Disponível em
24 setembro 2025
17 setembro 2025
Prefácio de Sammis Reachers ao livro "Na Eira de Ornã"
Sammis Reachers*
Contista, romancista e crítico literário, em Jorge
F. Isah o poeta é persona bissexta. E isto, esse chegar pela tarde, é excelente
tanto para o beletrista quanto para os bons vinhos: seu verso é maturado e
emancipado, sob a têmpera de suas muitas influências e leituras.
Sua poesia rompe e funda seu rumo, feito jangada de
Caronte no rio metafísico; uma poética que emana e dimana uma angústia
soteriológica. Percepções e sentimentos patentes em um poema como Confessionale,
onde legendários pecadores da literatura (Mr. Hyde, Fausto, Dorian Gray)
preparam sua atuação, sua farsa citadina, enquanto "a beleza [jaz] exilada
em manguezais":
Confessionale
Cores, formas, geométricas e desiguais
Ruídos, cantos, afinados e dissonantes
Ouro, prata, cobres e portais
Récita, danças, frenesi e variantes
Ruas e casas em silêncio mortal
Corações e mentes presos em cofres
A beleza exilada em manguezais
Hyde está sobre holofotes
Fausto cala-se atrás do ralete
Gray compõe seu make-up
Versos eliotianos lindam versos surrealistas, num jogo hermético tão caro ao poeta, desde seus livros anteriores, A Palavra Não Escrita e Arpeggios Insulares. Ao leitor, embarcado/aluado na fruição, cabe desnudar-se para abarcar, com tal potência, a nudez do autor, suas flores e descalabros. Na fímbria entre brumas e rochas, podemos ouvir a voz dos moralistas franceses como La Bruyère e La Rochefoucauld, vaticinando contra os vícios deste mundo em descendente torvelinho.
Signos afloram em tensa caudalosidade, o vernáculo
entrega seus frutos à dor do poeta e sua cisma, convidando o leitor ao
labirinto. Ao seu final, a luz de Cristo, início e fim da vida e do poema, dá
seu vaticínio e irrompe do verboverso de ardências deste “Na Eira de Ornã”.
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04 setembro 2025
Homem Invisível - Ralph Ellison
Jorge F. Isah
Este é o que se poderia dizer um daqueles livros que
caiu no meu colo, sem indicação, sem ouvir falar, ou ter referência. Em minhas
constantes buscas por títulos, e por descontos (ninguém é de ferro!), na última
Prime Day deparei-me com ele e, à primeira vista, me remeteu à ficção
científica de Wells. Mas não era. Escrito por um tal Ralph Ellison, cujo nome
não me dizia nada. Li a sinopse e me interessei pela história, já com receio de
ser um daqueles livros lançados como “antirracistas” (a encher as livrarias), e
que são apenas panfletários e libelos muito mal escritos.
Estava às voltas com outros volumes, e reservei-o
para a semana seguinte, furando, mais uma vez, a longa fila que se arrasta. Não
falo de design de capas, porque o assunto é sempre o texto, história e
narrativa, mas achei a da José Olympio artisticamente bela e sugestiva. O
designer conseguiu captar a essência do livro e, quase, porque não deixa de ser
uma falácia, pôde garantir: “uma imagem vale mais do que mil palavras”.
Dias depois, comecei a lê-lo. Já no início, me vi capturado
pela introdução; o final do 1º parágrafo diz:
“Levei muito tempo para constatar, e com doloroso
efeito rebote de expectativas, aquilo que todo mundo parece saber desde o
nascimento: que não sou nada além de mim mesmo. Primeiro, porém, eu tive de
descobrir que era um homem invisível”.
A ideia da busca pela identidade e um lugar no mundo parecem óbvias, e vai se confirmando no progresso da leitura. Contudo, vai além.
Pode-se ver que, decorridos 20 anos desde o início da trajetória do personagem (o narrador está na casa dos 40), outros elementos se agregaram.
