13 julho 2010

A vontade de Cristo














Por Jorge Fernandes Isah

Dando continuidade ao tema do último post, e tratando de um assunto tão ou mais complexo do que aquele, ousarei falar sobre as vontades de Cristo. Primeiro, um esclarecimento:

Não tenho pretensão de ser a última palavra em nada. Reconheço minhas muitas limitações e incapacidades, mas se estou a tratar de alguns assuntos quase “tabus” entre os cristãos, com uma perspectiva diferente da adotado por Concílios, Sínodos e Confissões, deve-se ao fato de não concordar completamente com suas declarações, percebendo erros e distorções em relação ao texto bíblico. O que não quer dizer desprezá-las, nem quem as professa integralmente. Há, contudo, posições que me são inconciliáveis, originárias da má-conclusão das declarações ou decorrente da minha incapacidade de compreendê-las adequadamente.

De qualquer forma, tanto elas, quanto eu, somos feitos da mesma matéria: a imperfeição; portanto, não há infalibilidade em nenhum de nós. Por isso, exorto que o meu texto e outros materiais sejam lidos, mas, sobretudo, que a Escritura tenha preeminência sobre qualquer decisão que se vá tomar, sendo ela a última e definitiva palavra final. Oro para que Deus nos ilumine e capacite a compreender e buscar sempre a verdade.

Mais do que a simples polêmica, o meu objetivo é fazer com que meditemos sobre assuntos praticamente “mortos” entre nós, que têm sido negligenciados, e que abandoná-los significa comprometer o conhecimento de Deus. Além de serem assuntos que têm me instigado e me levado a estudá-los, os quais são fundamentais para a Igreja se manter firmemente fundada no Evangelho; sem outra pretensão a não ser expor o meu pensamento.

Então, vamos ao tema propriamente dito: a vontade de Cristo.

Não farei um apanhado histórico, por motivos óbvios. Mas definirei dois termos que serão importantes no decorrer da exposição, e que suscitou muitas disputas no passado, e ainda hoje é alvo de má-interpretação:
1) Monotelismo: doutrina que admite em Cristo duas naturezas, a humana e a divina, e uma única vontade. 
2) Duotelismo: doutrina que defende a existência de duas naturezas e duas vontades naturais em Cristo.

Resumo de alguns conceitos cristológicos:
1) Cristo é plenamente Deus e plenamente homem, contudo, sem pecado.
2) Cristo, portanto, tem duas naturezas: a divina e a humana, bem como duas vontades perfeitas e não-contrárias, sem que Ele seja duas pessoas, mas uma unipersonalidade.
3) As duas vontades de Cristo não se conflitam, coexistindo harmoniosamente; em que a vontade humana está sempre sujeita ou subordinada à vontade divina.
4) Cristo é o sujeito pessoal único e indivisível, cujas ações humanas e divinas são atribuídas a apenas um agente, que é o Deus-homem.

O dilema é: como duas vontades distintas podem subsistir em uma mesma pessoa? Não parecem necessárias duas pessoas para se ter duas naturezas e duas vontades? Acontece que há um princípio governante supremo entre as duas vontades: Deus.

“Afinal de contas, como também crêem os da ortodoxia histórica, o controle da personalidade do Redentor é dependente de sua natureza divina, portanto, com vontade divina. A vontade humana de Cristo sempre esteve submissa à vontade divina”[1].

Como alguns querem entender, não vemos nenhuma alusão de que a natureza humana de Cristo seja independente da divina, como se fosse algo além ou um acréscimo ao Logos; ao ponto em que é impossível distinguir-se nas ações do Senhor quem operou o quê, se a parte humana ou a parte divina, tendo-se em vista que Ele é Um, unio personalis.

Ao se fazer qualquer distinção e, por isso, a impossibilidade de Deus deixar de ser Deus e ainda continuar a sê-lo [o esvaziamento a que muitos se referem], estar-se-á invariavelmente comprometendo a sua unipersonalidade. Desta forma, o communicatio idiomatum ou comunicação de propriedades, na qual ambas as naturezas, divina e humana, passaram a ser propriedades da pessoa de Cristo, e a ela são atribuídas, remetem-me ao Logos. Em outros termos, o que estou a dizer é que ambas as naturezas do Redentor procedem do Logos, o Verbo, de tal forma que a natureza humana procede de uma única hypostasis [existência pessoal]: o Verbo eterno! Afinal, o Logos é o sujeito da encarnação.

Há uma única personalidade, a do Deus-Filho, o que não quer dizer que a humanidade de Cristo seja impessoal ou anipostática, a qual afirma que a natureza humana do Filho não constitui pessoa. A personalidade do Filho, ou seja, a sua natureza, suas propriedades essenciais, sempre existiram, são eternas, a despeito da encarnação. De tal forma que, “se o Filho não tivesse se encarnado, seria uma pessoa da mesma maneira... A natureza humana de Jesus Cristo existe somente em união com o Logos e pela união com ele, não tendo existência própria à parte dele. Essa natureza humana não tem subsistência independente”[2].

Uma outra forma de dizer o mesmo é que “a natureza humana de Cristo não ficou sem hipóstase, mas se tornou hipostática [personalizada] na Pessoa do Logos”[3].

Se voltarmos à minha afirmação na postagem anterior, veremos que disse o seguinte: 

"Apenas para não deixar a pergunta sem resposta, a qual poderei esmiuçar em 
outra postagem, acredito [sem me aprofundar no assunto], que o Cristo-homem é 
eterno, ainda que assumisse a natureza corpórea no tempo, pela encarnação, mas 
desde sempre foi o Verbo, Deus e homem, como os apóstolos dizem:
"O segundo homem, o Senhor é do céu" [1Co 15.47]
"Como também diz, noutro lugar: Tu és sacerdote eternamente, segundo a ordem 
de Melquisedeque" [Hb 5.6]
"O qual, na verdade, em outro tempo foi conhecido, ainda antes da fundação do mundo, mas manifestado nestes últimos tempos por amor de vós" [1Pe 1.20]
"No princípio era o Verbo, e o verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus" [Jo 1.1]"


Mas o que isso tem a ver com hypostasis e anipostasis?

A questão é que, rudimentarmente, afirmei uma posição que se pode chamar de “união enipostática” [ainda que ela não esteja completa e corretamente definida no que escrevi], ou seja, Cristo sempre foi a eterna segunda pessoa da Trindade, o Verbo, o Filho de Deus, “com uma natureza humana e sua própria natureza divina, e é a “pessoa” das duas naturezas”[4]. Em outra palavras, Cristo é o Logos que se fez homem, carne, e a ele pertencem tanto a natureza divina como a natureza humana, e de quem a Escritura trata em sua inteireza, totalidade, não compartimentado. 

Do ponto de vista lógico, pergunto: Cristo é santo? Cristo é perfeito? Cristo é puro? Cristo é justo? Cristo é sábio? Cristo é impecável? Se afirmamos que estes e outros atributos divinos estão presentes em Cristo, teremos de aceitar também a sua eternidade e imutabilidade. Não dá para dissociar Cristo Deus do Cristo homem, pois as duas naturezas é que o tornam o Cristo, o Filho de Deus. 

Senão, de qual forma entenderemos a sentença: “Jesus Cristo é o mesmo, ontem, e hoje, e eternamente” [Hb 13.8]? Vejam bem a relação desta afirmação de Paulo[5] com os versos de Apocalipse: “Graça e paz seja convosco da parte daquele que é, e que era, e que há de vir, e da dos sete espíritos que estão diante do seu trono... Eu sou o Alfa, e o Ômega, o princípio e o fim, diz o Senhor, que é, e que era, e que há de vir, o Todo-Poderoso... E eu, quando o vi, caí a seus pés como morto; e ele pôs sobre mim a sua destra, dizendo-me: Não temas; Eu sou o primeiro e o último” [v. 4, 8, 17].

