19 outubro 2023

Estudo sobre a Confissão de Fé Batista de 1689 - Aula 22: A unidade de Deus








Jorge F. Isah
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CAPÍTULO 2: DEUS E A SANTÍSSIMA TRINDADE

1. O Senhor nosso Deus é somente um, o Deus vivo e verdadeiro, [1] cuja subsistência está em si mesmo e provém de si mesmo; [2] infinito em seu ser e perfeição, cuja essência por ninguém pode ser compreendida, senão por Ele mesmo. [3] Ele é um espírito puríssimo, [4] invisível, sem corpo, membros ou paixões; o único que possui imortalidade, habitando em luz inacessível, a qual nenhum homem é capaz de ver; [5] imutável, 6 imenso, 7 eterno, [8] incompreensível, todo-poderoso; [9] em tudo infinito, santíssimo, 10 sapientíssimo; completamente livre e absoluto, operando todas as coisas segundo o conselho da sua própria vontade, 11 que é justíssima e imutável, e para a sua própria glória; 12 amantíssimo, gracioso, misericordioso, longânimo; abundante em verdade e benignidade, perdoando a iniquidade, a transgressão e o pecado; o recompensador daqueles que o buscam diligentemente; 13 contudo justíssimo e terrível em seus julgamentos, 14 odiando todo pecado, 15 e que de modo nenhum inocentará o culpado. 16 Deus tem em si mesmo e de si mesmo toda a vida, 17 glória, 18 bondade 19 e bem-aventurança. Somente ele é auto-suficiente, em si e para si mesmo; e não precisa de nenhuma das criaturas que fez, nem delas deriva glória alguma; 20 mas somente manifesta, nelas, por elas, para elas e sobre elas a sua própria glória. Ele, somente, é a fonte de toda existência: de quem, através de quem e para quem são todas as coisas, 21 tendo o mais soberano domínio sobre todas as criaturas, para fazer por meio delas, para elas e sobre elas tudo quanto lhe agrade. 22 Todas as coisas estão abertas e manifestas perante Ele; 23 o seu conhecimento é infinito, infalível e independe da criatura, de maneira que para Ele nada é contingente ou incerto. 24 Ele é santíssimo em todos os seus pensamentos, em todas as suas obras, 25 e em todos os seus mandamentos. A Ele são devidos, da parte de anjos e de homens, toda adoração, 26 todo serviço, e toda obediência que, como criaturas, eles devem a criador; e tudo mais que Ele se agrade em requerer de suas criaturas. Neste ser divino e infinito há três pessoas: o Pai, a Palavra (ou Filho) e o Espirito Santo; 27 de uma mesma substância, igual poder e eternidade, possuindo cada uma inteira essência divina, que é indivisível. 28 O Pai, de ninguém é gerado ou procedente; o Filho é gerado eternamente do Pai; 29 o Espirito Santo procede do Pai e do Filho, eternamente; 30 todos infinitos e sem princípio de existência. Portanto, um só Deus; que não deve ser divido em seu ser ou natureza, mas, sim, distinguido pelas diversas propriedades peculiares e relativas, e relações pessoais. Essa doutrina da Trindade é o fundamento de toda a nossa comunhão com Deus e confortável dependência dEle.
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INTRODUÇÃO

O que é unidade? Ela é a característica ou qualidade daquilo que é uno, único, indivisível, o qual não se pode separar. Em relação a Deus, este atributo quer-nos dizer duas coisas: 

1- De que Deus é único, não pode ser dividido, pois ele não é constituído por partes, mas o ser integral, coeso, completo, absoluto. Com isso se quer dizer que não há nele nenhum aspecto que se sobressaia sobre outro aspecto, nenhum atributo que se sobressaia sobre outro atributo; que em seu caráter não há nada mais ou menos importante, como se houvesse graus de relevância em seu ser. 


2- De que Deus é exclusivo, de forma que ele é incomparável, excepcional, não havendo outro igual a ele; sendo superior a todos os outros seres, não existindo algo com o qual se possa compará-lo. 

Leiamos Dt 6.4 e 10.14: “Ouve, Israel, o Senhor nosso Deus é o único Senhor”, e: “Eis que os céus e os céus dos céus são do Senhor teu Deus, a terra e tudo o que nela há”.

Temos aqui o resumo do que seja a unidade divina, de que há somente um Deus, e de que ele é o único Senhor. De forma que a ideia politeísta de que há outros deuses é lançada por terra. 

Também é desmentida a ideia de que Deus não é Senhor; no sentido de que ele não exerce seu senhorio sobre a criação, sejam anjos, demônios, homens, o universo, céu e inferno, terra e ar. Especialmente aqueles cristão que defendem a falsa doutrina do não-senhorio de Cristo, encontram-se em maus lençóis diante dessa categórica assertiva bíblica, pois Deus é Senhor de tudo e de todos, sem exceção. 

Veja bem, aqui também temos a ideia ateísta desmoronando-se, pois esse trecho nos revela que Deus existe, e de que ele é o Senhor de todas as coisas, não somente dos crentes, mas de tudo o que há e veio à existência pelo seu poder e vontade. Somente o ser infinitamente perfeito, imutável e santo pode ser uno. Os homens, em contrapartida são constituídos por partes. Temos corpo e alma, mas Deus é Espírito, um só Espírito [Jo 4.24]. 

Com isso não estou defendendo a doutrina unitarista, a qual afirma não haver três pessoas, mas apenas uma pessoa que se manifesta em três maneiras ou formas diferentes. Então, é impossível falar em unidade divina sem se tocar na questão da Trindade [lat trinitate, quer dizer, simplesmente, "três"]. Este termo não está na Bíblia, mas foi escolhido para designar a pluralidade que há em Deus, contudo, ele gera confusão pois remete o ouvinte à ideia de que o Cristianismo é a cosmovisão que acredita haver três deuses, o que é chamado pelos nossos oponentes de triteísmo. Por isso a melhor expressão para definir a unidade divina subsistindo em três pessoas é Tri-unidade, o qual passarei a utilizar. 

O atributo da unidade nos remete à eternidade divina, no sentido de que as pessoas da Triunidade não estavam separadas e se uniram, mas de que Deus sempre foi e é único, a unidade perfeita, um só Deus, mas três pessoas em unicidade. E isso nos afasta do conceito politeísta, ou mesmo a errônea ideia de que a Trindade pode ser comparada com o triteísmo, porque a Bíblia nos ensina o monoteísmo; igualmente, ela não nos ensina também a unicidade, mas de que há três pessoas que não se confundem; porém, isto será objeto de nosso estudo sobre a Tri-unidade Divina, nas próximas aulas, tão logo terminemos o estudo sobre os atributos de Deus. 

O erro está em supor que Deus é um, mas tem apenas uma personalidade. A unidade divina está expressa no fato de que todas as pessoas da Tri-unidade têm a mesma essência, a mesma natureza, mas não quer dizer que elas possuem uma única personalidade. Por isso, na história do Cristianismo, definiu-se que há um só Deus [Deuteronômio 4:35, 6:4, 10:14, Salmo 96:5, 97:9, Isaías 43:10, 44:6-8, 44:24, 45:5-6, 45:21-23, 46:9, 48:11-12, João 17:3, 1 Timóteo 2:5, Apocalipse 1:8, (Oséias 13:4)], no qual subsistem três pessoas: o Pai, o Filho e o Espírito Santo [Mateus 3:16-17, 11:27, 17:1-9, 27:46, João 1:18, 14:16-17. A pré-existência do Filho: Cl 1:13-17, Hb 1:2-3, Jo 1:1], e de que há plena igualdade entre elas .Elas são idênticas em sua natureza e essência, mas distinguidas por características particulares que não são possuídas em comum pelas demais. De forma que o Pai não é o Filho, nem o Filho o Espírito Santo, nem o Espírito o Pai; havendo distinções pessoais dentro da essência divina. Assim sendo, há uma pluralidade em Deus, sem se perder a sua unidade. É o que o Credo de Atanásio diz: “Mas a fé universal é esta, que adoremos um único Deus em Trindade, e a Trindade em unidade. Não confundindo as pessoas, nem dividindo a substância". Cada uma destas verdades é parte daquilo que Deus nos quis revelar de si mesmo, e qualquer doutrina que não se baseie nelas é heresia, fraude e engano.


A UNIDADE DE DEUS COM A IGREJA

Sabemos que Deus é um em unidade, mas também sabemos que ele é um com o seu povo. A partir da união entre o Pai, o Filho e o Espírito Santo podemos experimentar e viver essa mesma união. É claro que como seres finitos, imperfeitos e pecadores necessitamos desesperadamente da graça e misericórdia divinas para que, limpos do pecado pelo sacrifício do Filho na cruz, sejamos reconciliados com Deus, e assim possamos viver em unidade com ele. 

Este é um ponto que deve ser analisado por dois aspectos:

Primeiro, de que a nossa união com Deus, através de Cristo, se deu antes da fundação do mundo, e por ele mesmo foi concebida e realizada. Não há como, por nós mesmos, nos unir a Deus; foi preciso que ele providenciasse a nossa redenção para que pudéssemos nos unir a ele. Então, como promessa divina, como desejo divino, sem a menor chance de não se realizar, já estamos unidos com Deus eternamente.

