24 março 2024

Estudo sobre a Confissão de Fé Batista de 1689 - Aula 36: "A idolatria unitarista"




 Jorge F. Isah
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Primeiro, duas retificações:

Na aula passada eu disse que os unitaristas são extremamente racionais, quando quis dizer que eles são extremamente racionalistas, no sentido de que precisam desconstruir a verdade para tentar reconstruí-la ao seu modo de pensar natural, onde não há espaço para o sobrenaturalmente revelado na Escritura. Racional é aquele que se utiliza da razão como faculdade que Deus nos deu para compreender a realidade e para conhecer... Uma das faculdades, eu não estou afirmando que a única capaz de conectar o homem à realidade e ao conhecimento. Já os racionalistas agem de forma diferente, para eles, a razão é suprema, absoluta e tudo somente pode ser explicado por ela. Nós, cristãos bíblicos, somos racionais e não racionalistas, como são os unitaristas.

Em um momento, mais exaltado, eu disse que tinha a vontade de proferir um “palavrão”, me referindo aos hereges. Na verdade, eu não pensei em um palavrão específico ou mesmo nesse sentido, de baixo calão, mas em um xingamento do tipo “raça de víboras”, “filhos do diabo”, “emissários de satanás”, “dissimulados”, e outros relacionados que os identificassem, revelando o que realmente são, enganadores, como filhos do diabo. Se por acaso escandalizei a algum irmão, perdoe-me, pois não foi a intenção.

Obviamente, muito mais sofisticada e sutil do que o texto do auto denominado "apóstolo", foi a forma com que Eusébio proferiu a sua heresia. Ao ler o seu escrito temos uma aparente ode de louvor a Deus, se não fosse um pequeno trecho em que ele joga tudo por terra, bem aos moldes da vaca que deu 100 litros de leite e coiceiou o latão derramando-o, sem que sobre uma única gota. Assim agem os mais astutos; não querem muitas vezes serem explícitos, e para camuflarem os seus intentos, dizem o que não querem dizer para transmitir o que desejam efetivamente. É o que se apreende das linhas cavilosas do falso bispo:

"E quem, a não ser o Pai, poderia conceber sem impureza a luz que é anterior ao mundo e a sabedoria inteligente e substancial que precedeu aos séculos, o Verbo vivente no Pai e que desde o princípio é Deus, o primeiro e único que Deus engendrou antes de toda a criação e de toda a produção de seres visíveis e invisíveis, o general do exército espiritual e imortal do céu, o anjo do grande conselho, o servidor do pensamento inefável do Pai, o fazedor de todas as coisas junto ao Pai, a causa segunda de tudo depois do Pai, o Filho de Deus, genuíno e único, o Senhor, o Deus e Rei de todos os seres, que recebeu do Pai a autoridade soberana e a força, junto com a divindade, o poder e a honra? Porque, em verdade, segundo o que dizem d’Ele os misteriosos ensinamentos das Escrituras: No princípio era o Verbo e o Verbo estava em Deus e o Verbo era Deus. Todas as coisas foram feitas por Ele, e sem Ele nada foi feito”.

Eusébio chamou Cristo de Verbo e Deus, tomando o cuidado de colocar tudo em maiúsculas, para em seguida afirmar que ele é um ser temporal e criado. O bispo não se furtou a nominá-lo assim como os cristãos acreditam e devem crer em todos os tempos, Cristo é Deus, o Verbo encarnado; porém, em meio as palavras belas e elogiosas inseriu deliberadamente a parte em que afirma ser ele “o primeiro e único que Deus engendrou antes de toda a criação”, negando exatamente o que dissera antes ou, no mínimo, afirmando a grande confusão que tinha a respeito do ser perfeito, santo, eterno, infinito e absoluto de Cristo. Pois ainda que ele e o seu mestre, Ário, cressem que Cristo detinha algum tipo de divindade, sempre procedendo do próprio Deus, ela não era da mesma estirpe, essência e natureza que a divina. A própria utilização do termo “engendrou”, de que Deus engendrou a Cristo, dá a idéia de criação, de que o Filho somente veio à existência [e vir à existência significa que em algum momento ele não existia] porque Deus quis. De forma que Cristo não participaria, portanto, dos mesmos atributos de Deus, e não poderia ser considerado como tal, já que em algum momento na eternidade ele não existia. E se não existia, não se pode considerá-lo nem mesmo como Deus, pois muitos dos atributos divinos estão atrelados e presos à eternidade, como o ser absoluto, infinito, autossuficiente, ilimitado... Somente o eterno pode ter em si esses atributos. Então a afirmação de Eusébio é ainda mais dissimulada e contendo a intenção de confundir, pois não é possível que um homem culto como ele desprezasse essas questões. Ao afirmar que Cristo é Deus e o Verbo encarnado, tentou suavizar a heresia que defendia e na qual cria, como se o entregar-se a uma bajulação diminuísse ou anulasse a sua culpa, não evidenciando, ou melhor, atenuando as suas reais intenções. E quais eram elas?

Utilizando-se de uma linguagem ortodoxa, de termos próprios da fé cristã, ele tentou mascarar, encobrir sua blasfêmia com floreios e uma falsa exaltação, nitidamente com o intento de espalhá-la, de semeá-la no seio da igreja. E o resultado disso seria confusão, a partir do momento em que muitos a admitiram como verdade defendendo-a, enquanto outros a rejeitaram prontamente. Paulo, à sua época, já nos alertava quanto a esse tipo de inimigo: “E rogo-vos, irmãos, que noteis os que promovem dissensões e escândalos contra a doutrina que aprendestes; desviai-vos deles. Porque os tais não servem a nosso Senhor Jesus Cristo, mas ao seu ventre; e com suaves palavras e lisonjas enganam os corações dos simples” [Rm 16.17-18]. Por corações dos simples, creio que o apóstolo está a falar dos ingênuos e fracos na fé, que podem ser pessoas incultas ou cultas, mas que se deixarão levar pelo discurso retórico, por palavras bonitas, espirituosas, até mesmo glamorosas, como objetivo de seduzi-las ao engano e à mentira. Não porque foram obrigadas a isso, mas porque os seus corações desejaram e queriam, em sua soberba e orgulho espirituais, se enganarem.

O que Eusébio e Ário queriam era conquistar a simpatia dos demais cristãos a partir da pregação de um falso evangelho; fazer prosélitos e ampliar seu poder e influência. Em linhas gerais, eles se portaram como usurpadores do trono de Deus, como aqueles, dentre muitos, que o desprezam e ao seu governo e senhorio. E com esse tipo de gente não há muito o que se dizer, a não ser, fora! Se não quiserem sair, saiamos nós.

Igualmente, ao dizer que o Senhor “recebeu do Pai a autoridade soberana e a força, junto com a divindade, o poder e a honra”, suas reais intenções ficam evidentes, de que Cristo nada mais é do que uma criatura dotada por Deus de habilidades e poderes que somente tem por conta do que Deus lhe deu. A divindade inseriu-se nesse contexto, como mais um dom, algo exterior que lhe é dado ou facultado, não como algo inerente à sua natureza, pois o que eles estão a tratar como “divindade” é uma sub-divindade, semelhante mas distinta, relativa e não absoluta, que faz de Cristo uma criatura especial, sem, contudo, jamais ser Deus.

Entendem como se processa a mente cavilosa?

Devemos estar atentos aos sinais que esses falsos profetas demonstram, seja no passado ou no presente. Eles estão em todos os lugares e épocas, e não podemos desprezá-los em sua capacidade de corromper e aliciar aos “corações simples”, pois ainda que não inocentes, pois não há inocentes neste mundo, devemos mostrar o grau e o nível de insulto que esses ímpios são capazes de realizar e, assim, pela graça de Deus, ser instrumentos para abrir os olhos de alguns e trazê-los novamente à realidade, à verdade máxima sem a qual o Cristianismo não seria nada além de uma religião agonizante e, provavelmente, extinta: Cristo é, assim como o Pai e o Espírito Santo, Deus! Bendito seja a Santíssima Trindade ou, ainda mais significativamente, a Santíssima Triunidade de Deus!

