19 novembro 2024

O Emblema Vermelho da Coragem - Stephen Crane

 




Jorge F. Isah

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Li, há alguns meses, outro livro sobre guerras: “Nada de novo no front”, do Remarque; então, me aventurei a este, do Crane, autor completamente desconhecido para mim, e com o qual me deparei em meio às sugestões do Kindle, tendo em vista o padrão das minhas leituras. Normalmente, tenho uma “lista” de obras a serem examinadas, e, vez ou outra, algo se “intromete” e me toma a curiosidade, favorecendo-o ao invés do próximo tomo.

Primeiro, veio o aguçar do interesse pelo título, não raro me vejo ceder a esse estímulo. Segundo, ao saber que se tratava de um romance sobre a Guerra Civil Americana, a atenção redobrou. Como estava a ler “Os Demônios”, envolvido pela narrativa magnética de Dostoiévski, resolvi concluí-la e somente depois enveredar-me em Crane.

Antes de concluir o livro, não li nada sobre ele ou o autor, não tinha qualquer referência ou parâmetro; e assim faço com obras desconhecidas e mesmo a de autores já conhecidos, para não carregar uma lida partidária ou guiada. Interessante que a maioria dos “couchs literários” defendem exatamente o contrário, como se o leitor fosse incapaz de reconhecer o terreno onde pisa, mesmo se apalpando. Apenas depois de ler, no geral dois a três dias, aventuro-me ao prólogo, prefácio, posfácio e notas complementares, caso existem.

                                         


Surpreendi-me com a maturidade da escrita de Crane quando concebeu e desenvolveu a obra, aos 24 anos. Não teve muito tempo para mais, por falecer aos 29 anos. Todavia, apesar de haver gênios em várias artes a começarem cedo, raramente se depara com uma escrita ao mesmo tempo concisa e profunda.

Nele temos a história do anti-herói que posteriormente se descobre herói, por acaso, diga-se, reconhecido por colegas e superiores. Ela não é complexa, hermética, sinuosa, muito menos falsa. Henri Fleming é o protagonista, a despeito de se poder assegurar serem os combates personagens não menos importantes. Ele é um jovem, na casa dos 20 anos, um matuto da roça, que ajuda a mãe no trabalho intenso e rigoroso do campo. Sonha em alistar-se e ir para o front combater os dissidentes sulistas, opositores ao governo republicano de Abraham Lincoln e dispostos a dividirem a América em duas.

Fleming é um sonhador, ingênuo, a se imaginar enfrentando os inimigos, destruindo-os e a voltar com a pompa de herói. A mãe não comunga com os seus ideais, e teme pelo filho e pelo próprio futuro sem ele. Henry, contudo, não tira da cabeça o desejo de vestir o uniforme da União; e temos o primeiro conflito de visões: a mãe realista e temerosa, o filho sonhador e confiante na glória.

Crane não imprime nenhum viés romântico, patriótico, ou transforma os jovens em super-homens. A narrativa é sobretudo pragmática e objetiva, muito mais envolta em dúvidas, trapalhadas e golpes fortuitos da sorte do que em um planejamento detalhado e logístico. As batalhas se davam muito mais pelas exigências da guerra do que propriamente por estratégias militares. Muitas vezes era tão somente ímpeto cego, de um lado e do outro. Talvez, por isso, não haja tantos personagens marcantes além do próprio Henry e os embates. Muitos surgem e perdem-se, para quase sempre não serem mais lembrados.


Isso leva Fleming, e o leitor, a perceber o quão prosaica é a figura do soldado: não passa de número, um grão de areia na praia que ninguém vê ou sabe existir. Havia apenas o batalhão entre outros batalhões, um soldado entre milhares de outros, e a morte era o detalhe final a torná-los dispensáveis e incógnitos.

Depois do treinamento e meses acampados, partem para o front, e Henry não sabe se terá coragem de lutar. Não raro, durante boa parte da narrativa, esta é a suspeita a atormentar e a levá-lo quase sempre a hesitação e pensamentos de deserção. A guerra é brutal, e o sangue (o emblema vermelho) é muito mais produto das fraquezas do que da coragem. Ela é praticamente o desespero, a negativa da razão, prudência e bondade. É o clímax da agonia e desilusão. O homem é, via de regra, uma fantasmagoria do projeto divino, eivado em seu intelecto, sentimento, razão e emoções pelo pecado. A queda da qual não pode resistir, a não ser pelos efeitos benéficos e libertadores de Cristo. E se há esperança, ela reside integralmente nele.

Crane, em momento algum, evoca essa máxima, empenhado em desnudar o ufanismo, os defensores de uma causa perdida, mesmo na vitória. Em guerras, somente os que dela não participaram são os vencedores, a despeito da pecha de covarde e poltrão, pois a morte e a destruição parecem dominar os corações mais do que qualquer outro pretexto a encobrir os reais impulsos. Se não se mata, morre; e mata-se para morrer, e morre-se para matar, de algum jeito, em cada resquício de humanidade a sobreviver pelo imago dei. A vida se torna em mero detalhe, muito menor do que a ruidosa barafunda de brados, gemidos, tiros e lâminas cortando o ar... e o silêncio profundo dos corpos estirados ou mutilados no chão. Para sobreviver é necessário outros sucumbirem ao perigo, e alguém a contar essa história.


A realidade, entretanto, é de não haver vitória, nem mesmo aos não integrantes, pois as consequências de atos tão vis e malignos lançam seus venenos sobre o mais inocente, ermo e esquecido cidadão. Isso é um fato. Há, porém, outro fato: os afetados, mas não dispostos a povoar o front com crueza e ódio, não os geraram, ou foram causa: sofreram os efeitos, sem colaborar para eles. Alguém pode dizer: mas foi a covardia que os condenou. Será, cara-pálida? Ao decidirem pela vida, que culpa têm na morte? E se faleceram, não participaram do “jogo”, logo, não existe autoria. Ela se restringe aos que mataram, e havia somente eles, seja nos planos, interesses ou execução. Jamais de quem se opôs à beligerância. Guardadas as devidas proporções, é como o indivíduo que, ao explodir a casa do inimigo, atinge também a do vizinho, talvez um amigo. Ele foi apanhado pela contingência das decisões e sucedidos; e se todos agissem assim, a listar as consequências, não haveria mortos e feridos, destruição e ruína... Seria sonhar demais, e esta pode ser uma discussão melhor desenvolvida em outro lugar e momento.

Por hora, faço a seguinte distinção: “Nada de novo no front” é um líbero pacifista, onde a guerra se revela brutal, cruel e deliberadamente injusta. Remarque está mais empenhado em denunciar a imoralidade dos conflitos. Em “O emblema vermelho da coragem”, Crane, em meio à fraqueza dos partícipes, quer destruir o nacionalismo e a ideia de uma pátria de cada um e, por conseguinte, de todos. Mas ela é, na verdade, de poucos, e o homem comum é um pião solto em meio a tantos obstáculos que, mesmo rodando, não ficará muito tempo em pé. Nada mais absurdo e mais natural. Afinal, os homens se unem e se amontoam, na maioria das vezes, para destruir e reconstruir o que não devia ser destruído.

Em ambos, é o grito do homem dentro do homem, quase inaudível ao próprio homem.

