Por Jorge Fernandes Isah
Dando continuidade ao tema do último post, e tratando de um assunto tão ou mais complexo do que aquele, ousarei falar sobre as vontades de Cristo. Primeiro, um esclarecimento:
Não tenho pretensão de ser a última palavra em nada. Reconheço minhas muitas limitações e incapacidades, mas se estou a tratar de alguns assuntos quase “tabus” entre os cristãos, com uma perspectiva diferente da adotado por Concílios, Sínodos e Confissões, deve-se ao fato de não concordar completamente com suas declarações, percebendo erros e distorções em relação ao texto bíblico. O que não quer dizer desprezá-las, nem quem as professa integralmente. Há, contudo, posições que me são inconciliáveis, originárias da má-conclusão das declarações ou decorrente da minha incapacidade de compreendê-las adequadamente.
De qualquer forma, tanto elas, quanto eu, somos feitos da mesma matéria: a imperfeição; portanto, não há infalibilidade em nenhum de nós. Por isso, exorto que o meu texto e outros materiais sejam lidos, mas, sobretudo, que a Escritura tenha preeminência sobre qualquer decisão que se vá tomar, sendo ela a última e definitiva palavra final. Oro para que Deus nos ilumine e capacite a compreender e buscar sempre a verdade.
Mais do que a simples polêmica, o meu objetivo é fazer com que meditemos sobre assuntos praticamente “mortos” entre nós, que têm sido negligenciados, e que abandoná-los significa comprometer o conhecimento de Deus. Além de serem assuntos que têm me instigado e me levado a estudá-los, os quais são fundamentais para a Igreja se manter firmemente fundada no Evangelho; sem outra pretensão a não ser expor o meu pensamento.
Então, vamos ao tema propriamente dito: a vontade de Cristo.
Não farei um apanhado histórico, por motivos óbvios. Mas definirei dois termos que serão importantes no decorrer da exposição, e que suscitou muitas disputas no passado, e ainda hoje é alvo de má-interpretação:
1) Monotelismo: doutrina que admite em Cristo duas naturezas, a humana e a divina, e uma única vontade.
2) Duotelismo: doutrina que defende a existência de duas naturezas e duas vontades naturais em Cristo.
Resumo de alguns conceitos cristológicos:
1) Cristo é plenamente Deus e plenamente homem, contudo, sem pecado.
2) Cristo, portanto, tem duas naturezas: a divina e a humana, bem como duas vontades perfeitas e não-contrárias, sem que Ele seja duas pessoas, mas uma unipersonalidade.
3) As duas vontades de Cristo não se conflitam, coexistindo harmoniosamente; em que a vontade humana está sempre sujeita ou subordinada à vontade divina.
4) Cristo é o sujeito pessoal único e indivisível, cujas ações humanas e divinas são atribuídas a apenas um agente, que é o Deus-homem.
O dilema é: como duas vontades distintas podem subsistir em uma mesma pessoa? Não parecem necessárias duas pessoas para se ter duas naturezas e duas vontades? Acontece que há um princípio governante supremo entre as duas vontades: Deus.
“Afinal de contas, como também crêem os da ortodoxia histórica, o controle da personalidade do Redentor é dependente de sua natureza divina, portanto, com vontade divina. A vontade humana de Cristo sempre esteve submissa à vontade divina”[1].
Como alguns querem entender, não vemos nenhuma alusão de que a natureza humana de Cristo seja independente da divina, como se fosse algo além ou um acréscimo ao Logos; ao ponto em que é impossível distinguir-se nas ações do Senhor quem operou o quê, se a parte humana ou a parte divina, tendo-se em vista que Ele é Um, unio personalis.
Ao se fazer qualquer distinção e, por isso, a impossibilidade de Deus deixar de ser Deus e ainda continuar a sê-lo [o esvaziamento a que muitos se referem], estar-se-á invariavelmente comprometendo a sua unipersonalidade. Desta forma, o communicatio idiomatum ou comunicação de propriedades, na qual ambas as naturezas, divina e humana, passaram a ser propriedades da pessoa de Cristo, e a ela são atribuídas, remetem-me ao Logos. Em outros termos, o que estou a dizer é que ambas as naturezas do Redentor procedem do Logos, o Verbo, de tal forma que a natureza humana procede de uma única hypostasis [existência pessoal]: o Verbo eterno! Afinal, o Logos é o sujeito da encarnação.
Há uma única personalidade, a do Deus-Filho, o que não quer dizer que a humanidade de Cristo seja impessoal ou anipostática, a qual afirma que a natureza humana do Filho não constitui pessoa. A personalidade do Filho, ou seja, a sua natureza, suas propriedades essenciais, sempre existiram, são eternas, a despeito da encarnação. De tal forma que, “se o Filho não tivesse se encarnado, seria uma pessoa da mesma maneira... A natureza humana de Jesus Cristo existe somente em união com o Logos e pela união com ele, não tendo existência própria à parte dele. Essa natureza humana não tem subsistência independente”[2].