Segundo, visto o homem estar preso ao tempo e espaço, e o projeto divino se realiza sucessivamente no decorrer da história, para nós, essa união pode ser sentida, mas não vivenciada constantemente. O pecado, que se manifesta ainda no salvo, é um dos obstáculos para que essa união se concretize definitivamente. Com isso estou a dizer que, para Deus, já estamos unidos a ele, pela obra consumada de Cristo, mesmo antes dele consumá-la no tempo, pois ela é eterna, e a eternidade não é um futuro para Deus, mas um “presente” sempre constante diante dos seus olhos. Segundo o olhar divino, já estamos unidos a ele. Sob a nossa perspectiva imperfeita e limitada, ainda não. Ou seja, estamos incapacitados de reconhecer essa união permanentemente. A carne, em constante luta contra o espírito, obscura-nos os olhos, para que não vejamos a realidade da nossa união com Deus. Mas ela é uma realidade bíblica, senão, vejamos: 

“E não rogo somente por estes, mas também por aqueles que pela tua palavra hão de crer em mim; Para que todos sejam um, como tu, ó Pai, o és em mim, e eu em ti; que também eles sejam um em nós, para que o mundo creia que tu me enviaste. E eu dei-lhes a glória que a mim me deste, para que sejam um, como nós somos um. Eu neles, e tu em mim, para que eles sejam perfeitos em unidade, e para que o mundo conheça que tu me enviaste a mim, e que os tens amado a eles como me tens amado a mim” [Jo 17.20-23]. 

Nesta oração do Senhor Jesus, ele pede ao Pai que sejamos, nós, todos os cristãos, em todos os tempos, um com Deus, assim como o Pai é um com o Filho. É claro que o Senhor não está dizendo que seremos “deuses”, nem de que participamos da mesma natureza de Deus. Não é nada disso. Ele está dizendo que estamos unidos a ele porque o seu santo Espírito habita em nós, de forma que Deus é um conosco. Ora, se Deus é indivisível, imutável e infinito, como vimos no estudo da infinidade e imutabilidade divinas, temos que, de uma forma maravilhosa e indescritível, o ser completo de Deus está em cada um de nós, e, assim, estamos completamente unidos a ele. Esta união se dá pelo seu amor, como alvos que somos, e pelo qual ele se manifesta. É algo que se dá pelo poder e vontade de Deus, e da qual não temos nenhum controle ou domínio, apenas recebendo-o como dádiva e bênção para as nossas vidas; um prêmio que não merecemos e jamais mereceríamos. 

Outro ponto que a unidade de Deus nos remete é às suas promessas, assim como as suas promessas nos remetem à unidade divina, de que elas estão em conformidade, em harmonia, unidas em um único propósito de cumprirem a sua vontade; tanto a vontade como as promessas são indissolúveis, indissociáveis, e se realizarão infalivelmente, revelando-nos o Deus único em seus atributos, vontade e obra. 


CONCLUSÃO

A unidade de Deus nos revela que ele é um, único, em sua natureza e substância, sem que a sua pluralidade de personalidades o transforme em um ser composto. Deus é um, subsistindo em três pessoas: o Pai, o Filho e o Espírito Santo, que não se confundem entre si, mas que numericamente são um Deus. Isso, jamais, poderá nos levar à ideia politeísta de que há um triteísmo no Cristianismo. O Cristianismo é monoteísta, pois não afirma haver deuses, mas somente um Deus.

Assim como Deus é um, e suas pessoas não podem ser separadas, ele também é um com a igreja. O fato de sermos o templo do Espírito Santo, e de o corpo de Cristo, nos revela que já somos um com Deus. Para ele, essa é uma realidade eterna, que nunca deixou de ser ou existir. Para nós, que estamos na carne e lutamos contra o pecado, pode ser como uma ladeira: ora subimos e sentimos que estamos em unidade com Deus, ora descemos e sentimos também que não estamos. A nossa limitação nos impede de viver permanentemente essa realidade, o que acontecerá definitivamente naquele dia em que estivermos diante de Deus, quando não mais haverá o pecado e, portanto, nenhuma venda a ocultá-la dos nossos olhos. 


Por último, esse maravilhoso atributo divino nos dá a garantia de que as suas promessas se realizarão, pois Deus é um consigo mesmo, e sua vontade e ação também são únicas, infalíveis e irredutíveis.

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Notas: 1-Aula realizada na E.B.D. do Tabernáculo Batista Bíblico.

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ÁUDIO DA AULA 22:

15 outubro 2023

Duas Narrativas Fantásticas - Fiodor Dostoieviski





Jorge F. Isah


   “Duas narrativas fantásticas” é um livro que pode parecer, à primeira vista, tratar de temas irreais e utópicos. Engana-se quem assim pensa. Poderia chama-lo de “expectação suprarreal” tal a realidade (e também humanidade) dos temas abordados. O livro se compõe de dois contos: “A Dócil” e “Sonho de um homem ridículo”, onde o assunto “suicídio” está presente, em ambos. 

   No primeiro, temos um homem de 40 anos aproximadamente, casando-se com uma jovem recém-saída da adolescência. Ela é criada por duas tias que pretendem uni-la em matrimônio com um homem asqueroso e rude; mas acaba por conhecer, e por fim casar-se, com um negociante, dono de uma loja de penhores. Ele fora militar; sendo desligado da corporação por se recusar a duelar com um companheiro de farda, que o insultou. Por isso, ficou com a pecha de “covarde, o que o atormentou, de certa forma, por toda a vida. 

  Ele se apaixonou pela garota, por sua beleza, meiguice e a docilidade do título. Ela, para se livrar do brucutu com o qual as tias queriam uni-la, aceitou o pedido de casamento do negociante, e acabaram juntos. 

  No início, às mil maravilhas; porém, com o passar do tempo, ele vai se tornando controlador, exigente, individualista, e a mantém distante de si. Eles pouco ou nada dialogam. Não têm uma vida compartilhada além do local onde moram. Isso faz com que a relação frágil se torne ainda mais débil e perigosa (ele fugindo da solidão, e ela de um casamento indesejado), tornando-os, enfim, amargos e quase inimigos. 

  Ela abandona a docilidade para se tornar em uma mulher sediciosa, provocadora e adúltera. Numa clara tentativa de autodestruição, de desprezo a si mesma (ainda que respaldada pelo desprezo ao cônjuge), frustrada, e em estado de beligerante vingança.
 
  Ele, ao perceber a traição e a rejeição, e o desprezo da esposa, obriga-se a uma reação de autoridade, como se suficiente para transformar o caos existencial de ambos em ordem, no retorno à harmonia perdida. 

   O ponto é: duas vontades, aparentemente boas e benéficas, podem descambar para a beligerância e a destruição? Entre a rigidez de um relacionamento formal e conveniente, e o sonho de perfeição, romântico e singelo, está o homem e sua humanidade, disposto a frustrar os dois esquemas, revelando que a vida é muito mais complexa do que uma suposta unidade de interesses possa contê-la; a vida toma rumos desconhecidos, ainda que muitos previsíveis, se o homem não deixar de olhar para si mesmo tão somente, e observar o próximo com cuidado, generosidade e caridade. A perfeição não pode ser exigida, nem mesmo no amor, se não houver uma disposição ao sacrifício, a entrega voluntária do seu orgulho, desejos, ambições e egoísmo em favor do outro, de tal forma que, mesmo pessoas diferentes e com vontades distintas, se harmonizarão do mútuo anseio de privilegiar aquele que é o alvo do seu amor. Se não acontece... 

  Quanto ao suicídio, bem, leia a história e saiba como terminou.

  O outro conto, “Sonho de um homem ridículo”, muitas vezes é compreendido como se fosse um sonho ridículo, quando o título nos remete a um homem ridículo, que necessariamente não tem um sonho ridículo. Pela grandiosidade da narrativa dostoieviskiana, alguns imaginam que o sonho daquele homem não passa de um delírio, uma utopia infinitamente distante da realidade humana, quando, o que o autor nos revela é exatamente a essência dessa realidade, a humanidade em todos os seus detalhes, ainda que relatados em uma porção de páginas. 

  Sem fazer um spoiler do livro (o que, infelizmente, acabei por fazer no comentário ao outro conto), "Dosty" (desculpe-me a intimidade, mas sou leitor do russo desde a adolescência,  então me permito certas liberdades) revela que a esperança não pode estar em um homem, ou mesmo em muitos homens, deste ou de outro mundo, pois mais cedo ou mais tarde a sua inclinação para o pecado, para a subversão e a incitação ao mal, aflorará. Um único homem pode pôr tudo a perder, ao incitar outros a trilharem o mesmo caminho de morte no qual transita. 

  A referência ao Éden e à Queda, descritos no livro de Gênesis, é clara, trazendo, na trama, as mesmas consequências para a humanidade advindas da rebeldia do casal primevo. O homem inclina-se para o mal, a despeito de todo o bem que está a cerca-lo, da bondade divina e que lhe foi entregue também na obra da Criação. 