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Nota: Texto publicado originalmente na Revista Bulunga

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Avaliação: (****)

Título: O Emblema Vermelho da Coragem

Autor: Stephen Crane

Editora: Penguin-Companhia

Páginas: 216

 

22 setembro 2024

Os Demônios, de Fiódor Dostoievski




 


Jorge F. Isah

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Antes de entrar propriamente na narrativa, algo a me incomodar sobremaneira na leitura (e-book) foi o trabalho de produção e diagramação da Sétimo Selo, algo deplorável e irritante. Além de pequenos erros ortográficos, havia uma constante “unificação” das palavras, ligadas umas às outras, a acontecer mais de uma vez em cada página; não me recordo se houve ao menos uma a não conter o erro e tornar a leitura desagradável, truncada, como se fosse um “caça-palavras”. Ademais, ultimamente, tenho percebido um trabalho desleixado e sofrível quanto à produção de vários e-books na Amazon. Talvez por haver necessidade de corte de gastos ou mesmo autores independentes não se prestarem a contratar um profissional e fazerem eles mesmos a revisão, a verdade é que os trabalhos editorais têm perdido muita qualidade. Esse certamente é o senão da obra.


Gostei bastante da tradução direta do russo para o português de Nina e Felipe Guerra; comparando alguns trechos com a tradução do Oleg de Almeida, não percebi diferenças em sentido e intensões deixados pelo autor. Enfim, o problema não é a tradução, mas revisão e diagramação relapsas.

Quanto ao livro, como já devem saber, fui leitor assíduo do russo em minha adolescência e juventude. É verdade não ter sido capaz de absorver a centésima parte dos sentidos. Na medida do possível, tenho relido as suas principais obras, e agregado novas e inéditas traduções.

O que dizer de “Os Demônios”? Talvez seja o livro mais profético de Dostoiévski. Com a precisão de um “oráculo” ele descreve não somente os primórdios mas os desdobramentos do que se viria a conhecer como a Revolução Russa e as demais a seguirem-na no universo marxista. O que para a maioria, ainda hoje, era inconcebível e improvável, para alguém capaz de penetrar na alma, sabedor de haver um estado de “depravação total”, colher as informações do passado (desde o Éden à Revolução Francesa), e os seminais passos dos revolucionários utópicos e “científicos” ou messiânicos, era de se esperar coisa que não prestasse. Na mesma toada, se você tem o “privilégio” de ouvir um funk carioca, crianças do maternal em poses e gestos dignos de “escorts”, a malandragem geral, censuras, perseguições, o fim da ordem, dos valores como família e igreja; a divinização do homem e a “morte” de Deus, todos esses elementos e muitos outros eram propostos e defendidos nos insurgentes do “Círculo”, o grupo com ímpetos de incendiar a Rússia.


Engana-se quem espera um livro apenas político, pois Dostoiévski é, sobretudo, o leitor da humanidade, o observador das relações interpessoais e movimentos sociais, o crítico dos fúteis e vaidosos e também dos orgulhosos e irritadiços, descrentes em Deus e crentes em si mesmos. Seja para o bem quanto o mal, ele os disseca, sob a ação de Cristo, dos apóstolos e da igreja. Para ele, a verdadeira redenção é individual, a partir do arrependimento (vide Vierkhoviénski, pai, saído do ateísmo místico e ativista para a verdade do Evangelho), jamais coletiva, e nela reside a verdadeira salvação ou solução para os dilemas da vida. Com isso, não insinua a extinção dos impasses; ao menos se terá o norte correto e absoluto ao qual se deve guiar e buscar. Perguntas que muitos de nós ainda fazemos, e gerações futuras farão, respondeu-nas Dostoiévski, não a partir de sistemas ideológicos e teóricos, mas pela realidade, a vivência, inclusive quando tais sistemas se perpetravam. Há quem não queira ver mas, para ele, não existe solução além de Cristo e o Cristianismo. Ao não reconhecer a própria fragilidade, os próprios erros e pecados, e buscá-los no outro, o homem se torna invariavelmente no pior dos animais.

Para situar o leitor, sem entrar nos pormenores da história, ela se baseia em um fato ocorrido na Rússia, em 1868, quando um grupo de revolucionários marxistas (no livro, “o círculo”) trama e executa a morte de um dos seus dissidentes. Este é o start de Dostoiévski para construir o romance, e a partir do destrinchar dos fatos, descobrir-se-á o envolvimento da quadrilha em outros crimes tão ou mais bárbaros.

O líder, Vierkhoviénski, filho, (alusão ao próprio diabo) em sua inveja, perfídia, manipulação e inflexível crueldade, revela o quanto sistemas “messiânicos”, com o fim de resolver todos os problemas do mundo a fórceps, pela violência, se valendo da presunção e arrogância das pessoas, independente da classe social, tornou-o em um dos mais malignos personagens da literatura. Ele seduz e, melifluamente, induz aristocratas (Varvara e Yúlia), assim como populares (Lipútin, Virguinski), ou idólatras (Erkel e Tolkatchenko), enquanto nutre um sentimento ambíguo pelo seu ídolo, Stavróguin.

Em um momento crítico, quando havia dúvidas em relação à execução da tarefa, Vierkhoviénski, filho, ordena:

“Ai daquele, entre os senhores, que tente agora fugir! Nenhum dos senhores tem o direito de abandonar a causa! Podem dar-lhe os beijinhos que quiserem, mas não têm o direito de trair a causa comum pela garantia de uma palavra de honra! Isso é o que fazem os porcos subornados pelo governo!... Subornados, meus senhores, são todos os que se acovardam no momento do perigo. Por medo, encontra-se sempre um imbecil que, no último momento, correrá gritando: ‘Ah, perdoai-me, mas vou trair toda a gente!’... Além disso, não poderiam fugir da outra espada. Ora, a outra espada é mais afiada do que a do governo.”

Neste trecho, a coação é uma arma poderosa de manipulação. Contudo, nenhum dos envolvidos é inocente, todos são culpados: fúteis e esnobes fidalgos quanto trabalhadores, pobres e utilitários. Todos, via de regra, se viram emaranhados na própria teia. Foram presas fáceis do próprio ufanismo, ao não perceber o quanto eram vulneráveis e suscetíveis aos apelos falsos e controladores. Não havia inocência, mas soberba e empáfia, na esperança de serem o “novo homem”, construído à força pelo delírio ideológico acrítico, e assim alcançar o paraíso terreno. Para isso, era fundamental a dessacralização, a extinção do divino, a negação do absoluto, do Messias, e, sem os rejeitar, como pavimentar o caminho sangrento e tortuoso e disruptivo? Fazer da utopia outro desastre humano? O Éden a se repetir novamente; uma coleta onde a sacola não tem fundo.

