04 fevereiro 2024

Nada de Novo no Front - Erich M. Remarque

 



Jorge F. Isah

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Este livro estava em minha lista já havia um bom tempo, na verdade, quase uma década. É interessante como fazemos relações dos itens a ler no ano seguinte e, ao término dele, muitos títulos foram abandonados, substituídos por outros ou simplesmente ignorados. Assim foi com “Nada de novo no front”, de Erich Maria Remarque.

E o que dizer?

O autor nos fisga com uma narrativa ao mesmo tempo cínica, humanista e transparente dos horrores da guerra; sem heróis, sem vilões, sem princípios ou razão, sem nobreza ou virtudes. Se existe algo a aprovar e contemplar seriam as relações interpessoais, a cumplicidade, o auxílio mútuo, as almas engatadas ao intento comum de sobreviver e tornar-se, um dia, página virada na história geral mas também individual... A despeito dos motivos históricos, da soberania das nações, das provocações e tudo o mais a conflagrar as guerras, a estupidez e malignidade do “espetáculo” não é casual ou imprevisto, mas meticulosamente programado. O erro, se assim pode-se dizer, está em nenhum dos lados admitir a derrota, mesmo que seja iminente e também precisamente calculada. Talvez, por isso, Remarque não perca tempo descrevendo a motivação ou incidentes a suscitar a guerra. Qualquer que seja, não existe razão a não ser a natureza diabólica do homem em destruir e ansiar o caos em sua forma mais organizadamente desvairada.

O livro é pacifista. O pano de fundo é a 1ª Grande Guerra. O autor, ele mesmo, em sua juventude, foi para a frente de batalha a defender a loucura dos loucos. E o realismo da narrativa se baseia essencialmente em suas experiências no front, entre explosões, ricocheteios, sangue, ratos, gases, doenças, mortes e tudo o mais a envolver a sanha encarniçada humana.

Um grupo de garotos, na faixa dos 20 anos, se vê na frente de batalha, a empunhar um rifle que, de tão gasto, já não conserva a mira correta e acaba, como o personagem principal relata, por abater os soldados do próprio pelotão. As condições são miseráveis. A Alemanha está às portas de perder a guerra que começou, e os recursos são escassos: comida, medicamentos, armamentos, munições, e sem dispor das técnicas mais modernas de combate. Se vê irremediavelmente suplantado pelos britânicos e americanos; mesmo assim, recusa-se a encarar a previsível derrota e alista mais e mais soldados em idade cada vez mais tenra, lançando-os sem qualquer treinamento prévio nas trincheiras e campos onde são dizimados às centenas e milhares pelos modernos e letais aviões da RAF, por tanques e artilharia sofisticada. Do lado germânico, cavalos e homens se amontoam nas valas e buracos das bombas, quando não são destroçados e espalhados por elas.

O princípio de tudo é o patriotismo, a defesa intransigente da nação, como se a existência individual não pudesse prescindir à estatal. O ser é determinado por onde você nasce ou vive, as cores da bandeira, o brasão nacional, o rei e seu governo (à época do evento), a glória e integridade pátrias. A recusa significa covardia e desonra, enquanto o prestígio está a serviço do país, mesmo se significar a morte e uma condecoração póstuma; e a sobrevivência garante ao “morto” a perpetuação do luto, angústia e desgosto tal qual uma pena capital em vida. Por isto, os mantras cívicos invocam sempre para a repetição de um amor e dedicação unilateral; o culto a fórceps, a subordinação a ferros... E a liberdade propalada é o “mote” para a escravidão.

Quando vejo as pessoas a brigar, segregar e estigmatizar conterrâneos que desconfiam das intenções de governos e políticos, sejam eles quais forem (e não vale citar os casos “raros”, pois esses nunca chegarão ao “verdadeiro poder”), e se debruçam em promessas e discursos nitidamente velhacos e patifes, algo de muito podre está a corroer a consciência e a suposta racionalidade. Por falar em racionalidade, as guerras de maneira geral, e a 1ª Grande Guerra em especial, derrubou o iluminismo e o racionalismo de várias gerações, e, por si só, já seria suficiente para desancar de uma vez as raízes das “luzes”, apontando-a como fraude e embuste. Afinal, se o homem é essencialmente racional, qual a lógica em promover (e, pior, defender cegamente) massacres, torturas e devastação em nome da razão? E fabricar mortos aos borbotões?

Remarque não explica a guerra, muito menos está preocupado em justificá-la, mas levantar a reflexão sobre a própria condição humana e sua capacidade de produzir o mal em níveis e proporções heterogêneas, contudo, incessante. O homem é mal, aponta, e o ódio ao inimigo não está simplesmente no instinto de viver, mas de destruir. A distância favorece a indiferença, mas quando ela se torna próxima, seja dos correligionários ou não, o impacto da vida esvair-se é doloroso e antinatural. Em dado momento, o protagonista, ilhado em uma cratera em meio ao detonar de granadas e bombas e o ribombar das metralhadoras, se depara com a visita de um soldado francês; ele desfere algumas facadas e o inimigo agoniza mortalmente. Enquanto ali, a ouvir o respirar aflito e os gemidos torturantes, o vê como a si mesmo, um homem comum, com mulher, filhos, lar, trabalho, uma vida igual à sua. Tenta ajudá-lo, sem sucesso. Tem remorsos por feri-lo (não consegue, porém, “consumar o seu feito”); jura gastar a sua existência para honrar aquele inimigo, assegura-se de saber o máximo sobre ele: nome, profissão, família, etc, a partir de dados e fotos da carteira. Após sobreviver, e passarem-se alguns dias, sequer se lembra do soldado, e abandona qualquer tentativa de cumprir as promessas feitas no covil. O remorso faz parte da história, esquecida e longínqua, e as lembranças não têm lugar na memória, na alma, na inconsciência do dever cumprido, seja lá o que isso represente.

Remarque escreve de maneira fluída, onde as descrições de eventos, lugares e pessoas é minuciosa, disseca as angústias, medos, desejos e o artificialismo nas trincheiras e descampados, sem deixar de pontuar trechos lúdicos e outros bucólicos. Pode-se encontrar até movimentos poéticos, se o leitor tiver a devida atenção.

O livro é impactante, daqueles difíceis de esquecer. O senão, a meu ver, é o final. Apesar de condizente com a narrativa, eu preferiria dar-lhe um aspecto mais, digamos, indefinido e, quem sabe, otimista. Contudo, em nada diminui ou anula o valor da obra.

Um ponto a se considerar, e me levou a refletir, é quanto a perceptível ausência de elementos metafísicos. Talvez, porque a guerra é dos homens, e a eles apenas deve ser imputada, jamais a Deus. Talvez, porque Remarque considera o homem abandonado por Deus e, como tal, não poderia invocá-lo a seu favor. Talvez, porque a guerra seja o inferno profetizado, seus atores condenados, e nada possa mais ser reparado. O fato é que, enquanto o homem se perder em si mesmo, achará apenas mais de si, e isso, na maioria das vezes, significa a batalha inglória e sem fim.

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Avaliação: (****)

Título: Nada de novo no front

Autor: Erich Maria Remarque

Editora: L&PM

Páginas: 208

Sinopse: “Aos dezoito anos de idade, Erich Maria Remarque (1898-1970) conheceu as trincheiras alemãs da Primeira Guerra Mundial. Foi ferido em três ocasiões. Saiu do conflito profundamente marcado e perplexo com a crueldade da guerra. Durante a década de 20, enfrentava a insônia carregada de fantasmas tomando notas sobre os horrores que viu e viveu no front. Os rascunhos formavam o núcleo de um romance. Publicado em livro no ano de 1929, "Nada de novo no front" firmou uma posição radicalmente pacifista em um mundo que ainda via a guerra como uma alternativa política e determinou o perfil antibelicista que habita a literatura ocidental até hoje.”