Como já disse outras vezes, é impossível se adicionar alguma coisa ao Perfeito, seja muito ou pouco; é-se impossível adicionar ou aumentar algo à Pessoa, sem que a Pessoa deixe de sê-lo, portanto, afirmar que Cristo é, sempre, mas, de alguma forma, passou a ter, após a encarnação, algo acrescido à sua essência, parece-me insensato e irracional. Falar de Deus, o Verbo, Cristo e Jesus, separadamente, como se estivesse a distinguir uma porção ou parte divina e uma porção ou parte humana, é indicativo de que se está a falar de duas pessoas, não de uma, a qual é o Senhor Jesus Cristo, a segunda Pessoa da Trindade.

Paulo diz que fomos eleitos em Cristo com todas as sortes de bênçãos espirituais antes da fundação do mundo e predestinados para filhos da adoção nEle [Ef 1.4-5]. Se cremos no eterno decreto, como é possível Deus nos eleger eternamente através de algo temporal? E se a natureza humana de Cristo está na carne, e se ela é limitadora da sua natureza divina, ao ponto de se crer possível Deus esvaziar-se de Si mesmo, como explicar a imutabilidade, onisciência, onipotência de Deus? Pode Cristo deixar de ser Deus em algum aspecto e momento? Pode Cristo deixar de ser humano em algum aspecto e momento? Se pode, não estamos falando do ser imutável e perfeito, mas de um ser mutável e imperfeito.

Por isso, dissociar Cristo de Cristo, seja em qual condição ou por qualquer justificativa, não me parece bíblico, nem lógico.

Seguindo este padrão, entramos na questão da vontade do Senhor. Como definido nos termos iniciais, desde os primórdios da Igreja debatia-se se Cristo tinha uma ou duas naturezas, se era uma ou duas pessoas, se possuía uma ou duas vontades. A questão é: seria possível Cristo ter uma vontade, mesmo que seja um simples desejo, uma expectativa ou probabilidade, contrária à vontade de Deus? É concebível Cristo, como Deus e homem, ter duas vontades conflitantes, antagônicas, discrepantes? Até que ponto Ele pode querer algo que se choque com o divino?

O Senhor disse: “Porque eu desci do céu, não para fazer a minha vontade, mas a vontade daquele que me enviou” [Jo 6.38]. Neste versículo é possível conceber dois ensinos:

1) O de que Cristo, Deus e homem, tem apenas uma vontade, que é a vontade da Pessoa, Cristo, resultando em um ato como conseqüência de uma decisão tomada [monotelismo]. Assim, há uma vontade, a de Cristo, que é a mesma daquele que o enviou, o Pai. Cristo tem uma vontade, que o levou a decidir fazer a vontade do Pai.

2) O de que Cristo, Deus e homem, tem duas vontades, as quais não são conflitantes mas consoantes, ambas colaborando harmonicamente, como duas energias em operação, por causa da suas duas naturezas, resultando na ação da Pessoa, Cristo, sem que a natureza humana seja um mero instrumento da vontade divina, sendo parte essencial da pessoa completa de Cristo [duotelismo]. Assim, há duas vontades que têm o mesmo propósito e se comunicam, levando Cristo a decidir fazer a vontade daquele que o enviou, o Pai.

Do ponto de vista soteriológico, a natureza humana de Cristo tem de ter uma vontade, não independente, não autônoma da sua natureza divina, mas concorrendo juntamente com ela para que Ele decida-se e aja unanimemente de acordo com elas, pois, de outra maneira, não haveria possibilidade dEle ser verdadeiramente humano, não podendo ser o Salvador.

Como Deus controla todas as coisas, inclusive as vontades, pensamentos, desejos e ações humanas, por mais que se possa intelectualmente dividir as vontades de Cristo em duas, elas serão sempre uma: aquela decretada por Deus. Por onde se raciocine, especule ou filosofe, no fim das contas, o que vale mesmo é aquilo que foi decretado na eternidade. Por isso, as vontades, mesmo de Cristo, não podem estar sujeitas a variações, não podem ser mutáveis, nem díspares, nem se indisporem. E a sua vontade humana estará sujeita e condicionada àquilo que a natureza divina estabeleceu para sempre, porque "Deus é o que opera em vós tanto o querer como o efetuar, segundo a sua boa vontade" [Fp 2.13]. 

Do ponto de vista ontológico, o ser de Cristo tem duas vontades, contudo a vontade humana não pode, em nenhum aspecto, anular ou reformular a vontade divina, alterando-a; e se são duas vontades com um único propósito perfeito e santo, onde todos os seus elementos são idênticos e concorrem para o mesmo objetivo, não há porque falar em dupla vontade, mas numa única vontade, coesa, indissolúvel, inseparável. De tal forma que Paulo chegou à seguinte conclusão: de que Deus opera em nós o que “perante ele é agradável por Cristo Jesus, ao qual seja glória para todo o sempre. Amém.” [Hb 13.21].  Ou seja, a vontade de Cristo é a vontade Deus, de tal forma que ele a quer operada em nós, “porque dele e por ele, e para ele, são todas as coisas; glória, pois a ele eternamente. Amém.” [Rm 11.36].

De outra forma, não teria o Senhor dupla personalidade? Não seria Ele ambíguo, esquizofrênico, indistinguível e não-real? De maneira nenhuma; pois nele habita corporalmente toda a plenitude da divindade [Cl 2.9], logo, a perfeição.

Porque Cristo é um. E sua vontade, única; irretocável.

Notas: [1] “A União das Naturezas do Redentor”, Heber Carlos Campos, Ed. Cultura Cristã, pg. 47.
[2] Idem. Pg. 55
[3] História da Teologia Cristã, Roger Olson, Ed. Vida, pg. 250
[4]  Idem, pg 251
[5] Já disse anteriormente que não considero Hebreus um livro anônimo, mas, conforme a tradição histórica da Igreja, parte dos escritos do apóstolo Paulo; e, porque a minha Bíblia, ACF, da Sociedade Bíblica Trinitariana, considera-o como de sua autoria.

28 junho 2010

Jesus teve as orações respondidas?













Por Jorge Fernandes Isah



Responda!

... silêncio...

Vou dar mais um tempo para você pensar...

... Refletiu?... Então, diga?... Sim ou não?...

Primeiro, gostaria de dizer que Cristo é a segunda Pessoa da Trindade Santa, portanto, é Deus. São tantos os versículos que apontam a Sua divindade, que é desnecessário indicá-los. Qualquer conhecedor mínimo da Escritura não terá problemas em aceitá-la como verdadeira, pois Ele mesmo diz: “Quem crê em mim, crê, não em mim, mas naquele que me enviou. E quem me vê a mim, vê aquele que me enviou” [Jo 12.44-45].

Segundo, Cristo é 100% Deus e 100% homem. Igualmente há muitos versículos que confirmam esta assertiva. Também creio que o conhecedor mínimo da Bíblia não terá problemas em aceitá-la como verdadeira. E sempre tenho em mente que a humanidade serve à divindade, e, por isso, acredito que a humanidade de Cristo está a serviço da sua divindade, não o contrário. Ou seja, sempre que houver alguma dúvida, apelarei para a divindade do Senhor; exatamente por ela preceder e ser a origem da Sua humanidade.  Como está escrito: “E disse Deus: Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança” [Gn 1.26]. Em outras palavras, o Cristo-homem existe pela vontade e poder de Deus, sendo Ele o Adão perfeito, o espírito vivificante, o segundo homem, o Senhor, que é do céu, diferente do primeiro Adão, a alma vivente, terrena [1Co 15.45-47]. O que me leva a meditar sobre a eternidade do Cristo-homem. Seria Ele eternamente homem assim como é eternamente Deus?