Não é preciso se buscar muito para encontrar o antídoto para as heresias. A santa e bendita palavra de Deus traz em si todos eles. E, novamente, Paulo o revela em Efésios 1.3-14:
"Bendito o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, que nos tem abençoado com toda sorte de bênção espiritual nas regiões celestiais em Cristo, assim como nos escolheu nele antes da fundação do mundo, para sermos santos e irrepreensíveis perante ele; e em amor nos predestinou para ele, para a adoção de filhos, por meio de Jesus Cristo, segundo o beneplácito de sua vontade, para louvor da glória de sua graça, que ele nos concedeu gratuitamente no Amado, no qual temos a redenção, pelo seu sangue, a remissão dos pecados, segundo a riqueza da sua graça, que Deus derramou abundantemente sobre nós em toda a sabedoria e prudência, desvendando-nos o mistério da sua vontade, segundo o seu beneplácito que propusera em Cristo, de fazer convergir nele, na dispensação da plenitude dos tempos, todas as coisas, tanto as do céu, como as da terra; nele, digo, no qual fomos também feitos herança, predestinados segundo o propósito daquele que faz todas as coisas conforme o conselho da sua vontade, a fim de sermos para louvor da sua glória, nós, os que de antemão esperamos em Cristo; em quem também vós, depois que ouvistes a palavra da verdade, o evangelho da vossa salvação, tendo nele também crido, fostes selados com o Santo Espírito da promessa; o qual é o penhor da nossa herança, ao resgate da sua propriedade, em louvor da sua glória."

Bem, o que temos neste trecho escrito pelo apóstolo? A unidade de Deus na salvação do homem, através da atuação das três pessoas da Triunidade, de forma que o Pai elegeu ou escolheu-nos em Cristo, o qual é o redentor do eleito, e coube ao Espírito Santo selá-lo para a vida eterna.

Algo que devemos entender é que essa relação da Triunidade não é fortuita, aleatória, acidental ou ocasional. Na verdade ela é essencial, real, em seu caráter absoluto, de forma que não somos nós que definimos a Triunidade de Deus na pessoa do Pai, do Filho e do Espírito Santo, como uma analogia do que é uma família humana para representar o que é divino. Não. É a unidade e diversidade de Deus que nos define como indivíduos mas também como corpo familiar. A imagem do Pai e do Filho, principalmente, não foi utilizada para tentar explicar a relação eterna que há entre eles, mas somos nós que refletimos aquilo que Deus é em seu caráter relacional. De forma que a relação entre eles é que é original, não a nossa. A relação divina está expressa na figura do Pai, pela sua paternidade, pela ligação íntima que tem com o Filho, este pela filiação ou relação correspondente que tem com o Pai, e o Espírito Santo pelo amor que une o Pai ao Filho. Nada disso é mera convenção ou ficção, mas o que a Bíblia nos revela e que pode ser demonstrado pelo texto de Efésios acima.

Entendo que, mais do que a declaração de doutrinas bíblicas, Paulo está a nos revelar nesses versos a relação que há entre as pessoas da Triunidade, as quais sendo distintas em suas atuações e personalidades é um único ser: Deus. Somente assim é possível entendê-lo e à sua revelação. Se a Triunidade não é uma doutrina bíblica, toda a revelação fica sem sentido; porque, como está claro e evidente, a salvação do homem é do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Se assim não for, como entender a obra que Deus realiza em nosso meio? Como explicar a revelação especial? Em que o Pai salva, o Filho salva e o Espírito Santo salva? Afinal, não temos três "etapas" de uma mesma salvação? Que elege, redime e sela? Pode-se ser salvo sem ser eleito? Ou redimido? Ou selado? A resposta é não. A fé no Pai, que nos elegeu, somente é possível se ele for Deus. A fé em Cristo, como Senhor e Salvador, somente é possível se ele for Deus. Igualmente, a fé no Espírito Santo, como o Consolador, aquele que habita em cada um dos eleitos, somente é possível se ele for Deus. Como se pode adorar um ser criado ainda que com super-poderes? Ou que é uma emanação ou força que, via de regra, não é o próprio Deus? Se sem fé é impossível agradá-lo, como posso agradá-lo crendo no que ele não é? Cristo, como criatura, pode receber a minha fé? Que no fim-das-contas é proveniente de Deus? O Espírito, como força, poderia também recebê-la? Se Deus é apenas um, o Pai, como dizem os unitarianos de várias correntes, apenas ele deve receber a nossa fé, a fim de agradá-lo. E boa parte da Escritura, tanto no AT como no NT, terá de ser rasgada e jogada fora. Praticamente tudo o que a Bíblia nos revela não teria sentido, pela ótica unitarista, caso o Filho e o Espírito Santo fossem partes subordinadas de Deus ou criadas por ele. Não falo apenas em seu caráter lógico, mas também prático e funcional, onde não há sentido, nem razão. Com isso, chego a pensar que os verdadeiros triteístas são os unitaristas que adoram, creem e têm fé em criaturas ou estados que, em suas essências, não são Deus. Em suas formulações simplistas e racionalistas acabam por atirar no próprio pé, tornando-se em idólatras. E, então, a acusação de que somos acusados torna-se em sentença para eles, colocando-os no posto de idólatras e infratores do primeiro mandamento, o que os condenará. Todo o reducionismo racionalista, aliada à rejeiçao da revelação especial, faz com que sejam aquilo que mais temem ser, e não se vêem como são.

Como disse na primeira parte desta introdução, é impossível que o Filho e o Espírito Santo tenham os mesmos atributos que o Pai, se não forem igualmente eternos e absolutos. De forma que, por exemplo, o Filho não poderia ser onipresente [Mt 18.20], e o Espírito Santo não poderia ser onisciente [1Co 2.10-11].

Leiamos alguns versículos e atentemos para o que eles nos revelam. Sem exceção, mostrar-nos-ão mais do que a prova de que todas as pessoas da Triunidade são idênticas em sua natureza e atributos, porém distintas em suas personalidades; revelarão a forma como se relacionam entre si, e que pode ser definido como o ser tri-pessoal em sua íntima ligação.

Textos: 1Co 12.4-6; 2Co 13.14; 1Pe.1.2; 1Jo 5.7; Jd 20-21, o que temos de comum em todos eles é a declaração de que existe uma coordenada relação entre as pessoas da Triunidade, sem que haja divisão, sem confusão entre si, mas em unidade de essência. Entender a doutrina da Triunidade por meio da mente caída e limitada do homem é algo realmente impossível. Ela somente pode ser compreendida e aceita como fundamento sobrenatural. O próprio Deus é quem se encarrega de nos revelar a verdade e nos capacitar a crer, confiar e proclamá-la, sem o qual o Cristianismo seria uma religião sem nexo e sentido algum, pois o centro é Cristo por quem exclusivamente o Pai é revelado.

Antes de terminar, quero deixar uma questão para reflexão: Se Deus é amor, quando ele amou? E a quem? A si mesmo? Ou somente após a criação esse atributo manifestou-se? Ou esse amor é eterno e retributivamente eterno na relação das três pessoas da Trindade? Ou teremos de aceitar que, em sua imutabilidade, um dos atributos divinos é temporal e apenas pode ser explicado através da Criação? Se Deus é amor, faz-se necessária uma fonte eterna ou melhor, um objeto eterno, para que ele se manifestasse, do contrário Deus não amou sempre, e esse amor é limitado por suas criaturas.
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Notas: 1 - Os textos bíblicos citados são explicados mais detalhadamente no áudio desta aula.
2 - Aula realizada na EBD do Tabérnaculo Batista Bíblico. 
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ÁUDIO DA AULA 36:

21 março 2024

Calígula e Política

 



Jorge F. Isah

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É verdade que este mundo tem coisas muito estranhas e, ultimamente, está ficando ainda mais bizarro com práticas inusitadas e, porque não dizer, doentias, psicóticas, a acometer um e outro, aqui e acolá. Pessoas se consideram árvores sem produzir um pingo de clorofila; outros gatos, sem darem um miado convincente ou escalarem o muro do vizinho com apenas um salto; “casamentos” entre humanos e animais, com direito a festa, certidão e lua-de-mel, contudo, um e outro podendo pegar (ou ser pego) por qualquer cachorra ou cão vadio das ruas; e até mesmo uniões estáveis com hologramas, claro, se não cair a conexão 5G ou o software. O próximo passo é a vida se transferir definitivamente para o Metaverso e, numa espécie de Matrix, se ter muitas, ou possibilidades de muitas e diversas identidades, sem ter nenhuma de verdade. Por enquanto, esse “paraíso” não está ao alcance da maioria, já que os gastos para se manter uma vida por lá é cinco, seis vezes mais caro do que aqui, mesmo com os impostos absurdos, roubalheiras e corrupções por todos os lados, assaltantes, pedintes e a indústria diminuindo ano a ano o peso dos produtos, mas mantendo o preço nas alturas, a realidade ainda é mais barata.

