Jorge F. Isah
Como o título denuncia, o livro foi escrito na
forma de diário, pelo patriarca da família Utsugi.
Quase um octogenário, impotente, com terríveis dores lombares e na mão, a
gastar boa parte do dia com terapias, remédios e reclamações sem fim, é um
homem relativamente culto, que gosta de teatro, poesias e domina muitas das
tradições japonesas; é crítico, ácido, egoísta e despreza a família. Nutre
antipatia pela esposa, velha como ele, as filhas e netos. Talvez a única pessoa
a se relacionar pacificamente seja o filho Jokichi (talvez, e somente talvez,
haja algum respeito por ele; não por ele, mas pelo que conquistou na vida. Mais
adiante, entenderá), cujo distanciamento o mantém reservado a maior parte do
tempo, não somente durante as inúmeras viagens a trabalho, mas também nas
constantes reuniões que varam a noite. Utsugi quase sempre não se abstém de
humilhar e escarnecer os demais membros, de maneira insolente e nada sutil. É
rico, e isso o deixa senhor da situação, e evidência ainda mais o inconformismo
que sente com a família e a vida.
Nutre, contudo, uma obsessão pela nora,
Sasaki, mulher de Jokichi. Como disse, se existe alguma inveja quanto ao
sucesso do filho, provavelmente reside no fato dele ter amealhado o seu objeto
de adoração. Sim, o velho tem fetiche pelos pés de Sasaki (ex-dançarina de
clubes noturnos), os quais descreve com arrebatado deleite. Tudo faz para
tocá-la e desfrutar dos parcos e raros momentos em que a esperta nora
submete-se aos arroubos senis do “vovô”,
assim chamado carinhosamente. Não sem cobrar o silêncio quanto as suas
escapadas com o amante, Haruhisa, que o velho recebe em sua própria casa, e a
presenteia com um anel valiosíssimo, em detrimento de, por exemplo, emprestar
certa importância (muito inferior ao do anel) para a filha quitar o débito da
casa. Talvez sejam vinganças de um louco, o homem que perdeu completamente a
noção da razão e tem a sua consciência amortecida pela luxúria e traição, mas
talvez seja o “dane-se” que a
proximidade da morte pode se encarregar de exibir.
Tanizaki descreve toda essa amálgama de
desgraças de maneira burlesca e caricata, como se estivesse a brincar, ironizar
as maluquices do velho e o assombro dos demais personagens. Existem cenas de
nítido humor, um humor distendido, quase negro, permeado pelo ridículo e
sarcasmo. Assim, a narrativa é fluída, simples e transmite com eficiência o
clima picaresco e satírico da trajetória do ancião. A tragédia tem sempre
elementos absurdos e espalhafatosos, e aqui não é diferente.
Algumas pessoas reputam o livro como
libertador, o frescor do sexo livre, sem amarras, e desse ser um traço da
literatura japonesa não afeita aos rigores morais do Ocidente e, em especial,
do Cristianismo, uma vez que o budismo e o xintoísmo são religiões mais,
digamos, flexíveis quanto aos princípios. Será mesmo?... Não seria o
contrário? No sentido de o Japão ser um
país muito mais apegado às tradições, à honra, à família, uma moral ainda mais
palpável e elevada (no sentido de graduação) do que a nossa? Ou Sade, Diderot,
Laclos, Boccaccio, Roma, Atenas e “tutti quanti” autores e palcos centenários e milenares escreveram e foram
descritos em orgias e libertinagem? A comparação colocaria o personagem de
Tanizaki como um velhinho inofensivo e bocó, mas ainda assim um hedonista, como
outros em diferentes épocas e culturas. Porém, existem graus de imoralidade, de
vícios, assim como virtudes e bondade. O homem, seja ocidental, oriental e,
caso exista algum, marciano, é sempre o mesmo homem, indisposto ao bem e predisposto
ao mal, ainda que o mal não se manifeste em toda a sua virulência, nem o bem
algo inerente, mas fruto dos resquícios, conta-gotas, do Imago Dei. Sem entrar
nos pormenores teológicos, do ponto de vista literário, o autor denuncia a
degradação e o apodrecimento da sociedade japonesa, ao contrário da conclusão “libertária” que alguns, ou muitos,
depreendem do livro.
O velho, culto e abastado, ao manter uma relação “incestuosa” com Sasaki, em seu
ceticismo com o mundo e as pessoas, a vida, a morte e qualquer possibilidade de
esperança, transforma-a em ídolo, a deusa não somente momentânea, mas da qual,
inclusive, quer esculpir as formas exatas dos pés e colocar sobre o seu mausoléu,
e substituir os símbolos religiosos pela sua própria deidade. E isso me leva a
questionar se, no fim das contas, Utsugi não é o seu próprio deus a estabelecer
os ritos do autoculto, autoveneração e autodevoção. E Sasaki não seria o
sacrifício através do qual os seus “súditos”, a família, amigos e serviçais, conheceriam os caprichos de
um deus idoso e caquético?
Deparei-me também com a ideia de toda a narrativa
não ser nada além de imaginação e delírio do velho safado (apropriação de
Bukowski), em sua condição decrépita e caduca, já que a maior parte do livro é
narrada por ele, à exceção de dois capítulos onde a enfermeira e o médico
descrevem a sua particular condição. Seja ou não alucinação, a verdade é que
Tanizaki compôs a face de um homem com a qual muitos podem se identificar,
velho ou não, onde as consequências afetam não somente o indivíduo, mas todos ao
seu redor, especialmente os que, por um motivo ou outro, tenham intimidade e
convívio. Sem contar o pouco caso com aqueles a auxiliá-lo, a se preocuparem,
independente da motivação. Convenhamos, ele é um velho esquisito, manipulador
em sua obsessão tardia e caduca; depende de todos, mas arrasta-os consigo para
a queda vertiginosa.
Isolado em si mesmo, a sua excentricidade era
impulso, de ser o que não podia mais ser, à cata de um elixir da vida e da
juventude, onde, perdoe-me Cormac, os velhos ou fracos não têm vez!
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Avaliação:
(***)
Título:
Diário de um Velho Louco
Autor:
Junichiro Tanizaki
Páginas:
208
Editora:
Estação Liberdade
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