Jorge F. Isah
Li, há alguns meses, outro livro sobre guerras: “Nada de novo no front”, do Remarque; então, me aventurei a este, do Crane, autor completamente desconhecido para mim, e com o qual me deparei em meio às sugestões do Kindle, tendo em vista o padrão das minhas leituras. Normalmente, tenho uma “lista” de obras a serem examinadas, e, vez ou outra, algo se “intromete” e me toma a curiosidade, favorecendo-o ao invés do próximo tomo.
Primeiro, veio o aguçar do interesse pelo título, não raro me vejo ceder a esse estímulo. Segundo, ao saber que se tratava de um romance sobre a Guerra Civil Americana, a atenção redobrou. Como estava a ler “Os Demônios”, envolvido pela narrativa magnética de Dostoiévski, resolvi concluí-la e somente depois enveredar-me em Crane.
Antes de concluir o livro, não li nada sobre ele ou o autor, não tinha qualquer referência ou parâmetro; e assim faço com obras desconhecidas e mesmo a de autores já conhecidos, para não carregar uma lida partidária ou guiada. Interessante que a maioria dos “couchs literários” defendem exatamente o contrário, como se o leitor fosse incapaz de reconhecer o terreno onde pisa, mesmo se apalpando. Apenas depois de ler, no geral dois a três dias, aventuro-me ao prólogo, prefácio, posfácio e notas complementares, caso existem.
Surpreendi-me com a maturidade da escrita de Crane quando concebeu e desenvolveu a obra, aos 24 anos. Não teve muito tempo para mais, por falecer aos 29 anos. Todavia, apesar de haver gênios em várias artes a começarem cedo, raramente se depara com uma escrita ao mesmo tempo concisa e profunda.
Nele temos a história do anti-herói que posteriormente se descobre herói, por acaso, diga-se, reconhecido por colegas e superiores. Ela não é complexa, hermética, sinuosa, muito menos falsa. Henri Fleming é o protagonista, a despeito de se poder assegurar serem os combates personagens não menos importantes. Ele é um jovem, na casa dos 20 anos, um matuto da roça, que ajuda a mãe no trabalho intenso e rigoroso do campo. Sonha em alistar-se e ir para o front combater os dissidentes sulistas, opositores ao governo republicano de Abraham Lincoln e dispostos a dividirem a América em duas.
Fleming é um sonhador, ingênuo, a se imaginar enfrentando os inimigos, destruindo-os e a voltar com a pompa de herói. A mãe não comunga com os seus ideais, e teme pelo filho e pelo próprio futuro sem ele. Henry, contudo, não tira da cabeça o desejo de vestir o uniforme da União; e temos o primeiro conflito de visões: a mãe realista e temerosa, o filho sonhador e confiante na glória.
Crane não imprime nenhum viés romântico, patriótico, ou transforma os jovens em super-homens. A narrativa é sobretudo pragmática e objetiva, muito mais envolta em dúvidas, trapalhadas e golpes fortuitos da sorte do que em um planejamento detalhado e logístico. As batalhas se davam muito mais pelas exigências da guerra do que propriamente por estratégias militares. Muitas vezes era tão somente ímpeto cego, de um lado e do outro. Talvez, por isso, não haja tantos personagens marcantes além do próprio Henry e os embates. Muitos surgem e perdem-se, para quase sempre não serem mais lembrados.
Isso leva Fleming, e o leitor, a perceber o quão prosaica é a figura do soldado: não passa de número, um grão de areia na praia que ninguém vê ou sabe existir. Havia apenas o batalhão entre outros batalhões, um soldado entre milhares de outros, e a morte era o detalhe final a torná-los dispensáveis e incógnitos.
Depois do treinamento e meses acampados, partem para o front, e Henry não sabe se terá coragem de lutar. Não raro, durante boa parte da narrativa, esta é a suspeita a atormentar e a levá-lo quase sempre a hesitação e pensamentos de deserção. A guerra é brutal, e o sangue (o emblema vermelho) é muito mais produto das fraquezas do que da coragem. Ela é praticamente o desespero, a negativa da razão, prudência e bondade. É o clímax da agonia e desilusão. O homem é, via de regra, uma fantasmagoria do projeto divino, eivado em seu intelecto, sentimento, razão e emoções pelo pecado. A queda da qual não pode resistir, a não ser pelos efeitos benéficos e libertadores de Cristo. E se há esperança, ela reside integralmente nele.
Crane, em momento algum, evoca essa máxima, empenhado em desnudar o ufanismo, os defensores de uma causa perdida, mesmo na vitória. Em guerras, somente os que dela não participaram são os vencedores, a despeito da pecha de covarde e poltrão, pois a morte e a destruição parecem dominar os corações mais do que qualquer outro pretexto a encobrir os reais impulsos. Se não se mata, morre; e mata-se para morrer, e morre-se para matar, de algum jeito, em cada resquício de humanidade a sobreviver pelo imago dei. A vida se torna em mero detalhe, muito menor do que a ruidosa barafunda de brados, gemidos, tiros e lâminas cortando o ar... e o silêncio profundo dos corpos estirados ou mutilados no chão. Para sobreviver é necessário outros sucumbirem ao perigo, e alguém a contar essa história.
A realidade, entretanto, é de não haver vitória, nem mesmo aos não integrantes, pois as consequências de atos tão vis e malignos lançam seus venenos sobre o mais inocente, ermo e esquecido cidadão. Isso é um fato. Há, porém, outro fato: os afetados, mas não dispostos a povoar o front com crueza e ódio, não os geraram, ou foram causa: sofreram os efeitos, sem colaborar para eles. Alguém pode dizer: mas foi a covardia que os condenou. Será, cara-pálida? Ao decidirem pela vida, que culpa têm na morte? E se faleceram, não participaram do “jogo”, logo, não existe autoria. Ela se restringe aos que mataram, e havia somente eles, seja nos planos, interesses ou execução. Jamais de quem se opôs à beligerância. Guardadas as devidas proporções, é como o indivíduo que, ao explodir a casa do inimigo, atinge também a do vizinho, talvez um amigo. Ele foi apanhado pela contingência das decisões e sucedidos; e se todos agissem assim, a listar as consequências, não haveria mortos e feridos, destruição e ruína... Seria sonhar demais, e esta pode ser uma discussão melhor desenvolvida em outro lugar e momento.
Por hora, faço a seguinte distinção: “Nada de novo no front” é um líbero pacifista, onde a guerra se revela brutal, cruel e deliberadamente injusta. Remarque está mais empenhado em denunciar a imoralidade dos conflitos. Em “O emblema vermelho da coragem”, Crane, em meio à fraqueza dos partícipes, quer destruir o nacionalismo e a ideia de uma pátria de cada um e, por conseguinte, de todos. Mas ela é, na verdade, de poucos, e o homem comum é um pião solto em meio a tantos obstáculos que, mesmo rodando, não ficará muito tempo em pé. Nada mais absurdo e mais natural. Afinal, os homens se unem e se amontoam, na maioria das vezes, para destruir e reconstruir o que não devia ser destruído.
Em ambos, é o grito do homem dentro do homem, quase inaudível ao próprio homem.
_____________________
Nota: Texto publicado originalmente na Revista Bulunga
_____________________
Avaliação:
(****)
Título:
O Emblema Vermelho da Coragem
Autor:
Stephen Crane
Editora:
Penguin-Companhia
Páginas:
216