Nota: Texto publicado originalmente na Revista Bulunga


29 janeiro 2024

Estudo sobre a Confissão de Fé Batista de 1689 - Aula 32: Ainda sobre a vontade de Deus











Jorge F. Isah





UMA OU DUAS VONTADES?

Muitos afirmam que Deus tem duas vontades. De que ele decretou tudo [a sua vontade decretiva] e de que estabeleceu preceitos, os quais podem ser "resistidos" pelo homem que os desobedece [sua vontade preceptiva]. Em linhas gerais, esse esquema tem por objetivo esclarecer alguns conflitos que a Bíblia nos apresenta entre a vontade soberana e aquela vontade que é "quebrada" pelo homem. Acontece que a vontade divina é inquebrável, irresistível e impossível de não se manifestar. Ninguém resiste a Deus, como o profeta diz: "E todos os moradores da terra são reputados em nada, e segundo a sua vontade ele opera com o exército do céu e os moradores da terra; não há quem possa estorvar a sua mão, e lhe diga: Que fazes?" [Dn 4.35].

Vejamos mais alguns textos: 

"Mas o nosso Deus está nos céus; fez tudo o que lhe agradou" [Sl 115.3];
"Bem sei eu que tudo podes, e que nenhum dos teus propósitos pode ser impedido" [Jó 42.2];
"Que anuncio o fim desde o princípio, e desde a antiguidade as coisas que ainda não sucederam; que digo: O meu conselho será firme, e farei toda a minha vontade" [Is 46.10]; 

"O Senhor dos Exércitos jurou, dizendo: Como pensei, assim sucederá, e como determinei, assim se efetuará... Porque o Senhor dos Exércitos o determinou; quem o invalidará? E a sua mão está estendida; quem pois a fará voltar atrás?" [Is 14.24,27] 

O que vocês acham disso? É possível que a vontade de Deus seja resistida ou anulada por suas criaturas? Ou por forças contingentes? 

O fato é que o conselho de Deus, que também é chamado de vontade, é irresistível, eterno e santo. Não pode ser alterado nem adulterado, pois se fosse possível transtorná-lo, acarretaria na desordem, e sabemos que Deus não é Deus do caos. Pois quando vemos o andar da história, o seu desenrolar diante dos nossos olhos, onde o homem cada vez mais se afasta do Criador, desprezando-o e, por sua tolice, reservando para si mesmo a ira vindoura; mesmo entre todas as confusões que a vida nos revela e das quais o homem é o único culpado, ainda assim tudo está conforme Deus estabeleceu eternamente, como parte do seu projeto perfeito e santo. Onde mesmo a imperfeição e todas as deficiências originárias dela; onde o mal e tudo o que ele traz de mais doloroso e injusto; onde a desobediência levará às punições mais severas e duradouras; ainda assim tudo isso faz parte do plano geral arquitetado por Deus e que tem como objetivo a sua glória e revelar-nos a sua sabedoria, graça, misericórdia e santidade. 

Alguns podem dizer que nada daquilo, se partiu da mente de Deus, faz dele sábio ou bondoso. Mas, pergunto: se Deus não é sábio e bom, de onde viria a sabedoria e a bondade? 

O certo é que: 

1) A vontade de Deus é soberana, e nada pode frustrá-la.
2) Tudo o que Deus pensou e quis fazer, assim será.
3) Nem os anjos nem os homens podem frustrar os planos de Deus.
4) Tudo foi decretado e estabelecido por Deus eternamente, de forma que acontecerão infalivelmente.
5) Mesmo a desobediência dos anjos e homens está dentro do decreto e plano divinos.

Dentro de todos os esquemas teológicos existentes, entendo que em Deus há duas vontades: a revelada, a qual é possível ser conhecida por qualquer homem, como possibilidade, e que nos é apresentada em detalhes pela Escritura Sagrada, e a secreta ou oculta, aquela que somente Deus tem conhecimento e da qual todos nós desconhecemos, ignorando-a completamente. É o que nos diz o profeta: "As coisas encobertas pertencem ao Senhor nosso Deus, porém as reveladas nos pertencem a nós e a nossos filhos para sempre, para que cumpramos todas as palavras desta lei" [Dt 29.29]. 

De forma que não são duas, mas apenas uma vontade, a qual o homem conhece parcialmente, mas Deus a retém integralmente, sem que nada lhe esteja encoberto. Na verdade há uma vontade apenas, de forma que a vontade revelada está subordinada, sujeita à vontade oculta, que é todo o conselho divino. 

O problema é que ficamos conjecturando algumas vezes a partir da Escritura, outras vezes por fontes não confiáveis, qual seria o teor da vontade secreta de Deus. E esse é um esforço inútil e tolo, revelando o nível de imperfeição e limitação humana ao elaborar, e muitas vezes se satisfazer com o esquema proposto, algo que escapa completamente a sua capacidade. Por isso, desde sempre, satanás tem incitado o homem ao ocultismo, a buscar meios sobrenaturais de desvendar qual seja essa vontade. Porém sabemos que esses meios nada mais são do que a própria ação diabólica em iludir e confundir o homem, de sorte que ele se apresente preso ao desconhecido ao invés de se libertar naquilo que Deus deu-lhe a conhecer, no que pode ser conhecido. 

A adivinhação não somente é um engano como uma provocação e afronta a Deus; como se criaturas imperfeitas, pecadoras e tolas pudessem explorar sua mente perfeita e santa. Com isso não estou a dizer que tentar racionalmente dar compreensão a algo insondável e inescrutável seja maligno ou tolice. Nem sempre é, apesar de na maioria das vezes ser. Os esquemas humanos parecem funcionar para nós, mais ou menos como um placebo "cura" o hipocondríaco. Parece que a coisa é real, que estamos indo bem, mas na verdade ela não chegou a existir, verdadeiramente. É tão remotamente impossível como se curar uma doença inexistente [não que o hipocondríaco não seja doente, mas não o tipo de doença que ele considera ter, e a cura que diz buscar].

Da mesma forma, os esquemas humanos podem auxiliar-nos, mas sempre devemos ter em mente que eles estão longe de resolver questões para as quais somos completamente inabilitados. E o que se refere à vontade oculta de Deus é ainda mais impossível, se é que há algo mais que impossível. Por mais exaustivos que sejam os esforços eles não passarão de sombras daquilo que realmente é. Por isso evito processos muito elaborados e complexos para definir algo simples, mas de uma simplicidade inatingível, e que seria melhor reconhecê-la como não definível pela linguagem humana.


UM EXEMPLO PRÁTICO 

Mas, a questão é, agora: Pode a vontade de Deus ser frustrada?

Em Atos 4.26-28 lemos: "Levantaram-se os reis da terra, e os príncipes se ajuntaram à uma, contra o Senhor e contra o seu Ungido. Porque verdadeiramente contra o teu Santo Filho Jesus, que tu ungiste, se ajuntaram, não só Herodes, mas Pôncio Pilatos, com os gentios e os povos de Israel; para fazerem tudo o que a tua mão e o teu conselho tinham anteriormente determinado que se havia de fazer"

Alguém pode aventar que temos aqui apenas uma predição. Que Deus, conhecendo o futuro, viu o que os homens fariam com o seu Filho. Mas sabemos que o texto não diz isso. Ele diz mais, muito mais do que uma simples “visão” divina:

- É certo que Pilatos, Herodes, os judeus e os gentios se juntaram contra Cristo. Interessante que todos eles colaboraram para a morte de Cristo, a qual não se deu por todos eles, no sentido de que Cristo não morreu por todos os homens, mas especificamente pelos eleitos, pela sua igreja, para trazer a Deus um único povo.

- É certo que eles, ao se levantarem contra Jesus, também se levantaram contra Deus. 

- Muito mais do que Deus tendo uma "antevisão" do que iria acontecer, ele decretou e determinou que Cristo fosse preso, humilhado e morto por eles.