Negro, nascido em meio ao racismo americano, filho
de pobres, e uma ligação intensa com o avô falecido, que parece uma espécie de
voz interior; ele vai para a faculdade de negros onde experimenta na própria
pele o jogo de poder, e, nesse campo, não existe cor, mas apenas o rigoroso código sem o qual é
impossível progredir social e intelectualmente. O reitor e o conselho, ocupados
por negros, pareciam cumprir à risca as últimas palavras do avô, no leito de
morte:
“Filho, depois de eu partir, quero que continue
nesta luta. Nunca lhe contei, mas nossa vida é uma guerra, e tenho sido um
traidor desde que nasci, um espião no território inimigo, desde que deixei
minha arma, na época da Reconstrução. Viva com a cabeça na boca do leão. Quero
que você os derrote de tanto dizer sim, que os solape com sorrisos
escancarados, concorde com eles até a morte e a destruição, deixe-os engolirem
você até vomitarem ou explodirem” (pg. 50).
Parece o delírio de um velho moribundo, mas, depois
de andar algumas páginas, refleti que, no final das contas, o que o ancião
queria dizer era: “Não ligue para o que pensam de você, engane-os, iluda-os,
mas saiba no íntimo quem você é!”. O narrador estava convicto de já ser
assim:
“Na cidade, eu era elogiado pelos homens mais
brancos do que lírios. Era considerado um exemplo de conduta desejável,
exatamente como meu avô fora” (pg. 51).
A morte do velho causou-lhe um impacto profundo,
porém, mais do que ela, as suas últimas palavras “causaram tanta ansiedade
que foi como se ele não tivesse morrido” (pg. 51).
Em meio às dúvidas, havia a certeza de não se deixar
vencer tão facilmente.
Em uma sequência desastrosa, ao ciceronear o
principal filantropo da instituição, Sr. Norton (branco), se vê expulso pelo
reitor, dr. Bledsoe (negro), preocupado em resguardar a sua posição e
confirmar, diante de negros e brancos, a sua capacidade diretiva. Com isso,
parte para Nova York com várias cartas assinadas pelo reitor e endereçadas a
contatos, onde o jovem proscrito será apresentado como candidato a alguma vaga.
Na verdade, todo o arranjo do reitor é uma farsa, e somente depois de
perambular por salas de espera, secretárias impessoais e respostas mecânicas, à
espera de resultado, descobre que fora enganado. Veio-lhe então a imagem quase
onipresente da estátua de bronze do fundador da faculdade, “o símbolo de um
Pai frio, as mãos esticadas no espantoso gesto de levantar um véu que tremula
em rígidas dobras metálicas acima do rosto de um escravo ajoelhado; e me vejo
desorientado, incapaz de decidir se o véu está realmente sendo levantado ou
abaixado mais firmemente para o lugar onde se achava, se presencio uma
revelação ou uma cegueira mais eficiente.” (pg. 73).
A saga errática do nosso herói continua em situações
bizarras, engraçadas e absurdas. Contra elas, por mais que tente reagir, é
sempre capturado, subjugado; mas o orgulho e o ardor ingênuo encarregaram-se de
ocultar ou, ao menos, não deixar evidente o descontrole que tinha sobre a
própria vida. Estivesse incógnito ou evidente, ele era uma peça de uma
engrenagem gigante, cuja função, ação e propósito desconhecia e, nem mesmo o
tempo foi capaz de elucidar. O sistema dava a cada um ares de importância,
enquanto os mantinham em cabrestos; e por mais que se grite, mova e queira
vislumbrar o panorama, consegue-se ver tão somente o que as viseiras permitem,
os arreios indiquem, e o chicote não reprima.