Uma outra forma de dizer o mesmo é que “a natureza humana de Cristo não ficou sem hipóstase, mas se tornou hipostática [personalizada] na Pessoa do Logos”[3].
Se voltarmos à minha afirmação na postagem anterior, veremos que disse o seguinte:
A questão é que, rudimentarmente, afirmei uma posição que se pode chamar de “união enipostática” [ainda que ela não esteja completa e corretamente definida no que escrevi], ou seja, Cristo sempre foi a eterna segunda pessoa da Trindade, o Verbo, o Filho de Deus, “com uma natureza humana e sua própria natureza divina, e é a “pessoa” das duas naturezas”[4]. Em outra palavras, Cristo é o Logos que se fez homem, carne, e a ele pertencem tanto a natureza divina como a natureza humana, e de quem a Escritura trata em sua inteireza, totalidade, não compartimentado.
"Apenas para não deixar a pergunta sem resposta, a qual poderei esmiuçar em
outra postagem, acredito [sem me aprofundar no assunto], que o Cristo-homem é
eterno, ainda que assumisse a natureza corpórea no tempo, pela encarnação, mas
desde sempre foi o Verbo, Deus e homem, como os apóstolos dizem:
outra postagem, acredito [sem me aprofundar no assunto], que o Cristo-homem é
eterno, ainda que assumisse a natureza corpórea no tempo, pela encarnação, mas
desde sempre foi o Verbo, Deus e homem, como os apóstolos dizem:
"O segundo homem, o Senhor é do céu" [1Co 15.47]
"Como também diz, noutro lugar: Tu és sacerdote eternamente, segundo a ordem
de Melquisedeque" [Hb 5.6]
de Melquisedeque" [Hb 5.6]
"O qual, na verdade, em outro tempo foi conhecido, ainda antes da fundação do mundo, mas manifestado nestes últimos tempos por amor de vós" [1Pe 1.20]
"No princípio era o Verbo, e o verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus" [Jo 1.1]"
Mas o que isso tem a ver com hypostasis e anipostasis?
A questão é que, rudimentarmente, afirmei uma posição que se pode chamar de “união enipostática” [ainda que ela não esteja completa e corretamente definida no que escrevi], ou seja, Cristo sempre foi a eterna segunda pessoa da Trindade, o Verbo, o Filho de Deus, “com uma natureza humana e sua própria natureza divina, e é a “pessoa” das duas naturezas”[4]. Em outra palavras, Cristo é o Logos que se fez homem, carne, e a ele pertencem tanto a natureza divina como a natureza humana, e de quem a Escritura trata em sua inteireza, totalidade, não compartimentado.
Do ponto de vista lógico, pergunto: Cristo é santo? Cristo é perfeito? Cristo é puro? Cristo é justo? Cristo é sábio? Cristo é impecável? Se afirmamos que estes e outros atributos divinos estão presentes em Cristo, teremos de aceitar também a sua eternidade e imutabilidade. Não dá para dissociar Cristo Deus do Cristo homem, pois as duas naturezas é que o tornam o Cristo, o Filho de Deus.
Senão, de qual forma entenderemos a sentença: “Jesus Cristo é o mesmo, ontem, e hoje, e eternamente” [Hb 13.8]? Vejam bem a relação desta afirmação de Paulo[5] com os versos de Apocalipse: “Graça e paz seja convosco da parte daquele que é, e que era, e que há de vir, e da dos sete espíritos que estão diante do seu trono... Eu sou o Alfa, e o Ômega, o princípio e o fim, diz o Senhor, que é, e que era, e que há de vir, o Todo-Poderoso... E eu, quando o vi, caí a seus pés como morto; e ele pôs sobre mim a sua destra, dizendo-me: Não temas; Eu sou o primeiro e o último” [v. 4, 8, 17].
Como já disse outras vezes, é impossível se adicionar alguma coisa ao Perfeito, seja muito ou pouco; é-se impossível adicionar ou aumentar algo à Pessoa, sem que a Pessoa deixe de sê-lo, portanto, afirmar que Cristo é, sempre, mas, de alguma forma, passou a ter, após a encarnação, algo acrescido à sua essência, parece-me insensato e irracional. Falar de Deus, o Verbo, Cristo e Jesus, separadamente, como se estivesse a distinguir uma porção ou parte divina e uma porção ou parte humana, é indicativo de que se está a falar de duas pessoas, não de uma, a qual é o Senhor Jesus Cristo, a segunda Pessoa da Trindade.
Paulo diz que fomos eleitos em Cristo com todas as sortes de bênçãos espirituais antes da fundação do mundo e predestinados para filhos da adoção nEle [Ef 1.4-5]. Se cremos no eterno decreto, como é possível Deus nos eleger eternamente através de algo temporal? E se a natureza humana de Cristo está na carne, e se ela é limitadora da sua natureza divina, ao ponto de se crer possível Deus esvaziar-se de Si mesmo, como explicar a imutabilidade, onisciência, onipotência de Deus? Pode Cristo deixar de ser Deus em algum aspecto e momento? Pode Cristo deixar de ser humano em algum aspecto e momento? Se pode, não estamos falando do ser imutável e perfeito, mas de um ser mutável e imperfeito.