São como os streaming, Amazon, HBO, History, ESPN ou qualquer outro; você compra o pacote achando que está resolvendo um problema, mas nada, está é criando outro, pois dentro da trouxa principal terá de pagar pelos melhores e mais recentes lançamentos, ou seja, o bobo é você!... Comprar o Sport TV não garante assistir aos melhores jogos e eventos esportivos; para isso, terá de assinar o Premier, o Combate e talvez outro que desconheço, enquanto assiste aos empolgantes jogos de futebol feminino ou GoalBall... são tão entediantes que até um cego vê.

Bem, o título fala de Calígula (Caius Julius Caesar Augustus Germanicus) e ele talvez seja um dos precursores das bizarrices e sandices a espalhar-se mundo afora. Enquanto imperador de Roma (37 a 41 D.C.), nomeou o seu cavalo predileto, “Incitatus”(impetuoso), senador e cônsul, talvez por considerar o Senado digno de receber o seu mais dileto ídolo, ou simplesmente era a cocheira apropriada para alojar o nobre equino. Para piorar a situação, obrigava os senadores a se reunirem e despacharem na presença do animal, o que, certamente, deixava a assembleia bufando de raiva (sei, o trocadilho é infame, mas não pude resistir). Alguém pode alegar: “mas que cara louco! É cada uma que acontece...”; ao que digo: “já olhou o seu título de eleitor e viu o que está fazendo há mais tempo do que o velho Caius?”...

Política por essas bandas (na verdade, no mundo em geral; excluindo-se países onde não se tem nada a discutir, por proibição ou impossibilidades) é mato sem cachorro. Nunca sabe se é caça ou caçador, mas sempre tem um alvo preso às costas e a certeza de o tiro não ser certeiro, suficiente para matar, mas que vai doer demais e derramar sangue, isso vai. No fim das contas, a maioria das vezes é gritaria, arrogância e presunção, sem a noção e percepção de que, seja de qual lado estiver, está ferrado e mal pago. Por aqui, se elege Presidente, Senadores e Deputados, e leva-se de brinde o STF. Curioso é que o alto escalão judiciário parece agir como o imperador dos cavalos: dá ao Executivo e Legislativo capim e alfafa, enquanto eu e você, ganhamos uma banana.

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Nota: Texto publicado originalmente na Revista Bulunga

13 março 2024

Escada para os céus - Breve reflexão







Jorge F. Isah



A existência humana, como a conhecemos, é uma fração irrisória na história, e o homem um nada em relação à criação, quanto mais se compará-lo a Deus. Não é estranho, portanto, o anseio obsessivo de, sendo nada, fazer-se como ele e querer tudo?...

Ah, maravilhas das maravilhas, enquanto o homem tenta subir as escadas para o trono divino, em uma nítida intenção de invadir e conquistar o Reino; Deus, em sua sabedoria, desceu aos porões da terra, fazendo-se um de nós, para, assim, salvar o seu povo, os seus eleitos. E, somente então as portas do reino eterno foram-nos abertas, escancaradas, para encontrarmo-nos com o Criador, Senhor e Salvador, e dele, e por ele, e para ele, gozarmos por toda a eternidade.

Não foi o homem quem subiu aos céus, mas Cristo se fez homem, servindo-nos de escada, como uma ponte a ligar o mundo perdido e baixo ao Reino venturoso e sublime, finalmente alcançado, onde nos realizamos, filhos amados do Pai, pelos méritos exclusivos do Filho.


09 março 2024

Águas Profundas, de Adrien Lyne

 



Jorge F. Isah



Águas profundas é um daqueles filmes inesquecíveis, às vezes pela qualidade e talento da produção, edição, roteiro, interpretações, direção ou por todas essas coisas capaz de levá-lo à candidatura do Oscar e até mesmo à vitória (se bem que Oscar e bons filmes já há um bom tempo não são mais sinônimos). Entretanto, existem aqueles também que não nos sai da cabeça por seus defeitos, vícios e problemas. No sentido da direita para a esquerda, em ordem decrescente, o filme estaria na parte mais baixa da ladeira, quase na extremidade canhota (não há aqui nenhuma conotação política, apenas o meu critério de aferição, pessoal e intransferível).

Dirigido por Adrian Lyne, o mesmo de 9 e 1/2 semanas de amor (proto-pornô), Proposta Indecente e Atração Fatal, se manteve em período sabático por 20 anos, e, ao voltar, tropeçou em seus próprios erros não resolvidos no passado e reforçados no presente. A se salvar a química entre o canastrão Ben Affleck, a linda Ana de Armas, e o carisma infantil de Grace Jenkins; de resto quase nada se aproveita no filme, nem mesmo a incipiente e pálida crítica social aos endinheirados e suas vidas fúteis.

A história é sobre o relacionamento confuso, destrutivo, imaturo e corrosivo de Vic (Affleck) e Melinda (Armas), um casal de ricaços cuja filhinha, Trixie, é mais madura e centrada do que os pais. Vic, um gênio da computação, criou um sistema de drones para o governo americano que atinge alvos inimigos com alto grau de precisão. Assim, ganha uma fortuna e se dedica quase exclusivamente à família, festas onde era constantemente desafiado pela esposa, e uma criação de escargots no porão de casa.

Melinda é a típica mulher fatal: linda, sex, ardorosa e promíscua, além de bêbada; deita-se com qualquer um sem o menor pudor ou remorso, e diante de toda a cidade desfila os amantes debaixo dos narizes incrédulos de amigos e conhecidos. Não respeita ninguém a não ser o seu apetite sexual... Não se sabe a razão de agir assim. No decorrer da trama, fica-se a par de talvez ser a frieza do marido, não dado a arroubos e fervores, a causa das inúmeras e sucessivas traições. Só esse fato demonstra a infantilidade e fragilidade da história. Vic ama Melissa, ao seu jeito, e mesmo sabendo dos affairs extraconjugais, não pretende se separar; ela está mais disposta a humilhá-lo, enquanto se beneficia da sua fortuna para presentear amantes e, em alguns casos, sustentá-los.

Trixie tem afinidades e um relacionamento carinhoso com o pai, e por vezes vemo-la a provocar a mãe (quase sempre de ressaca pela manhã ou bêbada durante o dia) com músicas infantis e barulhentas. A relação das duas é claramente conflituosa, já que a pequena, inteligente e sagaz aos 6 ou 7 anos, não está desatenta à disfunção moral da progenitora.

Então, Vic, para se vingar, resolve matar um a um os “amigos” de Melissa. Isso mesmo. Incapaz de se divorciar, seja lá qual for o motivo, decide afastar definitivamente os rivais, e acaba por provocar o furor da esposa, privada dos seus “brinquedinhos” e tendo de encontrar outros.

A história em si é um emaranhado de equívocos, inverossímil e cheia de buracos por todos os lados. Lyne não consegue preenchê-los, deixando a coisa toda à deriva, mas abusando daquilo que sabe fazer tão bem: exorbitar no exibicionismo e masoquismo dos personagens. O roteiro estúpido (baseado no livro homônimo de Patricia Highsmith), direção insegura e canhestra, e o clima nitidamente absurdo da trama, faz-nos lembrar as antigas novelas venezuelanas, de 30 anos atrás, deixando a sensação de estarmos diante de uma grande e inominada porcaria.

No final, ao perceber que o marido era o assassino dos seus amantes, Melissa reconhece, com isso, a sua mudança de atitude, de não ser o homem frio, distante, mas certamente um potencial marido capaz de amá-la. E as provas mais sórdidas e abjetas convence-a de que os assassínios impiedosos, planejados e brutais serão suficientes para apaziguar o seu ímpeto devasso. Ou seja, para conquistá-la não era bastante fortuna, gentileza e leniência, mas a oblação, os sacrifícios consagrados no altar de Melissa. Os dois se merecem, não há dúvidas.

De bom mesmo, lá pelo minuto 20 e poucos do filme, a performance de Grace Jenkins cantando “You make me feel like dancing”, música de Leo Sayer, de 1976, sentada no banco de trás do carro, a caminho da escola. Temos o melhor de Affleck também. Valeria o filme, se as quase duas horas se restringissem a um curta-metragem. Essa cena é um dos poucos trunfos a tirá-lo da extrema-esquerda e trazê-lo mais próximo ao centro. 

Não o suficiente, mas podia ser muito pior.

