Jorge F. Isah
Depois de tantos anos, somente agora decidi-me a ler um
livro de Tolstói. E não comecei pelo mais famoso, “Guerra e Paz”, mas pelo não
menos famoso “Ana Kariênina”. Algo que sempre me desmotivou a lê-lo foram dois
"entraves". O primeiro, não sei por que isto sempre me veio à cabeça,
imaginei que ele fosse um "rival" literário de Dostoievski, assim
como o Piquet foi rival do Senna na F1 (sic), e por aí afora (de alguma maneira, a juventude tem em mente dividir tudo em disputas; uma pena, já que a vida vai muito além do reducionismo tolo, em qualquer idade). Leio o
"Dosty" desde a adolescência, e nutri durante anos um certo desprezo
por Tolstói; o que acabou por agravar-se a partir da descoberta de Charles
Bukowiski que também não gostava do Leon, e reputava o “Fiodor” o maior entre
todos os escritores em todos os tempos, esse é o segundo motivo. Parecendo confirmar minhas suspeitas de
"rivalidade" entre os dois gigantes da literatura russa; e a me isolar, por décadas, de Liev (um tipo de privação literária...).
O fato é que esquivei-me o quanto pude daquele, até o derradeiro momento. Penso
que, hoje, certos autores não são "ilegíveis", e não há como fugir da
necessidade, e por que não o prazer, de lê-los. Tolstói é um deles, clássico,
como o é Balzac ou Dickens, por exemplo, e para citar apenas dois contemporâneos do russo.
Falando de Anna Kariênina, a narrativa é fluída e de leitura agradável. No
início, pensei, logo após as primeiras páginas: é continuar e esperar para ver
o que o russo tem guardado na manga... E tem de ser coisa muito boa, pois mais de
800 páginas de “enrolação”, somente o “Dosty” consegue fazer com maestria.
Contudo, a despeito da imensa habilidade do autor, há momentos em que a trama
parece-se muito com as novelas românticas dos escritores de best-sellers (é
claro, estou hiperbolizando, pois não é possível, nem de longe comparar um e
outros), onde há ingredientes para todos os gostos. Há excessos de palavreado e descrições em profusão, algumas desnecessárias, em situações que poderiam ser
resumidas. Entendo que ele queira deixar mais claro do que água, de maneira
inapelável, o caráter de suas personagens e dos eventos nos quais participam; existe,
porém, uma forma excessiva, quase repetitiva, em repisar e asseverar essas
informações. O grande número de personagens secundários deixá-a delongada,
encompridada, não diria arrastada, mas o leitor comum pode, certamente, ficar
um pouco impaciente.
Não direi que os tais “excessos” tornam a leitura pouco proveitosa, de uma
forma geral, posto a familiaridade e o interesse para com os personagens diminuir
sensivelmente essa sensação. Talvez, e apenas talvez, um corte de 10% no volume final do texto
representaria maior fluidez, diretamente ligada a uma objetividade igualmente maior; mas quem sou eu para ensinar escrita a um dos maiores gênios literários
de todos os tempos?... É apenas a reflexão de um leitor preocupado com a
sonegação desta geração, e das futuras, em se privar de experiências tão
marcantes e profundas ao negar-se ler um dos clássicos.
Tostói tem muitos méritos, inclusive da descrição e apresentação minuciosa de
suas personagens, o que nos possibilita conhecê-las profundamente e, até mesmo,
manter certa intimidade e cumplicidade com elas. Esse é, com certeza, um dos
maiores méritos das grandes obras, nos tornar em parceiros, quase comparsas, da
trama. Ocorre um pequeno “problema”, não sei dizer se posso chamar de problema,
no desenrolar do livro: não há surpresas, já que muito do que acontece pode ser
vislumbrado pelo leitor atento, a revelar a universalidade da história, ou
histórias, em suas mais triviais particularidades, e mostrar o quão humana são
as vidas das personagens, em suas tragédias, dramas, vivacidades e sutilezas.