No fundo, toda essa movimentação social na busca do Éden, ou da Babel, é fruto da cegueira e arrogância. Ninguém pode salvar quem não se considera perdido ou condenado; resta que, primeiro, o faça a si mesmo. De alguma forma, a busca do protagonista é essa: ao descobrir o seu lugar no mundo, constata que não é definitivo, e antes mesmo de ocupá-lo, já preparam o seu substituto. A chama de vida é possível, e ele a encontra na pessoa da velha Mary mas, seduzido pela notoriedade e a promessa de mais disso e daquilo, abandona-a, e o que poderia ser uma fogueira acolhedora e aprazível se apaga em quase um piscar de olhos... A ilusão está por toda parte, e quase sempre o que os olhos veem o coração não sente ou compreende. A verdade é que o mundo, tal qual o conhecemos, é por demais inóspito se estivermos a olhar apenas o que podemos e queremos. Assim, não é difícil ser amealhado e enganado por ideologias, falsos ídolos, apóstatas e messias de araque, que engabelam com a promessa doidivana de um paraíso na terra, ao alcance das mãos, mesmo sem ninguém o ter alcançado.
Num pulo, se vê envolvido em uma teia, aliciado por
um grupo de ideólogos, a “Irmandade”, cujos objetivos não têm nada a ver com a
aparente causa negra, mas se utiliza dela para alcançá-los. Jack passa a ser o
seu mentor e com ele tem acesso a tudo o que é mais apetecível à alma:
imoralidade, aética, conforto e algum poder. Antes é preciso transformá-lo à
imagem do movimento, e até mesmo um codinome (um pseudônimo) o obriga a
rejeitar o próprio nome, a abandonar e não ter contato com a família, amigos e
nada que o remeta ao passado; resta apenas o futuro e o presente a construí-lo.
Em busca da identidade, precisa negar a pessoalidade. Na construção do novo
homem, o antigo deve ser destruído. Não há lugar para sentimentos,
arrependimento ou hesitação. A Irmandade precede o indivíduo; e ele não pode
sobreviver, para que ela não morra. Enquanto houver resquícios do velho homem,
não se pode construir o novo e forjar uma nova identidade. Ela é coletiva, e o
nosso homem “pré-invisível” está disposto ao sacrifício, a fim de trabalhar
pela causa do seu povo. Com o tempo, nota no irmão Jack (o líder do movimento)
os mesmos sintomas que tornam Bledsoe um homem temido. Se a Irmandade é um
grupo de racionais-materialistas, os inimigos mais ferrenhos, Ras e seu clã,
são anarquistas. Em ambos, é perceptível o desprezo a qualquer valor
minimamente humano; nada além do poder, e estamos conversados.
Existem momentos, mais do que o normal, em que ele
se faz de pobre-coitado, e começa um chororô repetitivo e monótono. Não é algo
que comprometa a história, mas que poderia ter menos visibilidade. Contudo,
entendo a intenção, como um primeiro estágio do homem impotente e infantil diante
da loucura ou injustiça do mundo; mas são notas que o excesso faz destoar.
Em suas quase 600 páginas, Ellison narra as
desventuras e frustrações do nosso herói, ou anti-herói se preferir, até o
ponto em que, em mais um descuido, se viu lançado na mais plena escuridão, e
dela não quis mais sair. Quem se importa com um homem invisível? Mas, do seu bunker, ele ouve e sabe o que se
passa com outros tantos homens como ele, que, se pudessem escolher, não o
seguiriam em sua jornada, afinal, não se segue a quem não se enxerga.
A conclusão final de Ralph Ellison, a última frase,
nos conclama à reflexão: “Quem sabe se, nas frequências mais baixas, eu falo
também por você?”.
Pretensioso?!... Esta é, contudo, a vantagem de ser
invisível.