Apenas para não deixar a pergunta sem resposta, a qual poderei esmiuçar em outra postagem, acredito [sem me aprofundar no assunto], que o Cristo-homem é eterno, ainda que assumisse a natureza corpórea no tempo, pela encarnação, mas desde sempre foi o Verbo, Deus e homem, como os apóstolos dizem:
“O segundo homem, o Senhor, é do céu” [1Co 15.47];
"Como também diz, noutro lugar: Tu és sacerdote eternamente, segundo a ordem de Melquisedeque" [Hb 5.6];
"O qual, na verdade, em outro tempo foi conhecido, ainda antes da fundação do mundo, mas manifestado nestes últimos tempos por amor de vós" [1Pe 1.20];
“No princípio era o Verbo, e o verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus” [Jo 1.1].


Porque Cristo é, sempre!


Esta afirmação pode parecer contraditória em relação ao parágrafo anterior;  acontece que o Cristo-homem veio a ser pleno na encarnação, quando assumiu a forma humana, visto Deus ser Espírito [Jo 4.24]. Porém, como essência, Cristo sempre foi Deus e homem, pois, caso contrário, haveria um dilema: se a natureza humana foi criada [como essência], Cristo não seria imutável, não seria eterno, logo, não seria Deus. E essa possibilidade é inimaginável e inadmissível à luz da Escritura.

Terceiro, Cristo orou várias vezes ao Pai. Também está na Escritura. Sem entrar nos motivos pelos quais Ele orava: se para nos ensinar; conseqüência da comunhão que havia entre Pai e Filho; se para demonstrar humildade, e revelar a obra de Servo Sofredor que viera realizar; esse não é o objetivo do texto.  Mas evidenciar que Cristo orava constantemente ao Pai, como fato inegável.

Quarto, como Deus, Ele sabia tudo o que iria acontecer. Portanto, não há possibilidade, nem a factibilidade, de se afirmar que Cristo pediu ao Pai o que não estivesse dentro do plano eterno; como algo realizável a se realizar, como algo exeqüível a se cumprir. Por qual motivo pediria o irreal e o não-existível?

O problema está em se acreditar que Cristo pediria e não seria atendido. Então, sabendo que não teria a sua solicitação considerada, por que oraria? Visto ser um com Pai [Jo 17.21], e estar em plena comunhão com Ele, tinha a resposta, antes de pedir. Como Criador do mundo, sem o qual “nada do que foi feito se fez” [Jo 1.3], e como sustentador “de todas as coisas pela palavra do seu poder” [Hb 1.3], parece-me improvável Cristo dirigir-se ao Pai pedindo o impossível[1].

Feitos os esclarecimentos iniciais, transcreverei os versículos que supostamente apontam a não concretização, parcial ou total, da oração do Senhor[2]:

1) "E dizia Jesus: Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem” [Lc 23.34].
Cristo pediu pelo perdão dos que o crucificaram, mas seria apenas daqueles que efetivamente levaram-no à cruz, naquele tempo? Pilatos, os fariseus, os soldados romanos, os judeus? Ou estaria a pedir pelos eleitos? Na verdade a igreja foi quem o crucificou; por nós, Ele morreu [At 20.28; Ef. 5.25;1Ts 5.10, Ap 1.5], não por todos os homens, muito menos os que já estavam condenados antes da fundação do mundo.

Alguém poderá inquiri: “Mas essa realidade já não estava definida? Jesus não sabia que pela Sua morte todos os eleitos estariam perdoados? Por que então clamou ao Pai o perdão?”.

Na cruz, mesmo diante de todo o sofrimento e injustiça cometidas contra Ele, o Seu coração estava tão cheio de amor e misericórdia para com os Seus, os eleitos, que Ele deixou-os evidenciados. Não como um simples exemplo de obediência, humildade, amor, compaixão, mas por ser obediente, humilde, amoroso e misericordioso em verdade. Falou do que o Seu coração estava cheio; falou do que sentia; mesmo sendo eu, você, e os remidos em todos os tempos, culpados pela Sua crucificação. Ele demonstrou o amor com que nos amou, não somente expiando-nos, mas também clamando pelo nosso perdão.

Outra implicação quanto ao sentido da oração do Senhor é dada pelo verso: “Eu rogo por eles; não rogo pelo mundo, mas por aqueles que me deste, porque são teus... E não rogo somente por estes, mas também por aqueles que pela tua palavra hão de crer em mim” [Jo 17.9,20]. Cristo jamais oraria genericamente por todos, indistintamente. Não oraria pelos eternamente condenados, nem por aqueles que não seriam perdoados. Como diz Isaías: “Mas ele levou sobre si o pecado de muitos, e intercedeu pelos transgressores” [Is 53.12]. O sentido de todo o Evangelho é Cristo orando pelos eleitos, o Seu povo, aquele por quem morreu e também ressuscitou.


2) "Pai, se queres, passa de mim este cálice; todavia não se faça a minha vontade, mas a tua" [Lc 22.42]. 
Se Cristo pediu ao Pai para afastá-lo do cálice, e não ser crucificado, estaria em contradição, pois, disse: “Agora a minha alma está perturbada; e que direi eu? Pai, salva-me desta hora; mas para isto vim a esta hora” [Jo 12.27]. Pertencendo-lhe a vida, e sabendo que a daria, e para isso veio ao mundo, por que pediria ao Pai para não dá-la? “Por isso o Pai me ama, porque dou a minha vida para tornar a tomá-la. Ninguém ma tira de mim, mas eu de mim mesmo a dou; tenho poder para a dar, e poder para tornar a tomá-la”  [Jo 10.17-18]. Cristo a deu, e poderia muito bem não a dar se quisesse, nem precisaria orar para não dá-la, mas desde sempre quis dá-la, assim como o Pai também quis que o Filho a desse, por amor de nós [Jo 12.30].

Como homem, Cristo inquietou-se, angustiou-se, afligiu-se diante da proximidade da morte, mas isso não quer dizer que Ele tenha, em algum momento, desejado não cumprir a obra que por sua vontade estava prestes a executar. Novamente, entra aqui um dos atributos divinos, a imutabilidade; e Cristo, sendo Deus, tinha a Sua vontade inalterável, perene, eterna. É uma definição complexa, porém, se levarmos em consideração que as duas naturezas de Cristo não se contrapunham, de que não havia oposição entre elas, mas uma coordenação tal que “cada forma de Cristo, como Deus e ser humano, desempenha as suas atividades próprias em comunhão com a outra”[3], jamais poderemos afirmar a mutabilidade do Senhor, e de que, assim, Ele não desejou realizar aquilo a que veio fazer. Não há como aceitá-la nem mesmo como uma mera hipótese, impossível de ser cogitada pelo Filho.