Tal qual hoje em dia, a rotulação do certo e errado é “relativa”, a depender dos interesses e o quão benéfico pode ser negar ou desvirtuá-los, era fundamental, um samba do crioulo-doido. Da mesma forma, tornar moral em imoral e vice-versa conferia e garantiria a lealdade cega e a consciência mantida em coma. Tudo a fim de garantir uma “fé” indubitável no movimento, e tornar os sectários em eficientes e dóceis guerrilheiros adestrados. Na maioria das vezes, os iludidos são tão somente aqueles a não ver o que lhes está posto diante dos olhos, e se empenham em enxergar além do horizonte, em um futuro a repetir em hipérboles o presente não sentido, não reconhecido, ou simplesmente vislumbrado, ao imaginar não haver o bem, logo, o mal também inexistirá. Como Santo Agostinho disse, o mal é a ausência do bem, e alimentar um é enfraquecer o outro. Portanto, prescindir do bem não excluí o mal, antes o emancipa e robustece, e a consequente desumanização nada mais é do que a tentação de fraudar, aniquilar o direito natural. Com isso, se criam tantas aberrações e distorções quanto a consciência produz ao distanciar-se da verdade. Dostoiévski cria na pessoa de Cristo, no seu Evangelho, como a suprema expressão da moral e da ética no mundo.

Muitos leem “Os Demônios” apenas pelo viés político, quando vai além desse escopo. Sobretudo, fala das relações a degringolar e lançar caos, angústia e dores aos personagens, e quais deveriam ser os seus papéis no mundo, se não fosse controlado por “anjos caídos”. Mas o diabo, assim como Piotr Stepánovitch, fugiu de cena e deixou o trabalho sujo nas mãos dos asseclas.

E a história expandiu-se, e virou ela mesma muitas outras histórias... e tragédias.

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Avaliação: (*****)

Título: Os Demônios

Autor: Fiódor Dostoiévski

Editora: Sétimo Selo

Páginas: 1.150

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Nota: Texto publicado originalmente na Revista Bulunga


18 setembro 2024

Malemolência Tupiniquim

  




Jorge F. Isah

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Tem coisas que somente os brasileiros fazem, dizem por aí. Existem hábitos (para alguns, manias) típicos e quase exclusivos nossos, tupiniquins. Um deles, e talvez o mais difícil de se entender, é o de comer pizza com talheres. Normalmente, mundo afora, come-se essa iguaria com as próprias mãos, aos moldes alimentares dos nossos queridos “hermanos” silvícolas. Para os “gringos” é abominável degustar tão saboroso (e gorduroso) alimento sem apalpá-lo, afagá-lo e apertá-lo entre os dedos. Chega a ser um fetiche. De nossa parte, esse negócio de comer pizza com as mãos deveria ser proibido e constar no código penal, com sentenças de 15 a 20 anos de prisão, sem direito a fiança e atenuação de pena. Deveria incluir trabalhos forçados; mas isso é sonhar demais, né!

Onde já se viu comer com as mãos? Ainda mais pizza? Já imaginou quantos micróbios e bactérias poderíamos ingerir?... E, depois, são esses “selvagens” a obrigar-nos ao uso de máscaras. Gente sem noção...




Outro particular, é a existência de cesto de lixo nos banheiros. Lá fora, eles simplesmente jogam no vaso sanitário o papel higiênico junto com os seus dejetos. Parece lógico, já que conservar restos fecais em cestinhos não tem nada de civilizatório e higiênico. Seria o mesmo que manter o seu Título de Eleitor em um cofre forte enquanto espalha dinheiro e joias pelas mesas e cômodas da casa. Dizem que as eleições, mais do que um dever é um direito. Ah, se fosse assim, veríamos filas semanas adentro, verdadeiros acampamentos, nos portões das seções eleitorais. Mas essa atitude é típica dos fãs de estrelas do rock, dos consumidores loucos por promoções, ou dos psicóticos usuários de iPhone. Ninguém monta barraca, literalmente, traz travesseiro, cobertor, cadeira de praia, garrafa térmica e biscoito amanteigado para votar. Nada mais justo do que abolir os cestinhos dos banheiros e qualquer esperança nos eleitores.




Brasileiro gosta de banho. Ao contrário de boa parte do mundo, é costume nacional lavar-se diariamente. Há aqueles que não se limitam a um, mas tomam dois ou três. E veem depois falar em ecologia. Querem prender a senhorinha que esfrega o passeio uma vez por semana, e o moleque que lava o carro quinzenalmente. Mas aqueles intermináveis 40 minutos de ducha, três vezes por dia, não causam qualquer impacto na natureza. É o típico cara a tirar o cisco do olho alheio enquanto mantém a trave no seu.

Aqui as coisas são tão estranhas que se criou o termostato de chuveiro, para impedir o excesso de tempo entre um enxague nos cabelos e outro nos pelos pubianos.

Essa mania se espalha a quase tudo, até mesmo nos altos escalões. Houve um tempo, não muito distante, onde se criou a “Operação Lava-Jato”, cujos efeitos foram tão rápidos e inócuos (graças a artifícios interpretativos de certa Corte) que todos os "sujões” estão a emporcalhar o país de novo. Nem uma fonte de água sanitária molhando-os ininterruptamente daria cabo desta bodega. Ou seja, não adiantam banhos, pois jamais seremos devidamente “limpinhos”.




Talvez, por sermos tão “sui generis”, o mundo desconhece que “hablamos” português, e acreditam piamente que o Brasil é um país de língua espanhola. Não sei o que os lusitanos esperam e fariam, mas, se fosse eu, ficaria quietinho e deixaria toda a culpa para os hispanos.




Se você conhece outra mania, e quer “expô-la” publicamente, mande-nos o seu e-mail com a sugestão, e um PIX para conta do editor.

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Nota: Texto publicado originalmente na Revista Bulunga

12 setembro 2024

O infante das pernas tortas

 




Jorge F. Isah




O que você imaginaria de uma pessoa que tivesse estrabismo (desvio de um olho em relação ao outro), obliquidade pélvica (desequilíbrio na bacia), seis centímetros de diferença de comprimento entre as pernas, o joelho direito tinha valgismo (desvio do joelho para dentro em relação ao eixo central) e o esquerdo varismo (desvio do joelho para fora em relação ao eixo central)? Provavelmente você diria: está de muletas ou numa cadeira de rodas. Ledo engano, camarada! Pois estamos a falar de um dos maiores jogadores de todos os tempos, que superou esses e muitos outros problemas para se tornar em um ícone do futebol mundial: Garrincha.

Em meio aos salários astronômicos dos astros do esporte na atualidade, e mesmo os menos votados acumulam fortunas, Garrincha ganhava o equivalente a um 3º reserva se ainda jogasse. É verdade que o futebol não era a máquina de cifrões que se tornou, mas era, à sua época, o esporte a mover céus e terra entre torcedores, imprensa, atletas e dirigentes. Meio amador, meio profissional, ainda que fosse um grande espetáculo, não movimentava as quantias como veio a se tornar. E para os jogadores menos organizados e incapazes de planejar o futuro, como Mané, a curta profissão e a má administração resultariam em dívidas ao invés de dividendos.



Nascido em 1933, em Magé, Manoel Francisco dos Santos pertencia a uma família de 15 irmãos, e ele mesmo quase alcançou esse número (14), tendo filhos em dois casamentos e em vários casos extraconjugais, inclusive com uma sueca. Era boêmio inveterado, mulherengo e nem sempre tomava as melhores decisões. Muitas delas resultariam em acidentes, como o que vitimou a sua primeira sogra, em 1969, no qual foi condenado por homicídio culposo.