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Classificação: (****)
Título: Homem Invisível
Autor: Ralph Ellison
Editora: José Olympio
Páginas: 574
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21 agosto 2025
Peter Sellers: O vendedor de risos
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14 agosto 2025
Estudo sobre a Confissão de Fé Batista de 1689 - Aula 44: "Marcas da Igreja Verdadeira"
Um rápido resumo da aula anterior:
- Igreja como organismo [corpo vivo];
- Igreja como organização [corpo local];
- Igreja invisível e universal [todos os santos em todos os tempos];
- Igreja visível [onde há os joio e o trigo, ainda que o trigo seja verdadeiramente a parte visível da igreja universal.
- PODEMOS DIZER QUE HÁ MARCAS QUE INDIQUEM UMA VERDADEIRA IGREJA?
- QUAIS?
- ATÉ QUE PONTO ELAS SÃO NECESSÁRIAS PARA QUE SEJA PARTE DA IGREJA DE CRISTO?
- Jo 8.31, 32, 47; 14.23; 1 Jo 4.1-3; 1Ts 5.21; Ap 2.2
- Mt 28.19; Mc 16.15, 16; At 2.42; 1 Co 11.23-30.
- 1 Co 5.1-5, 13 [1Tm 1.20 e 2Co 2.4-11] – Igreja como proteção ao crente. Paulo parece dizer que aquele que é expulso do convívio da igreja está entregue a Satanás, ao mundo, estando sujeito a ele e sem a proteção do Corpo.
Notas: 1- No áudio, os pontos apenas tocados levemente aqui são expostos mais detidamente, sobre as marcas primordiais da verdadeira Igreja de Cristo. 2- A seção 2C, que se refere à disciplina eclesiástica será discutida mais à frente, em outra aula.
26 julho 2025
Um Conto de Duas Cidades - Charles Dickens
Jorge F. Isah
Nota: Talvez você não entenda o que
escrevi, já que não fiz uma sinopse ou resumo do romance. Raramente o faço. Mas
bastará lê-lo para confirmar o que digo.
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Avaliação: (****)
Título: Um Conto de Duas Cidades
Autor: Charles Dickens
Editora: Nova Fronteira
Páginas: 502
18 julho 2025
Tanto por fazer - Theodore Dalrymple
Jorge F. Isah
Dalrymple é mais conhecido por suas obras
de não-ficção, sobre a pós-modernidade, onde aspectos culturais, sociais,
educacionais e políticos apontam para um mundo em franca degradação. Ao
aprofundar-se nas causas e consequências desse “projeto”, a dissociação da
sociedade com a realidade torna-se impressionante, mas não impressionável, ao
menos para os “engenheiros” sociais e sua militância histérica e
simplória. Tudo precisa ser modificado para se encaixar aos novos tempos, e o
começo sempre é com o desmonte da língua e o uso de termos e expressões que, se
analisados, demonstrar-se-ão incompatíveis e heteróclitos, para dizer o mínimo.
Cada vez mais, o
homem tem se tornado ambíguo ao entregar-se a ideias vagas e atitudes
problemáticas, a expô-lo em permanente risco. Não raro, crimes, brutalidade,
ataques e mortes têm ganhado o apoio de tantos, enquanto pensar fora das caixas
ideológicas é sinal de ameaça e extremismo. Nunca se viu um amor tão raivoso e
hostil; e talvez essa seja a maior de todas as provas do declínio humano, a
hipocrisia oficial e oficiosa, onde as palavras negam os fatos e atos, e
vice-versa. Em suma, a modernidade se especializou em demolir a moral e a
tradição, enquanto subestima a responsabilidade individual, inocenta o mal
enquanto “demoniza” o bem. Em tempos em que a razão é tão alardeada, o
sentimentalismo é a motivação de uma massa disposta a comprar o discurso de que
“o importante é ser feliz”, mesmo que para isso outros tenham de se “matar”
para arranhar a casca dos seus infortúnios.