3) “Não peço que os tires do mundo, mas que os livres do mal” [Jo 17.15].
A questão aqui é definir o que seja “mal”. A palavra pode implicar em muitas coisas, desde o pecado cometido pelos eleitos; ao sofrer-se o mal, seja pelos pecados de outros, seja pela influência maligna; até mesmo a alusão direta ao diabo. A ARA apresenta a seguinte tradução: “Não rogo que os tires do mundo, mas que os guardes do Maligno”. Os versículos anteriores e posteriores dizem que o Senhor está a falar que o “mal” é o “sistema” que odeia e odiará cada vez mais tudo o que se refere a Deus, inclusive aos eleitos; porque Ele nos deu a palavra do Pai, “e o mundo os odiou, porque não são do mundo assim como eu não sou do mundo... não são do mundo, assim como eu do mundo não sou” [v. 14,16]

A alegação é de que Cristo orou para que fossemos livres do mal, mas os crentes não o foram, visto passarem por perseguições, sofrimentos, tribulações, dores, morte, etc. Sendo assim, a oração do Senhor não teve “eficácia” junto ao Pai, que não nos livrou do mal. Dizer que a palavra significaria “livrar-nos da condenação”, é apenas a tentativa de se mudar o foco da questão, pois Cristo sabe perfeitamente que o eleito “não entrará em condenação, mas passou da morte para a vida” [Jo 5.24], “e dou-lhes a vida eterna, e nunca hão de perecer, e ninguém as arrebatará da minha mão” [Jo 10.28]. Portanto, jamais será condenado. 


Mas será esse sentido impróprio?


Em várias passagens, Cristo orou por algo que sabidamente aconteceria, inapelável. Por exemplo, ora para que sejamos um com o Pai [Jo 17.21]; para o Pai guardar aqueles que deste a Ele [Jo 17.11]; para que fossemos enviados ao mundo, assim como o Pai o enviou ao mundo [Jo 17.18]; para sermos santificados na verdade, sendo a palavra do Pai a verdade [Jo 17.17], etc.

O verso que talvez clarifique o significado de “mal” aqui é: “Estando eu com eles no mundo, guardava-os em teu nome. Tenho guardado aqueles que tu me deste, e nenhum deles se perdeu, senão o filho da perdição, para que a Escritura se cumprisse” [Jo 17.12]. Evidencia-se o sentido de “preservação dos santos”, do Senhor nos resguardando da condenação, ao ponto em que nenhum dos que o Pai lhe deu se perderia. Cristo cumpriu e cumprirá a Sua missão de guardar e cuidar dos Seus, mesmo nos momentos em que a Igreja passe por aflição, dor, sofrimento. Estaremos sempre mantidos por Ele, para Ele, como está escrito: “Quem nos separará do amor de Cristo? A tribulação, ou a angústia, ou a perseguição, ou a fome, ou a nudez, ou o perigo, ou a espada?” [Rm 8.35].

Alguém poderá dizer: “Mas o significado de mal em Jo 17.15 não é esse. O termo refere-se ao Maligno, o diabo, visto a palavra grega usada ser ‘ho poneros’, a mesma utilizada em Mt 13.19”.

Tenha o “mal” o sentido de mau, maligno, dano, malfeitor, Satanás, etc, o certo é que Cristo nos preservará de sucumbir ao mal, de sermos destruídos por ele, enganados, feitos discípulos do mal, pois a nossa salvação foi planejada e executada de tal forma que somos preservados para ela, porque mediante a fé estamos guardados na virtude de Deus para a salvação, já prestes para se revelar no último tempo [1Pe 1.5]. Fomos reservados para o glorioso dia de Cristo, cuja missão foi a de nos salvar, mas também a de nos guardar completa e finalmente da condenação.

Portanto, a conclusão é: todas as orações de Cristo foram atendidas, confirmadas na palavra do próprio Senhor: "Pai, graças te dou, por me haveres ouvido. Eu bem sei que sempre me ouves, mas eu disse isto por causa da multidão que está em redor, para que creiam que tu me enviaste" [Jo 11.41-42]. Aqui o significado de ouvir não é apenas escutar, mas de ser atendido, ter a oração respondida, positivamente. Cristo estava à porta do sepulcro de Lázaro, o qual ressuscitaria como cumprimento da oração de Jesus. E tendo dito isto, clamou com grande voz: Lázaro sai para fora” [Jo 11.43].

E o defunto saiu.

Notas: [1] O fato do Senhor ser o Deus do impossível, e para Ele tudo ser possível, não quer dizer a realização daquilo que não estiver decretado eternamente. Isso implicaria na não-imutabilidade divina, na não-perfeição, na não-santidade, sugerindo que Deus é passível de engano, visto ser necessário corrigir seus planos e adequá-los aos acontecimentos no decorrer da história. E esse, como sempre digo, não é Deus, mas um "deusinho chulé", feito à imagem e semelhança do homem imperfeito e volúvel.

[2] Desenvolvi o texto a partir da preciosa pergunta do irmão Natan de Oliveira, no post anterior: “Como você explica a oração de Jesus ‘Senhor perdoa-os porque não sabem o que fazem...’?”. E por nunca ter considerado a questão, decidi refleti-la aqui detalhadamente, mesmo eu e o Natan termos iniciado o debate na seção comentários, já citada.
[3] Teologia Sistemática, de Franklin Ferreira e Alan Myatt, Editora Vida Nova, página 489, citando Mark Noll.

16 junho 2010

Ele nos deu respostas

 



















Por Jorge Fernandes Isah

Deus é imutável. Ponto. Deus é eterno. Ponto. Deus é soberano. Ponto. Ainda que alguém não saiba adequadamente a correlação entre esses atributos e suas implicações diretas, os cristãos, em geral, não resistirão em sustentá-las como verdadeiras. Porque a Bíblia expõe-nas e instrui-nos sobre cada um desses pontos. É claro que estou a falar de cristãos não-liberais, não-heterodoxos, não-humanistas, não-marxistas e bíblicos. Chega a ser surreal este esclarecimento, mas é que se pode encontrar cristãos que sequer crêem em Cristo. O que em si mesmo  é contraditório e absurdo. Mas deixemo-los de lado com suas inconsistências e desatinos.

A questão é: afirmei, em vários escritos, a imutabilidade divina, bem como a do Seu decreto eterno, ao ponto de escrever o texto "Deus não tem escolhas". Mas, e nós, temos escolhas? E, a partir da resposta, podemos dizer se a realidade é ou não mutável?

Primeiro, transcreverei alguns versos do livro de Atos dos Apóstolos:

“A este que vos foi entregue pelo determinado conselho e presciência de Deus, prendestes, crucificastes e matastes pelas mãos de injustos” [2.23]

“Mas vós negastes o Santo e o Justo, e pedistes que se vos desse um homem homicida. E matastes o Príncipe da vida, ao qual Deus ressuscitou dentre os mortos, do que nós somos testemunhas” [3.14-15]

Porque verdadeiramente contra o teu Santo Filho Jesus, que tu ungiste, se ajuntaram, não só Herodes, mas Pôncio Pilatos, com os gentios e os povos de Israel; para fazerem tudo o que a tua mão e o teu conselho tinham anteriormente determinado que se havia de fazer” [4.27-28]

São declarações contundentes de Pedro, a delinear nitidamente duas coisas quanto ao tema proposto: 

1) Deus determinou tudo o que aconteceria ao Seu Filho Amado na eternidade, desde a encarnação até a morte na cruz, culminando com a Sua ressurreição.  

2) Pedro acusou o povo de ajuntarem-se com as autoridades para prender, crucificar e matar o Santo e o Justo.

3) Esta idéia foi anteriormente proclamada por Cristo, referindo-se ao Seu ministério terreno e àquele que o trairia, Judas: "E, na verdade, o Filho do homem vai segundo o que está determinado; mas ai daquele homem por quem é traído!" [Lc 22.22]

Há duas realidades, se assim podemos dizer. Uma eterna, outra temporal. Uma divina, outra humana. Contudo, estariam elas dissociadas? Seriam conflitantes? Ou se dariam autonomamente uma da outra? Os versos claramente indicam que não. E mais, que as ações humanas estão completamente subordinadas à vontade de Deus, de tal forma que, assim como Ele previamente decretou, assim acontecerá infalível e inexoravelmente. Como Jó anunciou: "Bem sei eu que tudo podes, e que nenhum dos teus propósitos pode ser impedido" [Jó 42.2].