- A "mão de Deus" é uma figura de linguagem que se refere ao decreto, à vontade, ao que Deus predeterminou que aconteceria, e não simplesmente "viu" algo que estava além do seu poder e da sua vontade. A mão de Deus nos dá a idéia de que ele conduziu todo o processo de forma que acontecesse, sem qualquer chance de não acontecer. Foi o que nos diz o profeta: “Todavia, ao Senhor agradou moê-lo, fazendo-o enfermar; quando a sua alma se puser por expiação do pecado, verá a sua posteridade, prolongará os seus dias; e o bom prazer do Senhor prosperará na sua mão. Ele verá o fruto do trabalho da sua alma, e ficará satisfeito; com o seu conhecimento o meu servo, o justo, justificará a muitos; porque as iniqüidades deles levará sobre si.” [Is 53.10-11]. Note-se que o evento da crucificação não aconteceu à revelia de Deus, mas em seus mínimos detalhes esteve sob o seu controle. De forma que o Senhor se agradou, e o mesmo Senhor viu o seu trabalho e se satisfez, representando uma obra conjunta da pessoa do Pai e do Filho e do Espírito.

- Temos de entender que a vontade de Deus ou é soberana, e por soberana eu digo um poder absoluto, sem restrições ou neutralizações, aquele revestido de autoridade suprema, potente; ou não é, e então o homem, caso possa subjugar a vontade divina, é quem detém o real poder. Mas sabemos que o homem é nada diante de Deus, e apenas cumpre os seus propósitos. 

- Certo é que eles planejaram, intentaram e executaram o plano de matar o Filho de Deus, e assim fizeram, e por isso foram culpados, e serão condenados. Eles não deveriam tê-lo feito, mas não havia como não fazerem. Entendam que a responsabilidade não está no fato do homem poder resistir, quando a sua natureza pecaminosa insiste em que ele não resista, pois não pode, mas no fato dele deliberadamente assumir o erro e praticar o crime. O crime é que o torna em criminoso. Se ele podia ou não resistir é outra história. Ninguém é condenado pela hipótese da resistência, se queria ou não, se era ou não capaz, mas por agir em oposição à lei. E ao fazê-lo, ele infringe-a, tornando-se culpado.

- De certa forma todos são culpados pela morte de Cristo, no sentido de que, qualquer um de nós que estivesse no lugar de Pilatos, Herodes e dos judeus e gentios gritaríamos também "crucifica-o!". Acontece que eles não se tornaram culpados e réus de morte a partir da crucificação do Senhor, mas como está escrito, eles, desde sempre eram culpados, pois "quem não crê já está condenado, porquanto não crê no nome do unigênito Filho de Deus" [Jo 3.18].

Em tudo isso o importante é saber que Deus é também Senhor da nossa vontade, ainda que não saibamos como isso se dá; certos porém de que, por mais que queiramos, ninguém é independente ou autônomo de Deus.
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Notas: 1- Aconselho, aos que ainda não o fizeram, a ler o texto "Deus não tem escolhas". Alguns pontos descritos aqui podem ficar mais claros. 
2- Aula realizada no "Tabernáculo Batista Bíblico" .

ÁUDIO DA AULA 32:

21 janeiro 2024

Revelação: O Deus irredutível - Parte 1























Por Jorge F. Isah



Se há algo que tem me marcado ultimamente, e o qual tenho sido ensinado através das Escrituras, é Deus revelar-se em poder, glória e majestade na sua Criação; de que a revelação natural manifesta ao mundo todo o esplendor, infinitude, domínio, e intensidade do eterno poder divino [Rm 1.20], ao ponto do mais ignorante dos homens, e até mesmo os ainda mais ignorantes que ele [os ateus], não estarem livres de formular conceitos e ideias sobre Deus, numa disposição, o “sensus divinitatis” [1], de que existe o Criador. Ela perpassa todos os homens, crentes ou não; e o próprio fato do cético afirmar a sua descrença é a declaração de que, mesmo opondo-se a Deus, ele não pode se ver livre dele. Ao negá-lo, apenas revela a consciência, mesmo deturpada, caída, corrompida, de que ele possui a consciência de Deus.

Na verdade, o ateu, ao se debater e se bater para provar a não existência do Criador, dá o testemunho secreto da alma de que ele existe. A prova está em como essa rejeição toma-o de assalto, de tal forma que ela preenche a sua vida tornando-o indissociável da ideia de Deus, ainda que negativamente. O objetivo passará a ser opor-se-lhe, com o empenho, dedicação e esmero digno de um adorador, porém um adorador disposto a destruir o objeto de adoração. Pois, em sua ignorância, ao negá-lo, nega-se a si mesmo. Da mesma forma que ele não pode se cortar sem sentir dor, é impossível a vida sem Deus. Se a morte precisa da vida para existir; se o bem não houvesse, não existiria o mal; se o feio carece do belo para ser; a vida também depende de Deus para subsistir. Não uma antítese, como nos casos citados anteriormente, mas sem ele nada haveria ou poderia simplesmente existir ou ser feito [Jo 1.3].

Ninguém nasce ateu; o ateísmo é o ápice da rebeldia contra a autoridade divina, e acontece numa fase temporária, como se o homem estivesse em coma e perdesse a sua consciência. O ateu é um inconsciente, a autoministrar-se doses regulares de pecaminosidade, ao ponto de se considerar autônomo, sendo a sua independência irreal sustentada pelos anestésicos que o mantém em estado de torpor, e assim é-lhe incapaz ter a noção exata do que se passa em torno dele ou com ele. Julgando-se habilitado a desafiar a Deus, convencido de estar procedendo em coerência com a sua percepção geral, ele estaria na mesma condição de, por exemplo, alguém afirmar estar em terreno seco quando a água está-lhe a cobrir a cabeça. Quem nega a revelação natural e, por conseguinte, Deus, incorre em autoengano, quando a sublevação instala-se violentamente ao ponto de se auto-afirmar ser necessário repudiá-lo, renunciar à sua vontade, não admitir a sua existência a qualquer custo, e, então, ainda que seja pela vontade, uma vontade delineada pela injustiça, chegar ao estágio em que todo homem almeja, no íntimo, alcançar: autoproclamar-se deus. Com isso, o que consegue é apenas iludir-se com a idéia de que assentou definitivamente no trono quando nem mesmo ainda entrou nos limites do castelo: mudar a verdade em mentira [Rm 1.25].

Há o negar-se Deus para reafirmar o homem. Há o negar-se o conhecimento para se desconhecer. Há o negar-se a culpa para se viver impiamente. Há a não glorificação de Deus para se autogloriar na escuridão do coração insensato. Há o desprezo à sabedoria para o louvor da loucura... E, assim, diz “o néscio em seu coração: não há Deus” [Sl 14.1]. Somente o tolo pode não se aperceber disso, mas o simples fato de imbuir-se de uma cruzada contra o Criador, exclui qualquer possibilidade de não-consciência da realidade de que ele existe; apenas não quer aceitá-la; na recusa de confessar-se a imagem dele, ainda que esteja distorcida pela Queda e o pecado. Seria o mesmo que alguém visitasse uma “sala de espelhos”, onde as imagens de si mesmo são disformes, e dissesse: “como é possível eu me reconhecer nelas se não se parecem comigo? Se não se parecem comigo, não sou eu; e se não sou eu, como posso me reconhecer?”.

A lógica, ou a falta dela, é mais ou menos o que o homem pode apreender de si mesmo a partir de uma imagem deformada de si. E teimar em negar Deus a partir da imagem deformada que construiu, ou da sua destruição interior, e insistir em perguntar: como posso reconhecê-lo? Porém o Senhor nos deu não somente indícios, mas evidenciou todo o seu poder e glória através da Criação; que se pode considerar como o som produzido por ele para o deleite dos nossos ouvidos. Ocorre que há os surdos, os impossibilitados de ouvir [2], e pelo fato de não ouvirem, alardeiam aos quatro cantos que não existe som, de que ele é uma ficção ou apenas uma muleta para provar-se que a língua, cordas-vocais, palato e os lábios têm um significado e não são inúteis, assim como os ouvidos também têm de ter um propósito que justifique-lhes a vida. É o mesmo que se dispor a crer no poder do acaso e da aletoriedade, supondo   que compreendem a realidade ou até a criaram, como se a "roleta-russa" [3] fosse capaz de projetar a arma, o projétil, o crânio e o sangue a jorrar-lhe, ou o simples estalido seco da câmara vazia do revólver. 