  Contudo, existe redenção, existe perdão, se houver sincero arrependimento dos seus pecados, é possível ver a luz, e vislumbrá-la por toda a eternidade. Este me parece o cerne, digamos, a parte otimista em toda a narrativa de "Dosty", desde "Crime e Castigo" até mesmo nesse singelo, mas fantástico conto. 

  Ah, sobre o suicídio, que falei no primeiro comentário, e que está presente em ambos os contos, deixarei para que você mesmo leia o livro, e se certifique do que estou falando, como o apontar a direção.

Livro curto, belo, em descrever a miséria humana, mas com os eflúvios eternos do porvir.

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Avaliação: (****)
Título: "Duas Narrativas Fantásticas" 
Autor: Fiodor Dostoieviski
Editora: Editora 34
128 Páginas

Sinopse: 
"Designadas pelo próprio autor como "narrativas fantásticas", as duas novelas aqui reunidas foram publicadas pela primeira vez nas páginas do Diário de um escritor, publicação mensal redigida por Dostoiévski entre 1876 e 1881."

10 outubro 2023

Estudo sobre a Confissão de Fé Batista de 1689 - Aula 21: Objeções à imutabilidade de Deus






Por Jorge F. Isah

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CAPÍTULO 2: DEUS E A SANTÍSSIMA TRINDADE

1. O Senhor nosso Deus é somente um, o Deus vivo e verdadeiro, [1] cuja subsistência está em si mesmo e provém de si mesmo; [2] infinito em seu ser e perfeição, cuja essência por ninguém pode ser compreendida, senão por Ele mesmo. [3] Ele é um espírito puríssimo, [4] invisível, sem corpo, membros ou paixões; o único que possui imortalidade, habitando em luz inacessível, a qual nenhum homem é capaz de ver; [5] imutável, 6 imenso, 7 eterno, [8] incompreensível, todo-poderoso; [9] em tudo infinito, santíssimo, 10 sapientíssimo; completamente livre e absoluto, operando todas as coisas segundo o conselho da sua própria vontade, 11 que é justíssima e imutável, e para a sua própria glória; 12 amantíssimo, gracioso, misericordioso, longânimo; abundante em verdade e benignidade, perdoando a iniquidade, a transgressão e o pecado; o recompensador daqueles que o buscam diligentemente; 13 contudo justíssimo e terrível em seus julgamentos, 14 odiando todo pecado, 15 e que de modo nenhum inocentará o culpado. 16 Deus tem em si mesmo e de si mesmo toda a vida, 17 glória, 18 bondade 19 e bem-aventurança. Somente ele é auto-suficiente, em si e para si mesmo; e não precisa de nenhuma das criaturas que fez, nem delas deriva glória alguma; 20 mas somente manifesta, nelas, por elas, para elas e sobre elas a sua própria glória. Ele, somente, é a fonte de toda existência: de quem, através de quem e para quem são todas as coisas, 21 tendo o mais soberano domínio sobre todas as criaturas, para fazer por meio delas, para elas e sobre elas tudo quanto lhe agrade. 22 Todas as coisas estão abertas e manifestas perante Ele; 23 o seu conhecimento é infinito, infalível e independe da criatura, de maneira que para Ele nada é contingente ou incerto. 24 Ele é santíssimo em todos os seus pensamentos, em todas as suas obras, 25 e em todos os seus mandamentos. A Ele são devidos, da parte de anjos e de homens, toda adoração, 26 todo serviço, e toda obediência que, como criaturas, eles devem a criador; e tudo mais que Ele se agrade em requerer de suas criaturas. Neste ser divino e infinito há três pessoas: o Pai, a Palavra (ou Filho) e o Espirito Santo; 27 de uma mesma substância, igual poder e eternidade, possuindo cada uma inteira essência divina, que é indivisível. 28 O Pai, de ninguém é gerado ou procedente; o Filho é gerado eternamente do Pai; 29 o Espirito Santo procede do Pai e do Filho, eternamente; 30 todos infinitos e sem princípio de existência. Portanto, um só Deus; que não deve ser divido em seu ser ou natureza, mas, sim, distinguido pelas diversas propriedades peculiares e relativas, e relações pessoais. Essa doutrina da Trindade é o fundamento de toda a nossa comunhão com Deus e confortável dependência dEle.
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INTRODUÇÃO E EXPOSIÇÃO:

Há aqueles que não acreditam no atributo da imutabilidade, confundindo Deus com um ser estático, imóvel. A imutabilidade não implica, jamais, em inatividade, em um Deus imóvel e passivo. Sabemos que Deus é o Senhor da História, de que ele age ativa e incessantemente, de forma que, se não fosse por ele, nada do que existe se manteria e sustentaria. Ele é aquele que sustenta todo o universo, mesmo as partículas invisíveis e muitas coisas que o homem ainda desconhece da criação. Deus é imutável em seu ser e propósitos, o que não quer dizer que ele esteja paralisado, mas que tudo acontecerá conforme a sua vontade imutável, segundo o seu decreto imutável, de forma que tudo é por ele e para ele. Ainda que os planos divinos se desdobrem e se realizem progressivamente no tempo, eles acontecerão conforme a sua imutável vontade, sem que possam ser revertidos, anulados ou modificados.

Quando alguém diz que a imutabilidade é um “engessar” de Deus, ele não entende do que está falando. Deus decretou, ordenou, planejou e executou todas as coisas, sem que elas possam não-acontecer. Jó, mesmo diante do sofrimento pelo qual passava, reconheceu que Deus tudo pode, e nenhum dos seus planos pode ser frustrado [Jó 42.2]. Salomão também compreendeu esse atributo maravilhoso: “Muitos propósitos há no coração do homem, porém o conselho do Senhor permanecerá” [Pv 19.21]. Ainda mais contundente é a afirmação do profeta: “O Senhor dos Exércitos jurou, dizendo: Como pensei, assim sucederá, e como determinei, assim se efetuará... Porque o Senhor dos Exércitos o determinou; quem o invalidará? E a sua mão está estendida; quem pois a fará voltar atrás?” [Is 14.24, 27 – ver Is 43.13].

Ele não criou o mundo e abandonou-o. Mas todas as coisas surgem e acontecem pelo seu santo, perfeito e imutável projeto; cada coisa no universo existe, se move e vive pelo agir divino, pelo seu poder infinito de ordená-las. Porém, sempre aparecerá alguém a dizer que Deus mudou ou se arrependeu. Mas o Deus perfeito, infinito, santo e imutável pode mudar? Haveria contradição entre o que ele mesmo afirma em sua palavra e entre o que alguns afirmam? Deus abriria mão da sua imutabilidade, o que vale dizer, da sua divindade, para ser o não-Deus? Por que ele faria isso? E, pode Deus deixar de ser Deus? A verdade é que, como sempre, a compreensão humana está sujeita às falhas e imperfeições naturalmente disponíveis em seu ser. Quando o homem deixa de reconhecer em Deus aquilo que ele mesmo diz de si mesmo para dar vazão às suas elucubrações, como se fosse possível a Deus ser comparado aos homens, as chances de acertos, mesmo mínimos, tornam-se irrisórias. O que muitos fazem é transferir para ele parte da natureza humana, confundindo a linguagem humana, pela qual Deus se deu a conhecer ao homem, com o caráter e a natureza divina.

Os nomes de Deus, que foram estudados algumas aulas atrás, atestam a manifestação divina de várias formas, mas em todas elas, ele permanece imutável. Sendo Criador, Senhor, Salvador, Juiz, Libertador, Providente, etc, Deus se revela aos homens de maneiras diversas, em cada curso da história ele poderá se manifestar através de características diferentes, contudo, permanecendo o mesmo.

Na Escritura encontramos Deus se dando a conhecer a partir de sentimentos e reações humanas, o que se chama de antropopatismo, que nada mais é do que a atribuição a ele de qualidades humanas, ou análogas a outros seres; ele é chamado do “Leão da Tribo de Judá”, Rocha, Pastor, Refúgio. Com isso não se quer dizer que ele seja um mamífero ou um mineral ou uma casa. São recursos de linguagem que o próprio Deus, em sua misericórdia e bondade, se deu a comparar para que pudéssemos conhecê-lo.  O ser divino, como já estudamos, é infinito, infinitamente perfeito, e podemos conhecê-lo limitadamente [ainda que ele se revele fundamentalmente como Deus]. De maneira simples, Deus atribui a si mesmo alguns dos sentimentos humanos, mas que em nada têm a ver com mudança de personalidade, propósito ou natureza. Trechos como os de Gn 6.6-7, Ex 32.14, Jr 18.8-10 e Jn 3.9-10, por exemplo, revelam a imutabilidade divina, ao contrário do que se imaginaria isolando-os e não os relacionando com outras partes da Escritura. O plano ou decreto eterno permanece inalterado, não estando sujeito a variações por conta das circunstâncias; mas dentro do seu plano, Deus mudou de um curso de ação para outro curso de ação, ações essas que são imutáveis, e que foram estabelecidas pelo próprio Deus. Na verdade, a mudança não é em Deus, mas no homem e nas relações que o homem tem com Deus.