O ponto aqui é que Deus coordena os pensamentos, a vontade, as decisões e ações do homem de maneira que toda a realidade, tudo o que parece ocasional, fortuito, sem ligações implícitas e visíveis, estão interligadas, tecidas por um único fio condutor: o próprio Deus. Ele é a fonte de todas as coisas, sem o qual nada existiria, ainda que o nada precisasse dEle para existir. Até mesmo o nada não pode prescindir de Deus. Assim como tudo, o nada não é autônomo, nem se origina em si mesmo. Deus é portanto a origem de todas as coisas, sejam materiais ou espirituais. Elas são partes da Sua obra, uma obra em execução no tempo, aos olhos carnais, mas totalmente definida, acabada, inalterável, aos olhos divinos, como disse Tiago: “Conhecidas são a Deus, desde o princípio do mundo, todas as suas obras” [At 15.18].

Tem-se de entender que não dá para sair do rigor do texto bíblico, o qual é muito claro em asseverar tanto a imutabilidade da vontade divina, como o poder para realizá-la.

Quando se diz que o homem é colaborador de Deus, estamos, ainda que inconscientemente, dando-lhe um valor e uma prerrogativa que não tem, nem existem. Toda a criação é meramente instrumento de Deus, e não pode colaborar em nada para que o Seu  plano aconteça, quanto mais frustrá-lo de qualquer forma. A linguagem antropomórfica presente na Escritura é uma forma rudimentar de expor idéias e sentimentos perfeitos a criaturas em estado imperfeito. Ele se utilizou de símbolos e sinais inteligíveis para nos instruir e orientar no entendimento dos Seus propósitos, e na relação que temos com eles. Guardadas as devidas proporções, seria o mesmo que um adulto conversar com um bebê; ele terá de usar mais do contato físico e visual para se fazer entender de maneira pueril à inteligibilidade ainda não desenvolvida e infantil da criança.

Porém, isso não quer dizer que devemos ignorar ou desprezar o que de mais profundo revela a Escritura, simplesmente porque não nos parece legítimo investigá-la, seja por medo ou preguiça. Para isso Deus nos deu o Consolador, o Espírito Santo, a nos ensinar todas as coisas [Jo 14.26]. Quando Cristo diz “todas as coisas”, não está dizendo algumas, uma porção, ou quase tudo. Ele é incisivo em ressaltar tudo. Mas o que seria tudo? Ele mesmo diz: tudo quanto vos tenho dito” [Jo 14.26]. Ocorre que muitos crentes estão satisfeitos com uma parte da revelação, quando a ordem do Senhor é para que aprendamos tudo; não temendo conhecer tudo; não nos acovardando diante de tudo. Até mesmo essas coisas, seja a indolência ou o entorpecimento, estão sob o restrito controle de Deus, para que entendamos que tudo, absolutamente tudo, está fundado, edificado, sobre a Sua vontade.

Alguém afirmou, certa vez, “que tudo muda, menos Deus”. Até que ponto isso é verdade? Se Deus não muda, não mudam Sua vontade, plano e execução. Para que isso acontecesse, Deus teria de ser mutável. E como já disse em algum lugar, se Deus é mutável, ainda que remotamente cogitado, não seria Deus. Logo, a realidade para Deus não é mutável. Nem todas as contingências presentes nela. Para Ele, tudo está pronto. Então, voltamos à pergunta inicial: temos escolhas?

Na verdade, do ponto de vista humano, sim. Sempre estamos a escolher algo. No dia-a-dia é demonstrável desde as coisas mais corriqueiras às mais importantes, e isso acontece na vida de qualquer um. Muitas vezes somos levados a decidir mesmo para outras pessoas. Até os animais fazem escolhas, segundo sua natureza. Mas o que estou a dizer é que nossas escolhas acontecerão segundo a imutabilidade das coisas. Em outras palavras, Deus estabeleceu todos os nossos atos, os quais são imutáveis. Na perspectiva humana é como se tivéssemos escolhas, mas elas invariavelmente serão decididas segundo o plano divino. Somos livres para fazer a vontade de Deus em todos os aspectos, assim como nossas escolhas desembocarão sempre no que Ele quer; sem acidentes, imprevistos e percalços, como diz o Senhor: "Eu sou Deus, e não há outro Deus, não há outro semelhante a mim. Que anuncio o fim desde o princípio, e desde a antiguidade as coisas que ainda não sucederam; que digo: O meu conselho será firme, e farei toda a minha vontade" [Is 46.9-10].

Da mesma forma, a segunda pergunta, “a realidade é ou não mutável?”, será respondida. Para Deus há apenas uma realidade, a que planejou e levou a cabo executar. Uma única realidade efetivada no tempo. Para nós, é mutável, pois não somos oniscientes como Deus é, e vemos tudo fragmentado, limitado, e imperfeitamente. Como a nossa vontade não é soberana, compreendemos o mundo como instável, em constante variação. Por não compreendermos a realidade, ela nos é incompreensível. Por não apreendê-la, nos é inconcebível. Por não dominá-la, nos é incontrolável. Por não conhecê-la, nos é indistinguível. O que não quer dizer a impossibilidade de se tomar alguns indícios e averiguá-los. Mas estarão sempre confinados aos limites da nossa imperfeição; reduzidos e subordinados ao que Deus restringiu-nos saber e perceber.  

Este assunto está na órbita da soberania de Deus, como tudo o mais também está; revelando a impossibilidade escriturística da soberania divina ser compartilhada com o homem, em qualquer nível ou condição. Se tal fosse verdade, o homem seria capaz de criar para si mesmo várias realidades, e essa liberdade implicaria em que cada um de nós poderia ter a sua realidade pessoal, alheia e aparte de outras realidades. Se a vontade do homem fosse livre de Deus, e o que o compatibilismo proclama é isso, teríamos numa cidade de 50.000 habitantes, 50.000 realidades em progressão. O que representaria o caos; até mesmo para Deus, o qual estaria incapacitado de ordená-las,  visto serem autônomas, autoexecutáveis, autodeterminadas. Deus não teria como fazer nada, apenas observaria impotente a desordem e a anarquia na Criação. Deixar-se-ia amarrado pela volição do homem; o que, em última instância, tornaria a criatura em posição de preeminência sobre o Criador, que teria planejado um mundo ineficiente, indesejado,  anômalo, denotando, em algum aspecto, a sua própria imperfeição. Em outras palavras, não haveria a realidade de Deus, apenas a de suas criaturas guiando-o por trilhas miseráveis, imperfeitas e caóticas. Nem mesmo Deus daria conta de arrumar tamanha bagunça, exatamente por ela estar fora do Seu controle. É mais ou menos o que os defensores do livre-arbítrio propõem; porque livre-arbítrio significa autonomismo, independência, tomar decisões livres de Deus. Da mesma forma, o compatibilismo, sem aceitar o autonomismo, proclama duas realidades distintas, onde a liberdade humana [uma liberdade onde não se é livre, mas é] está subjugada a Deus, mas permanece livre. É como se existisse a partir da não-existência. É como se fosse, não sendo. É o próprio "samba-do-crioulo-doido", a afirmar que ela é, quando não é. Esquizofrenia latente, pode-se dizer.

