Jorge F. Isah
Este é o
terceiro livro de Cormac que leio.
Em
relação a "Onde os velhos não têm vez" e "A Estrada", noto
grandes diferenças. Se a primeira história tinha todos os elementos presentes
em "Meridiano", aquele se parecia mais com um enredo, digamos, comum
(sabendo que nenhuma narrativa de Cormac pode ser considerada comum, no sentido
mais... comum do termo), e a "Estrada" é mais otimista, ainda
que em um cenário apocalíptico, caótico e maligno, como gosta de ambientar os
seus livros.
Em todos,
contudo, temos a linguagem crua e nua, sucinta, seca, mesmo na multidão de
palavras; frases inteiras sem pausa, vírgulas, escritas sem descanso;
descrições de eventos e pessoas que compõem a escória da humanidade; e os que a
ela não pertencem, assistem passivas, a se configurarem nos mais escabrosos e
cruéis espectadores da desordem e destruição. Não raramente são estes as
"vítimas", em um cenário onde o bem é a utopia mais visivelmente
negligenciada.
Cormac,
no entanto, se utiliza da poesia para "atenuar", e as vezes reforçar,
elementos em sua narrativa. Algo que pensei, e não sei se era a sua real
intenção, é demonstrar que, mesmo na aridez da imagem (as paisagens rústicas e
primitivas), ou o caráter bestial dos personagens, pode-se apreender algo de
belo, natural, simplório, mas nunca inocente. Uma pureza primitiva, selvagem,
mas jamais inofensiva.
Não há
psicologismos, nem se faz conhecer os personagens pelo que pensam, por suas
elucubrações, mas pelos seus atos, ações, pois elas falam por si e por eles.
Não se sabe de remorsos, arrependimentos, temores, dúvidas ou aflições, mas
apenas aquilo que fazem, como agem, normalmente de maneira indiferente, brutal,
impiedosa, quase mecânica. O fatalismo parece ser a máxima das ações, onde
ninguém pode se esquivar de ser o que é, de fazer o que tem de ser feito ou foi
destinado a fazer.
Não
existe espaço para a bondade ou companheirismo. Apenas a sobrevivência a
qualquer custo e o poder acima de tudo, em um ajuntamento de homens sem
escrúpulos, moral, não obstante, traindo-se e abandonando-se mutuamente. É como
uma matilha de lobos sem alimento, onde um devora o outro; e o último morrerá
de fome e à míngua. Mortes, assassinatos pelos motivos mais banais: um olhar
atravessado ou uma zombaria, faz com que o sangue não seja o final, mas o meio
de subsistência dos vencedores.
O enredo se
passa em meados do século XIX. O cenário: o velho-oeste americano, mais
especificamente na fronteira com o México, para aonde os EUA se expandiam.
Após
concluir a leitura, posso garantir que este é um dos mais, senão o mais
violento, que li. As atrocidades cometidas pela “criatura” de Mary Shelley, nem
de longe ameaçam o pódio de Meridiano, como um livro sanguinário entre os mais
bárbaros. Portanto, não poderia ser escolhido um título melhor: Blood
Meridian, um meridiano banhado em cor vermelha escarlate.
O
protagonista "Kid", um jovem sem destino, se vê acoplado ao bando de
mercenários que foi dizimado pelos índios. Kid sobrevive e se junta ao bando de
outro mercenário "Glanton", que também caça escalpos. Eles vendem seus
serviços para dizimar grupos e povoados: brancos, negros, mestiços ou índios.
Importa-lhes o dinheiro, nada mais, além do estigma aterrador que o nome, e a
presença, desperta no ouvinte ou assistência.
A visão
pessimista de Cormac, ateu, se apropria das tragédias e do mal para mostrar um
mundo sem esperança, onde o bem é apenas ficção (não a sua ficção), e a maldade
a própria essência humana. Não existe frescor, descanso, paz, apenas guerra,
dor, morte e muitas batalhas a serem travadas. Não é o banho de sangue pelo
sangue, mas a crítica por detrás do sangue.
Por outro
lado, parece reafirmar um conceito esquecido pela maioria dos cristãos, o da
"depravação total do homem": de que todo o ser do homem foi
contaminado pela Queda, no Éden; manchando e corrompendo o homem bom, puro, e
induzindo-o ao mal hegemônico. O autor, ao não ver bondade inerente no
homem, hiperboliza a Queda, despreza o Imago Dei; e faz, em um
mundo “desgovernado”, o inferno que muitos acreditam existir somente aqui.
Não diria
que ele seja um niilista clássico, mas existe uma porção niilista em sua
narrativa. Não há uma "pregação" quanto à destruição das instituições
e valores tradicionais, como se fossem obstáculos à vida ou liberdade humana,
mas a própria ineficiência ou incapacidade delas coibirem verdadeiramente o
caos e a destruição. Em muitos aspectos, elas mesmas fomentam, num tipo de
transferir poderes para mercenários como Holden e Glanton (uma higienização
estatal, onde a carnificina é patrocinada mas nunca é tocada diretamente), o
mal que dizem combater.
Em tempo:
sobre Holden, um personagem cínico, culto/erudito, carismático mas temível;
capaz de esmagar um crânio com as mãos, mas também de dançar como um hábil
bailarino; temos o "grande" personagem central. Ainda que possamos
afirmar a centralidade da guerra como a protagonista (ao menos uma delas),
Holden transpõe as páginas como um Quixote às avessas, sem os ideais heroicos
deste, entretanto, de alguma maneira, vivendo uma vida de versos e canções clássicas,
na pluralidade das línguas originais, na dissertação de cânones e meditações
tracionais, como um alívio para a própria alma, e a afirmação da sua autoridade
(diga-se, superioridade) para com os demais do bando, fazendo-se herói de si
mesmo. Não raro, ainda que fosse o mais aterrorizante dentre os facínoras, era
descrito como louco ou diletante; uma personalidade fascinante, irresistível,
que trazia terror, admiração e, por que não, algo parecido à
veneração.
Um senão,
que ainda não detectei a causa, é que a narrativa, a despeito dos muitos
momentos de ação, pareceu arrastar-se um pouco e, em alguns momentos, chegou
mesmo a entendiar. Raros, diga-se de passagem, mas existentes, o que não
vivenciei em "Onde os velhos não têm vez" e “A Estrada”.
Mas
McCarthy é McCarthy! Que venham mais livros dele!
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Avaliação: (****)
Título: Meridiano de Sangue
Autor: Cormac McCarthy
Páginas: 352
Editora: Alfaguara
Sinopse: "Meridiano de sangue é um romance épico. Nele, McCarthy reinventa a mitologia do Oeste americano para criar uma obra ao mesmo tempo grandiosa e arrebatadora sobre uma terra sem lei, em que o absurdo e a alucinação se sobrepõem à realidade. Desde as primeiras páginas, o leitor acompanha um rapaz sem nome e sem família, abandonado à própria sorte num mundo brutal em que, para sobreviver, precisa ser tão ou mais violento que seus inimigos. Recrutado por uma companhia de mercenários a serviço de governantes locais, atravessa regiões desérticas entre o México e o Texas com a missão de matar o maior número possível de índios e trazer de volta seus escalpos. McCarthy parte de fatos reais - a caçada aos índios, o destacamento de assassinos liderado pelo sanguinário John Joel Glanton - para compor uma obra que transcende a mera ficção histórica. Conduzidos por Glanton e o juiz Holden - uma figura quase sobrenatural, e um dos grandes personagens da literatura americana no século XX -, esses homens, que julgam já terem visto todos os horrores possíveis, irão aos poucos se aprofundar no verdadeiro inferno."