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Avaliação: (*)

Título Original: Deep Water

Direção: Adrian Lyne

Roteiro: Sam Levinson e Zach Helm

Ano: 2022

Produção: Amazon

Duração: 116 minutos

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Nota: Texto publicado originalmente na Revista Bulunga

04 março 2024

Estudo sobre a Confissão de Fé Batista de 1689 - Aula 35: A Trindade e os "cristãos" que não reconhecem a Cristo

 


Jorge F. Isah
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INTRODUÇÃO

Antes de entrarmos propriamente na doutrina da Trindade, a qual passaremos a chamar de Triunidade, a fim de não confundi-la com o triteísmo, farei uma apanhado da crença herética do antitrinitarianismo.

Primeiro, há de entender que o judaísmo, o islamismo e o cristianismo são as únicas grandes religiões monoteístas do mundo. Muitos judeus e islâmicos consideram que somos triteístas, de que acreditamos em três deuses, pelo fato de não se interessarem pelo estudo da doutrina da Triunidade e, portanto, ao não fazê-lo, não compreendem-na, ou por uma deliberada má-vontade e oposição com o objetivo de nos rechaçar das suas companhias. Entendo que também não temos interesse nessa companhia porque, apesar de monoteístas, tanto judeus como islâmicos estão equivocados em sua fé e desprezam flagrantemente a revelação divina, a Bíblia Sagrada. Para o judaísmo existem apenas os livros do AT e aqueles que fazem parte da sua tradição, os quais não são livros inspirados; enquanto para o islã há somente o livro de Maomé, ainda que eles se reconheçam como herdeiros do patriarca Abraão, e reconheçam alguns dos nossos profetas como enviados por Alá. Ambos rejeitam peremptoriamente o NT como livro sagrado, como a palavra fiel de Deus, e a Jesus Cristo como Senhor e Salvador, como a segunda pessoa da Santíssima Trindade.

Este estudo tem por objetivo esclarecer os princípios norteadores da doutrina da Trinitariana existentes na Escritura Sagrada e, em caráter secundário, demonstrar a falácia dos que se opõem à Triunidade de Deus.

Da mesma forma, temos de distinguir os movimentos que se consideram cristãos mas nada têm de bíblicos, como os unicistas e o unitarianistas. A importância de reconhecê-los com clareza é fundamental para que não sejamos presas fáceis dos enganos perpetrados por essas correntes teológicas. Muitos se misturam no nosso meio com o intuito de enredarem incautos para suas doutrinas espúrias e diabólicas, já que uma característica das seitas é o proselitismo. Há muitos cristãos bíblicos que os consideram como a irmãos, talvez acometidos pela condescendência, pela ignorância ou seduzidos pela astúcia deles. O fato é que Deus nos exorta a afastar-nos e a rejeitar qualquer proposição que não seja bíblica, pois enquanto devemos batalhar pela verdade, aqueles estão interessados exclusivamente na difusão da mentira, e qualquer associação com eles nos fará igualmente mentirosos ou, no mínimo, transigentes com a mentira [Tt 3.10-11]. A questão é que estamos muito preocupados em parecer conciliadores, amistosos e flexíveis, quando devemos ser intransigentes e repelir tudo o que vai contra a sã doutrina. Como o apóstolo Pedro disse diante do sumo sacerdote: “Mais importa obedecer a Deus do que aos homens” [At 5.29].

Ainda que o estudo não seja exaustivo, ele nos dará o fundamento necessário para defender a fé cristã e rejeitar o falso cristianismo, e, mais do que isso, aperceber-nos de que muitos deles, utilizando-se de argumentos ou raciocínios ardilosos, querem confundir e transtornar irmãos ingênuos ou de boa-fé, apresentando-se como iguais quando em nada se lhes assemelham. O espírito deles é guiado pelo enganador, e devemos estar atentos para os sinais que eles apresentam e que, no início, não são muito perceptíveis, mas se tornam evidentes com o tempo, ao rejeitarem a revelação especial para dar ouvidos à mentira que, em seu discurso, tem alguma aparência de verdade.

A fé cristã é uma, mas muitos grupos se apropriam do termo Cristianismo para terem seu trabalho facilitado. E, para isso, utilizar-se-ão do que foi dito pelos hereges no passado, os quais já existiam à época dos apóstolos, para garantirem o uso do designativo “cristão”. O fato de reconhecerem Cristo como o Messias, Salvador, ou o enviado de Deus para revelar a sua vontade ao mundo é suficiente para que se autodenominem com tal. Não importa se o que pensam de Cristo é diametralmente oposto ao que ele é e se deu a revelar na Escritura. Importam-lhes mais embaraçar, se misturar, de forma que os tolos e ignorantes, aqueles que não sabem dar a razão da sua fé, não percebam as diferenças entre o que eles dizem e o que a Bíblia afirma. E a ignorância de muitos, aliada à astúcia daqueles, fazem com que sejam reputados como seguidores de Cristo quando, na verdade, odeiam-no, ao desprezarem-no, ao não reconhecerem quem ele é, ao tentarem fazer dele uma outra pessoa ou personalidade.

Interessante que quase sempre é ele, Cristo, o pomo da discórdia, e que somente acontece por obra exclusiva daqueles que, pela própria incredulidade, negam a sua divindade.


"CRISTÃOS" QUE NÃO RECONHECEM A CRISTO

Há entre os cristãos [uso o termo de maneira ampla e genérica, abrangendo todos os que se autodenominam cristãos] dois grandes grupos doutrinários: os trinitarianos e os antitrinitarianos.

Entre os opositores da fé bíblica, encontramos dois subgrupos:

1)      Os unitarianos;
2)      Os unicistas.

Eles afirmam, via de regra, que o Pai, o Filho e o Espírito Santo são meros nomes, modos, estados ou aspectos de uma mesma pessoa, de forma que Deus assumiria modos diferentes ao invés de ser três pessoas distintas [modalismo, sabelianismo, patripassianismo]; ou de que Jesus Cristo não é Deus mas um deus inferior, uma espécie de semi-deus, criado pelo verdadeiro Deus, e por ele capacitado com alguns “poderes”, podendo mesmo ser adorado como Deus [arianismo]. Com isso, eles dizem que Cristo é divino em algum aspecto, mas não é Deus em essência [algumas das várias formas de unitarismo]. Já o Espírito Santo pode ser tanto um ser criado por Deus, com a ajuda do Filho, como uma força emanada do próprio Deus [esta visão é bem próxima do que crêem as Testemunhas de Jeová, que poderiam ser chamados de semi-arianos].

Outra variação dessa mesma doutrina diz que Cristo é Deus, e como a Bíblia diz que há um único Deus, Jesus Cristo é Deus em plenitude, sendo ele o Pai, o Filho e o Espírito Santo [unicismo]. Esta corrente doutrinária está em processo de difusão entre os pentecostais, especificamente.

Em sua maioria, os unitaristas e unicistas são também universalistas, acreditando que haverá uma salvação final para todos os homens, inclusive o diabo e seus demônios, como propunha Orígenes. Além de não crerem na divindade de Cristo, rejeitam-no como Salvador e Redentor.

Há uma boa variedade de conceitos díspares nessas crenças, dependendo do grupo que se estude, podendo ser em maior ou menor grau as divergências, mas resumida o suficiente para considerá-los hereges. Seria essa a linha geral de suas doutrinas. Podemos desconsiderar os detalhes capciosos das doutrinas antitrinitarianas, pois esse elemento geral está presente em tudo o que os rege, e em tudo o que professam.


LOBO EM PELE DE OVELHA ENTRE OS TOLOS E INCAUTOS

Alguns, se utilizam de formas engenhosas e sutis de se expressar, como o bispo Eusébio de Cesárea: “E quem, a não ser o Pai, poderia conceber sem impureza a luz que é anterior ao mundo e a sabedoria inteligente e substancial que precedeu aos séculos, o Verbo vivente no Pai e que desde o princípio é Deus, o primeiro e único que Deus engendrou antes de toda a criação e de toda a produção de seres visíveis e invisíveis, o general do exército espiritual e imortal do céu, o anjo do grande conselho, o servidor do pensamento inefável do Pai, o fazedor de todas as coisas junto ao Pai, a causa segunda de tudo depois do Pai, o Filho de Deus, genuíno e único, o Senhor, o Deus e Rei de todos os seres, que recebeu do Pai a autoridade soberana e a força, junto com a divindade, o poder e a honra? Porque, em verdade, segundo o que dizem d’Ele os misteriosos ensinamentos das Escrituras: No princípio era o Verbo e o Verbo estava em Deus e o Verbo era Deus. Todas as coisas foram feitas por Ele, e sem Ele nada foi feito”. 

