“Sujeitai-vos, pois, a Deus, resisti ao diabo, e ele fugirá de vós.
Chegai-vos a Deus, e ele se chegará a vós. Alimpai as mãos, pecadores; e, vós de duplo ânimo, purificai os corações.”
INTRODUÇÃO
- Este é um dos trechos mais famosos da Escritura. Até mesmo quem lê pouco a Bíblia (talvez por ouvi-la em pregações e estudos), certamente já se deparou com estes versos.
- Em um mundo onde cada vez mais o pecado é transigido e considerado uma “criação social”, na qual a tradição judaico-cristã é acusada de provocar o sofrimento e a dor do homem através da culpa pela infração de um código de normas autoritário e opressivo, ouvir a exortação de Tiago parece ser algo fora do tempo e desnecessário.
- Para um mundo onde o egoísmo, o narcisismo e o hedonismo parecem ser a única saída em direção à felicidade, onde o materialismo tem sido uma normatização dos valores sociais, cuja filosofia quer, a todo custo, proclamar a “morte de Deus”, e manter o homem em um estado de completo abandono existencial, espiritual e, por conseguinte, torna-lo em um simples reverberador de um esquema coletivo de anulação individual (em vários aspectos da consciência e responsabilidade) e adestramento maciço (onde a consciência e a responsabilidade são coletivas, ainda que firam e aniquilem o indivíduo); falar em negar-se, em suprimir o lado negro da alma, e entregar-se à vontade divina, é coabitar com os loucos.
- Por outro lado, para o homem, cada vez mais arraigado à sua natureza, corrompida pela Queda, em que o importante é fazer o que quiser, sem se preocupar em dar satisfação de nada a ninguém, a sujeição a Deus parece outro tipo de escravidão qualquer; para muitos, é sair de uma algema para outra, de uma prisão para outra. Mas, será verdade?
- Para o homem que vive nas trevas e não conhece a luz, somente Cristo pode revelar-lhe onde realmente está, e para onde deve ir. Por isso, infelizmente, muitos não acreditam nos próprios tropeços, quedas, ferimentos e lesões aos quais estão submetidos, sem saber o porquê, nem onde se feriu; e mesmo agonizando, às portas da morte, considera-se, erroneamente, um iluminado.
- Na igreja, também há aqueles que, caminhando em meio à escuridão, acreditam que o pecado é apenas um meio pelo qual a graça se manifesta; e, ao invés de se envergonharem e buscarem arrependimento, exaltam-se e o têm por honraria.
- No fim-das-contas, estará a exortação de Tiago ultrapassada? Ela servia apenas para o seu tempo, onde o homem ainda não havia se libertado das tradições, do patriarcalismo, da barbárie social e institucional?
- Ou a exortação é válida tanto para os leitores e ouvintes de Tiago, dois mil anos atrás, como é válida também para hoje e para as gerações futuras?
A AUTONOMIA DO PECADO
- O autonomismo faz com que o homem se iluda na pretensão de que ele é dono do seu destino, e de que poderá muda-lo ao seu bel-prazer, quando quiser, se quiser.
- Ora, sabemos que todos os homens estão condenados, e de que o seu destino inevitável é o inferno, já que todos pecaram e destituídos estão da glória de Deus (Rm 3.23).
- Vamos caminhar um passo de cada vez:
- Primeiro, todo homem já nasce condenado:
“Tem misericórdia de mim, ó Deus, segundo a tua benignidade; apaga as minhas transgressões, segundo a multidão das tuas misericórdias.
Lava-me completamente da minha iniquidade, e purifica-me do meu pecado.
Porque eu conheço as minhas transgressões, e o meu pecado está sempre diante de mim.
Contra ti, contra ti somente pequei, e fiz o que é mal à tua vista, para que sejas justificado quando falares, e puro quando julgares.
Eis que em iniquidade fui formado, e em pecado me concebeu minha mãe.” (Salmos 51:1-5)
- Davi não disse que o pecado o encontrou na mocidade ou na vida adulta, mas que ele nasceu em iniquidade, e de que a sua mãe o concebera em pecado.