O universo de Dalrymple (pseudônimo de Anthony Daniels), como um dos grandes
intelectuais modernos, penetra em várias nuances e camadas, e a minha tentativa
é resumir, a quem o desconhece, elementos presentes em quase todas as suas
obras (li 3, ao todo, além deste); e não há como negar: os seus esforços em
colocar no papel tudo aquilo que o establishment quer ocultar, derivam de
décadas de trabalho como psiquiatra na África e Inglaterra, onde, inclusive,
serviu como médico em penitenciárias. Ele fala do que viu e ouviu; mas, qual o
peso disso em nossos dias? Nada que um joguinho de palavras não possa
substituir ou camuflar.
“Tanto por fazer”, seu primeiro romance, é o monólogo do personagem Graham
Underwood, um serial killer, o “Monstro de Eastham”, condenado à prisão
perpétua por matar e enterrar no próprio quintal 15 vítimas (zombeteiro, alega
serem 22). Criado na pobreza e brutalidade, utiliza-se disso para justificar
parcialmente seus crimes; o que não o impediu de, na juventude, ler tanto
quanto podia os filósofos gregos, os clássicos, e praticamente tudo sobre os
assuntos pelos quais se interessou e descobriu. Em relação à maioria das
pessoas, pode-se considerá-lo culto e inteligente; um tipo semelhante, ou
alude, ao “Conde Fosco” de Wilkie Collins, “Long John Silver” de Stevenson, e
“Juiz Holden” de Cormac McCarthy, todos cruéis e sanguinários a despeito da
erudição e intelecto apurado.
Em princípio, pareceu-me o relato de um criminoso, mas, à medida em que se
desenvolvia, o tom “humorístico”, irônico e sarcástico tomou conta da história.
Os argumentos de Graham eram “ipsis litteris” as alegações utilizadas por
governos e seus gestores, pela mídia e seus propagandistas, pelos políticos,
juristas, professores e toda a “intelligentsia”, para anular a realidade e
forjar outra segundo o discurso ideológico. A maioria não se apercebe disso,
mas Graham notou e, não por acaso, levantou a lebre da contradição e
irracionalidade do sistema, capaz de condená-lo pelos mesmos motivos que
inocenta outros tantos milhares. Vá lá, nada do que ele diz, ou a maior parte,
faz sentido, a não ser para ele mesmo que se considera injustiçado, já que se
vê como benfeitor, disposto a fazer o que as vítimas não eram capazes (queriam,
mas não podiam, segundo ele), dar-lhes alívio e eliminar um problema social.
“Não,
senhoras e senhores, a conclusão é inescapável: pode-se ser um assassino ético.
E eu fui um assim” (pg. 41)
Ao abordar vários aspectos sociais, as relações entre os poderosos e a plebe,
tece críticas ao comportamento geral, permeado pelo relativismo moral e a
ideologia que tende a minimizar e até mesmo inocentar criminosos confessos. A
pós-modernidade criou um mundo impessoal e cínico, irresponsável e injusto,
inquisidor e hipócrita. E ao provocar, espera ganhar a compreensão e
simpatia da assistência.
Em momento
algum, Graham se considera culpado ou demonstra arrependimento; ele é orgulhoso
e jacta-se da sua inteligência e cultura, dos seus vícios e crimes, da
racionalidade, da ausência de sentimentalismo, tem ares superiores, despreza
qualquer um com facilidade, faz analogias e compara situações que desnudam o
rei, enquanto todos continuam a vê-lo vestido.
“Eu
sou moralmente superior a vocês porque, como o médico que pratica a eutanásia,
eu não mato ao acaso; eu escolho quem deve morrer pelas minhas próprias mãos,
de acordo com critérios racionais e humanos... vocês matam como o louco que
entra num supermercado e massacra os clientes até que ele seja subjugado ou
mesmo executado.” (pg. 60)
Aqui, médico e
assassino se juntam em um mesmo propósito, e se um pode ser justificado
socialmente, por que não o outro? No frigir dos ovos, aborto, eutanásia e
homicídio são faces da mesma moeda. E tudo isso reafirma o seu ponto: ele é a
vítima, ou mais um a vitimizar-se; o algoz, a sociedade. Onde mesmo já lemos e
ouvimos isso?