A falta de lógica dos dois sistemas, livre-arbítrio e compatibilismo[1], tornam-os em inimigos quando são irmãos siameses a se socarem. Por isso há uma grande dificuldade em se entender o conceito um do outro, pois as divergências, no fim das contas, ficam no campo semântico, da retórica. Os termos bíblicos são utilizados por ambos, diversamente, para, enfim, resultar em quase a mesma coisa: o poder da criatura. Mas isso é impossível quando entendemos que a menor escolha, o menor gesto, a ação mais insignificante do homem, não estando subordinada a Deus, poderia dar início a uma cadeia de fatos e situações não planejadas, e que fugiriam ao Seu controle. Contrariando o próprio Senhor: "Ainda antes que houvesse dia, eu sou; e ninguém há que possa fazer escapar das minhas mãos; agindo eu, quem o impedirá?" [Is 43.13]. 

Portanto, ainda que aparentando o contrário, existe apenas uma realidade: a divina; à qual estamos presos, e da qual não podemos nos desvencilhar; mesmo que aos olhos carnais pareça ser eu o condutor do meu destino; mesmo que o mundo grite à volta:  há muitas realidades! Elas são frações, fragmentos do todo complexo e inimaginável que Deus teceu, e que, no fim das contas, é a Realidade, única e imutável de todo o universo.

Por isso a Bíblia[2] nos revela o Deus não-mutável, não-suscetível, não-impotente, não-domesticado; ela não nos revela um deus em progressão, se desenvolvendo, relacionando-se de igual para igual com as criaturas; sentindo, aprendendo, se emocionando, como se participasse de uma simbiose onde os papeis se confundiriam, fazendo-se indistinguíveis. Esse deus ficaria demente com a nossa demência. Ele se desacreditaria, e regrediria da sua própria condição de deus, humanizando-se ao ponto de não se reconhecer mais como deus, como criador, mas chegando ao nível das criaturas, assim como os humanistas querem, e insistem em querer, para alcançarem o que sempre pretenderam: proclamar o ceticismo e a não-existência de Deus.

E se isso não é o mais alto grau de loucura, nada mais é. 

Mas, sobretudo, para os crentes, é antibíblico! E conspira contra a "fé que uma vez foi dada aos santos" [Jd 3], limitando-nos em nossa limitação, e iludindo-nos em nossa ilusão, de que Deus não nos deu respostas convenientes. 

Notas: 1-O compatibilismo, como um sistema híbrido, ao não se decidir pela completa soberania divina, nem pelo livre-arbítrio do homem, acaba por se tornar facilmente refutável em si mesmo. Por ser um sistema contraditório, não apresenta respostas claras, nem mesmo pode-se defender dos ataques sem ser imediatamente contra-atacado. Qualquer pessoa é capaz de confrontá-lo em seus pressupostos, talvez, por isso, a saída seja o "mistério". Quando não se tem respostas, nada melhor do que apelar para  o não-explicável, para o obscurantismo. Por isso os cristãos são acusados pelos não-cristãos de fazerem "grandes sacrifícios intelectuais", e até mesmo de "abandonar a razão". Com conceitos inconsistentes como o livre-arbítrio e o compatibilismo, sou forçado a concordar com os ataques dos inimigos. Infelizmente.  

2-A Bíblia, entendida como a revelação integral de Deus e suficiente para que tenhamos todas as respostas, jamais será conflitante, paradoxal, obscurantista. Jamais ela apelará ao "mistério" ou a não-resposta, quando está a responder. Como disse em outro texto: "Não há silêncio na Escritura".

10 junho 2010

Kálamos no Audível.com









Para quem já leu, ou para quem ainda não leu, sugiro a audição do texto "deus da lâmpada e o aladim mimado", na interpretação soberba do pr. Rupert Teixeira, no site Audível.com.

Aproveito para deixar os meus sinceros agradecimentos ao pr. Rupert, pelo convite, por escolher o texto, e interpretá-lo de uma maneira tal que, nem em sonho, eu poderia imaginá-lo melhor. Especialmente pela honra de estar entre irmãos comprometidos com a proclamação do Evangelho e o Reino de Cristo, como Clóvis Gonçalves, do blog Cinco Solas, o pr. Hernandes Dias Lopes, do site Palavra da Verdade, o pr. Josemar Bessa, do blog homônimo, e outros que ainda virão. Nem vou falar de MacArthur, Spurgeon, Pink, Edwards, Booth...

Em Cristo.

Jorge Fernandes Isah


Clique na imagem abaixo, e ouça o meu texto no Audível.


03 junho 2010

Um pouco de teonomia & justiça social











Por Jorge Fernandes Isah

Há algum tempo que não assisto noticiários de tv, nem ouço rádios ou leio jornais. Parecerá que estou alienando-me, vivendo à margem do meu tempo, e precindindo de informações que me tornariam capacitado a participar de qualquer "papo" na fila do banco ou na sala de espera do consultório dentário. Não posso deixar de assumir que boa parte da minha aversão aos noticiários se deve ao cansaço com as "caras" dos apresentadores, seja o casal Bonner, a Padrão ou o Casoy; com o mesmo tom de voz dos radialistas, ou com as manchetes repetitivas dos periódicos. As notícias parecem saídas do túnel do tempo, revelando o mofo e a poeira, como se estivessem prontinhas, apenas aguardando para serem anunciadas. 

Mas seria leviano se este fosse o único motivo. Não é. No fundo, as notícias têm me deixado triste, com uma tristeza que me leva as vezes à melancolia, outras, à ira. A fonte é uma só: a injustiça, o abandono da verdade e da moral bíblicas. E o que vemos são inversões de valores, com a desculpa de se favorecer e privilegiar o homem, quando o homem está sendo consumido e destruído por si mesmo. A origem é capitaneada pela falsa premissa de que ele tudo pode, tudo merece, tudo lhe pertence; e, para isso, a verdade e o absoluto têm de se moldarem ao novo padrão exigido: o patamar quase supremo do hedonismo humanista, onde a idéia máxima de prazer inflinge-lhe novas feridas, sem nenhuma chance de cura. Todos os caminhos subsistem por ele, mas ele não se sustenta em nenhum deles, chegando invariavelmente onde jamais pensou em estar: o assombroso abismo.

O homem acredita-se senhor do seu nariz sem sequer conhecer anatomia; mas o empenho impetrado em rejeitar Cristo, o submete à maior de todas as loucuras: a desesperança que nenhum delírio pode solapar. Cristo, quando muito, torna-se um exemplo a mais, entre tantos, do que o homem pode ser ao se esforçar. Mas não é preciso dedicar-se, pois qualquer homem é melhor do que a moral cristã, ao ponto em que a indiferença da moral o levará fatalmente a imoralidade. É claro que estamos falando do ponto de vista intelectual; na prática, o que acontece é a imoralidade no trato com os outros, e a exigência moral no trato de outrem consigo mesmo; resultando sempre em um padrão de imoralidade, o que afinal de contas é a hipocrisia.

Acontece que sem Cristo, em qualquer época e lugar, poderemos chamar esse momento de "Idade das Trevas", pois o homem estará à própria sorte, sem freios, entregue ao máximo de iniquidade e injustiça que se pode obter em termos... humanos.

O que temos visto no mundo? O padrão moral divino está sendo relativizado, abandonado, e posto sob o olhar humanista e, com isso, a justiça está moribunda, agonizante, em vias de morrer. Pois se a moral bíblica, a qual nos foi entregue pelo próprio Deus, deixar de ser o escopo para se fazer a justiça, o que teremos é a mais pura, maquiavélica e sórdida injustiça, nos moldes dos movimentos tirânicos e dos governos totalitários surgidos na história, emergidos das profundezas do inferno, e que fizeram valer a máxima de que o mal, quando acalentado pelo homem, não tem limites em sua capacidade destrutiva.