Outros, sem sutileza alguma, expressam aquilo que lhes vem à mente sem qualquer constrangimento em suas falsas autoridades, como certo autodenominado “Apóstolo”, que escreveu no site da sua igreja, e, posteriormente, suprimiu o texto sem qualquer explicação: “Muita gente pela tradição da religião, não entende a historia de Jesus. Alguns falam de natal, mas ninguém sabe o dia exato em que Jesus Cristo nasceu. Segundo que Jesus já existia muito antes de tudo. Ele é a imagem do Deus invisível, a encarnação do verbo. Mas ele não é sempiterno, é eterno. O pai que é Deus é sempiterno, aquele que antes dele nunca existiu como ele, nem existirá depois dele, sempre existiu e sempre existirá. A primeira obra dele foi Jesus Cristo, não a partir de Maria, que foi obra do Espírito Santo para ser feito carne, antes ele já existia. “Façamos” é no plural, porque Jesus estava com Ele e a palavra que lemos confirma”.

Analisemos o que nos diz o famigerado "apóstolo", e que não é difícil de se refutar. Pois bem, ele diz: "Muita gente pela tradição da religião não entende a história de Jesus". Qual é o alvo do seu ataque? A igreja, que durante séculos e séculos tem sido usada pelo Espírito Santo para defender a fé cristã e a sã doutrina, em especial, o centro do Cristianismo, sem o qual ele não teria o menor sentido ou significado: a divindade de Cristo. O que ele está tentando dizer é que tudo o que a igreja acreditou durante os últimos dois mil anos a respeito do Senhor é fruto da ignorância. Ele diz que ela “não entende a história de Jesus”. Assim se coloca numa posição privilegiada, numa condição superior, de crítico e de único entendedor ou, talvez, de participar de um seleto grupo de entendedores a respeito de quem é o Cristo. Até então, houve apenas um ataque sem fundamentação, sem argumentação, de simples especulação, de que a culpa de toda a ignorância da igreja sobre o assunto é fruto da tradição. Mas em quê essa tradição [que podem ser todos os debates ao longo da história da igreja, que podem ser os Concílios, os estudos meticulosos de homens fiéis que se debruçaram sobre as Escrituras, o testemunho dos santos que foram martirizados pelo nome de Cristo], pode levar a igreja à ignorância por tanto tempo? 

Sabemos que desde os primórdios satanás levantou homens na igreja para atacarem a verdade: Ário, Montano, Sabélio, Marcião, Nestório, Socino, Serveto e muitos mais como eles. E eles mesmos seguem uma tradição de, tempos em tempos, retornarem ao próprio vômito, numa espécie de “revival” maligno. Afinal essa heresia não foi criada pelo “apóstolo”, nem pelos seus seguidores, mas ela remonta aos séculos 2 e 3 da era cristã. Portanto, o único argumento utilizado pelo “apóstolo”, de que a ignorância da igreja se deve à tradição, é um tiro no próprio pé. 

Em seguida, para defender o seu argumento de que a tradição é culpada pela ignorância da igreja, ele se utiliza do natal para justificá-la. Ora, se o fato da Bíblia não revelar a data exata do nascimento de Jesus implica em que o natal nada mais é do que uma tradição, sem base bíblica, a crença na divindade de Cristo somente pode ser equiparada ao natal, como fruto de outra tradição da igreja. Acontece que, se a Bíblia não revela a data exata do nascimento do Senhor, isso não quer dizer que não se possa comemorá-la, não como uma data específica mas como o advento da encarnação do Verbo divino. A mesma Bíblia nos dá uma profusão de trechos e versos em que a divindade do Senhor Jesus é declarada. 

Então, ele diz sobre Cristo: "Ele é a imagem do Deus invisível, a encarnação do verbo. Mas ele não é sempiterno, é eterno. O pai que é Deus é sempiterno, aquele que antes dele nunca existiu como ele, nem existirá depois dele, sempre existiu e sempre existirá". 

Tem-se a afirmação de que o Senhor é a imagem do Deus invisível, a encarnação do verbo, o que é uma verdade. Mas dita por sua boca, certamente os termos “imagem” e “encarnação do verbo” têm sentidos diversos do que a Escritura diz. Quando ele escreve “encarnação do verbo” em minúsculas demonstra ter a idéia de que o verbo não pode ser equiparado a Deus. De que ele é inferior e não faz jus ao “V”. Isso não é descuido, mas intencional. Com a aparência de verdade, ele distorce-a, e cria uma mentira.

A expressão “imagem” estará ligada a uma certa aparência, a uma certa semelhança, que não é igualdade essencial, assim como nós somos semelhantes e a imagem de Deus. Em outras palavras, o “apóstolo” está dizendo que, como nós, Cristo é um ser criado, parecido com Deus, mas não é Deus. Logo, ele mesmo confirma o dito com um jogo de palavras ao diferenciar “sempiterno” de “eterno”. Fiz uma busca em vários dicionários portugueses e o que encontrei não foi distinção entre os termos mas igualdade. Sempiterno e eterno são sinônimos em, pelo menos, três dicionários conceituados, Priberan, Michaellis e Aurélio.

Mas pode ser que ele tenha proferido a sentença não do ponto de vista semântico, mas do ponto de vista filosófico. Porém, se ele vislumbrou essa diferenciação a partir da conceituação dos termos, deveria indicá-la, explicando o sentido que lhes deu. Mas, pelo pouco que compreendo de filosofia, o sempiterno e eterno significam a mesma coisa. Fico com a definição de Tomás de Aquino, na qual eterno é a “posse total, simultânea e perfeita de uma vida sem limites", caracterizada pela ausência de princípio e fim, e pela ausência de sucessão, porquanto, para ele, é um presente eterno.

Distinguir o que é igual em nada ajudará o “apóstolo”, mostrando apenas a sua incapacidade em lidar corretamente com a questão. Mas a distinção tem por objetivo unicamente rebaixar a Cristo, reputando-o como criatura e não como Deus eterno. Então, ele diz que “O pai que é Deus é sempiterno”. O fato de se distinguir Deus chamando-o de “pai” já mostra a confusão em que o “apóstolo” se meteu, ou a confusão que deseja meter nas cabeças alheias. Os unitaristas e unicistas em sua loucura, e como todo louco é incoerente, utilizam-se dos termos trinitarianos para explicarem sua heresia. Não lhes bastam as palavras do próprio Deus, creio que seria necessário que estivessem lá, in loco, para ver que o Pai, o Filho e o Espírito Santo sempre são; mas isso os faria iguais a ele, então penso que essa deve ser a maior frustração deles: já que não podem ser Deus, imaginam que a saída seja se rebelarem contra ele da forma mais baixa e desprezível possível, atacando aquele que disse: quem vê a mim, vê ao Pai [Jo 14.7-9], e, “Porque, como o Pai tem a vida em si mesmo, assim deu também ao Filho ter a vida em si mesmo” [Jo 5.26]. Ah, como gostaria que eles explicassem esses versos sem os malabarismos que insistem em executar, quando estão acuados pela verdade. 

Mais à frente em nosso estudo, meditaremos sobre a Pessoa de Cristo, em seus aspectos divinos e humanos, o que dará o entendimento correto sobre as afirmações bíblicas sobre ele, e que os unitaristas, como o “apóstolo” negligenciam vergonhosamente, para a sua própria desgraça.


Notas: [1] Aula realizada na E.B.D. do Tabernáculo Batista Bíblico 
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ÁUDIO DA AULA 35:

28 fevereiro 2024

A trégua e o ludopédio

 



 Jorge F. Isah



Em tempos de guerra, não poderíamos deixar de falar sobre algo que literalmente mexe com os ânimos e nervos das pessoas. Há comoções, análises, discussões acaloradas, profecias (a quase totalidade, palpites) e opiniões de todos os lados, normalmente sem qualquer conhecimento dos fatos e baseadas apenas e tão somente nas tendências ideológicas de um e de outro, ou de muitos. A guerra, por si só não basta, é preciso haver combates nos lares, escritórios, salas de aula, ônibus, metrô e, pasmem, nas salas de cirurgias. E os dias se arrastam, enquanto imagens de um cãozinho abandonado, um velhinho desencantado, ou uma criança chorando, repetem-se à exaustão nas telas e touch screen mundo afora. Não censuro quem aja assim, é sinal de que nem tudo ainda está perdido, mas existe um componente de hipocrisia na identificação com o sofrimento estrangeiro e quase nada com a dor pátria. É mais fácil e seguro escolher por quem se solidarizar, não é?