No dizer de muitos, era um misto de apedeuta (estudara até o segundo ano do ensino fundamental) e ingênuo, um meninão crescido e de mentalidade infantil, mesmo em meio a uma avalanche de tragédias: perdeu o pai muito cedo, vítima de cirrose. A irmã Tereza morreu aos 14 anos de barriga d’água. Outra, em um dia de festa, caiu do caminhão e também faleceu. O filho dessa perdeu a perna em acidente de trem. No dizer de outros, um gênio inigualável no gramado e com a bola nos pés... Para muitos, o maior de todos os tempos, maior até que Pelé... Difícil separar o homem do mito; e o que as gerações guardarão será muito mais a figura do mito.

Campeão mundial pela Seleção Brasileira em 1958 e 1962, chegou a ganhar muito dinheiro, mas esbanjava a maior parte pagando dívidas de amigos e conterrâneos, esquecia cheques jogados entre os brinquedos das filhas e, como sempre, era assediado por supostos amigos que lhe roubavam e exploravam o quanto podiam e ele permitia, para depois simplesmente o abandonarem; mas ele, em momento algum, parecia ou demonstrava estar ressentido, fosse com quem fosse, nem mesmo os que o ridicularizavam recebiam troco. Como o jornalista Geraldo Mayrink escreveu: “Era um louco, deliciosamente irresponsável. Quando perdeu a forma, passou a ser apenas irresponsável.”

Abandonou a primeira esposa, Nair, com quem teve oito filhas, e foi morar com Elza Soares, com quem teve um filho.


Nos últimos tempos, após a separação com Elza, a quem ele traiu, humilhou e agrediu, vivia uma série intermitente de problemas financeiros e pessoais. Morreu aos 49 anos, de cirrose hepática, em 1983. No seu féretro, milhões de pessoas o acompanharam, rendendo-lhe homenagem. O homem partia, derrotado em seu último desafio, enquanto o mito continuaria a desfilar nos gramados imaginários mundo afora, nos playgrounds de corações definitivamente encantados.


Hoje, mesmo sendo lembrado, e existem aqueles a desconhecê-lo completamente, Garrincha, ou simplesmente Mané, ainda aguça a curiosidade, de como um homem cheio de limitações conquistou o mundo, ou parte dele, com a magia das pernas tortas e dribles perfeitos.

Em sua passagem pela Itália, nos anos 1970, jogando por um time amador de açougueiros, em Torvaianica, alguns repórteres perguntaram-lhe, surpresos, por que participava de um torneio de operários? Ao que respondeu: “Eu faço isso para me divertir e me manter em forma.” O time dele perdeu por 5x4.

Era o fim do jogo.




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Nota: Texto publicado originalmente na Revista Bulunga

04 setembro 2024

Ouro de Tolo

 




Jorge F. Isah



Muito se tem falado nas últimas décadas de poluição do meio-ambiente e a necessidade de preservá-lo para o bem da humanidade. Há até mesmo aqueles, mais radicais e insanos, que defendem o fim da humanidade para que o meio-ambiente seja conservado. Eu só gostaria de saber se os idealizadores dessa ideia “genial” seriam os primeiros da fila de extermínio; ou estão apenas em busca de holofotes ou de tratamento psiquiátrico gratuito? A verdade não é outra senão o fato do homem ser o mordomo deste mundo, a quem Deus (quer você queira ou não) designou como administrador. A natureza é uma criação, assim como o homem, e não algo autogerado e, sendo o homem capaz de modificá-la, é necessário fazê-lo com sabedoria, conhecimento e bom senso. As intervenções devem acontecer de forma prudente, organizada e com o menor impacto justificável. Nem sempre é possível, mas aconselhável... Não colocaria esta responsabilidade nas mãos apenas do governo, da iniciativa privada, de ONGs ou exército de mercenários. Nem tão pouco nas mãos de plantadores de coca, marijuana ou ópio, ou a cargo de índios ou grileiros. Muito menos na massa de palpiteiros que assumem a preservação como um modismo, assim como se usava polainas no passado e agora usam-se havaianas. Não sobrou muita gente, é verdade, e esse pessoal, incapaz de conciliar-se, atira um no outro e no próprio pé.

Não quero me ater a esse tópico, mas falar de outro que não ganha, aos olhos do Ibope, dos povos e organismos, a mesma relevância, e está muito mais ligado ao ambiente do que se possa imaginar, ao menos para os insanos padrões do establishment: a poluição anímica. Senão, vejamos:

1) Qual foi a última vez em que você estava lendo, ouvindo sua banda ou cantor predileto, ou assistindo aquele melodrama na TV, ou simplesmente tirando aquela soneca depois do almoço, e não se viu sacudido pelo terremoto sonoro do “mano” e seu funk morbo a perambular na rua ou estacionando o seu Corsa duas portas de primeira geração bem debaixo da sua janela?



2) Ao flanar pela cidade, não teve o desagradável vislumbre de paredes e muros pichados, garatujas do mais péssimo gosto, a emporcalhar a visão?

3) Prédios e monumentos assimétricos, construídos sabe-se lá por qual alma penada, mais parecidos com cubos empilhados por um prematuro?



4) E o que dizer de homens e mulheres dispostos à inconveniência e descortesia, a fazer dos seus dias o suplício dos outros? Entre berros, grosseria e má-educação?

5) Sem falar nos ferretes epidérmicos (vulgo tatuagens e afins) que, para o bem dos higienistas mentais, deveriam se resumir às partes mais íntimas, longe dos olhares perturbáveis (do jeito que as coisas andam, nem estas partes são garantias de exposição dispensável)?



6) Ah, mas ainda não chegamos ao pior: naquele vizinho que faz um “gato” na luz, água ou TV a cabo, e você é quem paga a conta. Naquele político que desvia a verba do SUS e você acaba mandado de volta para casa, com uma costela quebrada ou o apêndice supurando, e ainda paga a conta. Ou as várias e múltiplas formas de existir uma casta privilegiada, muito além do que produz ou seja capaz de produzir, regalias adquiridas por meios ditos legais mas antiéticos; e a conta é sua. E outras ilegais e ainda mais antiéticas, com o ônus para você...



Portanto, antes de se preocupar com a extinção do pau-brasil (muitos acreditam ser a madeira verde e amarela) ou da arara-vermelha (tem a maior parte do corpo em azul), olhe-se no espelho ou faça um exame de consciência e veja se este mundo não é simplesmente o reflexo do que você e eu somos, e, neste caso, não há lei ou protesto que o despolua. Como está escrito: “Hipócrita, tire primeiro a viga do seu olho, e então você verá claramente para tirar o cisco do olho do seu irmão.” (Mateus 7:5)

Pois o pecado não é de mais ninguém, a não ser seu... E não adianta dizer que é meu, senão vou escrever outro artigo impugnando-o!

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Nota: Texto publicado originalmente na Revista Bulunga

29 agosto 2024

Estudo sobre a Confissão de Fé Batista de 1689 - Aula 41: É pecado jurar?






Jorge F. Isah




O irmão Bruno fez um questionamento, após a aula passada, ao qual julguei procedente considerar um esclarecimento aqui. Durante a nossa aula, foi dito que o membro da nossa igreja deveria jurar a Deus que aceitaria, cumpriria e defenderia a declaração de fé da igreja. Então, ele me perguntou:

- Mas a Bíblia não diz que o crente não pode jurar? - Certamente se lembrando do Sermão do Monte.