No Livro de Jonas, Deus ordenou que os ninivitas se arrependessem do seu pecado, caso contrário, em quarenta dias, seriam destruídos. Ao ouvirem a mensagem do profeta, o rei e o povo se arrependeram, convertendo-se do seu mau caminho, e Deus anunciou que não os destruiria mais. Houve alguma mudança no propósito divino? Não. O trato dos ninivitas com Deus é que mudou, de forma que a ira do Senhor não foi lançada sobre o povo. Mas sabemos que tanto o arrependimento como o desviar-se dos maus caminhos da cidade de Nínive estavam dentro do plano divino. A pregação de Jonas, os ninivitas crendo na palavra profética, e, através da qual se arrependeram, são particularidades que acompanham a ação, o acontecimento, dentro do plano divino, o qual é imutável. Vejam que aqui estão presentes também outros atributos divinos, como a misericórdia, a graça, o perdão de Deus, mas tudo segundo a sua vontade eterna e soberana, de maneira que não haveria como os ninivitas não se arrependerem. Contudo a Bíblia também nos relata sobre povos que foram chamados ao arrependimento e mantiveram-se endurecidos, e sobre eles sobreveio a ira de Deus, consumindo-os. Em nenhum dos casos há mudança de propósito, de desígnio, de projeto, mas de atitudes.

Outro trecho muito usado para defender a ideia de que Deus é imutável, acontece no livro de 2 Reis. Temos o caso do rei Ezequias, a quem o Senhor disse, através do profeta Isaías, que morreria por causa de uma doença. Ezequias então orou a Deus; mas o segredo de Deus era que ele o curaria e lhe daria mais 15 anos de vida, como de fato sucedeu. Tal acontecimento não indica contradição ou mudança. A declaração foi feita para humilhar a Ezequias e revelar-lhe a completa dependência que tinha de Deus, levá-lo a orar, e, assim, a imutável vontade divina fosse concretizada [2Rs 20.1-7].

De qualquer forma, a ideia que a Bíblia nos dá do arrependimento divino é precária, mas suficiente para nos revelar a  singularidade e infinitude divinas, porque há coisas em Deus que são próprias somente dele, e que podem até ter alguma semelhança com as das criaturas, de forma que são expressos como se fossem delas, mas não são suficientes para explicar ou definir o que é exclusivo de Deus. Por exemplo, o termo hebraico traduzido para "arrependimento de Deus" é Nãham, que traduzido quer dizer tristeza ou consolo. Já o termo hebraico para o arrependimento humano, o voltar-se do pecado para Deus, dando-nos a ideia clara de remorso, é Shûb. Ainda que Deus se arrependa, é-nos claramente revelado que o seu arrependimento é díspare do nosso, havendo a possibilidade de existir elementos parecidos, mas, com certeza, não há igualdade entre eles, por tudo o que Deus é e por tudo o que somos. Mesmo que Deus tenha sentimentos parecidos com os nossos, em seu ser perfeito, eles também são perfeitos, e jamais serão iguais aos dos homens.


CONCLUSÃO

A imutabilidade de Deus nos dá, seres mutáveis e falíveis, a certeza de que somente nele encontraremos o repouso necessário, a confiança necessária, a esperança necessária, o ânimo necessário, a vida necessária, e tudo o mais capaz de nos trazer a segurança de que, apenas nele, estaremos completamente seguros. Mas isso não se baseia em nossa percepção ou em nossa capacidade de autoindução [como uma técnica de autoajuda], mas na certeza de que ele não muda nos compromissos e promessas que jurou, em seu nome, realizar por nós, e para nós.

Confiar que temos alguma coisa que possa agradá-lo, quando não há nada em nós que possa agradá-lo, é transferir para nós o mérito que é somente dele. Por mais que façamos, por mais que julguemos ter feito em prol do reino de Deus, isso não será nada diante dele, pois é ele quem, em seu plano imutável, nos capacitou e nos deu a realizá-lo. Afinal, como seres caídos, miseráveis, tolos, pecadores e mutáveis podem se aproximar do Deus absoluto, infinito e perfeito, sem serem consumidos? Apenas através do Filho Amado, Jesus Cristo, pelo qual somos feitos capazes de não somente nos aproximar dele, mas de tê-lo como Pai, e de ser tratado por ele como filhos. A obra maravilhosa de Cristo nos ergueu, limpou e curou, de maneira que fôssemos aceitos, reconciliados eternamente com ele. E isso transcende todo o tempo, ainda que realizada no tempo, pois é fruto da sua vontade e projeto eternos e imutáveis.

Glória e honra e louvor ao Deus bendito que, dia após dia, nos revela a sua misericórdia e graça e bondade infinitas para com o seu povo; sem que esse povo tenha feito algo para merecê-lo.
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Notas: 1- Aula realizada na E.B.D do Tabernáculo Batista Bíblico 

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ÁUDIO DA AULA 21

07 outubro 2023

Aforismos de Karl Kraus

 





Jorge F. Isah


Karl Kraus nasceu na Áustria em 1874. Foi poeta, dramaturgo, ensaísta, jornalista e aforista. Sua pena era ferina e deixou muitos inimigos e desafetos, especialmente entre os do seu meio principal, o jornalismo. Duas vezes indicado ao Prêmio Nobel, foi um dos maiores escritores satíricos (senão o maior) do sec. XX, em língua alemã. Criticava veementemente a degradação e corrupção da língua, onde vislumbrava a causa de todos os males da sua época, acusando políticos, artistas e, especialmente a imprensa, de fomentá-los.

Para ele, a literatura estava se tornando algo vulgar e mal feita, ao ignorar a capacidade de expressão linguística, o despreparo e a desordem mental da maioria dos escritores (a adoção dos vulgarismos tem por objetivo camuflar e ocultar a inabilidade e incompetência de autores), acabavam por se tornar, muitas vezes, fator de glória e orgulho, ou seja, a ignorância e o despreparo deixaram de ser vícios e defeitos para se transmudarem em virtudes e qualidades.

Esse foi o século passado, e o estigma avança rapidamente, também, em nosso tempo. Haverá saída para gerações e gerações bombardeadas e expostas pelo banal, grosseiro e obsceno?...

Deixemos, portanto, Karl Kraus responder.

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"O aforismo jamais coincide com a verdade; ou é uma meia verdade ou uma verdade e meia."

“Escolho o meu inimigo pelo alcance da minha flecha.”

“O segredo do demagogo é de se fazer passar por tão estúpido quanto a sua plateia, para que esta imagine ser tão esperta quanto ele.”

“Existem imbecis superficiais e imbecis profundos.”

“Apenas no prazer da reprodução linguística nasce um mundo a partir do caos.”

“Os mais falsos argumentos podem mostrar um ódio correto.”

“A carreira é um cavalo que chega à porta da eternidade sem cavaleiro.”

“O mundo é uma prisão em que é preferível a cela de isolamento.”

“Os artistas têm o direito de serem modestos e o dever de serem vaidosos.”

“Dizer a verdade sem acreditar nela deveria ser considerado desonesto.”

“O mal nunca prospera melhor do que quando lhe põem um ideal à frente.”

“Um poema só é bom enquanto não sabemos quem foi que o escreveu.”

“A linguagem é a mãe, não a criada do pensamento.”

“O amor e a arte não abraçam o que é belo, mas o que justamente com esse abraço se torna belo.”

“Uma das causas mais comuns de todas as doenças é o diagnóstico.”

“O vício e a virtude são parentes como o carvão e o diamante.”

“Só é artista aquele que é capaz de transformar a solução num enigma.”

“Educação é aquilo que a maior parte das pessoas recebe, muitos transmitem e poucos possuem.”

“O fraco fica em dúvida antes de tomar uma decisão; o forte, depois.”

“O diabo é um optimista se acredita que pode piorar as pessoas.”