Dalrymple detalha-o com esmero e cuidado, tal qual se biografa um progressista,
um ativista, ou o mero replicador urbano. Graham é vegetariano, ateu e
ecologista. Se considera íntegro, consciente, livre, ético, herói, e no direito
de matar sem ter de dar satisfação.
“Permanece
uma única possibilidade, portanto, para explicar a legitimidade da
transformação do cidadão normal em um assassino aprovado: que alguém pode
legitimamente se tornar um assassino desse tipo quando, e somente quando, ele
julgar que é certo fazer isso.” (pg. 41)
Ao se utilizar da mesma retórica vigente e comumente alardeada na educação,
administração, mídia, artes, academia e tutti quanti, ele tenta em si o
antídoto que neutralize o veneno enquanto morre. Seu jogo não é probatório da
razão; é tomar do sistema as armas com as quais ele o atacará ou, em última
instância, o fará igual a todos, e tornará todos iguais a si. Não existe a
verdade, mas quem se apregoa verdadeiro, mesmo na enxurrada de mentiras e
falácias.
“Não
que eu espere que alguém tome conhecimento de minhas ideias, eu não sou tão
ingênuo a ponto de pensar nisso. Um profeta não só não é honrado em sua própria
terra, mas em sua própria época.” (pg. 105)
Graham expõe a estupidez, de maneira hilária, das chamadas lutas pelas
minorias. Em dado momento, o “lobby canhoto” exigiu das autoridades o direito
de aposentar-se antes dos destros, porque segundo os dados (sempre as tais
estatísticas das quais nunca se sabe nada) os canhotos viviam dez anos menos
que os destros; o retrotreinamento dos falsos destros em verdadeiros canhotos,
a fim de reconquistarem a própria identidade; e, por fim, acabar com a
linguagem ofensiva manidestra, “e eliminar
do departamento: termos como sinistro e gauche, carregados de conotações
depreciativas a respeito dos canhotos e do canhotismo.” (pg. 111).
Trocar a expressão “He left his flat” por “He vacated his flat” ou “He leaved
his flat”, já que “left” em inglês serve tanto para designar o verbo deixar e o
substantivo esquerda, é o teste máximo a sujeitar a maioria.
O fato de se dirigir aos leitores como “senhoras e senhores” demonstra como
está a utilizar de eufemismo, assim como o mainstream insiste em enfiar goela
abaixo da sociedade regras e normas descabidas, tudo em nome de uma suposta
igualdade e justiça.
O seu desprezo é
notório:
“Elas
(as pessoas) têm a força de um touro, o cérebro de um frango e a moral de uma
hiena” (p. 131)
Os argumentos se seguem, entre choro e ranger de dentes, e Dalrymple escreve,
pelas mãos de um serial killer, a insanidade, o misto de burrice e insolência,
com as quais se quer reconstruir este mundo. Nisto, acerta em cheio. Porém, as
ideias e teses de Underwood se repetem, repetem (talvez, efeito pretendido pelo
autor), e a maluquice “lógica” do bandido parece opiniões saídas de telejornais
e dos apologistas do mal: pedagogos, juristas, terapeutas, e tantos outros
incapazes de perceber a ferida e o sangue após atirarem nos próprios pés.
O romance poder-se-ia chamar filosófico; e trata do homem na busca incessante
por revoltas e motins, e acaba por se tornar, ao mesmo tempo, vítima e
carrasco.
O Éden pós-queda se repete, repete, e quase não se consegue mais sair dele.