A nova ordem surge com a "onipresença" e "onipotência" do Estado, o novo guardião da (i)moralidade. Para isso, abolir-se-á o sentido de culpa e inocência, de moral e ética, de certo e errado, para serem todos condicionados ao ditames corrompidos e malignos que o Estado impõe à população. De tal forma que suas ações são claramente objetiváveis: trazer o caos, a insegurança, a desestabilização social, para suprimir qualquer idéia de moral bíblica, e assim forjar o seu próprio conceito de moral, sempre atrelado e alimentado pelo dogma da perenidade governamental. Por esse, e outros fatores, podemos considerar que já estamos na "Idade das Trevas", onde a justiça baseia-se unicamente naquilo que o Estado moderno considera justo [segundo as diretrizes ilegítimas do agir arbitrário]. De dentro dele surgem organismos que o alimentam e são nutridos por ele: partidos, fundações, ong's, movimentos cívis, etc, com o intuito de perpetuar-lhe o poder. E, com isso, o controle sobre cada indivíduo... ao menos a pretensão de tê-lo.

Por que há tantas leis, e leis que regulamentam as primeiras, e leis complementares que regulamentam as segundas, e tantos mecanismos jurídicos para regulamentar princípios nitidamente desorientados em seu não-cumprimento? O objetivo é um só: criar a idéia de ordem social desnecessária na desordem oportuna, onde o alicerce moral é destruido por força de um congestionamento legal pelo qual o arbítrio do Estado se faz indispensável. Seria o mesmo que produzir um engarrafamento de trânsito para que a ambulância [o Estado] passasse. Contudo, ela também está paralisada pela obstrução; e o que era anormal [o transtorno sistêmico] se torna normal [o transtorno inevitável]; facilitando a introdução do absurdo, da readequação ao absurdo, como suficiente para normatizar a insensatez, a irracionalidade e o disparate como o axioma a proteger o tolo. Suas diretrizes serão mexidas ou readaptadas conforme os interesses desgraçadamente malignos.

Assim, Deus deixa de ser o legislador para que o Estado ocupe o seu lugar e legisle para si mesmo, produzindo leis e mais leis que o sustentem e mantenham a sua vontade irretocada, ao invés dele se sujeitar não à vontade do povo [uma falácia conceitual] mas de Deus. Em nome do bem-estar comum, promovendo a justiça, como prerrogativa divina estabelecida na Lei Moral.

O Estado é um devorador contumaz e assaz e, para isso, é necessário controlar tudo, seja a educação, a família, a igreja, a ciência, etc; moldando o homem à imagem daquilo que o Estado quer [os planejadores e ideológos por trás da "máquina"], produzindo injustiça, injustiça, sempre mais injustiça.

O que era considerado imoral passará a ser moral a partir de uma lei ou decreto, e o que era moral se tornará imoral a partir da mesma lei ou decreto, de uma "canetada" burocrática.

O exemplo mais claro são as leis que discriminalizam o aborto, a pederastia, a pedofilia [já existem projetos mundo afora que tencionam acabar com este crime; e até um partido político já existe na Holanda para defender os "direitos" de pedófilos legitimarem suas perversões], e se chegar ao ponto em que roubar ou matar não serão considerados crimes, bastando a "boa vontade" do Estado em promulgá-las.

Por isso a convicção de que se deve combater os valores cristãos, principalmente nas igrejas, entre os crentes [que ingenua e ignorantemente têm o bem por mal e o mal por bem]; e ao serem relativizados ou acolhidos como morais, levar-nos-á a ser manipulados e controlados, não pela perfeição, santidade e sabedoria divinas presentes na Lei Moral, mas pela legislação do Estado usurpador, imoral e demoníaco.

A relativização da justiça acarretará, como já acontece, com a magistratura legislando, a legislatura magistrando, o executivo legislando, magistrando e intermediando a (in)justiça, sempre segundo a mente caída deste século, segundo o príncipe das trevas, ao qual o humanismo e suas várias vertentes [inclusive teológicas] estão a serviço.

Enquanto a Lei Moral não for reconhecida como o código máximo e perfeito para a implementação da justiça no mundo, estaremos colaborando e fomentando a injustiça e valores antibíblicos. Cabe aos crentes orar por um mundo melhor. Por governos melhores. Por leis em conformidade com o padrão divino. Cabe-nos proclamar o Evangelho de Cristo, suficiente para trazer paz tanto a eleitos como a ímpios. Mas, também, cabe-nos participar ativamente da vida social, política, econômica, sendo luz em meio à escuridão, a fim de que esses postos não sejam ocupados pelos agentes do mal, e, desta forma, como instrumentos de Deus, restringir-se a injustiça. 

Para que a justiça prevaleça.

Nota: 1- Ao invés de se buscar uma "justiça social" segundo o padrão revolucionário marxista, os cristãos deviam buscá-la na Escritura, através da Lei Moral. Deus deu-no-la, não o manifesto comunista de Marx, a teologia da libertação ou a missão integral.
2- Esta tentativa visa ordenar, ainda que sem o conhecimento necessário, alguns pensamentos que tenho sobre a validade e aplicabilidade da Lei Moral para os nossos dias. Há opositores que dirão ser impossível. Digo, porém, que impossível é qualquer tentativa de se aplicar a justiça à margem da Lei Moral. Ela é o padrão definitivo e perfeito da vontade absoluta de Deus para os homens; que pela queda ficaram impossibilitados de estabelecer e até mesmo compreender o conceito de justiça.
3- Ainda que possa parecer, este não é um texto reconstrucionista, no sentido de que eu acredite na livre-vontade do homem em se submeter à Lei Moral, para todos vivermos num mundo de completa paz. Apenas considero que o cristão deve levar à prática, através de providências concretas, o estabelecimento da Lei Moral como o padrão de justiça, e, assim, trazer paz aos que querem paz, e punição aos que se opõem a ela.
4- O fato de não ver, ler e ouvir noticiários diários não implica em indiferença intelectual. Prefiro selecionar minhas fontes, e de certa forma, diversificá-las. Qualquer um poderia saber o que acontece hoje, lendo o jornal de cinquenta, cem anos atrás. Pode ser um exagero, mas não tão distante da realidade.

25 maio 2010

Deus não tem escolhas















Por Jorge Fernandes Isah

Algo complexo e de difícil definição é o conceito de liberdade. Ela pode representar várias perspectivas, de vários pontos de vista diferentes, e serem completamente antagônicos entre si. Daremos uma olhada em como o Priberam define-a:

liberdade
(latim libertas, -atis)
s. f.1. Direito de proceder conforme nos pareça, contanto que esse direito não vá contra o direito de outrem.2. Condição do homem ou da nação que goza de liberdade.3. Conjunto das ideias liberais ou dos direitos garantidos ao cidadão.4. Fig. Ousadia.5. Franqueza.6. Licença.7. Desassombro.8. Demasiada familiaridade.

A definição parece restringir-se ao relacionamento entre homens, seja individual ou coletivamente, mas afeita exclusivamente a eles. É basicamente sociológica, menos filosófica, não-metafísica, pouco abrangente.

Uma definição mais ampla é encontrada no Michaelis:

liberdade
li.ber.da.de
sf (lat libertate) 1. Estado de pessoa livre e isenta de restrição externa ou coação física ou moral. 2. Poder de exercer livremente a sua vontade. 3. Condição de não ser sujeito, como indivíduo ou comunidade, a controle ou arbitrariedades políticas estrangeiras. 4. Condição do ser que não vive em cativeiro. 5. Condição de pessoa não sujeita a escravidão ou servidão. 6. Dir Isenção de todas as restrições, exceto as prescritas pelos direitos legais de outrem. 7. Independência, autonomia. 8 Ousadia. 9 Permissão. 10 Imunidade.