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Nota: Texto publicado, originalmente, na Revista Bulunga (No. 3)

02 outubro 2023

Estudo sobre a Confissão de Fé Batista de 1689 - A imutabilidade de Deus - Introdução: Aula 20






Por Jorge F. Isah

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CAPÍTULO 2: DEUS E A SANTÍSSIMA TRINDADE

1. O Senhor nosso Deus é somente um, o Deus vivo e verdadeiro, [1] cuja subsistência está em si mesmo e provém de si mesmo; [2] infinito em seu ser e perfeição, cuja essência por ninguém pode ser compreendida, senão por Ele mesmo. [3] Ele é um espírito puríssimo, [4] invisível, sem corpo, membros ou paixões; o único que possui imortalidade, habitando em luz inacessível, a qual nenhum homem é capaz de ver; [5] imutável, 6 imenso, 7 eterno, [8] incompreensível, todo-poderoso; [9] em tudo infinito, santíssimo, 10 sapientíssimo; completamente livre e absoluto, operando todas as coisas segundo o conselho da sua própria vontade, 11 que é justíssima e imutável, e para a sua própria glória; 12 amantíssimo, gracioso, misericordioso, longânimo; abundante em verdade e benignidade, perdoando a iniquidade, a transgressão e o pecado; o recompensador daqueles que o buscam diligentemente; 13 contudo justíssimo e terrível em seus julgamentos, 14 odiando todo pecado, 15 e que de modo nenhum inocentará o culpado. 16 Deus tem em si mesmo e de si mesmo toda a vida, 17 glória, 18 bondade 19 e bem-aventurança. Somente ele é auto-suficiente, em si e para si mesmo; e não precisa de nenhuma das criaturas que fez, nem delas deriva glória alguma; 20 mas somente manifesta, nelas, por elas, para elas e sobre elas a sua própria glória. Ele, somente, é a fonte de toda existência: de quem, através de quem e para quem são todas as coisas, 21 tendo o mais soberano domínio sobre todas as criaturas, para fazer por meio delas, para elas e sobre elas tudo quanto lhe agrade. 22 Todas as coisas estão abertas e manifestas perante Ele; 23 o seu conhecimento é infinito, infalível e independe da criatura, de maneira que para Ele nada é contingente ou incerto. 24 Ele é santíssimo em todos os seus pensamentos, em todas as suas obras, 25 e em todos os seus mandamentos. A Ele são devidos, da parte de anjos e de homens, toda adoração, 26 todo serviço, e toda obediência que, como criaturas, eles devem a criador; e tudo mais que Ele se agrade em requerer de suas criaturas. Neste ser divino e infinito há três pessoas: o Pai, a Palavra (ou Filho) e o Espirito Santo; 27 de uma mesma substância, igual poder e eternidade, possuindo cada uma inteira essência divina, que é indivisível. 28 O Pai, de ninguém é gerado ou procedente; o Filho é gerado eternamente do Pai; 29 o Espirito Santo procede do Pai e do Filho, eternamente; 30 todos infinitos e sem princípio de existência. Portanto, um só Deus; que não deve ser divido em seu ser ou natureza, mas, sim, distinguido pelas diversas propriedades peculiares e relativas, e relações pessoais. Essa doutrina da Trindade é o fundamento de toda a nossa comunhão com Deus e confortável dependência dEle.
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INTRODUÇÃO

             A imutabilidade divina quer dizer que Deus não muda.

        Mas ele não muda em quais aspectos? 

  A resposta é: em todos. 

    Deus é imutável em seu ser, em sua natureza, em seus atributos, de forma que ele sempre foi e sempre será o mesmo; não havendo possibilidade de variações em seu caráter ou em seus atos, nem o tornando melhor nem o piorando, visto ser Deus perfeito, infinitamente perfeito, e o perfeito não pode sofrer alterações. Se tal acontecesse a Deus, ele não seria perfeito, seria inconstante e sujeito as modificações, revelando-se dependente, subordinado a causações e motivações que alterariam o seu caráter, natureza e atitudes. E sabemos que as coisas finitas são em si mesmas limitadas e transitórias, passíveis de transformações ao longo do tempo, como as criaturas, por exemplo. 

     Certa vez, um filósofo, não sei se Heráclito ou Parmênides, disse: não se pode descer duas vezes no mesmo rio, porque novas águas sempre correm sobre você. Com isso, tem-se que a água, um elemento próprio em suas características, à medida em que corre no leito do rio vai-se alterando, perdendo e ganhando componentes que a modificam, impedindo-a de ser a mesma na nascente e continuar a mesma até chegar à foz. Vários fatores contribuirão para que a água não permaneça a mesma; águas de outros rios e da chuva, e com elas elementos provenientes de outros solos e da atmosfera, se incorporarão; dejetos químicos oriundos das indústrias e das residências se ligarão; enquanto o calor do sol evaporará alguns de seus componentes e, mesmo o homem, com suas técnicas de dragagem modificá-la-ão. 

    Mas sendo Deus absolutamente independente, eterno e infinito, tem-se que ele é também absolutamente imutável. E, assim, um atributo conduz a outros, os quais se relacionam entre si, conectando-se maravilhosamente, resultando no ser perfeito. Pois somente o ser perfeito, em sua natureza, impede e elimina toda alteração; porque as mudanças, invariavelmente, implicarão em imperfeição. É o que o salmista nos diz: “Mas tu, Senhor, permanecerás para sempre, a tua memória de geração em geração... Eles perecerão, mas tu permanecerás; todos eles se envelhecerão como um vestido; como roupa os mudarás, e ficarão mudados. Porém tu és o mesmo, e os teus anos nunca terão fim.” [Sl 102.12, 26-27]. No verso 11, lê-se: “Os meus dias são como a sombra que declina, e como a erva me vou secando”. O salmista se compara a uma sombra, e o que é uma sombra? É algo inconsistente, uma projeção, um espectro, efêmera, de pouca duração. Pode-se notar o quanto ela se faz diferente à medida em que se caminha, por exemplo. À medida que nos movemos, e o reflexo da luz altera-se quanto à posição do nosso corpo, a sombra se metamorfoseia, assumindo várias formas, ou desaparecendo. Ele também se compara a uma erva que se vai secando. Nasce vigorosa, cresce, e definha com o passar do tempo. Ao contrário dele, o Senhor é eterno; ano após ano, geração após geração, tudo muda, mas Deus é sempre o mesmo. Porque ele não está afeito ao tempo, nem sobre sua ação; e, como nós, não está preso a nenhuma contingência, incapaz de ser modificado através de quaisquer ações. Pelo contrário, é ele quem cria, muda e transforma tudo que existe. Assim, também, diz Tiago: “Toda a boa dádiva e todo o dom perfeito vem do alto, descendo do Pai das luzes, em quem não há mudança nem sombra de variação” [Tg 1.17]. E novamente é-nos repetido quanto ao Senhor: “Jesus Cristo é o mesmo, ontem, e hoje, e eternamente” [Hb 13.8]. De maneira que até Balaão não teve como não proferir: “Deus não é homem, para que minta; nem filho do homem, para que se arrependa; porventura diria ele, e não o faria? Ou falaria, e não o confirmaria?” [Nm 23.19]

     Então, Deus diz de si: “Porque eu, o Senhor, não mudo; por isso vós, ó filhos de Jacó, não sois consumidos” [Ml 3.6]. A afirmação é muito clara: Deus não muda; não há alteração no seu ser, na sua natureza, em seus atributos. Mas, também, em seus propósitos, decretos e promessas. Mesmo diante da miséria e pecaminosidade humana, Deus não se deixou influenciar pela condição decaída do homem, permanecendo o mesmo também em suas promessas, em seu plano eterno. Isso porque, entre outras coisas, o amor de Deus pelos eleitos também é imutável. É o que o apóstolo confirma: “Por isso, querendo Deus mostrar mais abundantemente a imutabilidade do seu conselho aos herdeiros da promessa, se interpôs com juramento; para que por duas coisas imutáveis, nas quais é impossível que Deus minta, tenhamos a firme consolação, nós, os que pomos o nosso refúgio em reter a esperança proposta” [Hb 6.17-18]. Este trecho está diretamente relacionado com o Salmo 110.4, que diz: “Jurou o Senhor, e não se arrependerá”, declarando que Deus, não tendo por quem jurar, jurou por si mesmo, pois ele não falha no que diz, não desiste do que resolveu, nem muda o que estabeleceu. Ao contrário do homem, que é inconstante em suas promessas e juramentos, quebrando-os, como prova da infidelidade em seus propósitos, Deus declara que a sua vontade é única, imutável, irrevogável. Os seus planos, eternamente traçados, não se alteram, porque Deus é imutável. Ele é infinitamente poderoso tanto para elaborá-los como para executá-los, infalivelmente. Com isso, não se quer dizer que Deus seja fiel aos homens, ainda que isso possa, de alguma forma, ser estabelecido como verdade. Mas entendo que a fidelidade de Deus é primeiramente a si mesmo, e ao que decretou. Ele é autocoerente consigo mesmo, não desistindo nem revogando aquilo que prometeu, conservando-se fiel a si e às suas promessas. Logo, temos a certeza do cumprimento das suas promessas, porque Deus prometeu e as cumprirá. Pelo poder que tem de fazer todas as coisas, segundo o propósito imutável do seu ser.

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Nota: Aula realizada na E.B.D. do Tabernáculo Batista Bíblico 
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ÁUDIO DA AULA 20:

23 setembro 2023

Caixa de Pássaros: A profecia de um filme

 





 Jorge F. Isah



Aproveitando o "oba-oba" do lançamento do filme "Caixa de Pássaros", no Netflix, reproduzo aqui a pequena resenha do livro homônimo, de Josh Malerman, lido em 2016. A previsão feita, há alguns anos, se concretizou: o livro virou filme, como já era de se esperar.

Então, se você ainda não leu o livro, nem viu o filme, leia os meus comentários, e sossegue, pois não darei spoiler do enredo, assim como outro colaborador da revista o faz descaradamente.

Deixo-lhes, portanto, as minhas impressões à época da leitura, o que, de certa forma, se confirmou novamente, ao assistir ao filme; vale para ambas as obras.

Boa leitura!