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Avaliação:
(***)
Autor:
Theodore Dalrymple
Editora:
É Realizações
Páginas:
184
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10 junho 2025
A Ilha do Tesouro ou Construindo Jackyll & Hyde
Jorge F. Isah
Estando na meia-idade, e tendo uma perna-de-pau, sua força física, aliada a uma violência natural (sem nos esquecer da sua sagacidade), torna-o em um oponente quase imbatível. O temor pelo qual perpassam inimigos e aliados é completamente justificado pelo corpo e mente diabólicos de Silver. A luta dele é pela sobrevivência, mesmo que decida-se por um lado, e depois por outro, os interesses são os de preservar-se a todo custo, ainda que resulte em dupla traição: aos antigos inimigos feitos novos amigos, e aos antigos amigos em inimigos.
04 junho 2025
Judas, o Obscuro - Thomas Hardy
Jorge
F. Isah
Judas é um tipo literário muito próximo de Jó, o
personagem bíblico, em suas agruras, aflições e dores. Ao passo em que Jó sofre
exatamente por sua fidelidade a Deus, e pelo desejo sincero de retidão e
justiça (o que acaba por despertar a maldade objetiva de Satanás), Judas deseja
apenas se ver livre das amarras sociais, numa espécie de autonomismo e
independência, acreditando que suas decisões cabem apenas e exclusivamente a si
mesmo, sem se importar, ou vislumbrar, com as consequências dos seus atos. A
liberdade de Judas é pueril e enganadora; e arrasta-o para dentro do “Mal”.
O livro escrito por Thomas Hardy (um entusiasta
apaixonado pelas ideias de Darwin) foi escrito em 1895, e carregado do
naturalismo em voga, que não deixou de influenciar a literatura. Judas, por
mais que tente, ao seu jeito, fugir do destino que lhe é traçado, sucumbe à sua
inexorabilidade (referência ao personagem bíblico que traiu Jesus?)¹.
Como não sou de fazer resumo dos livros, também não
o farei neste. Apontarei, contudo, o que mais me chamou a atenção, sem fazer
spoilers, e sem desestimular o futuro leitor a emprenhar-se nas aventuras e
desventuras do protagonista:
1) Judas tenta “mudar” o seu destino, algo que os
naturalistas, e, em especial Hardy, não crê possível. Para ele, Judas será o
que é, nascido um pária, morrerá como tal.
2) Ciente do que lhe espera, Judas apela para um
autonomismo impossível, como se pudesse viver no mundo alheio ao mundo, sem que
seus atos trouxessem consequências para si e seus queridos. Pouco a pouco, no
decorrer da história, parte para a negação de Deus, fazendo do Cristianismo o
“bode expiatório” do seu sofrimento. Em uma sociedade cristã, a culpa de todas
as convenções e males se deve, portanto, ao Cristianismo, num apelo tresloucado
à razão, como sendo-a santa, pura e perfeita; de maneira que, se todos os
homens a aplicassem por completo, negando suas crenças e fé, todos seriam
felizes. Acaba-se por criar e defender um dualismo “fé x razão” no enredo, o
que é, no mínimo, reducionista, simplório.
3) Hardy não escreveu uma única linha em que não
destilasse a sua aversão ao Cristianismo, se não explicitamente (como em muitos
diálogos e pensamentos), deixou-os subliminarmente evocados em ações e
comportamentos. Porém, o Cristianismo descrito pelo autor é o que podemos
chamar de “cristianismo secular” ou “nominal”, onde a aparência cristã é
utilizada para justificar o farisaísmo e a hipocrisia do homem. Veja bem,
farisaísmo e hipocrisia não são, nem de longe, aspectos do verdadeiro
Cristianismo, mas a “máscara” daqueles que o próprio Senhor Jesus denunciou a
seu tempo. Talvez, por isso mesmo, o autor escolheu o nome “Judas” para o seu
protagonista que, mesmo vivendo por mais de três ano na companhia do Cristo,
não se furtou a traí-lo.