Qualquer pessoa, em qualquer lugar do mundo, pode se aperceber da verdade de que Deus é o Senhor do universo, porque "no princípio criou Deus os céus e a terra" [Gn 1.1]. Por onde andamos, para onde olhamos, no que tocamos, está evidenciado que o mundo é o lugar onde Deus diz muito de si, a gritar a sua sabedoria e poder; a ordenar aos homens que o adorem; porque “os céus declaram a glória de Deus e o firmamento anuncia a obra das suas mãos... não há linguagem nem fala onde não se ouça a sua voz. A sua linha se estende por toda a terra, e as suas palavras até o fim do mundo. Neles pôs uma tenda para o sol” [Sl 19.1,3-4].

Mesmo se uma pessoa tivesse nascido em uma ilha deserta, sem qualquer contato humano, inclusive com os pais, somente pela obra das mãos divinas seria possível a esse homem vê-lo, pois além de serem feitas por ele, elas o revelam. Com isso, não estou a dizer que a revelação natural é suficiente para o homem conhecer a verdade, ainda que não houvesse o pecado e a Queda [4], mas seria suficiente para reconhecer o seu poder e glória, honrando-o como o Criador e Senhor de todas as coisas que vieram à existência por sua vontade.

Vale ressaltar que a revelação natural não pode salvar, nem trazer ao homem um relacionamento com Deus. Ela é suficiente para condenar o homem, para revelar que Deus existe, e de que é o Criador e legislador do universo. Ao se rebelar, o homem rejeita todas as evidências que ela lhe apresenta: a origem divina do Cosmos e das leis que o ordenam; a origem divina da lei moral, cuja consciência é-lhe inerente e na qual não quer se submeter. Por isso, Paulo diz que o homem é inescusável diante de Deus, por não querer entendê-las nem vê-las.

Portanto, Deus se revela na Criação, mas essa revelação não é capaz de levar o homem a vê-lo além do seu poder; pois outros atributos como o amor, bondade, misericórdia e graça somente podem ser conhecidos através da revelação especial. Assim, posso concluir esta parte com a seguinte afirmação: Deus revela através da natureza o seu poderio, mas o seu amor somente pode ser conhecido pela Palavra. E essa palavra é Cristo!

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Notas: [1] “Sensus Divinitatis”[encontrei também a grafia “divinitatis sensus”] é o conhecimento inato ou a disposição ao conhecimento de Deus inerente à mente humana, dada pelo próprio Deus. Paulo define-o assim: “Porquanto o que de Deus se pode conhecer neles se manifesta, porque Deus lho manifestou” [Rm 1.19].
[2] Analogia a Jo 12.40.
[3] É um jogo de azar onde os participantes colocam uma bala - tipicamente apenas uma - em uma das câmaras de um revólver. O tambor do revólver é girado e fechado, de modo que a localização da bala é desconhecida. Os participantes apontam a arma para suas cabeças e atiram, correndo o risco da provável morte caso a bala esteja na câmara engatilhada. 
[4] Não acredito que fosse possível ao homem [mesmo Adão, antes da Queda], o conhecimento perfeito do Criador; porque encontramos na sua Criação uma parte dos seus atributos, ainda que se possa dizer que o amor e a bondade estão manifestos nela. Deus somente pode ser conhecido através da revelação especial, e mais detidamente através do Redentor, Jesus Cristo. Como esse ponto será abordado em outro texto, deixo apenas a minha convicção de que o pecado e Queda foram decretados por Deus para que o seu povo pudesse conhecê-lo verdadeiramente. 
[5] Esta série que, se Deus quiser, publicarei, deve muito ao meu pastor Luiz Carlos Tibúrcio, o qual tem  pregado sequencialmente o livro de Salmos; porém sem qualquer participação nos eventuais erros que eu venha a incorrer. 

13 janeiro 2024

A roda quadrada ou algo parecido e inútil

 






Jorge F. Isah



    Antoine Lavoisier, o pai da Química, depois de estudar as reações e estabelecer a “Lei da Conservação da Matéria”, disse: “Na natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma”. Antes de partir para o texto em si, quero deixar outra máxima de sabedoria, desta vez, do profeta Isaías: “Ai dos que ao mal chamam bem e ao bem mal; dos que dizem que as trevas são luz e a luz trevas; dos que fazem do amargo doce e do doce amargo! Ai dos que se fazem passar por sábios e astutos aos seus próprios olhos!” (Isaías 5:20-21).

    Talvez, você se pergunte: que raios está a dizer este escrevinhador?

    Ainda que o químico afirme haver uma constante transformação nas estruturas químicas do universo, ele assegura não ser possível criar nada que não tenha sido criado. Partindo para o homem, não da composição química mas moral, existe uma constante e insistente tentativa de se corromper valores, virtudes e qualidades ao nível das bizarrices, vícios e pecados. As pessoas se acham no direito de perverter coisas básicas e elementares como o sentido da vida, humanidade, o certo e o bem. Por meio de discursos e esquemas irracionais, ilógicos e delirantes, o bem se torna em mal, e o mal em bem, a depender dos interesses, motivação e objetivos dos proponentes. Outra máxima, de os fins justificarem os meios, se encaixaria neste escopo, também.

    Mas, por que essa miscelânea de citações?

    Recentemente, uma ginecologista foi processada por um homem, quando se recusou a atendê-lo em uma consulta. Ora, bolas! O que ela esperava? Não seria mais conveniente mandá-lo arreganhar as pernas cabeludas, introduzir o espéculo (onde?? onde???), e depois agendar uma mamografia? Por que ainda temos de conviver com médicos preconceituosos, racistas e transfóbicos, que não sabem avaliar as necessidades e urgências de pessoas com vontades inclusivistas, sensíveis e umbráticas? Afinal, que culpa têm se a medicina está cega aos anseios e apelos ébrios de psiques túrbidas e enleadas? E taca-lhe um processo, e as coisas se resolverão com indenizações, retratações e mudanças nos protocolos estabelecidos por séculos e séculos de estudos meticulosos, a fim de satisfazer os cacoetes e extravagâncias de uns e outros, por meio de canetadas dos espeloteados legisladores e juristas.

    Caso semelhante aconteceu quando uma jovem fez exames de rotina, e descobriu que colesterol, triglicerídeos, glicose, plaquetas, gama GT, ácido úrico, entre outros, estavam nas alturas. O médico, ao ler os resultados, prescreveu uma série de medicamentos e indicou à paciente um nutricionista:

    - Por quê? – Disse indignada.

    - Você está obesa. Muito acima do peso. E gordura em excesso é a causa de exames tão ruins. – Não minimizou o especialista.

    - O que você tem contra gordos?

    - Nada.

   - Para mim você não passa de um fascista, racista, retrógrado e gordofóbico!

    - Não... – Tentou amenizar o médico, sem sucesso.

    A paciente pegou o celular, chamou a polícia e, enquanto esperava para lavrar um boletim de ocorrência, entre xingos, gritos e acusações, olhou para a careca do doutor e disse:

    - Pelo menos, sou gorda. Mas e você? Já que feiura não tem conserto?

    É por essas e outras que o meu filho quis fazer medicina e eu demovi-lhe da ideia, ameaçando deserdá-lo. Hoje, ele tem um estúdio de tatoos, ganha rios de dinheiro, e quanto mais gordos quiserem emporcalhar seus corpos, mais feliz ele ficará. Sem a necessidade de alertar os riscos à saúde e ganhar um processo nas fuças.

