02 janeiro 2024

O declínio de um homem - Osamu Dazai

 






Jorge F. Isah



Este foi um livro que me trouxe angústia. Lê-lo foi, por inúmeros momentos, uma tarefa difícil. Não tanto pela escrita de Dazai, a qual é fluente, simples, sem eufemismos, digressões ou hermetismo; pelo contrário, ela é simples como também o é a história. Cheguei mesmo a pensar estar diante de um autor beatnik, como Bukowski, em termos narrativos, nos pensamentos caóticos, no niilismo e uma fatia generosa de autodestruição. Entretanto, se o alterego de Bukowski é um valentão, másculo e irascível em sua inflexível aversão à humanidade, disposto a se embebedar, pegar o primeiro rabo-de-saia, como a revirar lixo sem a expectativa de encontrar algo útil e aproveitável (é possível notar aspectos nitidamente jactantes, de superioridade e desprezo), o personagem principal de Dazai é fraco, maleável, inseguro e daí vem a sua “aversão” às relações sociais. Em linhas gerais, ambos, cada um à sua maneira, foge para a bebida, drogas e sexo como o navio, em meio à tormenta, busca o ancoradouro seguro, mas encontra apenas o naufrágio inevitável. Ambos, em suas fraquezas e inaptidões, a despeito da intrepidez e valentia de um, a covardia e pusilanimidade de outro, querem fugir de si mesmos, a despeito de o fazerem alegadamente por causa do(s) outro(s); com isso, não se turbam a estragar os leais, ingênuos e sinceros, aliando-se aos traiçoeiros e tóxicos. O afundar-se cada vez mais é questão de tempo, e em seu errático destino, talvez o objetivo inconsciente e permeável.

Julgar personagens (não muito ficcionais) não parece justo aos olhares relativistas e condescendentes de boa parte das pessoas, especialmente de leitores. A grande massa, o “populacho”, de maneira geral, não se interessa por literatura e pouco se dá se Dazai era frívolo e Bukowski chucro. Estão mais preocupados em colocar comida à mesa e se divertir nas horas vagas com futebol, novela ou reality- show. Nada muito profundo ou que faça pensar. Por meu lado, ainda que originário de família pobre (eu mesmo permaneço no “populacho”) acredito na literatura como instrumento para entender o mundo, a realidade e, também, a mim mesmo. Claro, não estou a falar de qualquer literatura, mas da boa e velha, universal bibliografia, e onde estão retratados os dramas, angústias, alegrias e o nexo social, sem as quais a vida é simplesmente o degredo da morte e a babel de emoções e palpites caprichosos... Se como os pós-modernistas afirmam com todas as letras não haver absoluto, certo e errado, por que se apressam em me condenar?... Não é possível amadurecer e aperfeiçoar-se sem julgamentos, sem avaliar erros e acertos, sem que verdades absolutas e universais sejam reconhecidas como tais, pois, do contrário, o parâmetro será tão somente o próprio umbigo, e o caminho entre ele e a mente tortuoso e inatural.

Yozo, o alterego de Dazai, é errático, de família abastada, importante e tradicional, se descobre em Tóquio, onde fora estudar, sem qualquer propósito, nada além de se tornar vadio, bêbado e íntimo de prostitutas... No decorrer da narrativa, às vezes explicita, outras velada, a culpa da sua desgraça recaí sobre o pai, homem severo, de convicções e disposto a perpetuar-se nos filhos. Na sociedade japonesa, construída sobre a honra, a tradição e princípios sólidos de lealdade e moral, não podia se esperar nada diferente. Mas, sempre existem saídas e soluções para os dilemas, e ao colocá-los sobre os ombros de único homem, não é justo, e em nada resolve a questão. Yozo quis a vida que viveu, foi sua escolha, e assim o seu caráter (ou falta dele) foi moldando-se, superficial e futilmente... Ah, encara normalmente as situações com palhaçadas e pantomimas, representando outro aspecto da fugidia recusa em encarar a realidade.

Ainda que aspectos morais o aflijam vez ou outra, e filosofe acerca de sua condição, uma ideia fixa o acomete: matar-se! Vá lá!... Quem nunca pensou nisso, ao menos uma vez? Seja pelo amor perdido, a honra destruída, a desgraça financeira, ou doença incurável? Faz parte da condição humana, cheia de dúvidas e quase nenhuma esperança[1]. Contudo, Yozo não tem do que reclamar, ao menos inicialmente. Queima o dinheiro do pai, abandona a universidade, é sustentado por mulheres iludidas com sua beleza sem caráter; é rejeitado e deserdado pelo pai, e faz exatamente tudo o quer, mesmo que às vezes, como o personagem “Chaves” poderia dizer: “foi sem querer querendo...”.

Ele parece ter noção do pecado, talvez não como deveria, mas de estar à beira do precipício, sem forças para voltar. A situação piora ainda mais ao tornar-se “amigo” de Horiki, invejoso e ladino, sempre disposto a aproveitar-se da debilidade de Yozo, o qual é capaz de compreender essa relação da seguinte forma:

“Horiki de coração não me tratava como um completo ser humano. Ele só me considerava como o cadáver vivo de um quase suicida, uma pessoa morta de vergonha, um fantasma idiota. Sua amizade não tinha nenhum propósito além de me utilizar de qualquer jeito que avançasse seus próprios prazeres. Esse pensamento naturalmente não me deixou muito feliz, mas eu percebi depois de um momento que era inteiramente esperado que Horiki me veria desse jeito; que há muito tempo, mesmo quando uma criança, eu parecia não ter as qualificações de um ser humano”.[2]

Entre idas e vindas, Yozo se aproxima do “grand finale”, não a morte em si, mas a indiferença com a vida. E o fim se torna a única e última realidade.[3]

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Avaliação: (***)

Título: O declínio de um homem

Autor: Osamu Dazai

Editora: Estação Liberdade

Páginas: 152

 


[1] Não farei um esboço sobre o sentido de “esperança”. Não o farei por me preocupar com eventuais leitores ávidos pelo ceticismo e o desejo de confirmar seus conceitos. Não o farei, porque demandaria muito mais espaço do que disponho para esta resenha. Asseguro, contudo, que ela é não somente visível, palpável, mas entranhável na alma. A esperança é Cristo e seu evangelho. De resto, em outra oportunidade falarei sobre as perspectivas do otimista em Deus e, por conseguinte, no homem tocado por ele.

[2] Página 100

[3] O texto da “Estação Liberdade” contém muitos erros ortográficos, de concordância e, talvez, de tradução. É ruim ver um trabalho sem esmero em aspectos tão usuais. E isso acaba por enervar e desgostar da leitura.


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