Eu disse-lhe que não, que não há a proibição, mas sem muita convicção, naquele momento. Decidi estudar um pouco, ontem, sobre o assunto e cheguei à conclusão de que a minha resposta estava correta, ainda que proferida sem a base bíblica claramente definida. Portanto, começaremos lendo o trecho de Ex. 20.7, cujo texto é repetido em Dt 5.11: “Não tomarás o nome do Senhor teu Deus em vão; porque o Senhor não terá por inocente o que tomar o seu nome em vão”.

Agora leiamos o Sermão do Monte, onde o Senhor Jesus diz: “Outrossim, ouvistes que foi dito aos antigos: Não perjurarás, mas cumprirás os teus juramentos ao Senhor. Eu, porém, vos digo que de maneira nenhuma jureis; nem pelo céu, porque é o trono de Deus; Nem pela terra, porque é o escabelo de seus pés; nem por Jerusalém, porque é a cidade do grande Rei; Nem jurarás pela tua cabeça, porque não podes tornar um cabelo branco ou preto. Seja, porém, o vosso falar: Sim, sim; Não, não; porque o que passa disto é de procedência maligna” [Mt 5.33-37, consonante com Tg 5.12].

O que temos aqui? Uma expressa proibição do Senhor para que não juremos? Ele está a ordenar-nos que qualquer jura é pecado ou se refere a um tipo específico de juramento? É o que veremos a seguir. Mas primeiro, definamos o termo, segundo o Michaelis:

Juramento: "1 Ato de jurar. 2 Afirmação ou negação explícita de alguma coisa, tomando a Deus por testemunha ou invocando coisa sagrada". 

Temos, no Antigo Testamento, a afirmação clara de que o homem não deve jurar em vão, ou seja, ele não pode jurar sobre algo que não pode cumprir, e se jurar, deve fazê-lo, certo de que tem de cumpri-lo, do contrário ele profanará o nome de Deus. Veja que o juramente é sempre em nome de Deus, e não em nome de alguma outra coisa. Não podemos jurar em nome de nós mesmos, pois somos inconstantes e seres caídos, sem autoridade. Nem podemos jurar em nome de outro elemento da natureza, seja o céu, a terra, as árvores, etc., porque, ao fazê-lo, colocamos o nosso juramento sobre algo criado, que em si mesmo não é fonte de nenhuma autoridade, e acabamos por invocar implicitamente o nome de Deus, que é a origem de tudo o mais, o criador de todas as coisas, e é por ele que elas vieram a existência e têm a glória e o poder que ele as deu. Ao fazê-lo, acabamos por jurar implicitamente, de uma forma ou de outra, em nome de Deus, que o princípio de todas as coisas e a causa primeira da criação.

O Senhor Jesus ordena que não se jure por nada criado, visto que os judeus, com o decorrer do tempo, usaram o artifício de jurar em nome do céu, da terra, do templo, em substituição ao juramento em nome de Deus; já que se recusavam e proibiam a pronúncia do nome sagrado, o tetragrama YHVH [Javé]. Com o tempo adotaram a fórmula de jurar em nome das coisas criadas, como um subterfúgio, um estratagema, para resolver o dilema de não se pronunciar o nome divino, considerado impronunciável por qualquer dos homens.

Cristo nos diz que não se deve proceder assim, e que assim o fazendo, cometemos pecado. Entre os judeus, especialmente fariseus, acreditou-se que o juramento, sendo em nome das coisas criadas, possibilitava o seu não cumprimento, de sorte que a autoridade para que determinado juramento fosse considerado válido ou invalido cabia exclusivamente às autoridades do templo. Com isso o homem se tornou, em última instância, a autoridade, aquele que controlava o que se devia cumprir ou não, à revelia do texto bíblico que exortava ao cumprimento de tudo o que se prometia, pois sempre era realizado em o nome do Senhor. Não há juramento que não seja em nome de Deus, pois nele está contido o poder supremo e absoluto, a autoridade absoluta e suprema. Por isso, até hoje, em muitos tribunais, os envolvidos no julgamento são obrigados a jurar dizer a verdade somente a verdade em nome de Deus, com a mão direita estendida e a mão esquerda sobre a Bíblia, implicando que aquela pessoa o está fazendo diante de Deus, em seu próprio nome. O que os judeus fizeram foi uma exceção, uma excrecência à ordem divina, e, agindo dessa forma, estavam em flagrante pecado e desobediência.

Contudo, o próprio Senhor jurou por si mesmo: “Então o anjo do Senhor bradou a Abraão pela segunda vez desde os céus, E disse: Por mim mesmo jurei, diz o Senhor: Porquanto fizeste esta ação, e não me negaste o teu filho, o teu único filho, Que deveras te abençoarei, e grandissimamente multiplicarei a tua descendência como as estrelas dos céus, e como a areia que está na praia do mar; e a tua descendência possuirá a porta dos seus inimigos; E em tua descendência serão benditas todas as nações da terra; porquanto obedeceste à minha voz. Então Abraão tornou aos seus moços, e levantaram-se, e foram juntos para Berseba; e Abraão habitou em Berseba. [Gn 22.15-19].
E,
“Porque, quando Deus fez a promessa a Abraão, como não tinha outro maior por quem jurasse, jurou por si mesmo” [HB 6.13- ver até o verso 17].

Claramente, o juramento nos remete a Deus, o Criador e Senhor de todas as coisas, ao qual devemos honrar e do qual somos porta-vozes. O profeta antigo, que recebia as palavras diretamente de Deus, e o atual, que as recebe das Escrituras, falam em nome de Deus. E é o nosso dever falar em nome do Senhor; algo que devemos ter sempre em mente, e, assim, pelo nosso falar, somos testemunhas não somente do que Deus diz, mas também daquilo que ele fez em nós. Usar e falar em nome do Senhor, logo, não é pecado, pelo contrário.

Há a ordem explícita para que o homem jure“O Senhor teu Deus temerás e a ele servirás, e pelo seu nome jurarás... Ao Senhor teu Deus temerás; a ele servirás, e a ele te chegarás, e pelo seu nome jurarás” [Dt 6.13, 10.20].

Não podemos é usar o nome de Deus em vão, pois quem o faz comete perjúrio [Sl 24.4], a profanação do sagrado, do nome santo de Deus, que é o próprio Deus. 

Em 2 Co 1.23, Paulo invoca a Deus como testemunha de que ele não podia ir a Corinto.

Não devia ser necessário o juramento. O nosso testemunho deveria falar por nós mesmos, de forma que sempre que dissermos sim ou não, a verdade esteja evidente e patente. De que as nossas promessas serão cumpridas e não negligenciadas; de que tudo o que falamos é verdadeiro e de que não mentimos. O juramento é uma forma de confirmar o que está sendo dito, e invocamos a Deus por testemunha daquilo que dizemos ou prometemos. O fato do homem ser mentiroso nos leva a jurar em nome daquele que nunca mente [Rm 3.4]; e por ele, devemos nos guardar da mentira, sendo verdadeiros.  