- Ele não diz que o parto é um pecado, muito menos a concepção. São atos que Deus havia estabelecido para homens e mulheres, pois os criou assim, com todas as condições de conceber. Então, não é o ato de nascer um pecado; mas Davi diz que em pecado foi formado. No sentido de ter ele herdado a natureza de Adão; de juntamente com Adão, Davi, e todos nós, termos caídos da graça, da pureza inicial, para a corrupção.
- É o que Deus disse a Adão:
“E ordenou o Senhor Deus ao homem, dizendo: De toda a árvore do jardim comerás livremente,
Mas da árvore do conhecimento do bem e do mal, dela não comerás; porque no dia em que dela comeres, certamente morrerás.
- O relato bíblico não diz que Adão comeu do fruto primeiro que Eva, foi ela quem comeu e depois ofereceu ao marido. Contudo, como Deus falou diretamente a Adão, e antes de haver criado a Eva, era necessário que ele comesse para que o pecado contaminasse toda a humanidade.
- Se Adão tivesse permanecido resoluto em seu estado de obediência a Deus, não comendo do fruto, nenhum de nós herdaria o pecado, e, talvez, até mesmo Eva pudesse ser absolvida do seu erro, ou não.
- Fato é que Adão cai, pecando contra Deus, e todos nós também caímos. Nesse sentido, não será o que fizermos em nossa vida que determinará se seremos ou não salvos, mas a quem servimos.
- E será a quem servimos, que determinará o que fazemos em nossa vida: se a Deus, glorificando-o e louvando-o por tudo, enquanto ganhamos dele, cada dia mais, as características santas e perfeitas do seu Filho Amado; e nisso consiste a liberdade de todo aquele que foi resgatado das trevas: servir ao Senhor da sua vida, o que antes era impossível e inimaginável.
- Se ao pecado e o diabo, nos embrenharmos cada vez mais nas masmorras do inferno, sendo dominado pelo mal, desejando o mal, vivendo pelo mal, pois tudo aquilo que não seja viver no eterno e supremo Bem, o será para a destruição e morte.
- O irmão(a) pode me dizer: “Você está errado! A Bíblia diz que Deus julgará por aquilo que fazemos, e pelo que não fazemos”.
- Sim. Você está certo, mas não completamente.
- Se o estado do homem é de inclinação para o pecado, e por causa do mal que habita em nós, a condenação está a bater na porta; se somos criminosos diante de Deus, e esses crimes nos levará à morte, como alguns atos aparentemente bons poderão me absolver?
- Na verdade, a maioria das pessoas pensa assim:
“Deus colocará o que fiz de bom de um lado da balança, e o que fiz de mal do outro lado. O lado da balança que pesar mais é que determinará se me salvarei ou não.
- Existem várias ilusões e falácias neste esquema:
1) De que o mérito na salvação é exclusivamente humano. Dependerá daquilo que você faz.
2) Neste sentido, por que Cristo morreu na cruz? Se a salvação depende de mim, e somente de mim, não há sentido no Filho de Deus encarnar, viver, morrer e ressuscitar, certo?
3) Quem é bom diante de Deus? Em Marcos 10.17-22, lemos:
“E, pondo-se a caminho, correu para ele um homem, o qual se ajoelhou diante dele, e lhe perguntou: Bom Mestre, que farei para herdar a vida eterna?
E Jesus lhe disse: Por que me chamas bom? Ninguém há bom senão um, que é Deus.
Tu sabes os mandamentos: Não adulterarás; não matarás; não furtarás; não dirás falso testemunho; não defraudarás alguém; honra a teu pai e a tua mãe.
Ele, porém, respondendo, lhe disse: Mestre, tudo isso guardei desde a minha mocidade.
E Jesus, olhando para ele, o amou e lhe disse: Falta-te uma coisa: vai, vende tudo quanto tens, e dá-o aos pobres, e terás um tesouro no céu; e vem, toma a cruz, e segue-me.
Mas ele, pesaroso desta palavra, retirou-se triste; porque possuía muitas propriedades.”
- O Senhor diz que:
1) Somente Deus é bom.
