eu já tinha visto, sem tê-lo visto ainda. Os realizadores optaram por uma obra realista, e creio que ela cumpriu esse objetivo.

    O que mais me instigou, é que partiu de uma visão ateísta e mundana, e sabemos que o mundo se opõe flagrantemente à igreja de Cristo, porém, nesse caso, creio que o próprio Senhor se encarregou de usar ímpios para alertar o seu povo.

    Então, não vejo a denúncia como o julgamento do mundo, mas como o julgamento do próprio Deus, para não continuarem a fazer do culto uma prática mercadológica, hipócrita, dissociada da verdade escriturística.

    Outro ponto que me pareceu muito bem retratado no filme é como se substitui facilmente a glória de Deus pela glória humana, ao ponto em que Elmer e Sharon são alçados aos postos de deuses, e da massa alucinada tratá-los como os poderosos, os que detém o poder de salvar, curar, etc, ao contrário de honrarem a Deus.

    Para quem quer ver os movimentos neopentecostais e da fé retratados quase fielmente (bem como de outras seitas), não pode deixar de ver este filme.

    Abraços, e obrigado pelo comentário.

    ResponderExcluir
  3. Graça e paz Jorge.
    Eu não assisti a esse filme, pois não é da minha época, eu devo ser bem mais moço que o Ricardo (rs).
    Meu irmão Jorge, mais um excelente texto que merece ser divulgado em vários blogs, pelo menos no meu já está lá.
    À medida que eu lia o seu artigo eu me lembrei de um filme que assisti a muitos anos, se não me engano o nome do filme era "FÉ DEMAIS NÃO CHEIRA BEM" com Steve Martin, que era também uma crítica ao charlatanismo de alguns pastores americanos. Eu me lembro que quando eu assisti a esse filme estava chegando ao Brasil e tomando uma dimensão enorme o Evangelho da Prosperidade, que é esse monstro de sete cabeças que está na maioria das igrejas, não só neo-pentecostais.
    Eu só me alegro em uma coisa em meio a tanta heresia, Deus muito em breve irá julgar a sua Igreja e ai daqueles que tem feito do povo de Deus comércio.
    Fique na Paz!
    Pr. Silas

    ResponderExcluir
  4. Jorge...

    O trágico é que o filme, pelo que li, demostra claramente os erros dessas posturas, e mesmo assim tem quem caia nelas. Nem com o filme o povo acorda...

    Esli Sores

    ResponderExcluir
  5. Pr. Silas,

    também não assisti a esse do Steve Martin... deve ser uma sátira, pois o Martin é comediante.

    Também não havia assistido a Elmer Gandry, acho que não sou tão velho como o Ricardo também (rsrs), apesar de já ter lido dois ou três livros do Sinclair Lewis na adolescência (o que pode indicar que sou mais velho que ele).

    Como disse no comentário ao Ricardo, me surpreenderam o realismo na reprodução do universo reavivalista americano (podendo ser brasileiro, africano, europeu, etc), ainda que seja uma sátira, com todos as hipérboles do gênero.

    Ao descobrir que o livro do Lewis era de 1926, veio-me a mente que o tempo passa, mas os erros, as heresias continuam sempre os mesmos, ainda que numa roupagem nova, porém o cadáver é o mesmo.

    Quando me referi ao neopentecostalismo e ao movimento da fé, falava do grupo ao qual estão os adeptos de E. Kenyon, K. Hagin, B. Hinn, P. Wagner e tantos outros discípulos que pregam o poder da mente e da língua humanas. De tal forma que a fé exercida segundo suas cartilhas tornam os homens em deuses. E ao pensarem assim, tentam fazer de Deus um deus menor, pois ele está limitado exatamente pelo poder das criaturas, e subserviente às suas vontades, de tal forma que se o homem aplicar corretamente a sua fé, Deus terá obrigatoriamente que realizar suas vontades.

    Isso os torna maiores do que Deus, e tentar impôr a Ele um código (i)moral rígido. Quer Ele queira ou não, ao se fazer as coisas certas, seguindo as regras do Movimento da Fé, Deus nada poderá fazer a não ser obedecer.

    É por essas e outras que não consigo imaginar Deus a amar tais pessoas, pelo contrário, posso afirmar biblicamente que Ele as abomina ou odeia. E, como o irmão disse, o juízo e a ira divinas os aguarda pacientemente.

    Forte abraço!

    Cristo o abençoe!

    ResponderExcluir
  6. Pr. Esli,

    obrigado por seu comentário; aguardava-o há algum tempo...

    Quando escrevi o texto, preocupou-me reações adversas por usar um filme mundano, escrito por um ateu e com a participação de incrédulos, como crítica a certos modelos de "igrejas cristãs". Na verdade, pseudo-cristãs. Por isso incluí o penúltimo parágrafo, mostrando que o mundo não pode nem tem o direito de julgar a Igreja, a Noiva do Senhor. Mas esse falso cristianismo não só pode como deve ser julgado pelo mundo. E creio que Deus pode usar um ímpio para alertar Seus filhos. Parece-me o caso de Elmer Gandry, ainda que ao final haja um aparente "amaciamento" no julgamento do Movimento da Fé.

    E, como o irmão disse, passados tantos e tantos anos, tudo continua como dantes no quartel de abrantes, ou seja, os homens são presas fáceis das falsas doutrinas, "segundo a tradição dos homens, segundo os rudimentos do mundo, e não segundo Cristo" (Cl 2.8); e que têm como único valor a satisfação da carne (Cl 2.23).

    Como o Senhor Jesus diz: "Quem tem ouvidos para ouvir, ouça" (Mc 4.9).

    Bilhões continuam surdos, e morrerão na surdez.

    Abraços.

    Cristo o abençoe!

    ResponderExcluir
  7. Mas olha só... que engraçado... Um bando de Matusalém querendo ser mais novo do que eu. Um tem filhos na faculdade, é quase avô (Jorge), o outro só de pastorado já tem mais de três décadas (Pr. Silas). Pensa bem...

    E para o governo de vocês, a sessão da tarde passava nos anos 80, logo, todos tem idade pra ter assistido, parem de firulas!

    Cambada de velhotes (rsrsrs)!

    Deus os abençoe a todos!

    Ricardo

    ResponderExcluir