Neste momento, milhares de velhos, crianças e animais sofrem tanto, ou quase tanto, como os ucranianos, sírios e cristãos (existem lugares, e não são poucos, onde o cristão é sistemicamente condenado à espoliação, tortura e morte). E, talvez, a explicação esteja no pouco ou nada a se fazer com os gringos, enquanto o muito a ser feito aos compatriotas se ignora e mantém-se a ilusão de agir humanamente, quando não passa de egoísmo e insensibilidade. Com isso, não estou a generalizar, pois é evidente haver em todos os lugares bons e maus exemplos, mas a falar de uma parcela de pessoas cujo discurso é sempre lindo e altruísta, mas as ações se tornam egocêntricas e desinteressadas... Tudo pelo like, tudo por um like, e os quinze segundos de fama.

Contudo, este não é o tema principal, ainda que tenha relação, pois quero voltar a 1914, o início da I Grande Guerra, e um fato a marcá-la mais do que as estratégias e conflitos, havendo um silêncio quase obsceno dos livros, documentários e aulas de história sobre ele; onde a alusão deu lugar ao mais completo lapso. Em meio aos combates, aproximou-se a época do Natal, alguns meses após iniciarem-se os prélios. Em Ypres, na Bélgica, onde ingleses e alemães se entrincheiravam em suas batalhas, ocorreu uma trégua não oficial, decretada pelos próprios soldados. Então, enfeitaram os campos com motivos natalinos, entoaram canções natalinas, e os inimigos se uniram em uma grande celebração a fim de festejar e homenagear o nascimento do Salvador. Durante seis dias, a zona de morte se tornou em lugar de vida, regada à mais simples e genuína alegria. Fico a pensar naqueles momentos, onde as discordâncias, as rusgas, o ódio, o antagonismo e o belicismo fora substituído por abraços, conciliação, paz e eufonia, motivados por um símbolo, mas também o modelo, a figura, a congregar todos os desejos de união fraterna... Já imaginou Putin, Maduro, Zelensky e Biden formando o time “A” da ONU? E Cameron, Bolsonaro, Xi Jinping e Scholz no time “B”? Só não pode chamar nenhum deles para a arbitragem... É certo que a maioria tome cartão vermelho, e a partida seja suspensa por falta de quórum.


Voltando ao que interessa, quão doloroso foi, certamente, retornarem à guerra e cumprir ordens marciais, sob pena de, ao não fazê-lo, tornarem-se traidores e sumariamente condenados à morte. Evidente haver sempre, e em todos os lugares, alguns ou muitos a se oporem à concórdia pelo íntimo desejo de ruína e extermínio, o bem a não ser sequer lembrança, muito menos o absoluto pelo qual os homens e seus atos devam ser contidos e, em último caso, julgados. Isto para a fortuna geral, mas também individual, sem a qual nenhum direito ou liberdade será tangível, a despeito dos infinitos discursos e enunciados ofertados e prometidos, ao manipular paixões, sentimentos e convicções; e o fim ao qual dizem buscar estará distante e, cada vez mais, inatingível à humanidade.

Não falo de opiniões e suas divergências, nem de gostos e vontades subjetivas, mas de algo objetivo e sem o qual ninguém, no passado, hoje e nunca, dirá: “celebremos e nos fartemos, porque a vida não vale nada, e o apreço a ela é desmerecido”... e pode-se mesmo justificar a sua supressão por um direito tirânico, seja os campos de extermínio na Sibéria, em Dachau, ou na clínica Parenthood mais próxima; seja nas ruas, lares, morros e arranha-céus; seja qual for o método, se a vida não é valorizada, não existe trégua, nem armistício, nem vitoriosos, apenas bilhões de vencidos, e que não são meramente vítimas mas verdugos de si mesmos. Sim, falo do óbvio, não de estratagemas e manobras da novilíngua orwelliana a fazer com que se pense que tudo é vida, e deve ser preservado a todo custo, mesmo a morte.


        Memorial à Trégua de 1914, inaugurado em Frelinghien, França, em 2008.


Aquele Natal, um século atrás, onde até mesmo uma partida de futebol foi realizada, pôs fim às tréguas não oficiais, e todos, a partir de então, estavam aprisionados, a massa de rebeldes, às conquistas a que somos amealhados mas jamais chamados, tal como gado para o arado. Porque o convite se pode recusar, mas o laço... ah, o laço!... depois do nó dado, não se solta, nem dele se sai.

Por fim, a vida é simples, tem seus obstáculos e perigos, claro, mas a tornamos em algo tão insano, contraditório e inconciliável que não restou outra coisa senão a guerra.

E o placar nunca será 0 x 0.
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Nota: Texto publicado originalmente na Revista Bulunga.

23 fevereiro 2024

O Velho e o Mar - Ernest Hemingway


 


Jorge F. Isah



Como sempre acontece, existem leituras a suscitar curiosidade e interesse, mas negligenciadas, seja lá por qual motivo, durante anos e mesmo décadas. “O Velho e o mar” é uma delas. Li a novela (há quem insista em chamar de romance, mas eu prefiro descrevê-lo como novela) ainda adolescente, e sempre nutria, à medida que os anos avançavam, o desejo de reler, ou melhor, de lê-lo de verdade. Se inicialmente as impressões eram sobre a luta do homem com a natureza e suas forças aleatórias e caóticas, sobre a sobrevivência em seu estado mais puro e brutal, a velhice e inevitabilidade da morte, pude confirmar a maioria e acrescentar algumas outras.

Desde quando li, pela primeira, “Adeus às Armas” e embrenhei-me na escrita do americano, ela sempre me pareceu realista, quase ao ponto de ser autobiográfica, com poucos elementos ficcionais. A verdade é que o estilo de Ernest é muitas vezes áspero e violento, sem deixar, contudo, de esbarrar na poesia, sentimentos e emoções, e até mesmo em aspectos transcendentes, sem alijar a costumeira objetividade.

Talvez este seja o seu livro mais delicado, sem ser piegas ou ingênuo. Não. Em nada a história pode ser classificada por singela ou bucólica. Trata-se de um livro de sobrevivência, de luta pela vida, pela morte, de sucesso e fracasso. O próprio Hemingway se via as voltas com o ostracismo literário após o sucesso estrondoso de “Por quem os sinos dobram” (presente em minha lista há algumas décadas), morando em Cuba e se tornando ele mesmo um espectro do “velho” no mar. Nos dez anos a anteceder a publicação desta novela, o autor não produzira nada a chamar a atenção da crítica e público, e muitos o consideravam acabado para a literatura.

Mas, ele deu a volta por cima, e o velho Santiago, alterego de Ernest, é um ancião que perdeu a sorte na pesca e está há mais de oitenta dias sem fisgar nada. Alguma semelhança?... Dia sim, outro também, põe o seu barco em movimento e, como se diz entre os pescadores, leva as suas iscas para tomar banho. Não tem parentes ou amigos, à exceção do jovem aprendiz Manolin, a acompanhá-lo nas pescarias frustradas. Com isso, seus pais convencem o rapaz a abandonar o mestre e se juntar a outro que ainda não perdera a sorte. Manolin, como fiel escudeiro de Santiago, eleva-lhe o ânimo e estima, resgata histórias vividas por ambos e os vários sucessos nas investidas marítimas. Também supre-lhe as necessidades de comida, jamais o renegando.

Certa manhã, Santiago sai disposto a reverter o seu azar, novamente estimulado pelo pupilo, e aventura-se sozinho em mar aberto, no seu pequeno pesqueiro, e trava uma luta que durará dias com um Marlin azul ou Peixe-espada. Não foi à toa que Hemingway escolheu esse peixe, considerado por pescadores um dos maiores “brigadores” dos oceanos, capaz de chegar a quatro metros de comprimento e pesar meia tonelada. Essa era a sua batalha com outro “monstro” capaz de destruir almas e desgraçar vidas: a literatura. Diante do papel em branco, enfrentá-lo não é para qualquer um, seja calejado ou não no ofício da escrita. Em outras palavras, para o velho (ou Hemingway), era uma peleja difícil de se vencer, mas necessário desafiá-la. Com o tempo, adquire um certo “companheirismo” com o espadarte, passa a admirar a sua valentia, e até mesmo se arrepende de tê-lo pescado.