- Equivocadamente, os TJ’s, e outros grupos unitaristas, afirmam que somente Deus é bom, e como Jesus questionou o jovem rico, por chama-lo de bom, logo não era Deus porque não era bom. Ora, quanta ignorância quanto à verdade e ao que a Escritura declara. Cristo apenas quis ter certeza de que o jovem sabia a seriedade da sua afirmação, e de que estava realmente ciente de que estava falando diretamente com o bom Deus (Ah, maravilha das maravilhas! Quantos tiveram esse privilégio, e o desprezaram. Glória a Deus, por seu Filho! Porque, por ele, estaremos eternamente na sua presença, e falaremos e o veremos face a face!).
- A pergunta de Jesus é muito mais retórica, no sentido de que o jovem se acercasse de que fala com Cristo, e de que Cristo tinha não somente a autoridade para instrui-lo quanto á salvação, mas também de salvá-lo. É o que veremos a seguir.
- Em nenhum momento, o jovem desmentiu ou desdisse o que havia afirmado.
- Em nenhum momento, Cristo disse que não era Deus, e de que o jovem estava equivocado, quanto ao que dissera.
2) Jesus então lhe pergunta se ele sabe os mandamentos. Em outras palavras, o Senhor lhe pergunta se ele sabia e conhecia a Lei.
3) O jovem responde que não somente sabe, mas a cumpre.
4) Cristo disse-lhe: “Falta-te uma coisa”
5) Aquele jovem acreditava que deveria cumprir o código legal dado por Deus a Moisés para se salvar. Entretanto, ainda assim, ele tinha dúvidas quanto a sua salvação, por isso a pergunta ao Senhor.
6) Ainda que ele fosse um cumpridor da Lei (e Cristo não nega que ele fosse), ela não era suficiente para salvá-lo. Faltava-lhe ainda uma coisa.
7) E qual é essa coisa?
8) Primeiro, vender tudo o que possuía. Por que? A tradição judaica afirmava que a riqueza era um sinal de bênção divina, e de que ao possuí-la, significava que aquele homem era agradável a Deus, e dele se agradava, e de que os favores do Senhor estavam sobre ele. Por isso os discípulos perguntaram: Quem poderá, pois, salvar-se? (v. 26).
Entretanto, a riqueza em si mesma, ter muito dinheiro e bens, não é pecado, nem por isso faz alguém pecador. A questão à qual Cristo quer chamar a atenção daquele jovem é quanto ao apego, ao culto, ao ídolo que ele tinha quanto ao que possuía.
De alguma maneira, o jovem colocava a sua “possível” salvação em sua riqueza, como a tradição dizia. Era necessário que ele a perdesse (no sentido de abrir mão dela), para reconhecer verdadeiramente a fonte da verdadeira salvação.
9) Segundo, não podemos negligenciar que o pedido de Jesus foi uma maneira de testar o jovem, e até que ponto ele estava sinceramente desejoso da vida eterna. Era algo ao qual o jovem se apegara, do qual não queria abrir mão, e não estava disposto a se sacrificar.
- Não é assim também conosco, meus irmãos! Será que podemos fazer uma analogia da riqueza daquele jovem com ofensas, calúnias, mentiras e desprezo, que nossos lábios proferem todos os dias contra o próximo? Com aquilo que cobiçamos, ilicitamente, todos os dias, e não nos pertence? Com os vícios aos quais nos apegamos para a morte? Com as distrações que nos impedem de ter comunhão com Deus e servi-lo?
- Muitos de nós não querem abrir mão do seu prazer, daquilo que ele acalenta e guarda com estimação. O dinheiro para aquele jovem era o seu ídolo, assim como a mentira, a inveja, a arrogância, e tantos outros pecados “menores” são nossos ídolos.
- Estamos realmente dispostos a rejeitar os nossos desejos, de abdicar daquilo que nos mantém distante do verdadeiro tesouro, e negar-nos a nós mesmos para vivermos para Deus?