Outro virtude é apresentar-nos várias discussões iniciadas naquele século e a perdurar
até os nosso dias, revelando o quão é previsível o homem em sua tolice, excepcionalmente
quando se considera imprevisível. Temas de cunho filosófico, teológico, moral,
político, cultural são pontuados com boas análises e conclusões, ainda que
sejam apenas o mote para se avaliar o caráter de uma e outra personagem.
Penso haver dicotomias sem a menor razão de ser, como a disputa “religião x
ciência”, onde a verdadeira religião e a verdadeira ciência não se digladiam,
mas se complementam; mas o que para mim pode ser líquido e certo, para Tolstói
e outros leitores é motivo de dúvidas e especulações, algo sincero e em nada
desabonador, mesmo, no fim das contas, não existindo oposição.
Como em todo livro temos aqueles homens e mulheres de que gostamos e os de que
não gostamos. Especialmente, nutro uma simpatia por Kitty e Levine (mesmo este
considerando-se ateu), enquanto não posso afirmar o mesmo de Ana e Vroski...
Interessante que a mentalidade revolucionária/alienada, via marxismo, já se
disseminava rapidamente mesmo em uma sociedade ainda não desenvolvida como a
russa (praticamente rural), onde Tolstói já vislumbrava o que haveria de acontecer décadas depois com
Lenin, Trotsky e os bolcheviques.
Tolstói não chega a ser um Dostoievski (espera lá, caro leitor, não vá
apedrejar-me; entenda existir um quê de “torcida” a favor deste, sem
necessariamente haver demérito àquele; algo momentâneo e que pode mudar no
futuro), mas é um grande escritor, que sabe pegar o leitor não com um
espalhafatoso início, mas com o desenrolar da narrativa, em uma crescente de emoções, considerações e descobertas, pela qual somos
seduzidos e "hipnotizados" em sua arte superlativa.
Um trecho que exemplifica em parte o dito acima, sobre o
vislumbre do mundo atual a partir da realidade russa, o qual selecionei e copiei abaixo: acontecia na Rússia do sec. XIX o que está hegemonicamente disseminado no
Brasil do sec. XXI. Tostói não era profeta (apesar da aparência negar), mas
vislumbrou a massificação da ignorância no mundo, em progressão geométrica, a despeito dos avanços tecnológicos; senão, vejamos a fala
de um marchand a respeito de um pintor em ascensão, Mikailov:
"Filho, segundo ouvi dizer, de um mordomo moscovita, não sabe o que
seja educação. Depois de frequentar a Escola de Belas Artes e de ter adquirido
certa reputação, quis instruir se, pois não é nenhum tolo. Para isso recorreu
àquilo que se lhe afigurou a fonte de toda a ciência, isto é, aos jornais e às
revistas. Outrora, quando alguém queria instruir se, por exemplo, um francês,
que fazia ele? Estudava os clássicos, os teólogos, os dramaturgos, os
historiadores, os filósofos. Estão a ver o trabalho que o esperava. No nosso
país é tudo muito mais simples: basta uma pessoa atirar-se à literatura
subversiva para muito rapidamente assimilar um extracto completo de tal
ciência. Há uns vinte anos, ainda esta literatura mostrava vestígios da sua
luta contra as tradições seculares, o quanto bastava para ensinar que tais
coisas existiam, mas agora nem mesmo se dá ao trabalho de combater o passado,
contenta se em negar francamente: tudo é evolution, selecção, luta pela
vida".
É ou não é um retrato fiel dos nossos tempos?
Tolstoi aborda uma boa gama de problemas e dilemas que
afligem a humanidade desde sempre. Temas como amor, traição, fidelidade,
honradez, malícia, hipocrisia, ingenuidade, fé, etc, são ingredientes do palco de
Anna Kariênina. Como já disse (e não canso de repetir), ele delineia
minuciosamente as suas personagens, de maneira que as conhecemos profundamente.