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Nota: 1) Texto publicado originalmente na Revista Bulunga, Número 24

08 janeiro 2024

Estudo sobre a Confissão de Fé Batista de 1689 - Aula 31: A vontade de Deus





Jorge F. Isah


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CAPÍTULO 2: DEUS E A SANTÍSSIMA TRINDADE


1. O Senhor nosso Deus é somente um, o Deus vivo e verdadeiro, [1] cuja subsistência está em si mesmo e provém de si mesmo; [2] infinito em seu ser e perfeição, cuja essência por ninguém pode ser compreendida, senão por Ele mesmo. [3] Ele é um espírito puríssimo, [4] invisível, sem corpo, membros ou paixões; o único que possui imortalidade, habitando em luz inacessível, a qual nenhum homem é capaz de ver; [5] imutável, 6 imenso, 7 eterno, [8] incompreensível, todo-poderoso; [9] em tudo infinito, santíssimo, 10 sapientíssimo; completamente livre e absoluto, operando todas as coisas segundo o conselho da sua própria vontade, 11 que é justíssima e imutável, e para a sua própria glória; 12 amantíssimo, gracioso, misericordioso, longânimo; abundante em verdade e benignidade, perdoando a iniquidade, a transgressão e o pecado; o recompensador daqueles que o buscam diligentemente; 13 contudo justíssimo e terrível em seus julgamentos, 14 odiando todo pecado, 15 e que de modo nenhum inocentará o culpado. 16 Deus tem em si mesmo e de si mesmo toda a vida, 17 glória, 18 bondade 19 e bem-aventurança. Somente ele é auto-suficiente, em si e para si mesmo; e não precisa de nenhuma das criaturas que fez, nem delas deriva glória alguma; 20 mas somente manifesta, nelas, por elas, para elas e sobre elas a sua própria glória. Ele, somente, é a fonte de toda existência: de quem, através de quem e para quem são todas as coisas, 21 tendo o mais soberano domínio sobre todas as criaturas, para fazer por meio delas, para elas e sobre elas tudo quanto lhe agrade. 22 Todas as coisas estão abertas e manifestas perante Ele; 23 o seu conhecimento é infinito, infalível e independe da criatura, de maneira que para Ele nada é contingente ou incerto. 24 Ele é santíssimo em todos os seus pensamentos, em todas as suas obras, 25 e em todos os seus mandamentos. A Ele são devidos, da parte de anjos e de homens, toda adoração, 26 todo serviço, e toda obediência que, como criaturas, eles devem a criador; e tudo mais que Ele se agrade em requerer de suas criaturas. Neste ser divino e infinito há três pessoas: o Pai, a Palavra (ou Filho) e o Espirito Santo; 27 de uma mesma substância, igual poder e eternidade, possuindo cada uma inteira essência divina, que é indivisível. 28 O Pai, de ninguém é gerado ou procedente; o Filho é gerado eternamente do Pai; 29 o Espirito Santo procede do Pai e do Filho, eternamente; 30 todos infinitos e sem princípio de existência. Portanto, um só Deus; que não deve ser divido em seu ser ou natureza, mas, sim, distinguido pelas diversas propriedades peculiares e relativas, e relações pessoais. Essa doutrina da Trindade é o fundamento de toda a nossa comunhão com Deus e confortável dependência dEle.
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INTRODUÇÃO

O que vem a ser vontade?... Muitos podem dizer que vontade é o desejo de se fazer algo ou a disposição para se fazer algo ainda que não se faça, por vários motivos. Na história do pensamento humano sempre se discutiu sobre o significado real de vontade e desejo, e sobre sua relação, chegando-se a tê-las como sinônimos, tal a ligação intrínseca existente entre elas e, em outros casos, afirmou-se que elas são duas "pontentias", de forma que a vontade pertence ao campo racional enquanto o desejo ao campo sensorial ou sensível. Há uma disputa entre a psicologia e a filosofia para definir melhor ou mais corretamente os termos; porém, aqui interessa-nos não apenas o desejo, como uma vontade irrealizada ou uma impressão, mas a vontade em um determinado curso de ação. Ou seja, a volição, que nada mais é do que a vontade como a força que inclina e move o homem a querer, fazer e a não fazer, em seu caráter moral.

Infelizmente, hoje em dia, não se discute a vontade como um princípio racional da ação, como o poder originário da alma a produzir manifestações do homem; nossas escolhas são motivadas por um apetite voluntário que nos leva a agir. O que nos faz responsáveis por nossos atos, visto te-mo-los escolhidos. Não entrarei na questão se a vontade é ou não livre, se ela sobre uma ação prévia ou coação que a motiva. Certamente que o homem, como ser moral, é responsável pelo que faz, seja lá qual for a sua motivação. Tanto Platão como Aristóteles entendiam que o termo vontade somente era pertinente ao se fazer o que se quer, e não ao que satisfaz. Essa era a distinção racional que consideravam, pois fazer o que se quer é fazer o que é bom, o que é agir racionalmente. Acontece que o homem age, na maioria das vezes, em prol do mal, e eles entendiam que assim se age irracionalmente, ao se fazer o que agrada, simplesmente.

Entendo que essa é uma boa distinção, que pode explicar muitas vezes porque agimos pecaminosamente. Ainda que saibamos ser determinado ato pecaminoso, que nos leva a ofender a Deus e ao próximo ou a nós mesmos, nos dispomos a praticá-lo, indo contra a razão, a qual podemos chamar de consciência, que nos alerta do engano a se cometer. Mesmo que não conheçamos todos os riscos e implicações, temos sempre a capacidade de avaliar se o que está-se a praticar é certo ou não. Ainda que muitos digam não ter esse conhecimento, o que acontece na verdade é uma "cauterização da consciência", o abandono do senso moral, de forma que se apague do caráter os sinais que nos leva ao cuidado, à vigília que o conhecimento imediato nos revela quanto aos riscos da atitude que se vai tomar. É o abandonar-se à irresponsabilidade com o objetivo de não ser responsabilizado, nem de ser acusado, como se fosse possível viver num estado de inconsciência deliberada. O que se tem visto cada vez mais são os respaldos científicos, especialmente da psicologia moderna, de que muitos atos praticados pelo homem não têm como fonte a vontade deliberada ou determinada de se praticá-los. Com isso procura-se isentá-lo da responsabilidade, e se acaba por transferi-la a quem não tem controle sobre ela, visto ser o indivíduo o único capaz de decidir pela prática do ato ou não. Alegar que se foi coagido ou induzido ao erro em nada pode absolver o agente. Até mesmo um animal, como um cão ou um gato, percebe se cometeu uma bobagem ou não. Tenho cães que, ao passarem dos limites estabelecidos por mim, mesmo antes de eu descobrir a infração já é possível percebê-la na atitude "arrependida" do animal. Muitas vezes, tenho de sair pelo espaço deles procurando pela traquinagem até encontrá-la. Eles sabem que cometeram um "crime", e que por isso serão repreendidos. Ou seja, é quase possível dizer que eles têm uma mente mais racional do que muitos humanos. Que até mesmo os animais têm a noção do certo e do errado, guardadas as devidas proporções. E se não têm o Imago Dei, como nós, o que nós dá o direito de defender a irresponsabilidade? Como se os atos praticados não fossem originados pela vontade individual? Certamente que esse é um dos atributos divinos comunicado ao homem, e do qual o homem tenta, desesperadamente, se ver livre; de forma que assim ele se liberta tanto da responsabilidade moral como da sua dependência de Deus. Ao menos ele se imagina livre, em sua tola pretensão de liberdade. Um exemplo evidente de que a transgressão é consequência da vontade está relatado no livro de Gênesis, capítulo 4.