4) Ao fugir das convenções e de aspectos morais que
regulavam o convívio social, se viu pagando um preço alto, vivendo como um
“cigano”, juntamente com a sua família. O capricho de não querer se enquadrar
ao escopo da sociedade colocou-o na situação mais miserável que o enquadramento
social lhe destinaria. Em sua rebeldia juvenil e ingênua, acreditava possível
passar ileso, sem traumas, quebrando regras. Judas não se considera responsável
por si, mas “a chorar as pitangas” contra o inimigo a destruir-lhe a felicidade: a
sociedade; enquanto aplica-se em cavar para si e os seus o caminho de ruina.
Este é um aspecto, em que o mal dentro do homem procura uma versão de mal fora
de si, e o distrai e afasta do julgamento correto, da seriedade correta, da
conclusão correta, onde o relativismo é o tiro certeiro no vazio, e o atirador
se convence de ter acertado o alvo, como um Quixote a lutar com monstros e
demônios apenas na imaginação.
5) Outro aspecto, fruto dessa visão vitimista e
malévola, inegável em Judas e sua esposa, Sue, é o orgulho e presunção de, ao
não se curvarem aos hábitos da sua época, serem superiores aos seus
concidadãos. A prova encontra-se nas inúmeras vezes em que exaltavam suas
inteligências, raciocínios e um apelo à razão como a essência de todas as
virtudes; por conseguinte, sendo os seus detentores, consideravam-se também
especiais, enquanto eram apenas jactantes, desdenhosos e antipáticos.
6) Nem mesmo o sacrifício pessoal, como o do prof.
Richard, parece um ato isento de soberba, de autoexaltação obstinada, dominada
pela “pureza” racional.
7) Entretanto, não há como não se compadecer da
“má-sorte” e os rumos que suas vidas tomaram. Ao ponto de, sem qualquer
esperança, sobrar-lhes a loucura e o definhamento.
Judas, o obscuro, é um livro pessimista, áspero,
quase inóspito. Mesmo nos momentos mais ternos e belos, a angústia, dúvidas e
desespero estão entranhadas nas palavras, sentimentos e reações. Não é um livro
fácil de ler, pois os lampejos de esperança são quase imediatamente dizimados
por uma realidade sufocante e cruel, pela teimosia de não mudar ou ceder, e a
incapacidade de tornar à vida, de encará-la de maneira menos fatalista, onde a
liberdade individual, via de regra, é quase inexistente diante do apelo
opressivo e coercitivo do destino.
Entretanto, é possível encontrar momentos de
ternura, elegância, acabando por tornar verossímil os personagens e o enredo
como um todo.
A linguagem é
simples, sem rebuscamentos. A narrativa parece se arrastar um pouco,
especialmente na primeira metade do livro. Contudo, em sua bissecção final, ela
flui sem delongas.
Judas, o obscuro é um bom livro? Sim, sem dúvidas.
Para estar no rol dos melhores de todos os tempos, como comumente é citado nas
grandes listas? Tenho dúvidas. Talvez, precise ruminar ainda um bom tempo a
história, e, quem sabe, fazer uma nova leitura, no futuro. Certo é que, tirando
a defesa “intransigente” do racionalismo e de um certo determinismo
naturalista, a “aversão” ao Cristianismo (criando um estereótipo, uma espécie
de espantalho), o livro se sai bem.
Notas: 1- Pode-se levantar a questão de que Judas traiu a si e sua família, como alguns apontam, mas não vejo fundamento. Por outro lado, é possível que Hardy tenha se utilizado do personagem Judas, do Novo Testamento, para dizer o quanto o caminho daquele era inevitalmente lúgubre, e, de alguma maneira, não se fez a devida justiça a ele; sua culpa não era inerente mas advinda do contexto social no qual vivia. Alguns teólogos e teóricos liberais concordariam, se não no todo em parte, com essa hipótese.
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Avaliação: (***)
Autor: Thomas Hardy
Editora: Abril Cultural
Páginas: 461