Muitas discussões iniciadas no sex XIX perduram até os nossos dias, como também
já disse, mas algo evidente, e merece ser reforçada é a reflexão sobre a queda
intelectual e moral da sua época, o emburrecimento daqueles que deveriam
defender e perpetuar a alta cultura e os princípios judaico-cristãos na
sociedade. De forma que entre os aristocratas e letrados é-se possível perceber
o que seria "regra": o desprezo ao conhecimento e à moral, e a
exaltação dos instintos ao nível do irracional. Anna é um bom exemplo disso:
viveu e morreu pelos seus prazeres e sensações (uma hedonista empedernida,
viciada ao ponto da loucura e desespero), muitos equivocados, muitos a exaltar-lhe o
egoísmo e o narcisismo, muitos falsos e irreais, que culminaram numa segunda
realidade, existindo apenas em sua mente.
Mesmo sendo rejeitada pela sociedade, de maneira geral, seus
pecados eram amenizados ou esquecidos por conta da sua beleza e sensualidade,
onde os homens adoravam-na enquanto as mulheres desprezavam e invejavam-na
(nisso há uma semelhança entre Karenina e “Nastasya Filippovna”, de Dostoievski
– preciso mesmo reler o Idiota, em breve). Pouquíssimos são os exemplos morais num mundo infestado pela imoralidade, mas até mesmo estes reconheciam sua
condição miserável e indigna, como a amante do irmão de Levine. A própria Anna
reconhece a desgraça em que se lançara, mas a idéia de uma felicidade amorosa e
verdadeira e duradoura com Vroski era uma espécie de recompensa a todo o mal
que ela havia produzido (o fetiche e suas prisões da alma). Temos as figuras dos ídolos, aqueles pelos quais se
manifestam o desejo humano de deificação, seja o amor proibido ou qualquer
forma de rebelião ao natural; pois, como criaturas imperfeitas e necessitadas
poderiam gerar relações perfeitas e suficientes?
Interessante notar que o senso moral está presente, é reconhecido mas não
aceito, como se acatá-lo significasse algum tipo de escravidão, e a sua
rejeição consciente uma liberdade. Ao contrário dos nossos dias, onde a moral,
ética e os valores nobres do homem são desprezados por não serem reconhecidos
como tais (o relativismo torna impossível qualquer verdade absoluta,
entregando-se a irrealidade e contradição da verdade relativa); lá, ao tempo de
Tostói, o homem se entregava ao erro pela impossibilidade de não vivê-lo, mesmo
sendo reconhecido como tal, como erro; não havia a exaltação dos pecados e
vícios; era simplesmente o inevitável, algo de que não se conseguia fugir, sem
ser contudo objeto de caça. Esta é, via de regra, a condição natural do homem,
o bem e o mal e a escolha entre eles; ao passo que, atualmente, a ideia do mal estar
misturada de tal forma à do bem, que o mal se faz bem e o bem mal, para a
desgraça completa de boa parte da humanidade.
Tostói é conservador nesse aspecto, e dá ao seu livro um caráter nitidamente
existencial (ainda que o termo não existisse ao seu tempo com o conceito de
hoje) e metafísico no desfecho final. Interessante as implicações metafísicas serem
respostas diretamente tiradas da realidade, como atestam as reflexões finais de
Levine.
O livro é um achado, e sua leitura pode surpreender, não como estamos
acostumados a ser surpreendidos: o espanto e o susto gratuitos, ou
reviravoltas malabarísticas (próprias de boa parte dos autores modernos; a maioria "sem pé nem cabeça"),
levando-nos a meditar sobre questões cruciais ao ser humano, como a vida e a
morte, por exemplo, e sempre.
Leitura recomendadíssima.
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Avaliação: (****)
Título: Anna Kariênina
Autor: Liev Tosltói
Página: 808
Sinopse:
"Toda a diversidade, todo o encanto, toda a beleza da vida é feita de sombra e de luz”, escreve Liev Tolstói no romance que Fiódor Dostoiévski definiu como “impecável”. Publicado originalmente em forma de fascículos entre 1875 e 1877, antes de finalmente ganhar corpo de livro em 1877, Anna Kariênina continua a causar espanto. Como pode uma obra de arte se parecer tanto com a vida? Com absoluta maestria, Tolstói conduz o leitor por um salão repleto de música, perfumes, vestidos de renda, num ambiente de imagens vívidas e quase palpáveis que têm como pano de fundo a Rússia czarista. Nessa galeria de personagens excessivamente humanos, ninguém está inteiramente a salvo de julgamento..."