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DIVIRTA-SE, E ESQUEÇA!¹

Josh Malerman é compositor e músico de uma banda de rock desconhecida (ao menos para mim), que se chama "High Strung". Não é uma boa credencial, desde o seu início, para um escritor. Não li os escritos de todos os roqueiros, vivos e mortos (e nem o poderia, a fim de preservar a minha sanidade), mas, do que li, não posso dizer que o gênero musical colabore com a literatura. A despeito de Bob Dylan ter ganhado o Nobel (se há um absurdo, esse foi o maior; um letrista apenas bom, e nem sempre, ganhou o maior prêmio literário do mundo), ele não pode ser considerado "ipsis litteris" um rocker, pois a sua trajetória musical está mais ligada ao folk ou àquele tipo de música niilista e de protesto que os rockers "cabeça feita" gostam de ouvir e impingir aos outros. A escolha do Nobel poderia recair sobre Cormac McCarthy, Philip Roth ou Don DeLillo², por exemplo. Escritores infinitamente melhores do que o mediano letrista Dylan.

Bem, mas deixemos os músicos de lado.

O livro é um thriller de suspense, com altos e baixos. Vamos a eles:

1) Gostei do subtítulo: "Não abra os olhos"! Para o leitor voraz isso seria uma heresia, um castigo medonho, ou para quem aprecia as belezas e maravilhas criadas pelo bom Deus. Há um elemento subliminar de que, ao não abrir os olhos, o livro não será lido ou o filme não assistido. Seria uma advertência do autor ao leitor e espectador?... Brincadeirinha...

É claro que o objetivo da mensagem é revelar algo da narrativa, já instalar no leitor ou espectador o pânico ou a apreensão pelo que se segue após virar a capa ou passar o primeiro minuto. Sinceramente, chamou-me a atenção, e de alguma maneira, influenciou a minha decisão de comprá-lo.

2)Gostei da história. O seu mote é interessante. Em um mundo apocalíptico, quem vê se flagela e morre (a influência diabólica de levar a alma ao suicídio, à autoflagelação). Melhor, então, não ver, e se esconder do mundo exterior, ainda que suas ameaças estejam a cercar, pairando sobre os personagens. Não é original; a narrativa pós-apocalíptica tem sido muito utilizada na literatura, no cinema e nas artes em geral (a moda atual é a de filmes sobre um mundo dominado por zumbis, Ets e figuras fantasmagóricas. O que antes acontecia em privado, em particular, com um ou outro personagem, se disseminou, e cidades, países inteiros, são dominadas por seres não-humanos). O suspense sempre vendeu e continuará vendendo, a despeito de não haver mais escritores geniais como no passado, Stevenson e Poe, e, mais recentemente, Lovecraft e King (não é um gênero do meu agrado, mas, ao menos, Stevenson e Poe vão muito além do susto e calafrios).

3) Se os personagens não têm a profundidade dos construídos por Dostoiévski e Tostói, ao menos são bem definidos, e os seus papeis no enredo também. Existem "furos" e inverossimilhanças em algumas de suas atitudes e falas, mas nada que possa considerar exageradamente falso. Afinal, é ficção.

4) O autor consegue manter o clima de suspense da narrativa e prender a atenção do leitor. Vá lá, não é grande coisa, mas dá para passar algumas horas de diversão com o livro.

A alternância entre presente e passado quebra um pouco da monotonia que poderia levar a história ao fracasso completo.

5) Apesar da desagregação da sociedade, onde é cada um por si, houve o cuidado do autor em demonstrar não somente a necessidade do agrupamento de sobreviventes, mas a postura de alguns em abrigar e chamar outros para o lugar que consideravam seguro. Mesmo a fragilidade humana em um mundo caótico, leva-os a fortalecerem-se e buscarem formas de manter a esperança viva. É o caso do personagem Tom, um idealista, no bom sentido da palavra, um incansável promotor da fé; não existe crise maior do que não buscar as soluções, é o que pensa e tenta transmitir aos demais.

Existem conflitos morais e éticos; e o que não se via, mas sabia, no "lá fora", acaba por acontecer no interior da casa.

No final, existe esperança também para Malorie e seus filhos.

6) A ideia é boa, mas a narrativa não se desenrola com a mesma eficiência. Como já disse, o autor consegue manter o "clima" de suspense até certo ponto, mas de uma maneira geral, o enredo é apenas razoável. No seu desenrolar faltou a Malerman a perícia e habilidade de um construtor de histórias experiente e talentoso, como McCarthy e o seu "A Estrada", por exemplo.

Já é praxe eu não fazer sinopse ou contar a história, para não tirar o prazer do futuro leitor; então, o que posso dizer mais?

Bem, se está esperando arrepios e uma história envolvente, daquelas de perder o fôlego, desista. Não é para você.

Se deseja uma narrativa inteligente, com detalhes minimamente pensados e descritos com maestria, e um final que faça sentido, desista também.

Se quer um livro para ler em um dia, de supetão, e passar algumas horas distraído e, até mesmo se divertir, para depois esquecê-lo, ele pode atendê-lo.

É o primeiro livro de Malerman³, e ele pode melhorar e aprimorar algumas qualidades que tem. Precisa, talvez, deixar de pensar em escrever um livro-filme (a moda são enredos que possam e, já pensam, em se tornar em filmes. Não se contentam apenas com o papel...) e sair um pouco dos clichês, tão comuns aos livros de suspense (projetados para serem películas, num futuro próximo).

Não peço originalidade, pois isso é bobagem, na maioria das vezes, ou em todas. Mas uma boa ideia, técnica, boa narrativa e um enredo que se sustente, já o tornaria em uma promessa alvissareira neste século.

Então, vamos esperar o próximo volume... Ou será o script para mais um filme?... O tempo, sempre ele, dirá.

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Avaliação: (**) Regular
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Notas: ¹ Texto reproduzido, na íntegra, com autorização do editor e  publicação. Originalmente em Fevereiro de 2022, na Revista Bulunga No. 1
² Infelizmente, Cormac McCarthy faleceu em Junho de 2023. Philip Roth em Maio de 2018. Ambos, injustamente, não foram nomeados para o Nobel de Literatura. Don DeLillo continua firme e forte, aos 86 anos, mas dado os critérios menos literários e mais ideológicos da premiação, é pouco provável que seja laureado com o Nobel. Pior para o Nobel que se torna cada vez menos representativo. Você pode ler resenhas desses autores aqui mesmo, no Kálamos. Basta ativar a caixa de pesquisa, no fim da página, na coluna à direita. 
³ Malerman publicou mais dois ou três livros. Não me pergunte sobre eles, pois, ao menos, no momento, não tenho interesse em lê-los. 

19 setembro 2023

Estudo sobre a Confissão de Fé Batista de 1689 - Aula 19: A infinidade de Deus




Jorge F. Isah

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CAPÍTULO 2: DEUS E A SANTÍSSIMA TRINDADE

1. O Senhor nosso Deus é somente um, o Deus vivo e verdadeiro, [1] cuja subsistência está em si mesmo e provém de si mesmo; [2] infinito em seu ser e perfeição, cuja essência por ninguém pode ser compreendida, senão por Ele mesmo. [3] Ele é um espírito puríssimo, [4] invisível, sem corpo, membros ou paixões; o único que possui imortalidade, habitando em luz inacessível, a qual nenhum homem é capaz de ver; [5] imutável, 6 imenso, 7 eterno, [8] incompreensível, todo-poderoso; [9] em tudo infinito, santíssimo, 10 sapientíssimo; completamente livre e absoluto, operando todas as coisas segundo o conselho da sua própria vontade, 11 que é justíssima e imutável, e para a sua própria glória; 12 amantíssimo, gracioso, misericordioso, longânimo; abundante em verdade e benignidade, perdoando a iniquidade, a transgressão e o pecado; o recompensador daqueles que o buscam diligentemente; 13 contudo justíssimo e terrível em seus julgamentos, 14 odiando todo pecado, 15 e que de modo nenhum inocentará o culpado. 16 Deus tem em si mesmo e de si mesmo toda a vida, 17 glória, 18 bondade 19 e bem-aventurança. Somente ele é auto-suficiente, em si e para si mesmo; e não precisa de nenhuma das criaturas que fez, nem delas deriva glória alguma; 20 mas somente manifesta, nelas, por elas, para elas e sobre elas a sua própria glória. Ele, somente, é a fonte de toda existência: de quem, através de quem e para quem são todas as coisas, 21 tendo o mais soberano domínio sobre todas as criaturas, para fazer por meio delas, para elas e sobre elas tudo quanto lhe agrade. 22 Todas as coisas estão abertas e manifestas perante Ele; 23 o seu conhecimento é infinito, infalível e independe da criatura, de maneira que para Ele nada é contingente ou incerto. 24 Ele é santíssimo em todos os seus pensamentos, em todas as suas obras, 25 e em todos os seus mandamentos. A Ele são devidos, da parte de anjos e de homens, toda adoração, 26 todo serviço, e toda obediência que, como criaturas, eles devem a criador; e tudo mais que Ele se agrade em requerer de suas criaturas. Neste ser divino e infinito há três pessoas: o Pai, a Palavra (ou Filho) e o Espirito Santo; 27 de uma mesma substância, igual poder e eternidade, possuindo cada uma inteira essência divina, que é indivisível. 28 O Pai, de ninguém é gerado ou procedente; o Filho é gerado eternamente do Pai; 29 o Espirito Santo procede do Pai e do Filho, eternamente; 30 todos infinitos e sem princípio de existência. Portanto, um só Deus; que não deve ser divido em seu ser ou natureza, mas, sim, distinguido pelas diversas propriedades peculiares e relativas, e relações pessoais. Essa doutrina da Trindade é o fundamento de toda a nossa comunhão com Deus e confortável dependência dEle.
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INTRODUÇÃO


Quando se diz: Deus é infinito, está-se a afirmar o quê, especificamente?