Aqui há uma gama de descrições que se aplicam diretamente ao homem, mas que têm também conotações filosóficas como a definir, por exemplo, o livre-arbítrio, o qual é, entre outras coisas, o “estado de pessoa livre e isenta de restrição externa ou coação física ou moral”; e, ainda que seja apenas uma proposição improvável, “exercer livremente a sua vontade”. Porém, o assunto deste texto não é discutir o famigerado livre-arbítrio e sua impossibilidade de garantir a liberdade da indiferença ou o indeterminismo, mas apenas demonstrar a dificuldade e o campo minado em que se entra quando a questão é demarcar e, especialmente, aplicar o conceito de liberdade.

Se definir liberdade é algo complexo, em se tratando da condição humana, o que se poderá dizer de Deus? Os cristãos bíblicos concordarão que Ele é livre; e a Criação resultou de Sua decisão livre, ao decretar que tudo criado, seja material e espiritual, viesse a existir a partir do nada. É o relato bíblico: “No princípio criou Deus o céu e a terra” [Gn 1.1]. Mas isso significa dizer que Deus teve escolhas? Que num leque de possibilidades escolheu uma delas? Ou até mesmo a hipótese de não escolher criar absolutamente nada era provável? Seria possível para Ele pensar em modelos ineficazes e falhos? Para, então, descartá-los? E ficar com o mais aceitável ou perfeito? Pode Deus cogitar algo imperfeito? E o que garante a escolha certa? Em quais bases, escolheu? Quais foram os critérios que o levaram à Criação? Era-lhe possível não criar? E qual a certeza de que o plano daria certo? E efetivamente escolhera o correto? Não parecem variáveis de um pensamento imperfeito, e não provindos de uma mente perfeita?

Talvez o grande problema aqui não sejam as respostas nem as perguntas, mas o fundamento através do qual elas são formuladas. Em linhas gerais, tentamos entender Deus a partir do padrão humano, como se fosse um de nós, e estivesse sujeito à mesma imperfeição que resultará na maioria das vezes em distorções, em inadequações da realidade. Se acredito que o Senhor é capaz de ter escolhas, no sentido de dar a Si mesmo opções do que escolher, havendo em princípio boas e más opções, ao descartar-se uma em detrimento de outra resultará na deficiência do conjunto daquela, como uma obra “menos perfeita”, não-ideal, enquanto esta demonstrará ser “mais perfeita”. Mesmo que todas as opções fossem “integralmente” perfeitas, o ato de escolha indicaria que, em algum aspecto, haveria imperfeição em um ou mais modelos. E se há imperfeição, pode provir de Deus? A mente absoluta, incomparável, única, e que reúne todas as qualidades concebíveis, um padrão irrepreensível, impecável e insuperável em sua própria essência, poderia imaginar o mais remoto e inverossímil plano? Pode-se imaginá-lo a arquitetar o inacreditável? Algo que contradiz a Sua natureza? O ser eterno, infinito, perfeito e santo cogitaria [como a mais improvável conjectura] o que não estivesse em conformidade com a Sua divindade?

Veja bem, estamos falando do decreto eterno, o qual é santo e perfeito, e não das contingências e particularidades dele. Não há como negar que, por exemplo, o mal seja mal, o pecado seja pecado, a Queda seja a Queda, a corrupção seja corrupção, o imoral seja imoral, mas eles são partes de um todo que não pode ser superado em seu aspecto determinado como a expressão da vontade santa, excelente, completa e irretocável de Deus. Como conseqüência e resultado de Sua mente absoluta.

O que estou a dizer é que escolhas pressupõem a superioridade de uma em relação à outra, ou a superioridade do nosso conhecimento ou perspectiva em relação a elas. Para que Deus escolhesse entre algumas ou muitas opções seria necessário não deterem o mesmo nível de perfeição. Em maior ou menor grau, haveria variáveis, e variáveis levarão inevitavelmente à mutabilidade. O próprio fato de Deus cogitar principiar duas ou mais coisas, ainda que no campo imaginário, apontaria para sua mutabilidade ao exercer o seu direito de escolha, e ao fazê-lo, não se terá a certeza do decreto acabado, mas sujeito às transformações durante o seu desenvolvimento no tempo.

Entendo que há muitos atributos divinos ligados à questão, e caso decida-se pelas “possibilidades de Deus”, estar-se-á comprometendo cada um deles, ao ponto em que, tanto a imutabilidade, a onisciência, a sabedoria, a perfeição, especialmente, estarão prejudicados.

Hipóteses existem para nós, seres corrompidos. Ainda que escolhamos aquela decretada por Deus. Essa forma de pensamento define muito bem a nossa imperfeição, conjecturamos o que Deus poderia fazer [do ponto de vista racional e lógico], mas Ele não teve escolhas, senão o eterno decreto poderia não ter sido a melhor delas, e nem seria eterno. O próprio fato das escolhas em si mesmas revelará uma mente insegura, instável, mutável, não-perfeita. Deus não se ateve a opções, nem as analisou, nem as estudou, nem as cogitou. Isso daria margem para a hipótese de haver algo que não pensasse, e que pudesse ser melhor do que o pensado. Quantas opções a sua mente infinita teria? Porém a infinitude da mente divina não implicaria na infinitude de proposições, em múltiplos planos, em possibilidades de contradição, de se cogitar algo que contrariaria a Sua própria natureza, de implicar na mínima chance de que Ele pudesse errar, ou seja, levá-lo a enganar-se.

Alguém pode dizer que a santidade e a perfeição o conduziriam a optar pelo melhor plano sempre, mas a própria idéia de um plano A, B, C ou D, resultará na inadequação de ao menos três deles. E tanto a santidade como a perfeição seriam postas de lado por não se enquadrarem ao padrão do Seu pensamento. Se levarmos esse conceito de hipóteses para Deus, ele representará que Deus é capaz de pensar imperfeitamente, e até mesmo de criar imperfeitamente, pois o cogitá-los, por si só, já preanunciaria um estado não-perfeito e não-santo. E, convenhamos, o que a Bíblia afirma é a exata e inquestionável perfeição e santidade divinas. Quanto a isso, não há sombra de dúvidas. O problema nunca está em Deus, mas em nós que não assumimos nossa porção de equívocos e distorções diante de Sua majestade e glória refletidas na revelação especial [e perceptíveis na Criação].

Deus, como o Ser, como o Absoluto, não teve escolhas. Ele pensou uma única vez, um único plano, perfeito, acabado, irretocável, infalível, imutável, assim como Ele é. Este plano já era antes da fundação do mundo, assim como Deus é. O que me leva a concluir que Ele é livre, mas não de uma espécie de sub-liberdade que o condicionaria a equívocos possíveis nas escolhas, ou mesmo a exigüidade delas.

Deus pensou o certo desde o princípio. Pensou o perfeito desde sempre. O imutável. Determinou todas as coisas uma única vez, sem a chance de errar. O que está diante dos nossos olhos e o que não está, o que ouvimos e não ouvimos, o que sentimos e não sentimos, o que existe e o não existe, simplesmente é e não pode deixar de ser. O que não é não veio a existência porque Deus não quis, mas porque não poderia vir [como algo insofismável]; já que não há nEle o cogitar, mas o inapelável, o determinado, o absoluto, não o indeterminado, o provável, o dedutível.

Por isso, Ele é Deus. O Criador. Porque Ele simplesmente é o “eu sou” [Ex 3.14, Jo 8.58].