Abel e Caim levaram ofertas para Deus, e ele se agradou da oferta de Abel e não se agradou da de Caim, cujo semblante lhe decaiu, por causa da ira contra o seu irmão. E o Senhor lhe disse: "Por que te iraste? E por que descaiu o teu semblante? Se bem fizeres, não é certo que serás aceito? E se não fizeres bem, o pecado jaz à porta, e sobre ti será o seu desejo, mas sobre ele deves dominar". E o que aconteceu em seguida? Caim matou a Abel. E Deus expulsou-o de diante de sua face, e amaldiçoou-o. De forma que o próprio Caim reconheceu: "É maior a minha maldade que a que possa ser perdoada". Ao não ouvir o conselho divino, e dispor-se a fazer o que lhe agradava no momento, Caim decidiu-se pelo mal, e foi punido pelo seu crime. Segundo o parecer dos filósofos citados, Caim, ao não usar a razão, não foi capaz de ter vontade, mas o desejo irracional de matar e aplacar a sua ira com o sangue do seu irmão. Ele não dominou sobre o seu desejo, sabia o que não deveria fazer, mas decidiu fazê-lo porque foi do seu agrado. O Senhor nos diz quase a mesma coisa:

1) Caim deveria dominar o seu desejo; 

2) Se não o fizesse, o pecado jazia à porta; em outras palavras, ele estava em iminência de se concretizar; 

3) Sobre Caim seria lançada a culpa pelo seu desejo. 

Temos aqui o desejo de Caim como algo realmente iníquo, irracional, o pecado acalentado e realizado, a exaltação do eu diante de si mesmo, mas jamais inconsciente, pelo contrário; o próprio Caim estava seguro da sua violação; ele queria, como resultado do seu desejo insano, o assassínio, o sangue de Abel em suas mãos; o que o levou a não considerar injusta a punição que lhe foi aplicada por Deus; ele estava consciente de que era justa, assim como estava consciente do ato praticado, pois em momento algum ele teve o menor sinal de arrependimento, de remorso pelo crime cometido. Caim estava convicto, e mesmo disposto a arcar com as consequências do crime praticado. O que enuncia a sua decisão e obstinação em fazer o mal conscientemente. O que vale dizer que fortes emoções, profunda consternação ou ira, não são justificativas para que a vontade direcione o homem ao que não deve ser feito, ao invés de mantê-lo distante, conservando-o no bem que o fará aceito [e, por bem, também significa o afastar-se do mal]. Como ser moral, o homem deve se dispor à dominar os desejos provenientes da sua natureza caída, afastando-se do mal, procurando o bem, que será sempre realizar não a vontade imperfeita e iníqua do homem, aquela pela qual damos vazão ao pecado, mas buscar incessantemente fazer a vontade divina, a qual é perfeita, e pura, e santa. 

Tiago, em sua epístola, nos alerta de que "cada um é tentado, quando atraído e engodado pela sua própria concupiscência. Depois, havendo a concupiscência concebido, dá à luz o pecado; e o pecado, sendo consumado, gera a morte. Não erreis, meus amados irmãos". Concupiscência é todo o desejo imoderado, descontrolado, e foi por ele e para ele que Caim se entregou, gerando o pecado. E a morte foi a separação definitiva de Deus; e Caim saiu de diante da face do Senhor. 


A VONTADE DE DEUS

Deus tem vontade? Ou teria, vontades?[1]. Essa é outra discussão que perpassa os séculos, gerando mais confusão do que esclarecimentos. O homem, por suas próprias limitações e pelo desejo de ter todas as coisas explicitadas, como se tivesse o domínio sobre elas, e assim pudesse garantir algum mérito para si mesmo, não tem como compreender todos os aspectos que envolvem o ser divino. Ainda que muitos afirmem isso, há um esforço e empenho em não aceitar essa proposição, de forma que acaba-se trilhando o caminho perigoso de se inferir de Deus aquilo que ele não é. Como já disse anteriormente, muito do que é proposto não passa do reflexo daquilo que somos: soberbos e orgulhosos. Em relação a Deus, qualquer palpite, suspeita ou conclusão decorrente da nossa mente, e não daquilo que ele revelou, será uma armadilha para quem a defende ou expõe. Entender que o ser divino é inexorável, que é-nos impossível sondá-lo, e que o pouco conhecimento de que dispomos é fruto da vontade soberana de Deus, sempre circunscrito à sua revelação especial, a Bíblia, tornaria mais fácil a nossa situação.


Com isso não estou reivindicando que se abandone os estudos e a meditação, que sejamos ignorantes e desconheçamos a Deus. Não é isso. Basta saber que há limitações, barreiras levantadas pelo próprio Deus, e de que elas são intransponíveis, ao menos nesta vida. É-nos assegurado que naquele dia, o dia glorioso do Senhor, nada perguntaremos. Talvez porque seja-nos revelado tudo instantaneamente pelo Espírito Santo; talvez porque não nos preocuparemos em questões que se colocarão irrelevantes diante da glória, esplendor e majestade divinas. E como esse é um ponto importante da ortodoxia, não há porque desprezá-lo. 

Como disse, se definiu entre os reformados alguns conceitos e divisões da vontade de Deus. Esquemas foram propostos e aceitos exatamente por conta da nossa limitação, na tentativa de se aproximar o máximo da verdade sobre o assunto. Mas fato é que não se pode falar de vontades em Deus. Ele tem uma única, imutável e eterna vontade. Alguns pensam que há um conflito entre o que Deus quer e o homem realiza, de forma que a Bíblia parece revelar que nem tudo o que Deus quer suas criaturas o obedecem. Mas seria isso verdade? Penso que não. Pois se estaria criando um problema ainda maior que atingiria o atributo da soberania divina. Ou Deus é todo-poderoso, como a Escritura revela, ou ele tem limitações. Por aceitar certas limitações é que muitos caminham para o liberalismo, panteísmo ou panenteísmo, e até para a descrença total. Invariavelmente ela inicia-se com a incompreensão da Bíblia, culminando na recusa em aceitá-la como a fiel e inspirada palavra de Deus. 

Portanto, em Deus não há vontades, nada além de uma única vontade. Acontece que ela se manifesta, aos nossos olhos de maneiras distintas. Veja bem, esse entendimento decorre da nossa deficiência, da incapacidade e limitação intrínsecas ao ser humano. Partindo-se da dedução, chega-se as classes de empregos teológicos de alguns termos, como vontade decretiva e preceptiva, antecedente e consequente, absoluta e condicional, dentre outras. Ainda que eu não aprecie esse tipo de classificação, para não parecer apenas "ranzinza" adotarei o que os calvinistas mais antigos chamaram de vontade revelada e secreta. Parece-me um esquema mais simples e bíblico, e que abrange de maneira mais eficiente a compreensão que se deve ter sobre o assunto. 

Para mim, Deus tem uma vontade apenas, mas que nos é apresentada em duas perspectivas diferentes. A vontade divina é aquela soberana, pela qual ele decretou todas as coisas, de forma que elas invariavelmente acontecerão como ele planejou. E dentro desse decreto está toda a criação: o universo, os seres angelicais, os homens, o mal, o pecado, a queda, os fatos mais corriqueiros e irrelevantes que se possam imaginar. Tudo veio à existência pela vontade divina, e por ela tudo subsiste. Não há como a vontade de Deus ser resistida ou anulada. Dentro do seu plano soberano e eterno tudo acontecerá conforme a sua vontade estabeleceu. É o que Jó diz: "Bem sei eu que tudo podes, e que nenhum dos teus propósitos pode ser impedido" [Jó 42.2]. Em outras palavras, Cristo nos diz a mesma coisa: "Aos homens é isso impossível, mas a Deus tudo é possível" [Mt 19.26]. É possível que alguém diga que a fala do Senhor se refere exclusivamente à salvação. Mas, pergunto: não poderia esse princípio ser aplicado a tudo? Haveria limites para a vontade infinita e eterna de Deus? Ou, como tudo o que se refere a ele, ela também é absoluta, necessária e essencial, e não pode ser restringida jamais pelo contingente? Qualquer análise da vontade de Deus a partir de alguma limitação que não seja o próprio ser divino [e aí entramos em outro problemão, pois Deus é infinito também em sua vontade] incorrerá no equívoco. Fato é que a vontade divina acontecerá infalível e invariavelmente, sem chances de não acontecer. 