A primeira ideia que se tem é a de que ele não tem fim, de que não há limites nele. Mas também se quer dizer que ele é absoluto, eterno, perfeito, onipresente, e, assim sendo, é impossível que a razão humana o alcance. Em outras palavras, está-se a dizer que Deus é a negação da finitude, de que não está sujeito a qualquer limitação, de que nem o universo, a relação espaço-tempo, ou qualquer outro elemento pode limitá-lo. Deus não pode ser apreendido nem contido por nada ou ninguém, de forma que este atributo indica a ausência completa e total de restrições, obstáculos e defeitos no ser divino. No que ele é, e não pode não-ser, encontramos a plenitude em todos os seus atributos e, assim, a infinidade é o qualificador de todos os demais. Temos então que o seu poder é infinito, a sua bondade é infinita, o amor, a sabedoria, a misericórdia, e todos os demais atributos são infinitos. Foi a partir do ser infinito e do seu poder infinito, da sua vontade infinita, que Deus criou o finito, como contraste ao que ele é, mas também como prova da sua infinita misericórdia e bondade de se dar conhecer, como realidade no sentido mais elevado, mais concreto, em que o real é o Deus vivo se definindo como tal, em todos os seus aspectos infinitos, sendo essencialmente infinito [Jó 11.7-10; Sl 145.3; Mt 5.48].

Como já disse anteriormente, há uma ligação intrínseca entre os atributos divinos, uma unidade perfeita e santa, os quais somente podem ser analisados separada e isoladamente por causa da nossa limitação e incapacidade de entendê-los por completo. Fato é que Deus nos deu a revelar parte dos seus atributos, vistos serem eles infinitos assim como o seu ser é. Se fosse de outra forma, seria impossível qualquer conhecimento divino pelo homem, dado sermos inaptos em nossa capacidade naturalmente limitada para alcançá-lo; as perfeições de Deus estão além de qualquer grau alcançável pelo homem. Pois ao contrário dele, somos prisioneiros do espaço e do tempo, o que, por si só, já nos faz “quebrar a cabeça” para tentar entender algo que está muito além da nossa compreensão. A eternidade é um enigma para o homem exatamente por não escaparmos da ideia de passado, presente, futuro e lugar. A vida está condicionada aos fluxos temporais e espaciais, dos quais não temos como fugir.

E creio que, por isso a idolatria é uma abominação a Deus. Como pode o homem conceber possível adorar uma imagem ou mesmo um conceito ou ideia que sempre será finita e limitada ao espaço e tempo? Todos os deuses, sem exceção, estão limitados por essa contingência espaço-temporal, ainda que habite apenas a mente. Na história, não se vê um deus que se compare ao Deus bíblico, e, talvez, por isso, todos eles sejam o reflexo da limitação humana. Os deuses gregos e romanos assumiam características físicas e emocionais do homem, tanto em suas eventuais virtudes como em seus constantes defeitos. E essa é uma grande diferença que há entre eles e o Deus vivo e verdadeiro, no qual não se encontra qualquer mancha ou defeito. Em Cristo, o Verbo feito homem, a sua perfeição é evidente mesmo assumindo a forma corporal humana, visto não ter pecado nem foi achado nele dolo algum.

Por que Deus é Deus, ninguém pode adorar outro deus sem aborrecer ao verdadeiro e único Deus. O qual ordenou para que não tivéssemos outros deuses diante dele, porque ele é o Senhor nosso Deus, e Deus zeloso [Ex 20.2, 5].

Estudaremos agora as duas maneiras pela qual a infinidade de Deus pode ser entendida; quanto ao tempo, a eternidade, e quanto ao espaço, a imensidão.


ETERNIDADE

Este é um termo que tem trazido muita dor de cabeça para teólogos e filósofos, dada a dificuldade e mesmo impossibilidade que se tem de entendê-la, algo que está fora da nossa realidade, e que somente é possível em Deus, o qual é eterno.

Então dizer que a eternidade é a expressão da infinidade divina quanto ao tempo parece-me deixar claro como é difícil, mesmo para homens altamente capacitados intelectualmente, defini-la. Já que para o eterno não há tempo, e mesmo o tempo não foi criado em uma determinada “fração” da eternidade, como algo que existisse a partir de um determinado momento, dizer que ele está no passado somente terá correlação consigo mesmo, e aqueles que estão contidos nele, as criaturas, jamais com Deus. Mas compreendo que esta foi a maneira sábia que Deus se utilizou para, uma aplicação da sua misericórdia para com os homens, desse-nos algum entendimento do que ele é.

Por isso a Bíblia diz que Deus subsiste de séculos em séculos, de geração em geração [Sl 90.1-2, 102.12], utilizando-se da linguagem humana e simples para que qualquer homem possa entendê-la. A transitoriedade humana contrapõe-se à duração infinita de Deus, de que ele sempre existiu e existirá para todo o sempre, sem jamais deixar de sê-lo, sendo o que é. Ao contrário de nós, que somos afetados pelo tempo [envelhecimento e morte], significando a finitude e temporalidade da nossa vida, Deus não tem princípio nem fim, como já foi dito, por isso, qualquer ideia do que seja a eternidade divina não passará de sombras, pelas quais poderemos apreender algo, mas jamais exaustivamente. Ainda que a nossa alma seja imortal, e a imortalidade não significa ser eterna, tivemos um começo, o qual se deu pela vontade infinita de Deus nos criar à sua imagem e semelhança. Mas o “Imago Dei” é parcial, nunca total, nem pode sê-lo, pois se fosse, seríamos como Deus, e isso é impossível; contudo, poderemos experimentar uma outra forma de eternidade, no sentido de que, daqui para a frente, estaremos indefinidamente com Deus, para sempre.

Este é outro conceito de eternidade, e no qual a Bíblia também nos ensina, de que os eleitos estarão sempre em comunhão com Deus; de que permanentemente, ainda que o tempo transcorra sequencialmente, nunca terá fim o nosso relacionamento com o eterno. A forma utilizada “vida eterna” traduz de maneira inteligível o que nos aguardará após a morte física: não haverá cessação do nosso viver para Deus e por ele. Contudo, sem saber como se dará isso, penso que não transcenderemos o tempo, de que não estaremos fora dele, ainda que ele tenha domínio sobre nós, e não venhamos a sentir os seus efeitos [envelhecimento, por exemplo]. Maravilhosamente, Deus anulará os efeitos do tempo sobre o seu povo [e mesmo sobre os réprobos, os quais sofrerão o justo castigo divino no Inferno, tanto anjos como homens caídos]. Mas é uma cogitação. Talvez o tempo seja realmente suprimido, e entremos num viver infinito como o de Deus, mas aí entraremos nas limitações que o próprio corpo físico impõe, a de que não podemos ser infinitos, e se não podemos, não há como falar em eternidade para nós. Haverá um tempo infindável, que não se extinguirá e que durará para sempre; o que, para nós, é muito mais do que poderíamos esperar, caso Deus não se compadecesse.

O fato é que Deus nunca foi, nem nunca será, pois ele é. Para ele, não há passado, presente ou futuro, o que dificulta ainda mais a nossa compreensão, pois nossa mente está presa ao conceito temporal, e de que tudo é temporal. Para nós, as coisas acontecem em sucessão, limitadas pelo tempo e espaço, ao começo e fim, pois nada na criação pode ser compreendido como eterno. Entender que Deus transcende o tempo, de que está fora do tempo, mas de maneira absurdamente proposicional ele age no tempo [imanência], sendo o Senhor da história, é um grande conforto. Não somente o criou, mas o governa soberana e diligentemente, sem que nada possa escapar à sua ordem. Quando o apóstolo diz que um dia para Deus são mil anos, e mil anos são como um dia [2 Pe.3.8], ele está nos chamando a compreender a sua eternidade, e a sua transcendência quanto ao tempo, sem que se possa confundi-lo com a criação. Ele é distinto da criação, pois é a própria eternidade, ainda que toda a criação subsista pelo seu favor e poder. Ao determinar todos os fatos, Deus não se inclui neles, mas ordena-os conforme a sua sabedoria, perfeição e poder. Creio ser prudente entender que o agir de Deus na história não o torna em componente da história, como um elemento criado por ele mesmo, algo do tipo uma imagem, um personagem de si mesmo. O fato de Deus não poder ser compreendido plenamente não o diminui em nada, nem pode torná-lo em um simples personagem, pelo contrário, revela-nos exatamente a sua grandiosidade e majestade, de forma que o adoremos, glorifiquemos e o reverenciemos como Deus.