Em um dos momentos de meditação, ponderou:

“É maravilhoso e estranho, e quem sabe como será velho, pensou. Nunca apanhei um peixe tão forte, nem que se portasse tão estranhamente. Talvez não esteja disposto a saltar. Podia dar cabo de mim com um pulo ou uma correria desenfreada. Mas talvez já saiba o que é um anzol e que é assim que lhe convém lutar. Não pode saber que é um só contra ele, nem que é um velho. Mas que grande peixe! E, se a carne é boa, o que não dará no mercado! Mordeu a isca como um macho, é como um macho que puxa, e luta sem pânico algum.
Terá quaisquer planos, ou estará apenas tão desesperado como eu?”.[1]

Isolado, solitário, sem forças, com pouca água e comida, ferido, medita sobre várias coisas dos céus, da terra e do mar, e, entre elas, pairam dúvidas inclusive sobre sua profissão:

“Talvez eu não devesse ser pescador, pensou. Mas foi para isso que nasci. Não devo esquecer-me de comer a “tuna”, antes de aclarar”[2].

E reconhece também ser o peixe mais forte do que si, e a necessidade de não deixá-lo perceber sua fraqueza. Gostaria também que o garoto estive ali, para ajudá-lo a subjugar o animal:

“É um grande peixe, e tenho de o convencer, pensou. Não devo deixa-lo nunca tomar conhecimento da sua própria força, nem do que poderia fazer se corresse. Se eu estivesse no lugar dele, jogava o tudo por tudo, até que alguma coisa rebentasse. Mas, graças a Deus, não são tão inteligentes como nós, que os matamos, embora sejam mais nobres e mais capazes”.[3]

“Se o rapaz aqui estivesse, molharia as voltas da linha, pensou. Sim. Se o rapaz cá estivesse. Se o rapaz cá estivesse”.[4]

A narrativa é simples, acessível e moderada, sem ser bárbara (apesar de sanguinolenta e terrível) e, mesmo diante da morte e do iminente fracasso, permanece suave, tal qual calmaria após a tempestade. Certamente não é fraqueza, mas o sábio a reconhecer o imponderável e forças muito acima da sua capacidade e entendimento, a controlar o destino e rematar-lhe o final. Para um livro pequeno, a quantidade de significados abarcados são inúmeros; tem o caráter metafórico e análogo no conflito empreendido por Santiago e a saga de Hemingway as voltas com outro grande adversário: o desafio de vencer uma página por dia. Além, claro, dos aspectos a permear a vida de qualquer um, seja em qual tempo for, independente da situação, lugar ou circunstâncias, a verdade é que o livro tem caráter universal, aplicável a um, muitos ou todos, em diferentes nuances e minucias e, por isso, ganhou sucesso imediato.

Houve adaptações para o cinema (quero assistir ao Spencer Tracy), no teatro e na literatura. Não entendo a razão de muitos clássicos tornarem-se resumos ou sinopses. Especialmente quando se trata de uma obra próxima das cem páginas. Existe a peculiaridade de se tornar palatável e acessível volumes enormes a algumas dezenas de laudas, para atrair o público jovem, mas desconfio do tratamento dispensado a elas, mesmo saído da pena de grandes escritores.

Na infância, convivi com adaptações de Carlos Drummond de Andrade, Raquel de Queiroz, Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos, Marques Rebello, entre outros nomes vultuosos e emblemáticos no Brasil, e usados nas aulas de português. Poder-se-ia, ao menos, cogitar um ou outro original, mas desde aquela época existia o hábito de subestimar alunos e tratá-los por incapazes de entender esse ou aquele autor, e vê-los como mendigos intelectuais. Vá lá! Nem tudo é possível ao inexperiente e juvenil leitor, mas aí se encontra a razão ou a lógica do mestre. Afinal, a ele é dado auxiliar e mesmo descortinar as complexas questões literários e da vida, certo? Errado. Já que cada vez mais os alunos são rebaixados e submetidos à pseudo literatura e pseudo autores, o trabalho se fazia mais fácil, e sem esquecer os interesses camuflados, jamais os estudantes tomarão contato com o que possa haver de real e verdadeiro. Dão-lhes a falsa ideia de ter, quando o pouco que não têm, é-lhes tirado.

Livros de quinhentas, seiscentas ou mais páginas eram condensados em cem, cento e poucas, e apesar do talento dos adaptadores, sempre foram mais danosas do que uteis. Então, me pergunto: qual o significado de resumir cem páginas em dez ou vinte?... O leitor indisposto a ler “O velho e o mar” se interessará por algo ainda mais diminuto; e, com o tempo, será capaz de apreciar os livros de Dickens, Dostoiévski, Tolstói, Mann, Faulkner e outros prolíferos escrevinhadores? Duvido. Na verdade, é impossível. Serve apenas para facilitar e sustentar a preguiça e o desânimo de apedeutas, sejam “professores” ou “pupilos”. E, com isso, se privam do melhor e mais rico “testamento” da humanidade, preferindo a ignorância de salamaleques e giros seminus ou tropeções na própria sombra... Fantasiados de docentes ou aprendizes. Quando não se ensina, ou não se está disposto a aprender, o que resta a não ser imitar macacos, funkeiros e exibicionistas? Resta os megalômanos e orgulhosos do TikTok, Instagram e OnlyFans, entre outros menos votados.

De volta ao livro, o final é ao mesmo tempo, trágico e belo. O renascimento na tragédia. A aurora após noite tenebrosa e revolta. Talvez Hemingway tivesse, tal qual o seu personagem, um novo sopro de vida em meio as vicissitudes e percalços. Mas a história, porém, não foi capaz de confirmar esse prenúncio, e sabemos no que deu, infelizmente.

Resta-nos, portanto, apreciar a intricada, mas inteligível, obra de “Hem”, composta de acertos e erros do homem Ernest, mas também do genial escritor; repleto de vida, ainda que esteja sempre a pairá-la a escorregadia e capeada morte.

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Avaliação: (****)

Título: O velho e o mar

Autor: Ernest Hemingway

Páginas: 80

Editora: Livros do Brasil

Tradutor: Jorge de Sena

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Notas: [1] Página 28 e 29

[2] Página 30

[3] Página 37

[4] Página 49

[5] Texto publicado originalmente na Revista Bulunga

18 fevereiro 2024

Estudo sobre a Confissão de Fé Batista de 1689 - Aula 34: O poder soberano de Deus - Parte 2





Jorge F. Isah

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Introdução

Espero que os irmãos tenham lido o texto da semana passada, e possamos concluí-lo na aula de hoje.

Fazendo um pequeno resumo, analisamos a questão da soberania de Deus a partir de um diálogo entre um padre e um ateu em um banco de praça. Os irmãos se lembram do que foi discutido na última aula? Poderiam apontar um ou mais pontos debatidos?

O primeiro ponto que levantei foi o de que os nossos inimigos estarão sempre dispostos e armados para desestabilizarem a nossa fé, de forma a virmos descrer nos fundamentos que nos sustentam.

Segundo, analisamos alguns versículos que afirmam ser Deus poderoso para realizar tudo, até mesmo o impossível, mas nunca contra a sua vontade e natureza. De forma que tanto a sua natureza como vontade são os limitadores de Deus, que o impedem de realizar tudo que não esteja consoante com a sua vontade, sabedoria, santidade, justiça, etc..

Um ponto que não foi discutido naquela aula e que gostaria de tocar agora é quanto a essa disposição do incrédulo de nos perverter e desencaminhar da fé. O que os irmãos acham? Isso é possível? Um crente verdadeiro descrer ou deixar-se corromper pelo discurso mundano e, mesmo temporariamente, como Pedro diz, voltar ao próprio vômito? Sendo mais específico, um crente pode apostatar ou desviar-se, no sentido de voltar às mesmas práticas e à mente que tinha antes da conversão?

Leiamos os seguintes textos [1]:

Jr 32. 38-40: "E eles serão o meu povo, e eu lhes serei o seu Deus; e lhes darei um mesmo coração e um só caminho, para que me tema todo os dias para seu bem e o bem de seus filhos, depois deles. E farei com eles uma aliança eterna de não me desviar de fazer-lhes o bem; e porei o meu temor nos seus corações, para que nunca se apartem de mim".

Jo 10.28,29: "E dou-lhes a vida eterna, e nunca hão de perecer, e ninguém as arrebarará da minha mão. Meu Pai, que mas deu, é maior do que todos; e ninguém pode arrebatá-las da mão de meu Pai".

Jo 6.37: “Todo o que Pai me dá virá a mim; e o que vem a mim de maneira nenhuma o lançarei fora”.