Mais alguém pode dizer: como então Deus ordena que façamos algo, como cumprir a sua lei, e não o obedecemos? Não há uma flagrante oposição do homem, ao pecar, contra a vontade de Deus que abomina e ordena que não pequemos? 

É aqui que entra a distinção acima, a classificação que utilizarei sobre a vontade de Deus. Temos que Deus tem uma vontade, a qual compreende o que nos foi revelado e o que não foi. O que nos foi revelado está na Escritura, e qualquer homem tem acesso a ela [não quero dizer que todos têm acesso à Bíblia efetivamente, mas que existe a possibilidade de todos terem. Para que algo aconteça é necessário que ele esteja no "mundo das possibilidades", do contrário não existirá]. Moisés diz exatamente isso, ao referir-se à Lei: "As coisas encobertas pertencem ao Senhor nosso Deus, porém as reveladas nos pertencem a nós e a nossos filhos para sempre, para que cumpramos todas as palavras desta lei" [Dt 29.29]. Com isso não se quer fugir de eventuais problemas, mas constatar que existe um problema, e que nem todo ele é compreensível pois está retido na mente de Deus. Aquilo que ele ordenou, e que é a sua vontade expressa, nos foi revelado, e qualquer um pode se asseverar dele, confirmá-lo. Deus delineou na sua palavra aquilo que ele quer que façamos, como reflexo da sua santidade, e para nos apresentarmos santos diante dele. Acontece que o homem, por sua própria imperfeição, não é capaz de cumpri-la. Aprouve a Cristo fazê-lo por nós. Essa é a vontade revelada de Deus, e que está ao alcance de todos os homens [novamente, como possibilidade]. 

Porém, há o que não nos foi revelado, e que se pode chamar de vontade secreta ou não-revelada, que é do exclusivo conhecimento divino. Apenas ele a conhece, mais ninguém. Nem mesmo os anjos celestiais. Ela está por detrás do curso histórico pelo qual o universo vem trilhando, e que podemos resumir como sendo o propósito eterno de Deus. Não sabemos o que é, nem como se dará, sabemos apenas que ela existe. Ela é a parte do decreto eterno que, assim como Paulo se referiu ao ser divino, é insondável e inescrutável. Nenhum de nós é capaz de penetrá-la, nem investigá-la. E essa vontade divina ordenou todas as coisas, inclusive a desobediência humana. Do ponto de vista humano, ao pecarmos, estamos em desobediência a Deus, e contra a sua vontade revelada, o preceito ou mandamento. Em relação a Deus, cumprimos exatamente o que ele decretou eternamente, e realizando ou pondo em execução o seu plano, satisfazendo à sua vontade oculta ou secreta. 

Há algum tempo, expus o seguinte exemplo em uma conversa que virou texto:  

"Acho apenas que o termo 'desejo' não deve ser empregado. Ainda que Deus queira. É como o Pai que não deseja punir o filho, mas tem de puni-lo para o próprio bem do filho. Ele o ama e não quer que ele se perca, por isso o castiga, mesmo não querendo castigá-lo; ele o faz pela necessidade insuperável... No caso dos eventos maus, Deus os decreta, mas não os deseja, porém eles cumprem o propósito maior de revelá-lo e a sua vontade primeira: separar um povo para si por meio de Cristo... Por desejo quero dizer ter prazer, se deleitar, etc. Mas se desejo é querer, isso ele quer" [2]

Certamente não tenho hoje o mesmo entendimento que àquela época, ainda que concorde parcialmente com o que disse. Em linhas gerais, Deus quer uma única coisa, o cumprimento da sua vontade, do seu plano, e ele se dará através de meios que parecerão, à primeira vista, conflitar e se opor à essa mesma vontade, mas que não se opõem nem conflitam, antes estão subordinadas à vontade maior, aquela que não nos foi revelada. Com isso quero dizer que a vontade revelada é subjacente, dependente da secreta. 

Um outro exemplo é o da morte de Cristo. Pedro nos diz que Deus decretou todos os eventos, e que eles foram realizados por Pilatos, Herodes, os judeus e os gentios [At 4.26-28]. Qual era o decreto divino? Que seu Filho Amado, Jesus Cristo, fosse preso, humilhado e morto pelos homens. Entendo que Pedro, ao referir-se a judeus e gentios quis dizer que todos colaboraram para a sua morte, a qual, porém, não aconteceu por causa de todos, no sentido de que Cristo não morreu por todos os homens, mas especificamente pelos eleitos, pela sua igreja, para trazer a Deus um único povo. Como o profeta também diz: "Todavia, ao Senhor agradou moê-lo, fazendo-o enfermar; quando a sua alma se puser por expiação do pecado, verá a sua posteridade, prolongará os seus dias; e o bom prazer do Senhor prosperará na sua mão. [Is 53.10]. A vontade divina era de que Cristo morresse, mas isso implicaria em contradição com o 5o. mandamento, "não matarás" [Ex 20.13]? A Pilatos, Herodes, os judeus e aos gentios foi ordenado não matar. Mesmo assim eles mataram o doador da vida. Havia uma vontade de Deus para que os homens não matassem [considero o termo inadequado, pois reputo-o como preceito, ordem, o qual se encontra em conformidade com o ser santo de Deus], pois uma coisa é a vontade como um desejo, outra coisa é a vontade imperativa, como uma ordem a se cumprir incontestavelmente. Contudo, dentro da sua vontade soberana e suprema, foi-lhes ordenado crucificar o Justo. E qual era o objetivo maior? A redenção dos homens, a justificação que somente poderia vir pela morte do Redentor, assim como Deus havia dito aos profetas, milhares de anos antes; sem nos esquecer de que tudo tem como fim a glória de Deus. 

De certa forma, até mesmo na sua vontade revelada há um caráter "secreto", ao menos para a maioria dos homens, até que ela se cumpra. Muitos que se não consideram a autoridade divina somente a compreenderão diante do Tribunal de Cristo, que julgará bons e maus, justos e injustos; e, então aqueles que durante toda a vida desprezaram o sábio e santo conselho divino, expresso através da sua palavra, perceberão que aquilo que estava oculto para eles, havia sido revelado indistintamente, e agora lhes falava direta e pessoalmente, em forma de sentença. E temos outra implicação, a qual é: a vontade soberana e secreta estará sempre em ação, muitas vezes se misturando à vontade revelada, enquanto esta, nem sempre, fará parte necessariamente do curso histórico de muitos homens e nações. Quantos, por exemplo, jamais tomaram conhecimento do código mosaico ou da morte de Cristo? Com isso quero dizer que, no fim-das-contas, há uma vontade superior e mais elevada, em que todas as demais "vontades" estarão sujeitas e dependentes. 



O QUE O HOMEM DEVE PROCURAR? 

Mais do que entender os conceitos e formulações teológicas do termo "vontade divina", o homem deve estar pronto a obedecer a Deus, naquilo em que ele nos ordena ser obedientes. Desprezar o seu conselho é trilhar o caminho perigoso da rebeldia, em direção célere à condenação e ao inferno. Todos os homens são chamados a obedecer a Deus, a honrá-lo com suas vidas, e a adorá-lo como único Senhor. Isso é posto para todos, indistintamente, e por isso Paulo diz que todos têm o conhecimento inato de Deus, pelo qual ninguém poderá alegar inocência. Somos todos pecadores, iníquos e inimigos de Deus, e se ele ordena a obediência é porque não haveria outra forma de conciliação com ele. Porém o homem, por si só, está impedido de obtê-la, de se reconciliar com Deus. Aprouve a Cristo fazê-lo por nós. Como sumo-sacerdote e único intermediário entre Deus e os homens, ele padeceu para que fôssemos aceitos como filhos adotivos pelo seu Pai. Por isso a ordem é geral, para que todos se arrependam: "Mas Deus, não tendo em conta os tempos da ignorância, anuncia agora a todos os homens, e em todo o lugar, que se arrependam" [At 17.30]. Do contrário, a ofensa a Deus persistirá, e aquele que permanecer nela será condenado, no dia determinado em que com justiça o mundo será julgado por Cristo.