E aqui entra um ponto importante, o qual não devemos esquecer, de que a eternidade de Deus nos remete à eternidade das suas promessas de bênçãos, as quais se cumpriram, cumprem e cumprirão no tempo, e das quais somos os alvos, significando que, mesmo vivendo uma vida de tribulação e lutas, somos confortados pela certeza de que, naquele dia, todas as nossas lágrimas serão enxugadas, “e não haverá mais morte, nem pranto, nem clamor, nem dor; porque já as primeiras coisas são passadas” [Ap 21.4]. Com isso entendemos que as provações não duram para sempre, que são circunstanciais e momentâneas, e de que encontramos sempre, no Senhor, aquele que tem “sido o nosso refúgio, de geração em geração” [Sl 90.1]. A eternidade de Deus nos tornará mais confiantes nele, e também nos fará mais humildes diante dele; pois a própria condição temporal do homem já seria suficiente para que toda a arrogância e soberba e orgulho caíssem por terra. Comparar-nos a ele é o grau máximo de loucura que um homem pode alcançar; e esse homem perdeu completamente a noção da realidade, da verdade. Como Tiago alertou: “Digo-vos que não sabeis o que acontecerá amanhã. Porque, que é a vossa vida? É um vapor que aparece por um pouco, e depois se desvanece” [Tg 4.14]. E enquanto não somos nada, nem reputados por nada, Deus é Deus, de eternidade a eternidade.

IMENSIDÃO E ONIPRESENÇA

Imensidão e onipresença são termos quase sinônimos, contudo, guardam uma diferença que tentarei explicar. Elas se relacionam com a infinidade divina em relação ao espaço.

O termo “imensidão” nos dá a ideia de uma extensão desmedida, de um espaço imenso, ou uma grandeza ilimitada. Porém, a própria ideia de espaço é restritiva, não se adequando ao atributo divino, pois Deus transcende toda a ideia de limitações espaciais [imensidão], sem que ele esteja ausente de um só ponto do espaço com todo o seu ser [onipresença]. Muitas vezes pensamos em uma parte de Deus aqui, outra acolá, nos dando a falsa ideia de que Deus está “espalhado” por todo universo, o que não é verdade.

Podemos, como exemplo, imaginar um homem deitado em uma cama. O homem é formado por partes, cabeça, tronco e membros, e a cama também, cabeceira, “pés”, estrado, colchão, etc. O homem está em contato direto com o colchão, de forma que as demais partes não se encontram em contato com ele, ainda que o seu corpo esteja depositado sobre e entre elas. Não há como dizer que o homem está em todas as partes da cama. A cabeça ocupa uma parte do colchão, enquanto o tronco outra, e os pés outra. O homem não toca ao mesmo tempo os pés da cama, o estrado, o colchão, etc. Não é possível imaginá-lo fora da cama, quando está deitado nela. Deus, como não tem partes mas é o ser único e indivisível, não poderia estar sobre e entre as partes da cama sem encher as demais. Na verdade, como é uma analogia e a complexidade do ser de Deus é mesmo incompreensível para o homem, podemos dizer que Deus enche toda a cama, tocando ao mesmo tempo nos pés, estrado, colchão, cabeceira, etc, ou seja, não há limites na cama em que Deus não esteja presente.

Com isso, tem-se de tomar cuidado para não se imaginar que Deus seja a cama, que o seu ser faz parte da cama. Deus não é a cama, pois a cama é objeto da criação, mas Deus preenche todos os espaços do objeto de forma que não há limites para ele. Mesmo a madeira mais maciça ou a rocha mais sólida ou o gás mais volátil, Deus os enche. É a afirmação do salmista: “Para onde me irei do teu espírito, ou para onde fugirei da tua face? Se subir ao céu, lá tu estás; se fizer no inferno a minha cama, eis que tu ali estás também. Se tomar as asas da alva, se habitar nas extremidades do mar, até ali a tua mão me guiará e a tua destra me susterá” [Sl 139,7-10].

Note que Davi diz ser impossível fugir de Deus; onde ele estiver, seja no mais alto dos céus ou no mais profundo da terra, ali o Senhor estará. Mas não há confusão ou mistura entre o ser de Deus e os objetos relacionados pelo salmista. Ele os distingue claramente. Também ele não diz que uma parte de Deus está aqui e outra acolá, mas diz que ele, o todo divino, está em cada um desses lugares, enchendo cada parte dos lugares com a plenitude da sua presença. Portanto, devemos entender que Deus está presente em cada parte do universo, sem, contudo, se misturar com elas. O mesmo acontece conosco, os quais somos templo de Deus. Ele não se divide em partes e cada uma das partes ocupa um corpo/alma dos eleitos. Deus está completamente em cada um de nós, pois Deus é indivisível. Ele nos enche com todo o seu ser, de forma que Deus não está um pouco em mim, outro tanto no irmão, e mais um tanto em uma irmã do outro lado do planeta. Ele está completa e totalmente em cada um de nós, aqui, lá e acolá, em todos os lugares. Assim Deus está em tudo, ao mesmo tempo, com toda a plenitude do seu ser, sem jamais ser cada uma das suas criaturas.

Leiamos o que Salomão diz, e que pode clarificar um pouco mais a questão: “Mas, na verdade, habitaria Deus na terra? Eis que os céus, e até o céu dos céus, não te poderiam conter, quanto menos esta casa que eu tenho edificado” [1Rs 8.27].

Neste trecho, Salomão está a dizer duas coisas:

1) Deus transcende todo o espaço e não está sujeito às suas limitações, de tal forma que nem os céus, nem os céus dos céus podem contê-lo. Isto é a imensidade ou imensidão de Deus [transcendência].

2) Ainda assim o rei construiu uma casa onde Deus habitasse, e enchesse-a com a plenitude do seu ser. Deus preenche todo o espaço com todo o seu ser, relacionando-se com a criação, e isto é a onipresença divina [imanência].

Deus está presente em toda parte sem que esteja parcialmente em cada uma delas. A plenitude da sua presença enche cada parte do espaço, do universo, sem que ele seja cada uma delas ou o todo.

Outro trecho bíblico que confirma a assertiva de Salomão quanto à infinidade divina está em Jeremias 23.23-24, afirmado também por Paulo em Atos 17-27-28, entre outras passagens.

CONCLUSÃO

Diferentemente das criaturas que ocupam um espaço limitado onde estão, sendo o seu espaço a medida do seu tamanho, e outro corpo não poderá ocupá-lo ao mesmo tempo [a terra ocupa um lugar delimitado no espaço sideral, e outro planeta não poderá ocupá-lo simultaneamente], e dos espíritos finitos, anjos ou demônios, que operam em lugares específicos, mas não estão em toda parte, Deus está presente em todo o lugar, o seu ser enche todo o espaço, sem que ele o limite. De forma que ele está presente em todas as coisas, e em cada uma delas em particular, sem que ele possa ser confundido ou misturado a elas. É claro que Deus se manifestará de maneira diferente em cada uma. Ele não se manifesta do mesmo modo na natureza, no ímpio e no crente. Como Stephen Charnock diz: "Ele enche o inferno com a sua severidade, os céus com a sua glória, e o seu povo com a sua graça" [2].

A infinidade divina deve nos trazer temor e reverência. Especialmente por sabermos que estamos diante do Deus imenso e onipresente, que a tudo vê; cada passo e decisão tomada por seus filhos, entristecendo-se com os nossos pecados e alegrando-se quando resistimos e nos tornamos mais semelhantes ao seu Filho Amado, Jesus Cristo. Sejamos conscientes de que, diante dele, devemos buscar e ansiar uma vida santa, odiar e repudiar uma vida pecaminosa.

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Notas: [1] - A metáfora que se faz da eternidade como um “eterno presente” não é apropriada, pois remete o eterno ao tempo, quando sabemos ser o presente uma parte do tempo. Apenas Deus é eterno, e a eternidade é Deus. Nada mais pode ser comparado ou relacionado com o fato real desse atributo divino. Logo, qualquer comparação com o tempo visa nos levar a entender algo que, para nós, é inexprimível e mesmo ininteligível em sua complexidade e esplendor
[2] The Existence and the Attributes of God, vol 1, pg 367. Citado por Heber Carlos de Campos em "O Ser de Deus e os seus atributos", pg. 216, Editora Cultura Cristã;
[3] Aula realizada na E.B.D. do Tabernáculo Batista Bíblico;
[4] Fotos que ilustrem os atributos divinos são impossíveis, mas a partir do que é imperfeito, mutável, finito e temporal, pode-se reconhecer a singularidade, perfeição e grandiosidade do ser divino. Pois, cada um dos seus atributos nos faz conhecer a realidade, que somente é possível a partir do Absoluto, e sem ele, qualquer conjecturação não passa de fuga da verdade. 
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ÁUDIO DA AULA 19