Notas: 1 - Estudo realizado na EBD do Tabernáculo Batista Bíblico

21 agosto 2024

Fome, de Knut Hamsun

 




Jorge F. Isah

 


Lá pelos meus dezenove, vinte anos, li este livro por indicação de Charles Bukowski, autor que sorvia compulsivamente, cujo estilo “despojado” de escrita admirava. Investi esforço e saí à caça de “Fome”, de Knut Hamsun, autor, inclusive, laureado com o Nobel. Até então, para mim, noruegueses eram pródigos na produção de bacalhau e petróleo; não imaginava que tivessem uma literatura “parruda” e um Nobel, apesar da Academia se instalar concomitantemente em Estocolmo e Oslo, jamais ouvira falar de um grande escritor, não obstante, seria suficiente como sinal de alerta, das coisas não serem como pareciam ser. Pois bem, acabei por encontrar uma reedição publicada pela Civilização Brasileira, com tradução de Carlos Drummond de Andrade.

Exemplar em mãos, passei à leitura, e, depois de três décadas, não me recordava de muitas coisas a não ser as andanças do personagem principal por Cristiânia (atual Oslo) em busca de trabalho, comida e abrigo, e notar algumas tênues semelhanças com Raskolnikov, de Crime e Castigo.

Ao passear pela Amazon, deparei-me com a nova edição da Editora Itatiaia, e resolvi lê-lo novamente. Algumas coisas se confirmaram: para um livro publicado em 1890, “Fome” tem uma simplicidade narrativa e estrutural quase inéditas. Não me lembro, no momento, de outro título, à época, a assumir essa posição.

Durante a leitura, foi possível notar a influência de Hamsun em autores como Hemingway, Fitzgerald, Miller e outros tantos, inclusive o próprio Bukowski. A cada página uma estranheza indefinida vinha intermitente, inexplicável, como alguém a girar em torno de si mesmo sem parar, feito piorra. Entretanto, engana-se quem não percebe as entranhas de “Fome”. O autor vive em constante dilema, seja no aspecto físico, a realidade da sua penúria e miséria, seja no insucesso da sua carreira de escritor, no amor, e em algum auxílio da sociedade, já àquela época tão preocupada e resguardada nas aparências. Se antes era um homem promissor, autor alvissareiro, bajulado por uns e outros, gradualmente se viu obrigado a penhorar livros, objetos pessoais, roupas e até mesmo os botões do seu casaco. Restaram-lhe as roupas de mendigo, sujas, puídas, desbotadas. Seria uma analogia ao seu estado de espírito? À degradação da sua alma? Como Dorian Gray no seu retrato?

“Sentado no banco, e absorto nessas reflexões, sentia-me cada vez mais azedo com relação a Deus, por causa de suas insistentes provações. Se ele supunha chamar-me para junto de si e aperfeiçoar-me pelo martírio, acumulando mortificações em meu caminho, estava um tanto enganado, podia garantir-lhe. Levantei os olhos para o Altíssimo, quase chorando de orgulho desafiador, e disse-lhe essas coisas uma vez por todas, mentalmente.” (pág. 23)

Esta mania que o homem moderno tem de eximir-se invariavelmente de qualquer culpa ou responsabilidade atribuindo-a a outrem, à sociedade ou a Deus, em última instância é apenas o reflexo do Adão perdido no Éden após a sua queda: culpa-se tudo e todos, menos a si mesmo, ao seu desejo ilícito e a sua imoralidade disfarçada, mas não menos exposta e saliente, como a se ver em meio às sombras, a fugir para a escuridão pensando ir à luz.

Se existe algo a propor loucuras na mente é a fome. Se há o “start” da fraqueza, é ela. Não subsistem os princípios morais, éticos e humanitários. Como a avalanche: é capaz de arrastar quem estiver por perto, sem muito esforço.

O personagem principal, cujo nome verdadeiro não sabemos, ao adotar vários no decorrer da trama, em seu orgulho e jactância, desce a escala moral em direção ao fundo do abismo. Entrega-se à mentira, dissimulação, furto, cobiça e tudo o mais que o seu estado deplorável permite. Entretanto, é incapaz de impedir a humilhação, o descrédito e a pilhéria. Vê-se, também, paranoico, enrolado e imerso na própria confusão criada. É a receita do desastre, agravado pelo desprezo à sociedade, à agitação urbana, aos valores impregnados na maioria das pessoas; ainda que, uma e outra, ao perceber-se alvo da gentileza e compaixão alheias, reconhece-as bondosas, mas trata quase imediatamente de despojar-se delas e as suas ações. Não pouco, me vi a perguntar: “Por quê?... Qual o sentido disso? De não se precaver e ser racional?... Parece não haver apenas uma indigência corpórea, mas espiritual; ao perder os sonhos, se encontrava igualmente desnorteado, sem identidade, sujeito às atitudes mais absurdas e levianas. Pode-se dizer estar às portas da loucura, produzida pela empáfia e cinismo. Logo, apesar do estado de penúria, os momentos de arroubos ufanos, predem-no a um mundo intolerável e indigno.

“Não obstante, aquele cobertor verde me importunava. Por outro lado, não condizia com a minha dignidade carregar semelhante pacote debaixo do braço, à vista de toda gente. Que iriam pensar de mim? Caminhando, procurava lembrar-me de um lugar onde pudesse guardá-lo até nova ordem.” (pág.34)

A miséria transtorna e o leva a laivos de hipocrisia. Ao considerar-se melhor do que os outros, incapaz de agir pelos meios deles, de infringir as leis naturais, de ter consciência pura e inocente, numa ilusão e delírio, se mete nos mais banais e caricatos pecados. Vive em paradoxo, onde é incapaz de manter a honra e inocência, e acaba por meter-se num emaranhado desconexo de indulgências e lamentos. Sim, ele é um vitimista, onde todos os problemas, via de regra, concentram-se no exterior, à parte dele. Raramente se dá conta do próprio fracasso e de como contribuiu peremptoriamente à decepção e abandono.

“A consciência de minha honestidade subiu-me à cabeça, inundando-me com o sentimento grandioso de que eu era um caráter, um farol de extrema claridade em meio ao oceano lamacento dos homens, entre destroços flutuantes.” (pág. 43)

Para ele, a fome é a causa de todos os seus problemas, a razão dos dilemas, inclinações e máculas, e não o contrário; dela ser tão somente a consequência das suas escolhas, hábitos e frustrações, guiados pelo orgulho às vezes maior, outras, menor, mas sempre efetivo em algum aspecto nas suas decisões. Paulo escreveu: “Aquele, pois, que cuida estar em pé, olhe que não caia.” (1 Co 10:12).

Ele é um homem que vive na escuridão, com entremeios dispersos de luz ou penumbras, ao ponto em que, de consequência a fome tornou-se também em causa da degradação, em todas as esferas e facetas do ser, a afundá-lo mais e mais na desilusão, em devaneios e reações descabidas. Faltou-lhe o prumo, e o estado famélico elevou o desequilíbrio, em constante amálgama de sonho, delírio e realidade modelados pelo âmago caótico, mas a julgar proveniente do exterior. Se a fome aparenta simplicidade, as emoções, razão e sentimentos são atormentadoramente complexos, às vezes controláveis, na sua maioria exaltados e indômitos.

