24 abril 2025

Santuário - William Faulkner

 






Jorge F. Isah



Imagino a receptividade e a comoção gerada pelo lançamento do romance de Faulkner, em 1931, na América. O assunto versa sobre o estupro de uma jovem e como isso afetou a vida de inúmeras pessoas. O ambiente é o sul dos EUA, nos momentos finais da Lei Seca, onde a degradação moral, ética e, sobretudo, espiritual, descreve o estado de miséria, perturbação e desequilíbrio em uma sociedade marcada pelos novos ventos da modernidade e ruptura das tradições. Este livro, guardadas as devidas proporções, é a conclusão, melhor, o aperfeiçoamento e amadurecimento em relação aos temas originalmente propostos por Fitzgerald e a geração perdida, no início dos anos 20.

O primeiro terço do livro é de tirar o fôlego, digno de um manifesto de horror e terror. É impossível conter e não se impressionar com as descrições e o clima caótico e claustrófobo, descomedido e perverso no qual o casal de amigos se vê arrostado pelos moradores de um alambique clandestino. Lembre-se, os EUA viviam a proibição do álcool, e o que se viu foi a proliferação de destilarias e bares ilegais, onde o consumo não somente era possível como a corrupção se encarregava de deixar tudo legítimo, a seu modo. E havia toda uma sorte de crimes associados a ela. 

Temple e Gowan, este um bêbado inveterado, egoísta e bufão, faz tudo por um gole e a satisfação do seu desejo. Temple é a adolescente ingênua, excessivamente vaidosa (sempre com o seu espelhinho e maquiagem), mas isso em certas circunstâncias que, alteradas, transfiguram-na. Não que ela perca ou suprima todas as suas peculiaridades, existem coisas que se leva para a vida toda, mas assim como o papel de vários personagens vai se moldando no decorrer da narrativa, Temple não resistirá à sua própria natureza, a tomá-la de assalto, como se ela mesma fosse refém de si.

Procuro, na medida do possível, manter um certo mistério; em geral, há êxito, mas nem sempre. A verdade é que a história nos pega de uma maneira onde abandoná-la é inconcebível. De todos os livros de Faulkner, os lidos, claro, este foi, juntamente com Luz em Agosto, a me deixar mais impressionado com o estilo e complexidade, não apenas narrativa, mas temática e profundamente desenvolvidas.

Seja ao acentuar e potencializar certas personalidades e apresentar outras de maneira indecisa e apática (e não raro, esses aspectos alternam-se, a não deixar o autor um mero replicante da sua moralidade); entender os enredos de Faulkner não é a garantia de que as aparências são somente aparências. Ao lançar o leitor no mundo caótico, imoral, às vezes sensível, quase sempre trágico e ironicamente cruel e paradoxal, o leitor se vê às voltas com uma profusão de ambiguidades, hipérboles e subjetividades a demolir o cartesianismo, e por tabela o sentimentalismo, presente no imaginário de escritores e leitores modernos. No final, não ficará pedra sobre pedra, mas se terá material suficiente para, ajuntado, erguer algo novo, ainda que o novo não seja originariamente inédito, já que isso não existe debaixo do céu, tal qual afirmou o Pregador.

 Do ponto de vista faulkneriano, a resposta para o desenrolar da vida é metafísico, mas fatalista, quase determinista, se não houvesse as implicações de agentes e pacientes a alterarem o curso das coisas dentro do fluxo previamente estabelecido. Ao que parece, o início e o fim estão definidos pelos deuses do destino, enquanto os meios, as causas secundárias, estão ao sabor dos ventos humanos. Se não, por que uma espécie de chefão, homem rico e poderoso, mas impotente, se daria ao luxo de empreender uma saga a fim de manter uma amante? Ou o acusado de homicídio se sujeitaria à morte por medo de morrer pelas mãos do verdadeiro assassino? Ou a mulher humilhada, até o último momento, se mantém fiel ao seu algoz? Na simplicidade ou reducionismo dessas súmulas, o autor tece um emaranhado denso, complexo e intricado, que nenhuma imagem jamais será capaz de falar, seja por uma frase ou parágrafo.

Faulkner descreve o mundo não preparado para os homens, e homens não preparados para o mundo; não importa quem seja, o que seja, quanto tenha ou não, a vida está muito além da superfície e, como o mar, esconde enigmas que se não são impenetráveis, demandará empenho e compromisso.

Em Santuário temos o sagrado aos olhos de Deus, o homem como o ápice da criação; para Faulkner, ele foi profanado. E não haverá nenhum santo que sobreviva.

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Nota: Este não é um livro presente nas listas dos melhores de Faulkner, onde Luz em Agosto, O Som e a Fúria, Enquanto Agonizo e Absalão são os mais, digamos, populares. Não li ainda o último, mas Santuário não está a dever a nenhum deles, pelo contrário, em vários aspectos é melhor. Acredito que do ponto de vista bestseller, algo que Faulkner jamais se propôs a fazer, ele facilmente seria o seu livro mais palatável. Ainda assim, é o mesmo que comer espinha de peixe incandescente com pimenta jalapeño e tomar um suco de vidro moído. Infelizmente, está esquecido pelas editoras, e somente edições mais antigas, de mais de 20, 30 anos, estão disponíveis em sebos. Merecia, certamente, a atenção e uma nova edição. Mas como Faulkner não é politicamente correto, ou empenhado na militância ideológica, política e social, editores podem torcer o nariz e deixar o público ainda mais órfão de escritos universais, a expor a humanidade como ela é, e não como alguns querem que seja. No frigir dos ovos, até mesmo aqueles que acham estar ganhando, acabam perdendo o que não têm.

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Avaliação: (****)

Título: Santuário

Autor: William Faulkner

Editora: Abril Cultural

Páginas: 258

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