Por isso, dissociar Cristo de Cristo, seja em qual condição ou por qualquer justificativa, não me parece bíblico, nem lógico.
Seguindo este padrão, entramos na questão da vontade do Senhor. Como definido nos termos iniciais, desde os primórdios da Igreja debatia-se se Cristo tinha uma ou duas naturezas, se era uma ou duas pessoas, se possuía uma ou duas vontades. A questão é: seria possível Cristo ter uma vontade, mesmo que seja um simples desejo, uma expectativa ou probabilidade, contrária à vontade de Deus? É concebível Cristo, como Deus e homem, ter duas vontades conflitantes, antagônicas, discrepantes? Até que ponto Ele pode querer algo que se choque com o divino?
O Senhor disse: “Porque eu desci do céu, não para fazer a minha vontade, mas a vontade daquele que me enviou” [Jo 6.38]. Neste versículo é possível conceber dois ensinos:
1) O de que Cristo, Deus e homem, tem apenas uma vontade, que é a vontade da Pessoa, Cristo, resultando em um ato como conseqüência de uma decisão tomada [monotelismo]. Assim, há uma vontade, a de Cristo, que é a mesma daquele que o enviou, o Pai. Cristo tem uma vontade, que o levou a decidir fazer a vontade do Pai.
2) O de que Cristo, Deus e homem, tem duas vontades, as quais não são conflitantes mas consoantes, ambas colaborando harmonicamente, como duas energias em operação, por causa da suas duas naturezas, resultando na ação da Pessoa, Cristo, sem que a natureza humana seja um mero instrumento da vontade divina, sendo parte essencial da pessoa completa de Cristo [duotelismo]. Assim, há duas vontades que têm o mesmo propósito e se comunicam, levando Cristo a decidir fazer a vontade daquele que o enviou, o Pai.
Do ponto de vista soteriológico, a natureza humana de Cristo tem de ter uma vontade, não independente, não autônoma da sua natureza divina, mas concorrendo juntamente com ela para que Ele decida-se e aja unanimemente de acordo com elas, pois, de outra maneira, não haveria possibilidade dEle ser verdadeiramente humano, não podendo ser o Salvador.
Como Deus controla todas as coisas, inclusive as vontades, pensamentos, desejos e ações humanas, por mais que se possa intelectualmente dividir as vontades de Cristo em duas, elas serão sempre uma: aquela decretada por Deus. Por onde se raciocine, especule ou filosofe, no fim das contas, o que vale mesmo é aquilo que foi decretado na eternidade. Por isso, as vontades, mesmo de Cristo, não podem estar sujeitas a variações, não podem ser mutáveis, nem díspares, nem se indisporem. E a sua vontade humana estará sujeita e condicionada àquilo que a natureza divina estabeleceu para sempre, porque "Deus é o que opera em vós tanto o querer como o efetuar, segundo a sua boa vontade" [Fp 2.13].
Do ponto de vista ontológico, o ser de Cristo tem duas vontades, contudo a vontade humana não pode, em nenhum aspecto, anular ou reformular a vontade divina, alterando-a; e se são duas vontades com um único propósito perfeito e santo, onde todos os seus elementos são idênticos e concorrem para o mesmo objetivo, não há porque falar em dupla vontade, mas numa única vontade, coesa, indissolúvel, inseparável. De tal forma que Paulo chegou à seguinte conclusão: de que Deus opera em nós o que “perante ele é agradável por Cristo Jesus, ao qual seja glória para todo o sempre. Amém.” [Hb 13.21]. Ou seja, a vontade de Cristo é a vontade Deus, de tal forma que ele a quer operada em nós, “porque dele e por ele, e para ele, são todas as coisas; glória, pois a ele eternamente. Amém.” [Rm 11.36].
De outra forma, não teria o Senhor dupla personalidade? Não seria Ele ambíguo, esquizofrênico, indistinguível e não-real? De maneira nenhuma; pois nele habita corporalmente toda a plenitude da divindade [Cl 2.9], logo, a perfeição.
Porque Cristo é um. E sua vontade, única; irretocável.
Notas: [1] “A União das Naturezas do Redentor”, Heber Carlos Campos, Ed. Cultura Cristã, pg. 47.
[2] Idem. Pg. 55
[3] História da Teologia Cristã, Roger Olson, Ed. Vida, pg. 250
[4] Idem, pg 251
[5] Já disse anteriormente que não considero Hebreus um livro anônimo, mas, conforme a tradição histórica da Igreja, parte dos escritos do apóstolo Paulo; e, porque a minha Bíblia, ACF, da Sociedade Bíblica Trinitariana, considera-o como de sua autoria.