“Expliquei o caso, contando a mesma história da véspera; menti de olhos abertos, sem pestanejar, menti com sinceridade: ‘infelizmente, farreei um pouco além da conta num café, e perdi a chave...’ ...ninguém me ofereceu um bônus, e não tive coragem de reclamá-lo. Instantaneamente, isso despertaria desconfiança. Começariam a remexer em minhas coisas, descobririam quem eu era realmente. E me deteriam por falsa alegação. De cabeça erguida, com a atitude de um milionário, de mãos presas ao forro do paletó, retirei-me do Depósito” (pág. 67).

Neste círculo vicioso, o protagonista não parece ter saída para a sua alma atribulada, cheia de angústia, humilhada, mas segura em uma altiva inutilidade, incapaz de satisfazer-lhe no desejo mais simples e trivial, a comida. Tudo o afasta dela, e ele é o único promotor a garantir e manter o distanciamento. A despeito da ajuda aqui e acolá, em seus ímpetos atarantados e evasivos, ambíguos e artificiais; pois a fome não lhe dera outra personalidade, apenas a manifestou, retirou-a das entranhas e expô-la, e produziu um tipo de sinceridade traiçoeira e impostora.

“Deixava-me dominar pelo orgulho, saltava à primeira provocação, do alto da minha soberba, atirando dez coroas ao vento, e ia-me embora... Censurei-me severamente por haver deixado o quarto e ter-me posto de novo em apuros.

Afinal, para o diabo com tudo isso! Não pedira aquela nota de dez coroas, mal a tivera na mão, e, logo a passara adiante, em pagamento a alguém que nada significava para mim, e que nunca mais veria.” (pág. 166)

Se o grão não morre, fica só; mas se morrer, produz muitos frutos. Para o personagem sobreviver era a resposta, e de alguma forma, ser herói de si mesmo, bastava-lhe. A solidão e o isolamento persistiram enquanto marinheiro, indo para Leeds. Assim como a sua alma errática. Se trocarmos o homem pelo grão, restar-lhe-ia o quê? Na solidão?

Por fim, seja pela sobrevivência ou a conclusão lógica de todo o aprendizado, se entregou à ajuda, se dispôs à solução, tão óbvia, mas que postergou ao esgotamento, até quase sucumbir.

E, então, “disse adeus por essa vez a Cristiânia, a todas as casas, a todos os lares, a todas as luzes que brilhavam e rebrilhavam nas janelas.”

 

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Avaliação: (***)

Título: Fome

Autor: Knut Hamsun

Editora: Itatiaia

Páginas: 171


15 agosto 2024

Prefácio de Eduardo "Doca" Barroso ao livro "A Bula do Placebo"

 



Não é raro nos surpreendermos com a escrita de um autor. E não é preciso esperar muito ou produzir uma vasta obra para se perceberem nuances e mudanças no estilo; igualmente não raro é perceber-se diante do texto completamente diferente quanto ao objetivo, conceito e percepção. A linguagem, já diziam os estudiosos desde sempre, é um fluxo contínuo de mudanças e solidificação. Existem elementos irremovíveis e outros nem tanto. Fato é que a escrita originária da pena de um único autor deve ser versátil e explorar vários aspectos e recursos e se expressar convincentemente, seja qual for o tratamento aplicado à narrativa. Entretanto, nada deve ser tão heterogêneo a ponto de não ser distinguido e suas características tomadas como as de outro. Com isso, não estou ditando regras ou a “enjaular” a imaginação e criação. Nada pode ser diferente o suficiente para desfigurar ou deformar a identidade, as digitais a apontar para si, independentemente das circunstâncias e formas.

Quando se me apresentou este novo trabalho do Jorge Isah, após lê-lo, mesmo acompanhando seus textos na Revista Bulunga, senti-me diante do artista a procurar novos rumos, novas formas, a alterar o estilo, provocado talvez pela ânsia de aventurar-se em terrenos inexplorados, ou a urgência de sondar novos roteiros, personagens e sentidos. Contudo, lá estava o mesmo autor, meticuloso nos detalhes, inquerindo-se, à cata de respostas e cheio de dúvidas. Lá estava, esquadrinhando o universo intocado e carregando-o nas próprias mãos, deixando indelével a sua impressão. Lá estavam a ironia, o cinismo e a capacidade de rir de si mesmo e do outro. Lá estava o homem a examinar as relações, o momento e a sociedade. Em histórias curtas mas de significados intensos. Lá estava a linguagem mais simples, menos rebuscada, quase “Pulp”, a remeter-me, primeiramente, a Nelson Rodrigues, na maneira econômica de contar histórias, para depois mostrarem-se tão ou mais críticas quanto às do “Escritor Maldito”, sem o seu apelo sexual e orgíaco. Assim, me vi a lembrar dos autores “beatnik” e, por que não, do realismo da primeira metade do século passado, contudo sem a claustrofobia, agonia e niilismo de alguns deles. Existem elementos absurdos, sim, claro. Existem componentes existencialistas, sim, claro. E ingredientes psicológicos, também. Mas existe sobretudo o homem, seus dilemas e a necessidade de decifrar a si e os tempos, seja qual for. É a esta universalidade que o autor nos remete, de estar no tempo e também fora dele. Sem isso, não nos resta muita coisa a não ser comer, beber e morrer.

Entre os contos publicados na Bulunga e alguns outros de épocas distintas, os mesmos elementos fundamentais são perceptíveis a qualquer um que desejar vê-los; e, digo, é melhor vê-los para se deliciar ainda mais com esta obra.

Outro aspecto inseparável das entranhas do autor é o transcendental ou metafísico. Para ele é impossível dissociar a vida frugal e terrena das implicações celestes e espirituais. Sei que alguns leitores não concordarão, mas, pior para eles: é o elemento não somente salutar, mas catártico para esta geração, o reencontro com esta proposta. Ela se apresenta como única solução ao mundo embrenhado e envolto nas trevas, e qualquer alusão apenas à materialização de elementos concretos, palpáveis e físicos simplesmente diminui a humanidade ao nível dos animais. Ainda mais quando se percebem nitidamente as opções à mesa; nada, em sã consciência, pode restaurar o homem e trazer à tona virtudes e qualidades à parte da sublimidade, das coisas lá do alto. Enquanto se mantiver cego aos clamores do espírito, o homem não será o que deveria ser, e apenas se tornará a imagem engelhada de si mesmo. Não existe liberdade quando se excluem os meios de alcançá-la, seja por arrogância, teimosia ou ignorância; pois nada disso o inocentará no fim das contas daquilo que não pode ser porque não quis, ainda que pudesse fazê-lo se tateasse a realidade e a verdade à sua volta.

Nestes aspectos, em linhas gerais, imagino ser fiel ao pensamento do autor, ao menos no ponto fundamental e decisivo, entre tantos outros que o leitor descobrirá certamente ao se debruçar sobre esta obra, de maneira sincera e sem os eventuais preconceitos conceituais ou ideológicos.

Portanto, quer você queira ou não, aconselho-o a não prescindir da indispensabilidade de “A Bula do Placebo”. Ah, por falar no título, demandaria outro prefácio, mas, desde já, ele aponta para o inexorável fiasco das tentativas de autocura ou melhor, buscar em si mesmo o remédio para a doença autoinoculada, sem que o antídoto tenha qualquer eficiência.