E a vontade de Deus para os homens é que sejamos como ele, santo. E ao seu tempo, ele fará dos escolhidos aquilo que não nos foi possível fazer por nós mesmos, cumprindo-se tanto aqui como lá, na eternidade, toda a sua santa e perfeita vontade. 

Notas: 1- Escrevi, há algum tempo, sobre Deus ter escolhas ou não, cujo texto pode ser lido em "Deus não tem escolhas". Creio que a leitura dele poderá ajudar no entendimento do que tentei explicar aqui.
2- Extraído do texto: "Reprovação, vontade e hipercalvinismo".
3- Aula realizada no Tabernáculo Batista Bíblico 
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ÁUDIO DA AULA 31:

02 janeiro 2024

O declínio de um homem - Osamu Dazai

 






Jorge F. Isah



Este foi um livro que me trouxe angústia. Lê-lo foi, por inúmeros momentos, uma tarefa difícil. Não tanto pela escrita de Dazai, a qual é fluente, simples, sem eufemismos, digressões ou hermetismo; pelo contrário, ela é simples como também o é a história. Cheguei mesmo a pensar estar diante de um autor beatnik, como Bukowski, em termos narrativos, nos pensamentos caóticos, no niilismo e uma fatia generosa de autodestruição. Entretanto, se o alterego de Bukowski é um valentão, másculo e irascível em sua inflexível aversão à humanidade, disposto a se embebedar, pegar o primeiro rabo-de-saia, como a revirar lixo sem a expectativa de encontrar algo útil e aproveitável (é possível notar aspectos nitidamente jactantes, de superioridade e desprezo), o personagem principal de Dazai é fraco, maleável, inseguro e daí vem a sua “aversão” às relações sociais. Em linhas gerais, ambos, cada um à sua maneira, foge para a bebida, drogas e sexo como o navio, em meio à tormenta, busca o ancoradouro seguro, mas encontra apenas o naufrágio inevitável. Ambos, em suas fraquezas e inaptidões, a despeito da intrepidez e valentia de um, a covardia e pusilanimidade de outro, querem fugir de si mesmos, a despeito de o fazerem alegadamente por causa do(s) outro(s); com isso, não se turbam a estragar os leais, ingênuos e sinceros, aliando-se aos traiçoeiros e tóxicos. O afundar-se cada vez mais é questão de tempo, e em seu errático destino, talvez o objetivo inconsciente e permeável.

Julgar personagens (não muito ficcionais) não parece justo aos olhares relativistas e condescendentes de boa parte das pessoas, especialmente de leitores. A grande massa, o “populacho”, de maneira geral, não se interessa por literatura e pouco se dá se Dazai era frívolo e Bukowski chucro. Estão mais preocupados em colocar comida à mesa e se divertir nas horas vagas com futebol, novela ou reality- show. Nada muito profundo ou que faça pensar. Por meu lado, ainda que originário de família pobre (eu mesmo permaneço no “populacho”) acredito na literatura como instrumento para entender o mundo, a realidade e, também, a mim mesmo. Claro, não estou a falar de qualquer literatura, mas da boa e velha, universal bibliografia, e onde estão retratados os dramas, angústias, alegrias e o nexo social, sem as quais a vida é simplesmente o degredo da morte e a babel de emoções e palpites caprichosos... Se como os pós-modernistas afirmam com todas as letras não haver absoluto, certo e errado, por que se apressam em me condenar?... Não é possível amadurecer e aperfeiçoar-se sem julgamentos, sem avaliar erros e acertos, sem que verdades absolutas e universais sejam reconhecidas como tais, pois, do contrário, o parâmetro será tão somente o próprio umbigo, e o caminho entre ele e a mente tortuoso e inatural.

Yozo, o alterego de Dazai, é errático, de família abastada, importante e tradicional, se descobre em Tóquio, onde fora estudar, sem qualquer propósito, nada além de se tornar vadio, bêbado e íntimo de prostitutas... No decorrer da narrativa, às vezes explicita, outras velada, a culpa da sua desgraça recaí sobre o pai, homem severo, de convicções e disposto a perpetuar-se nos filhos. Na sociedade japonesa, construída sobre a honra, a tradição e princípios sólidos de lealdade e moral, não podia se esperar nada diferente. Mas, sempre existem saídas e soluções para os dilemas, e ao colocá-los sobre os ombros de único homem, não é justo, e em nada resolve a questão. Yozo quis a vida que viveu, foi sua escolha, e assim o seu caráter (ou falta dele) foi moldando-se, superficial e futilmente... Ah, encara normalmente as situações com palhaçadas e pantomimas, representando outro aspecto da fugidia recusa em encarar a realidade.

Ainda que aspectos morais o aflijam vez ou outra, e filosofe acerca de sua condição, uma ideia fixa o acomete: matar-se! Vá lá!... Quem nunca pensou nisso, ao menos uma vez? Seja pelo amor perdido, a honra destruída, a desgraça financeira, ou doença incurável? Faz parte da condição humana, cheia de dúvidas e quase nenhuma esperança[1]. Contudo, Yozo não tem do que reclamar, ao menos inicialmente. Queima o dinheiro do pai, abandona a universidade, é sustentado por mulheres iludidas com sua beleza sem caráter; é rejeitado e deserdado pelo pai, e faz exatamente tudo o quer, mesmo que às vezes, como o personagem “Chaves” poderia dizer: “foi sem querer querendo...”.

Ele parece ter noção do pecado, talvez não como deveria, mas de estar à beira do precipício, sem forças para voltar. A situação piora ainda mais ao tornar-se “amigo” de Horiki, invejoso e ladino, sempre disposto a aproveitar-se da debilidade de Yozo, o qual é capaz de compreender essa relação da seguinte forma:

“Horiki de coração não me tratava como um completo ser humano. Ele só me considerava como o cadáver vivo de um quase suicida, uma pessoa morta de vergonha, um fantasma idiota. Sua amizade não tinha nenhum propósito além de me utilizar de qualquer jeito que avançasse seus próprios prazeres. Esse pensamento naturalmente não me deixou muito feliz, mas eu percebi depois de um momento que era inteiramente esperado que Horiki me veria desse jeito; que há muito tempo, mesmo quando uma criança, eu parecia não ter as qualificações de um ser humano”.[2]

Entre idas e vindas, Yozo se aproxima do “grand finale”, não a morte em si, mas a indiferença com a vida. E o fim se torna a única e última realidade.[3]

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Avaliação: (***)

Título: O declínio de um homem

Autor: Osamu Dazai

Editora: Estação Liberdade

Páginas: 152

 


[1] Não farei um esboço sobre o sentido de “esperança”. Não o farei por me preocupar com eventuais leitores ávidos pelo ceticismo e o desejo de confirmar seus conceitos. Não o farei, porque demandaria muito mais espaço do que disponho para esta resenha. Asseguro, contudo, que ela é não somente visível, palpável, mas entranhável na alma. A esperança é Cristo e seu evangelho. De resto, em outra oportunidade falarei sobre as perspectivas do otimista em Deus e, por conseguinte, no homem tocado por ele.

[2] Página 100

[3] O texto da “Estação Liberdade” contém muitos erros ortográficos, de concordância e, talvez, de tradução. É ruim ver um trabalho sem esmero em aspectos tão usuais. E isso acaba por enervar e desgostar da leitura.