- Aquele jovem era prisioneiro do seu desejo, da sua idolatria; e pelo menos, naquele momento, permaneceu cativo a ele (Fiz uma outra análise deste texto, aqui mesmo, no Kálamos, há alguns anos. Em uma abordagem mais afeita à soberania de Deus. Ele pode ser lido em “Jovem rico: condenado?”)
10) Terceiro, Cristo disse: “segue-me”, não sem que antes tomasse a própria cruz.
- O ponto central não era o dinheiro, mas o seguir a Jesus. Para isso, ele teria de abrir mão do que o mantinha preso, do que o escravizava, para, livre, então seguir o Mestre.
- Se ele não estivesse disposto a isso, era sinal de que a sua pergunta, ainda que sincera, não era realmente o que de mais importante havia para ele.
- Era necessário que o jovem confiasse em Cristo para responder positivamente à sua ordem ou pedido. Abrindo mão da sua fortuna, ele demonstraria estar verdadeiramente interessado em sua salvação,
AS MASMORRAS DO PECADOR: UMA ANALOGIA
- Vamos a uma analogia, para melhor entender a narrativa do Senhor. Temos um muro que divide dois lados: à direita, o bem, a santidade e a vida, enquanto à esquerda, o mal, o pecado e a morte. Nesse quadro, temos um homem natural. Muitos pensarão que ele está em cima do muro, observando um lado e outro, prestes a se decidir onde ficar. Se seus atos forem bons, ele poderá então pular para a direita, onde está a vida. Se seus atos forem maus, ele pulará à esquerda, onde está a morte. Mas mesmo que ele caia à esquerda, se quiser e tiver vontade, ele poderá escalar novamente o muro e pular para o outro lado. A isso se chama “livre-arbítrio”.
- Essa ideia é fictícia, não somente por entender, equivocadamente, que o homem está sobre o muro, em um lugar de neutralidade, e que dali ele pode escolher para qual dos lados irá, como, estando no lado “negro” ele tem meios, em si mesmo, para pular para o outro lado.
- A questão da balança pendendo para cá ou para lá, pelos esforços, mérito e vontade humana de se aperfeiçoar, é falso, como nota de três reais. Se há algo em que o homem se aperfeiçoa, por si mesmo, é em caminhar e adentrar cada vez mais nas trevas.
- Na verdade, o homem já nasce do lado mal, onde existe apenas a morte, e ele mesmo já está morto espiritualmente, porque não tem comunhão com Deus. E quanto mais experimentar de si mesmo, mais ele se entregará ao distanciamento, ao afastamento de Deus.
- Por seus próprios meios, não pode subir o muro, e, na verdade, não quer, nem gostaria de fazê-lo. Ele se sente bem onde está: fingindo ver na densa escuridão; fingindo viver nos sepulcros; fingindo ser puro, quando de suas mãos escorrem o veneno do pecado; fingindo ser digno do céu, quando merece apenas o inferno. As mãos do verdugo estão sobre ele, arrastando-o para os calabouços mais profundos da alma moribunda.
- A autonomia do pecado, no homem não redimido, significa servi-lo e sujeitar-se a ele, fazer-se escravo, chama-lo de Senhor e adorá-lo.
CONCLUSÃO
- E tudo isso, se deve ao pecado, ao desejo do homem em não se afastar de si mesmo e buscar a Deus. Porque foi ele mesmo quem disse:
“Buscar-me-ei, e me achareis, quando me buscardes com todo o vosso coração” (Jeremias 29.13)
- Dizer que se busca a Deus, mas quer satisfazer apenas aos seus desejos, e não daquele a quem se busca; busca-lo as vezes, em períodos espaçados, enquanto diariamente se entrega ao seu prazer escuso; busca-lo, mas não desejar servi-lo, nem satisfazer a sua vontade; busca-lo superficialmente, sem que o coração exploda de desejo de encontra-lo; busca-lo, e trocá-lo por um prato de lentilhas como o fez Esaú, é enganar-se na busca.
Se todo o coração não estiver à procura do Deus vivo e verdadeiro, não busca, nem existe sentido em busca-lo.
Porém, se todo o seu coração estiver no encalço dele, saiba que o que prometeu, cumprirá. E, ao invés de encontra-lo, é ele quem o achará.