Eduardo “Doca” Barroso

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Para adquirir o livro: Amazon ou
Kálamos
 

06 agosto 2024

A volta dos mortos-vivos ou a dolce vita no inferno

 




Jorge F. Isah


Talvez você não saiba, ou sequer imagine, mas os faraós eram enterrados com suas joias e ouro, vestuários, esposas, servos, escravos e mais alguém ou algo que o falecido quisesse ter em seu reino celestial. Com isso, nada faltar-lhe-ia, inclusive aqueles para servi-lo, do outro lado. Muitos sacrifícios foram realizados pelos desejos, temores e cuidados faraônicas. O faraó Djer, por exemplo, filho do faraó Hórus Aha, governou o Egito na I Dinastia, entre 3.100 e 3.043 ac., aproximadamente, quando faleceu. Na sua tumba, em Umm el-Qa'ab, Abidos, foi enterrado com outras 318 pessoas. Não se sabe ao certo como eram realizadas as imolações, provavelmente por venenos ou drogas paralisantes.

Em nossos dias, se fosse dada a escolha de ser enterrado com o seu ídolo, quando morresse, o que você pensaria? “Mas essa é uma ideia estúpida”, diria um. “Não tem coisa mais sem cabimento”, diria outro. “O que você está insinuando com isso?”, outrem se pronunciaria. A verdade, contudo, é que muitos vão para os túmulos dos seus ídolos. Loucura? Asneira?... Não, é a verdade da qual o homem tem de se libertar, não importa quão importante ou quanta afinidade se tenha com ele ou eles.

Quando existe uma defesa intransigente e absoluta para com seus ídolos de estimação, muitas vezes cega e obcecada, seja um político, artista, clérigo, jogador de futebol e, pasmem!, bandido e salafrário, o que diria, por exemplo, um parente ou amigo? Que durante a sua vida não lhes revestiu do mesmo ardor e paixão? O que dirá a sua mãe, esposa/marido ou filhos quando o virem tomar “bênção” a um desconhecido? Ou espalhar pôsteres pelo seu quarto? Ou defendê-lo obstinadamente mesmo em seus caprichos, manias e defeitos?

Alguém pode dizer:

- Bem, mas não estaria apenas substituindo o ídolo desconhecido pelo ídolo conhecido, neste caso a mãe ou a esposa?

Normalmente não agimos levianamente com pessoas do nosso convívio, pelo contrário, estamos mais dispostos a criticá-los do que a nós mesmos. A questão é: você se dedica com a metade do empenho no relacionamento com os mais próximos da mesma maneira que se consagra ao ídolo? Qual a razão de dispender dinheiro, emoções, intelecto, e entregar a própria alma a um estranho que não o possa fazer a alguém realmente do seu trato e convívio?

- Me diga então, sabichão: você apenas admira e se simpatiza com seus correlatos? Ninguém fora do seu círculo merece a sua atenção? – Insistiria o interlocutor.

Não estou a falar de méritos, valor ou concordar com atitudes e seus promotores. Por exemplo, se alguém demonstra um ato de gentileza, prestando seja lá que tipo de ajuda, abonarei a atitude e o agente. Mas se esse indivíduo, em seguida, chuta um cão ou joga lixo na rua, não conceberei desculpas a fim de justificá-lo. Infelizmente, muitos agem assim, e para não serem paradoxais (ao menos não se sentirem como tal), criam os maiores sofismas e se fazem de hipócritas na tentativa de salvaguardarem-se a si mesmos preservando o seu ídolo.

- Mas todos erramos... Ninguém é perfeito...

Mais um motivo para não se ter ídolos e morrer abraçado a eles, não é!

E algo ainda pior: ter a consciência trancafiada a sete palmos, anos ou décadas antes de a “dolce vita” no inferno chamá-lo em definitivo.

Ah, e depois, os antigos egípcios é que são criticados...

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Nota: Texto publicado originalmente na Revista Bulunga


24 julho 2024

Prólogo ao livro "A Bula do Placebo"

 



Este é um livro que me trouxe um prazer diferente de escrever. A maioria das histórias foi publicada na Revista Bulunga, onde acabei desenvolvendo um senso, digamos, mais satírico e ácido, provavelmente mais risível também, e expus-me a experimentos pouco utilizados em meus trabalhos anteriores. Um dos aspectos mais estranhos, e que me deixava menos à vontade, é o que alcunhei de “espontaneidade imperativa”, ou seja, a necessidade de entregar no prazo o material para publicação. Revistas, jornais e outros periódicos não esperam os “insights” surgirem; antes, é preciso pôr a mão na massa, sem procrastinar e arrumar desculpas para não produzir o necessário.

Entre biografias, contos, crônicas e artigos variados, pude me dedicar às narrativas curtas e, ao menos para mim, o resultado foi, no geral, recompensador. Debaixo de uma gama de pseudônimos, pude “afastar-me” um pouco do “Isah” detalhista e quase perfeccionista e me tornar mais breve e condensado nas narrativas. Acredito ser possível, ao leitor que me acompanha, notar essas diferenças e compor um quadro mais completo do que os delineamentos desta análise.

Mudar o foco de temas mais intimistas para tratar de assuntos gerais e mundanos foi como um peso retirado dos ombros. Sempre gostei de relatos simples, não necessariamente ordinários ou pueris; e se me acusam, às vezes, de escrever esnobe e pretensiosamente, a verdade é: gosto de falar de pessoas e coisas comuns, sem me tornar frívolo e impessoal. Se a história e os personagens não me afetam, no sentido de carregá-los e eles a mim, ser íntimo e empático, de que valeria dedicar-me a eles?... Mesmo ao desejar matá-los, não raramente sou atormentado por suas lágrimas, angústias, risos e euforia. Sinto-os como aquele amigo indiscreto a contar um segredo embaraçoso, no meio de uma plateia de caçoístas... Apesar de tagarela, ainda continuará sendo amigo, desde que não abuse do atrevimento.





Como disse, a maioria das histórias de “A Bula do Placebo” (este seria o título de uma publicação na Bulunga, mas o amigo e editor, Michel Salomão, me fez reconsiderar a ideia e guardá-lo para um futuro livro) são fragmentos do dia a dia, sejam íntimos e pessoais ou gerais, mas, em boa parte, contraditórios e ridículos em sua naturalidade desfigurada. Estava a cogitar uma espécie de coletânea dos melhores textos, e já havia separado alguns, quando definitivamente resolvi arregaçar as mangas e iniciar o projeto.

Entretanto, três das histórias não foram escritas originalmente para a revista. São elas: “O cadáver que a chuva molha”,“À sombra de Mishima” e “Cão e alfarrábios”, escritas havia alguns anos e que passaram por pequenas e sutis alterações. Juntamente com “Post Scriptum”e “Os olhos de Ciclope”, são as mais longas e buriladas. Com isso, não estou a dizer que são as melhores ou piores, são o que são e o que sempre foram, dentro daquilo a assomar, atormentar, mas também alegrar o escritor: muitas vozes que devem e precisam ser ouvidas. Coube-me apenas e tão-somente registrá-las, já que, por si mesmas, elas falam com ternura, raiva, amor, ódio, se repetem e, raramente, se calam.

Pois o silêncio pode ensurdecer, especialmente a quem é capaz e deve ouvir.

Jorge F. Isah