Jo 17.2, 9: “Assim como lhe deste poder sobre toda a carne, para que dê a vida eterna a todos quantos lhe deste... Eu rogo por eles, não rogo pelo mundo, mas por aqueles que me deste, porque são teus”.

E, então, temos uma grande promessa do Senhor: “Pai, aqueles que me deste quero que, onde eu estiver, também eles estejam comigo, para que vejam a minha glória que me deste; porque tu me amaste antes da fundação do mundo” [Jo 17.24].

Fp 1.6: “Tendo por certo isto mesmo, que aquele que em vós começou a boa obra a aperfeiçoará até ao dia de Jesus Cristo”

I Pe 1. 3-5: "Bendito seja o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo que, segundo a sua grande misericórida, nos gerou de novo para uma vivia esperança, pela ressureição de Jesus Cristo dentre os mortos. Para uma herança incorruptível, incontaminável, e que não se pode murchar, guardada nos céus para vós, que mediante a fé estais guardados na virtude de Deus para a salvação, já prestes para se revelar no último tempo".

Terceiro, em dado momento, o ateu propõe uma “pegadinha” ao padre, um sofisma, o qual é: Deus pode criar uma pedra que não pode carregar? O padre afirma que sim, pode. E o ateu propõe que se Deus pode criar algo que não pode carregar, ele não é onipotente. E se ele não puder criar a tal pedra, também não é onipotente. Ao que o padre responde: “afinal, decida-se! Você quer que Deus crie a pedra ou que ele a carregue?". Na verdade, o ateu formulou duas afirmativas que se contradizem, o tal sofisma.

Quarto, E o padre ilustra o seu pensamento com o episódio da morte e ressurreição de Lázaro.

Continuemos de onde paramos na aula anterior; os comentários estarão sempre em itálico entremeados ao diálogo do padre e do ateu:


Deus pode criar, hipoteticamente, uma pedra que não possa carregar?

- Pois é. Como o senhor deve saber, quem pode o mais, pode o menos, ou seja, Jesus, de algum modo, poderia ter tirado a pedra, mas, também, de algum modo, não pôde fazê-lo. Ou seja, Deus criou aquela pedra e Deus não a pôde erguer.
O ateu não se deu por vencido:
- Bom, mas, como o senhor mesmo disse, Jesus poderia, sim, tirar a pedra, apenas não quis fazê-lo... Isso não é o mesmo que "não poder fazer".
- Mas, perceba: quando alguém pode tudo, pode, inclusive, limitar-se. Se não pode limitar-se, não pode tudo. Ademais, a sua dúvida está na onipotência de Deus, que Ele possa tudo e não que não possa alguma coisa... Se Ele não puder carregar a pedra, torna-se impotente, concorda?
O ateu sorriu como se o "rei" do padre estivesse, agora, fadado ao "xeque-mate”.
- Mas aí então, Deus não poderia criar uma pedra que não pudesse carregar...
- Mas é claro que pode, insistiu o padre:
Veja: Deus criou você para que você cresse nEle... mas você crê?
- Não, não creio.

O que os irmãos pensam dessa afirmação? Deus criou o homem para que cresse nele? De certa forma, sim. Acontece que no Éden, onde a humanidade caiu junto com Adão, a queda se deu exatamente por conta da descrença de Adão e Eva. Eles simplesmente duvidaram do que Deus havia lhes dito, preferindo crer no que o seu coração insensato dizia ou maquinava e na mentira da serpente.
Se Deus criou o homem para crer, ele não creu por si mesmo. O Éden prova isso. Para que o homem cresse, foi necessário que Deus operasse nele, de forma a mudá-lo e transformá-lo à imagem do seu Filho Amado.
Veja bem, todos os homens têm em si fragmentos de Deus, o Imago Dei, contudo esses fragmentos não revelam a condição pecaminosa e caída do homem, nem o seu estado de rebelião e desprezo a Deus, nem a necessidade de arrepender-se e reconciliar-se com Deus. Isso somente é possível pela ação do próprio Deus, regenerando o homem, o qual, então, estará ligado a ele, em constante transformação, santificação, para, enfim, naquele glorioso dia ser semelhante ao homem perfeito: Jesus Cristo.
Todos os homens, sem exceção, são descrentes, e nasceram em descrença. Aprouve a Deus chamar uma parte deles à fé, à crença em Deus, que se dará a partir da ação regeneradora e santificadora do Espírito Santo. De forma que, se Deus quisesse que todos os homens cressem nele, eles creriam, e se não crêem é porque Deus não criou a todos para crer, mas antes, ao menos no princípio temporal da vida de cada um, criou-nos para descrer. Cremos somente pela pregação do Evangelho, o qual o Espírito Santo usará para nos revelar a nossa condição e a necessidade de arrependimento, de se pedir perdão a Deus pela nossa condição incrédula e ofensiva diante dele.
Esta visão do padre, na verdade, antes de exaltar a soberania de Deus, revela que ele é um ser limitado por conta de suas criaturas, e que criou para si mesmo limitações exteriores, que de alguma forma alteram a sua essência, impedindo-o de ser o que é. Como a Escritura nos afirma que Deus é imutável, ele não pode, em hipótese alguma, ter limitações que não sejam estabelecidas por sua natureza santa e perfeita ou por sua vontade igualmente santa e perfeita, eternamente.
Um exemplo que se dá é de que Deus poderia criar vários mundos, inclusive perfeitos. E é uma verdade. Acontece que encontramos apenas um mundo, o qual ele considerou bom, e de que esse é o único mundo possível; e assim ele quis. Qualquer hipótese de outros mundos criados estará sempre circunscrita à vontade divina de criá-los, sem a qual, nada pode vir a ser. E a vontade divina tem por propósito uma única coisa, a meu ver: a Sua glória! Que é revelada, entre outras coisas no todo poder com que ele realiza a sua vontade: na criação, na sustentação da criação, na redenção do homem, na preservação, santificação, e no reino eterno de Cristo, que não terá fim. Pois nada há que possa satisfazê-lo além de si mesmo, e tudo o que criou somente o satisfará se for realizado segundo a sua vontade. Logo, a vontade divina é a causa primeira, e o homem, ao rejeitá-la, ataca exatamente esse ponto inatacável [2].
Se Deus criou o homem para crer nele, e esse homem não crê, há um conflito de vontades e interesses, e o que temos é a vontade divina subjugada à vontade humana, estando essa prevalecente em relação àquela. Mas isso é viável? Claramente a Bíblia afirma que não. Deus se satisfaz em realizar a sua vontade, e ela acontecerá infalivelmente, sendo que Deus jamais se frustrará. 

- Pois é, continuou. Deus criou a sua liberdade e não pode removê-la, pois se auto-impôs esse limite. Com efeito, Deus pode tudo porque pode, inclusive, dizer o que não pode fazer. Quando alguém pode dizer o que não pode fazer, embora o possa, é porque, de fato, pode tudo.
O ateu agora estava em silêncio...
O padre pegou no seu ombro e concluiu:
Assim como a pedra que prendia Lázaro, a sua liberdade é algo que Deus criou, mas por uma auto-limitação, não se permite mover. A sua liberdade, meu amigo, é a pedra que Deus criou e que não pode mover.
Dizendo isso, afastou-se do ateu que permanecia pensativo no banco da praça, alheio à chuva mansa que se iniciara.
Lister Leão

Na verdade, Deus não pode criar uma pedra que não possa carregar, pois ele pode tudo, tanto criá-la como carregá-la. A proposição do ateu é simplesmente absurda, ilógica, e impossível, pois Deus estando fora da realidade da pedra, e como criador dessa realidade, simplesmente não tem qualquer limitação, nem mesmo a de se autolimitar em relação ao mundo exterior, à criação. A autolimitação divina está circunscrita à sua natureza santa e perfeita e à sua vontade. Nada mais pode impedi-lo ou restringi-lo. Nem mesmo a suposta liberdade que o homem diz ter, e que, em algum aspecto, seria limitadora da vontade de Deus. Porque Deus é Deus, e não pode deixar de sê-lo [Dt 4.35; Sl 100.3].
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Notas: [1] Textos analisados mais detidamente no áudio da aula, bem como a questão da justiça e bondade divinas.
[2] Novamente indico o texto "Deus não tem escolhas", o qual pode elucidar de maneira mais satisfatória o que estou apenas a discorrer preliminarmente aqui.
[3] Aula realizada no Tabernáculo Batista Bíblico 
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ÁUDIO DA AULA 34: