13 julho 2011

Mistério, Paradoxo e Contradições aparentes - Parte 1

"QUANDO SE PERDE ATÉ O QUE NÃO SE TEM!"




















Por Jorge Fernandes Isah

Existe um senso quase comum entre os crentes, mesmo entre calvinistas, de que a Bíblia é um livro de paradoxos ou antinomias. O termo mais comum e popularmente usado é o de “mistério”. Mas sendo a Escritura inerrante, infalível e divinamente inspirada há possibilidade de que ela contenha paradoxos?

Primeiro, definamos os termos, segundo o Michaeles:
a)Paradoxo - (cs) sm (gr parádoxos) 1.Opinião contrária à comum. 2.Afirmação, na mesma frase, de um conceito mediante aparentes contradições ou termos incompatíveis.
b)Antinomia - sf (gr antinomía) 1.Contradição entre leis ou princípios. 2.Filos Reunião de um par de proposições que simultaneamente parecem contradizer-se e serem provadas, sendo em realidade a contradição apenas aparente ou a prova, no mínimo, de uma das proposições, não concludente. Kant define-a como uma contradição inevitável, em que a razão incorre, ao aplicar as concepções a priori ao transcendente e absoluto: "O mundo teve começo no tempo". "O mundo é eterno" (isto é, sempre existiu). 3.Filos Contradição entre duas leis, quando são aplicadas.
c)Mistério sm (gr mystérion) 1.Arcano ou segredo religioso. 2.Cada uma das verdades da religião cristã, impenetráveis à razão humana e impostas como artigo de fé... 5.Tudo quanto a razão não pode explicar ou compreender; tudo quanto tem causa oculta ou parece inexplicável. 6.Coisa oculta, de que ninguém tem conhecimento. 7.Reserva, segredo. 8.Proposição difícil de compreender; enigma. 9.Ato inexplicável.

Partindo-se da idéia comumente utilizada pela teologia cristã, a Bíblia tem alguns [ou muitos, dependendo do entendimento] paradoxos ou antinomias. Isso quer dizer que o texto nos revela tanto um princípio como outro, que se opõe àquele, ou seja, seriam duas verdades que coexistem conflituosamente dentro de um mesmo conceito de verdade. Apelar para o termo “contradições aparentes” em nada alivia a situação, pois não se sabe onde as contradições são aparentes, além de contradições, naturalmente, serem incoerências em qualquer lugar do mundo, seja aqui ou na Conchinchina.

Por exemplo, quando os calvinistas afirmam que Deus é soberano e o homem é livre em suas escolhas, a fim de se garantir a sua responsabilidade, fica impossível compreender como o Deus soberano, todo-poderoso, que predestinou e determinou todas as coisas, até mesmo as mínimas e mais inexpressivas dentre elas, pode coexistir com o homem livre desse mesmo Deus. 

O sentido de liberdade que se propõe não é outro senão ser livre de Deus. Pois como o homem pode escolher livremente alheio à vontade divina? É o que muitos dizem quando afirmam que Deus é soberano mas a sua soberania para ou é freada quando da decisão humana. Ele determinou e é a causa primeira e última de tudo, mas o homem ainda permanece livre para se decidir, para fazer escolhas livres de Deus, como um livre-agente, sem se compreender adequadamente o que isso representaria. Guardadas as devidas proporções [e todos sabem que analogias são falhas quando se referem a Deus], seria o mesmo que um canário-belga, aprisionado em uma gaiola desde o seu nascimento, declarasse a pleno pulmões que é livre. Mas livre em qual aspecto e condições? Livre do quê e de quem? A qual sentido de liberdade pode apelar?

Senão, vejamos: ele não conhece outro lugar, nem pode sair do seu habitáculo; o máximo que pode é ver o mundo à distância, através das grades, e pode haver alguém que considere o fato dele ter uma visão abrangente do que está a sua volta como liberdade. Nesse sentido, o canário seria livre. Mas se fosse cego, não seria. Se sua mente o levasse a passear pela rua, ou a voar de árvore em árvore,  muitos considerarão que ele seria livre. Mas o fato é que ele pode, quando muito, pular de um poleiro para outro dentro da gaiola; comer, tomar água ou morrer de fome e sede se o dono não providenciar os suprimentos necessários. Dentro da gaiola, o canário é livre para ir e vir, mas o mundo exterior a ela não lhe é permitido. Podemos dizer que ele é um agente-livre, por sempre estar ali e poder mover-se ali? Ele é livre para comer quando quiser, mas não pode escolher o tipo de comida, a menos que lhe sejam dadas opções, que elas sejam colocadas ao seu alcance. Da mesma forma, ele não poderá beber o que quiser, e nem mesmo quando quiser, pois se o dono se esquecer de abastecer-lhe de água e comida, morrerá à míngua. É a esse tipo de liberdade que os compatibilistas se referem quando dizem que o homem é um livre-agente? Mas ele é livre em qual aspecto? O canário é um livre-agente, também? Creio que ambos são livres, mas com uma liberdade que os faz cumprir exatamente aquilo que os seus senhores desejarem ou quiserem que ele faça.

Sei que há objeções, pois o canário, a despeito do controle que o seu dono tem, não pode latir, caçar ratos ou fazer a contabilidade da casa. O dono terá de compreender que ele agirá conforme a sua natureza [e o canário não pode mudar a si mesmo, tornando-se um cão, gato ou contador], mas ainda assim essa natureza encontrar-se-á presa a condições preestabelecidas, e das quais todos os canários participam sem que possam ser identificados como outra espécie, não deixando de ser canários. Eles sempre serão canários, e não podem deixar de sê-los. 

Estando certos de que as Escrituras não mentem, sabemos que Deus é aquele que estabeleceu a natureza do canário, dando a ele todas as características peculiares à sua espécie, de tal forma que ele permanecerá canário sem a menor chance de ser outra coisa. Ele pode se encontrar em vários estados e estágios, mas sempre será um canário, mesmo que seja um canário morto. 

Vamos tentar um exemplo ainda mais prático: Deus determinou que no dia tal, na hora tal, eu entrasse em uma certa lanchonete e pedisse um “Beirute”. É fato e infalível que eu naquele exato momento e dia entrasse exatamente naquela lanchonete e pedisse exatamente aquele sanduíche. Deus me colocou ali, de tal forma que eu não poderia estar em outro lugar ou fazendo outra coisa. Então, onde está a minha liberdade de escolha? Os proponentes do “mistério” dizem que Deus estabeleceu isso, mas eu escolhi livremente isso. O fato é que houve uma escolha, entre tantos sanduíches, decidi-me por um, mas como essa escolha poderia ser “livre” se Deus já havia decretado o que eu iria fazer? É como tentar colocar a chave que abrirá certa fechadura em uma outra fechadura que precisará de outra chave para ser aberta.

Placidamente, e acho que com algum peso na consciência, dirão: isso é um mistério, um paradoxo, pois são duas verdades que a Bíblia afirma, mas que não entendemos nem compreendemos e que apenas Deus sabe. Aí é que se encontra a tal “contradição aparente”. Por aparente, querem dizer que ela parece uma contradição, mas na verdade não é. Mas, afinal, é ou não é uma contradição? Como é possível conciliar uma decisão estabelecida por Deus eternamente com uma decisão humana livre? Só se pode chegar a uma conclusão: o homem é livre para escolher aquilo que Deus sabiamente determinou que escolhesse. O homem é livre para fazer o que Deus quer que ele faça.

Um dos mais sérios problemas envolvidos nessa questão da "contradição aparente", a qual é ilógica em si mesma, ainda que se tente fazê-la racional e inteligivel é que a fé cristã parece baseada em contradições, em afirmações autorefutáveis. Pois se A é A, e B é B, não sendo A igual a B, como compreender que A possa ser A e B ao mesmo tempo? Seria o Cristianismo um conjunto de doutrinas absurdas, que vão além do entendimento humano? E mais, seria Deus um deus de absurdos? E que nos quisesse confundir ao dizer coisas que jamais poderemos compreender? Tudo isso tem de ser levado em consideração quando se procura respaldar uma fé na irracionalidade. 

Por isso, o que mais temos hoje são cristãos alegando "experiências" para confirmarem a sua fé. Desde as mais simples às mais bizarras. O que aconteceu? Em algum momento, o homem abandonou-se à falsa premissa de que a fé não pode ser compreendida, antes tem de ser sentida. Em algum momento, os homens deram mais valor à experiência, ao empirismo, à subjetividade de suas sensações, do que à objetividade do texto bíblico. Em algum momento,  abandonou-se os princípios revelados por Deus, os quais nos dão o entendimento e a compreensão corretas de quem ele é, para entregar-se à uma fé mascarada de piedade mas que, no fundo, não passa de futilidade, do apelo carnal à irracionalidade, a rejeição da verdade. 

Quando cada um pode ter a sua "verdade", ninguém a tem. Quando cada um pode se apropriar de parte dela, transformando-a em algo parecido com ela, mas que não é, ninguém a tem. Quando elementos incompreensíveis são colocados em pé de igualdade com os compreensíveis, e até superando-os, a incompreensividade anula a compreensibilidade. Com isso a mensagem que se está levando é de que tudo pode ser relevante para o conhecimento de Deus e para a prática da fé cristã, sem precisar seguir princípios e normas estabelecidos pelo próprio Deus. Desde que eu "sinta" e o sentimento seja sincero, as coisas mais tolas e ridículas não somente devem ser toleradas, mas disseminadas e seguidas [e o movimento gospel está repleto de esquisitices como que saídas do maior de todos os hospícios]. 

A paixão e um "amor autônomo", que não deve satisfação a ninguém mas apenas a si mesmo, significando que esse amor nada mais é do que o narcisismo, o autoamor que possibilita se fazer tudo sem regras, apenas pelo prazer de fazê-las, tem sido a explicação para que se defenda o disparate e tudo o que é contrário à razão. Quando as pessoas encontram-se nesse estágio, elas estão aquém da realidade bíblica, num mundo de faz-de-contas religioso,  como o das fábulas infantis.  E, nesse caso, a adoração não é a Deus, mas ao ídolo criado pelo próprio homem, que pode ser qualquer deus,  e ele sempre será o próprio homem, ainda que esteja na mente de vários deles ao mesmo tempo; ainda que o objeto de culto seja exterior a ele, mas o culto seja interior, procedendo do coração, e isso contamina o homem [Mt 15.18].

Entendo que o argumento do “mistério” tem um pouco de fé, mas uma fé irracional, e que a Bíblia nos diz não ser a fé bíblica. Na verdade não há na Escritura nenhuma afirmação de que o homem precisa ser livre para ser responsável. A Bíblia não afirma que o homem é dependente de qualquer conceito de liberdade para ser responsável, mas da autoridade divina que o faz responsável. No Éden foi dito: “E ordenou o Senhor Deus ao homem, dizendo: De toda a árvore do jardim comerás livremente, mas da árvore do conhecimento do bem e do mal, dela não comerás; porque no dia em que dela comeres, certamente morrerás [Gn 2.16-17]. E ainda: “A alma que pecar, essa morrerá” [Ez 18.20]. Não há alusão à liberdade, a um tipo de liberdade em que o homem está livre de Deus. O que se lê é tão somente uma ordem que deve ser cumprida, e se não cumprida, ocasionará uma penalidade. O princípio da obediência é a própria autoridade divina, não a liberdade do homem de fazer alguma coisa que seja alheio ou contra os preceitos de Deus. Por isso, o desobediente pagará, porque Deus estabeleceu o castigo e punição. Por isso a Lei é para todos, e ninguém pode alegar que não conhece a Lei para se fazer inocente. O princípio do conhecimento legal existe mesmo em nossos códigos humanos, para que ninguém fique inescusável.

Mas alguém pode dizer: a lei humana é falha nesse princípio, e Deus, sendo justo, não falharia nele. O mais interessante é que normalmente essa afirmação não é proferida por quem desconhece a Lei, mas exatamente por quem a conhece muito bem. E é ele quem quer definir o tipo de “justiça” que Deus deve ter, ao invés de reconhecer a única Justiça que provém de Deus. Senão, por que Paulo afirmaria que todos nascem condenados? “Portanto, como por um homem entrou o pecado no mundo, e pelo pecado a morte, assim também a morte passou a todos os homens por isso que todos pecaram” [Rm 5.12]. Alguém escolheu nascer? Mas, ao nascer, já está condenado. O próprio Senhor diz ao incrédulo: “Quem crê nele não é condenado; mas quem não crê já está condenado, porquanto não crê no nome do unigênito Filho de Deus” [Jo 3.18]. O fato é que todos os homens nascem condenados. Ainda que a eleição e salvação foram decretadas na eternidade, do ponto de vista humano, nascemos incrédulos em Cristo. No decorrer da história, Deus chamará, regenerará e justificará aquele que escolheu eternamente, capacitando-o a crer em Jesus como Senhor e Salvador [Rm 8.28-30].

Se entendemos que Deus é o Senhor da história, e de que todos os fatos não escapam à sua vontade; se a história de nações e povos foi estabelecida por ele; por que a minha história pessoal e individual não será? É possível Deus controlar multidões de pessoas, muitos milhões e bilhões delas, sem controlar o indivíduo? Ou Deus controla o indivíduo ou não controla absolutamente nada: “E todos os moradores da terra são reputados em nada, e segundo a sua vontade ele opera com o exército do céu e os moradores da terra; não há quem possa estorvar a sua mão, e lhe diga: Que fazes?” [Dn 4.35]. Como é possível o Deus que estabelece todas as coisas em seus mínimos e mais inexpressivos detalhes, segundo a sua vontade, coexistir com a “liberdade humana” de, até mesmo, se contrapor a ele?

Sei que calvinistas dirão que esse esquema é arminiano. E de que afirmam a soberania de Deus, de que o homem não pode fazer nada alheio ao decreto eterno, contudo, também afirmam que nas causas secundárias, nas causas circunstanciais, o homem é livre em sua escolha segundo a sua natureza. Se para o pecado, irá escolher pecar; se redimido, pode não pecar ou, em último caso, vir a pecar. Como isso se dá, um homem livre escolher livremente segundo a vontade divina, eles não têm respostas. Alegam a antinomia. De que são duas verdades que correm paralelas. Mas seria isso mesmo? Ou esse não é um esquema nitidamente construído pela mente humana para não reconhecer que Deus é o Criador de todas as coisas, e de que controla todas as coisas? E de que mesmo o mal e o pecado não podem existir sem que Deus os tivesse criado e os sustentasse para a sua glória? Se Deus tem poder sobre os vasos de honra e vasos para a desonra [Rm 9.21], originalmente eles foram criados com propósitos nítidos e definidos, por ninguém menos que o próprio Deus. E de que os vasos para desonra, preparados para a perdição, cumprirão exatamente toda a vontade decretiva de Deus, de viverem ímpia e pecaminosamente, praticando o mal e o pecado livremente, mas numa liberdade somente possível de se cumprir “ipsis litteris” a plena vontade de Deus... O homem, seja quem for, é livre para fazer somente a vontade de Deus.

É claro que estou-me referindo à relação Criador-criatura; entre as criaturas temos uma "aparente liberdade" [esse é um senso de autonomia que acredito originário da própria Queda do homem. Uma ilusão de que é possível ser livre de Deus, e assim, enganá-lo em sua vontade] , e, de fato, escolhemos e nos decidimos por muitas coisas durante a vida, porém, sabendo que mesmo as escolhas mais simples estarão “amarradas” às contingências anteriores [sejam objetivas ou subjetivas] as quais nos levarão a escolher por alguma coisa em detrimento de outra. 

Quando o homem acredita que existe uma compatibilidade entre ele e Deus, de maneira que o homem colabora livremente para que aquilo que o Criador determinou soberana e livremente na eternidade se cumpra, temos um dilema sem respostas. É isso que a maioria dos calvinistas afirmam no final das contas: não há respostas. Acontece que Pedro alertou-nos para estarmos sempre preparados para responder com mansidão e temor a qualquer que pedir a razão da esperança que há em nós [1Pe 3.15]. Mas como poderemos responder se não temos respostas? Ou se nossas respostas são vazias em si mesmas? Ou se revelam uma fé claudicante e contraditória? Ou, ainda,  se ela se opõe ao que foi revelado pelo próprio Deus? Seria Deus perfeito ao ponto de nos apresentar conceitos imperfeitos e incompletos? Penso que não. Penso que há uma espécie de negligência travestida de piedade e humildade em que as pessoas são conformadas à mentalidade do presente século;  de forma que os apelos existenciais do homem moderno sobrepujam à verdade escrituristica. Sei de muitos que não podem ver, mas sei de muitos mais que não querem ver. Recusam-se terminantemente a encarar a verdade, preferindo o conforto de manterem seus corações e mentes presos à mentira, ao engano. 

Alguém dirá que isso é irrelevante. Desde que se seja eleito. O importante, no final, é a salvação, somente possível por Deus. Isso é verdade, mas usá-la para justificar uma infinidade de erros, em que muitos são usados como pedras de tropeço para seus semelhantes está distante daquilo que é-nos exigido fazer.  

É inadimissível a ideia de que Deus nos preparou "pegadinhas" ou orientou desleixadamente os seus autores. Para o Deus sábio, santo e perfeito, isso é impossível. Mesmo que eu não entenda e compreenda certas questões descritas na Bíblia [e posso não entender muitas coisas por simples  incapacidade intelectual, mas a minha incapacidade intelectual não a tornará em um livro de paradoxos],  jamais poderia apelar para o "mistério".  O que há, em muitos casos, é má-vontade, é não querer a explicação e contentar-se com a não-explicação.  E a Escritura exprime-se inteligivelmente, desenvolve-se em seu escopo de maneira autoexplicável, a fim de que o homem entenda a verdade e afaste-se do engano.  Afirmar a sua contradição aparente [e o que vem a ser isso, logicamente?] significa dizer que não há verdade, pois não existe oposição na verdade, de tal forma que duas proposições que se contrapõem não podem ter a mesma origem, elas se excluem, e uma será verdadeira, enquanto a outra será falsa. Procurar um entendimento de qualquer conceito bíblico com a premissa de que a Bíblia tem contradições, significa dizer que ela é falsa, não é infalível, nem divinamente inspirada. 

Ainda alguém poderá dizer: "Cara, você é arrogante demais! Desprezar séculos e séculos de história em que  homens piedosos humildemente se curvaram ao paradoxo, sabendo que não teriam todas as respostas, é colocar-se numa posição superior e orgulhosa".

Eu diria que o fato, em si mesmo, é irrelevante, pois se homens erraram [e muitos erraram], e outros seguiram os erros daqueles, e gerações posteriores os propagaram, não quer dizer que eu deva negar a verdade pela quantidade de testemunhos que se opõem a ela. O número de pessoas que se identificam com determinada posição não garante a veracidade dessa posição.  Pode, quando muito, dizer que ela é bem aceita, que há muitos defensores. Mas o que resta a essas pessoas é responder o seguinte: como se é possível crer em algo que se contradiz? Você poderia confiar em uma placa de "Perigo! Não  entre!" se houver ao lado dela uma outra dizendo "Benvindo! Entre!"? Como saberá qual placa é a verdadeira? Se afastará ou prosseguirá? Esse é o problema quando os princípios absolutos são negados. E se pensa que se tem algo, quando não se tem nada!

02 julho 2011

Bate-papo com Esli Soares: direito de pecar e a secularização da igreja



Por Jorge Fernandes Isah

Novamente, postarei outro bate-papo por aqui. Desta vez, a "vítima" foi o Rev. Esli Soares, do blog "A cruz on-line!", com quem tenho sempre boas e edificantes conversas, a despeito de, ultimamente, estarmos ambos com falta de tempo, o que tem reduzido esse privilégio.

Nossa conversa se deu rapidamente, e muito do que foi conversado pode parecer "solto", precisando de mais explicações, as quais estamos dispostos a dar. Mas as conversas informais são assim mesmo, vamos falando e mudando de assunto sem muita cerimônia.

Como considerei os vários pontos do bate-papo importantes, decidi publicá-lo, não sem antes pedir autorização ao meu interlocutor, que gentilmente cedeu-me todos os direitos de publicação, inclusive o eventual lucro financeiro que advenha dela [rsrs].

Agradeço ao Esli, primeiramente, pela amizade, e pela gentileza em permitir a reprodução da nossa conversa.

Então, sem mais delongas, vamos ao que interessa! 

BATE-PAPO COM ESLI SOARES

Esli: Oi!
Eu: Dom Esli, tudo bem?
Esli: Graças a Deus! Ainda mais com a suspensão do kit gay.
Eu: É... mas vamos aguardar os próximos capítulos...
Esli: Sim,  claro! Tenho noção de que foi só uma suspensão, mas é o caso de agradecer ainda assim. Parece até que vivemos numa democracia...
Eu: É... O motivo é que não foi muito legal... Por causa do caso Palocci... Foi uma troca com o PT; uma barganha nada moral e ética.
Esli: Sim. Mas devemos fazer bons amigos das riquezas de origem iníquas... hehehhe.
Eu: Sei lá... Estava lendo 1Co 10, e Paulo diz que não se pode comer na mesa do Senhor e na mesa de Satanás. Então... Foi uma medida certa por um lado, e errada por outro. Mas ao menos os meninos não serão expostos a tanta imoralidade em tão tenra idade, ainda mais do que já são bombardeados pelas mídias.
Esli: Veja, devemos ir com calma, pois vivemos num tempo de grande tribulação. Estamos na antesala do trono de satanás.
Eu: Mais do que os apóstolos? Duvido!
Esli: Sem a menor dúvida! Eles tinham apenas a perseguição das espadas. Nós temos a espiritual. O inferno do tempo deles era mais imaturo, mais ingênuo, não sabiam o que estavam enfrentando... A luz dos apóstolos era firme e direta.
Eu: Não vejo dessa forma. Paulo sempre disse que a nossa luta não era contra a carne, mas contra as potestades, e ele entendia muito bem do que estava falando, muito mais do que nós entendemos.
Esli: Mas, lembre-se de que tudo isso era profético também. Enfim, cada tempo enfrenta a sua luta, e comparar não é lá muito sábio. Fiz isso para mostrar que temos de procurar as respostas na Bíblia, mas temos de ler bem mais do que na simplicidade do texto. É preciso conhecer a história, a geografia, a política, e a filosofia por traz de cada trecho; e desenterrar 2000 anos de tradições para, então, de posse da Verdade, termos a relevância que será natural.
Eu: Creio que o texto bíblico é mais simples do que isso... Senão apenas os acadêmicos a entenderiam.
Esli: Jorge, o texto nunca é simples. Ele nem pode ser simples, porque fala das grandezas de Deus.
Eu: Eu não disse que é; disse que não é tão complexo como você aponta, é mais simples do que isso...
Esli: Mas ele é eficiente, e na medida de que quem dele se aproxima, e o faz com devoção e humildade e zelo, encontrará as respostas. Não é preciso muita coisa, somente fé; e a verdadeira fé o fará buscar todos os recursos disponíveis.
Eu: Sabe, quando a gente “inflaciona” o texto bíblico com ciências humanas é que ele fica complicado, na verdade, ininteligível... É o mesmo que alguém querer caminhar sem dar um passo... não tem jeito.
Esli: Isso é verdade; mas lembre-se de que Deus escolheu nos falar assim, digo, especificamente para nós, que somos os filhos do tempo "Sola Scripturae”; não podemos desprezar tudo o q Deus nos deu... hummm... Acho que está na hora de começar a publicar textos sobre a Bíblia...
Eu: Sim. Claro. Eu mesmo gosto bastante de filosofia, mas evito misturar os conceitos filosóficos ao texto bíblico, na verdade, o texto bíblico me ajuda a entender filosofia.
Esli: Correto. Entendo você, mas o texto bíblico é filosófico.
Eu: Por isso fica mais fácil entender filosofia. E acho que assim contamino o mínimo possível a Escritura... [penso ser impossível não contaminá-la com nossos pressupostos].
Esli: Sim. Por isso devemos lutar para desenvolver uma cosmovisão redimida.
Eu: É verdade... Sim, mas como você vê a questão secular? De defender princípios seculares que não são bíblicos? O crente pode, ao mesmo tempo, defender o princípio bíblico na igreja e defender princípios seculares no mundo que se contrapõem à Bíblia? Isso seria uma cosmovisão redimida ou contemporizada?
Esli: Não, não pode haver mistura...
Eu: Mas, como você vê o crente, por exemplo, que considera o furto pecado, mas defende o direito do homem furtar? Vale para a prostituição, a mentira, a fraude, e tudo o mais que seja pecado. Pode um crente, em sã consciência, defender o direito ao pecado? Quem peca tem direito de pecar? Ou ele está cometendo uma exceção?... Uma distorção?... Uma rebelião à ordem natural?
Esli: Com muita tristeza eu li sobre tudo isso nessas últimas semanas...
Eu: Não quero nem entrar na questão de quem escreveu. Estou falando da ideia, do princípio. Provavelmente não é dele, deve ter lido isso em sites estrangeiros, liberais... Mas o que você pensa a respeito?
Esli: Sim, é provável... Veja, eu ainda continuo afirmando a verdade da Bíblia, e a falsidade do homem.
Eu: Sei. Mas eu queria algo mais prático. Por exemplo, eu sou juiz, e há uma lei que permite o aborto. Como cristão, sou contra o aborto, mas como representante da lei devo aprovar o aborto que aquela mulher quer cometer; o que valerá mais? A minha condição de cristão ou juiz? Se eu autorizar o aborto, não estarei negando os princípios cristãos? A Bíblia? E Cristo?
Esli: Sim,  estará! Como cristão você estará disposto a perder o cargo de juiz, e Deus o honrará nisso.
Eu: É assim que eu penso, também.
Esli: Mas se você tiver modos de evitar tomar essa decisão ou subterfúgios para não ter de desobedecer a lei humana, deve usá-los.
Eu: Não entendi. Como assim, não desobedecer as leis humanas? Se elas ferem o Evangelho, e se voltam contra ele, devo desobedecê-las.
Esli: Sim, a desobediência civil é moralmente correta. O que digo é que existem subterfúgios, por exemplo, não aceitar o cargo que trata dessas questões. Se declarar incapaz de julgar o caso, ou usar de ferramentas para resolver a questão a favor da lei de Deus. Sabe, precisamos usar a tesoura e não só a pedra.
Eu: É, mas há casos em que isso será difícil, quando não, impossível, então, creio que renunciar ao cargo é o dever do crente; se essa for a situação.
Esli: Não antes de tomar a decisão correta... hehehe... Impedir o aborto, e deixar que o inimigo se levante; isso é, não saia da posição, afinal a nossa luta não é contra a carne e nem o sangue.
Eu: Ah, sim! Resistir até o fim. Como está em Hebreus: não resististe até o sangue.
Esli: Isso! Olha, Deus usa até um ímpio para nos proteger.
Eu: É verdade. Mas não consigo entender como um cristão pode defender o direito do homem pecar. Isso está me incomodando... E me parece algo muito perigoso. Pois podemos ter atitudes cristãos e atitudes anticristãs que originalmente se conflitam com a consciência tranqüila de que estamos fazendo o certo mesmo agindo erradamente. É aí que entra a ética cristã, mas parece que muitos estão mais interessados em resguardar os seus próprios interesses do que em preservar a moral e a ética estabelecidas por Deus.
Esli: É um erro horroroso, e está apoiado em uma falácia gigantesca!
Eu: Até pensei em escrever algo sobre isso, mas achei que tenho coisas mais importantes para escrever... E, sinceramente, não quero polemizar. Mas alguém disse no Facebook que os gays devem ter os seus direitos assegurados, inclusive o de pecar, baseado em Rm 1, deixá-los à própria sorte e iniqüidade... Agora, me diga, esse é o outro lado, o lado extremo da questão, mas é justo que nós, cristãos, deixemos os outros pecarem, e até estimulemo-os ao pecado,  para a própria destruição deles? Enquanto se minimiza a questão, esse irmão [que é pastor nos EUA] defendeu que devemos deixar os ímpios pecarem, sofrerem na carne por seus desejos ilícitos... E veio com a desculpa de que se dois gays moram juntos, vivem juntos, etc, eles devem ter o mesmo direito de um casal, pois se alguém morrer ou ficar impossibilitado de administrar seus bens, o outro o fará por ele, em seu nome... Mas já há leis que dizem, por exemplo, que se eu quiser fazer uma procuração para alguém administrar os meus bens, caso eu me torne incapacitado ou morra... Não é preciso ser gay e estar "casado" para se ter esse direito. Qualquer um pode fazer em vida... Por que eles não fazem? Mas aí entra outra questão, a da imitação do natural, querendo que algo antinatural seja natural, seja visto naturalmente pela sociedade, ao desejarem se equiparar a um casal. Não é questão legal, é a rebelião contra a vontade de Deus, contra o natural, contra tudo que grita diante dos olhos deles que o estilo de suas vidas é antinatural...
Esli: Sim; só lembrando que aqui a pessoa em vida não pode legislar sobre os seus bens depois da morte.
Eu: Há testamento, para isso.
Esli: No mínimo 50% deve seguir as leis de sucessão. Testamento é coisa de americano, aqui não rola desse jeito.
Eu: Mas muitos gays não têm herdeiros, logo, podem destinar seus bens para quem quiser. Nem pais ou irmãos poderão ingerir em suas decisões em vida.  O problema é não se fazer um testamento e o suposto beneficiário quiser reivindicar a herança depois da morte do parceiro.
Esli: É. Concordo.
Eu: Mas falo é de lá mesmo, dos EUA, pois esse pastor mora lá.
Esli: Outra questão é que ninguém tem direito de pecar. Existe a possibilidade de perdão, mas direito de pecar não existe. Como o Estado é laico, ele apenas deve legislar para que a liberdade de cada um não interfira na do outro. Em se tratando dos gays, ele deve aplicar a lei com rigor a favor ou contra eles, sem considerá-los mais ou menos privilegiados que os demais mortais... Não criar leis especiais.
Eu: Outro problema é: Qual o critério para se saber a qual pecado o homem tem direito? Qual pecado deve-se defender e qual não se deve defender? E por qual critério?
Esli: Cria exeções... Nenhum pecado é legítimo para o homem; nenhum homem tem direito ao pecado.
Eu: Por que um gay pode e um pedófilo, não?
Esli: Por uma questão simples...
Eu: Ou um mentiroso, ou um ladrão?
Esli: Os gays têm liberdade, e se sua liberdade não interferir na vida de ninguém eles podem fazer o que quiserem, afinal o Estado é laico. O pedófilo, o mentiroso, ou o ladrão, sempre cometem um crime contra alguém e, por isso, e somente por isso, devem ser punidos pelo Estado.
Eu: Mas laicidade não é isenção nem neutralidade... O sexo está nas ruas, nos outdoors, e é algo que deveria ser privativo, ser mantido entre 4 paredes... Falo isso tanto para “héteros” como para “homos”; mas se defendo a postura homossexual de esfregar o pecado deles na minha cara, por que uma prostituta não pode? Por que um pedófilo não pode? Por que um ladrão não pode? Essa é a questão. Quando defendo o direito ao pecado, defendo o direito de qual pecado? Se de um, de todos, visto todos serem pecados diante de Deus? Logo, terei de reconhecer os outros, se reconheço apenas um deles. E isso não cabe ao cristão. Usar a justificativa de que existe o pecado para defendê-lo. A questão é que se os cristãos não defendem a moral e a relativizam, o que podemos esperar do mundo?
Esli: Sim, mas não mistura as coisas. Volto a dizer que o homossexualismo é errado moralmente, em se tratando o que a Bíblia diz, porém, nas relações particulares o Estado admite sua incapacidade de julgá-los sob o aspecto moral; então, não podemos misturar as coisas.
Eu: Não estou misturando as coisas. Veja bem, a questão é: um crente, mesmo vivendo num Estado secular ou laico, como queira [ainda que não exista Estado laico, o que existe é Estado anticristão ou antireligioso], deve defender o direito ao pecado? E quais os critérios para tal defesa? Até quando eu posso vestir-me de laicista para defender um princípio antibíblico? É essa a questão.
Esli: Não deve. Não deve nem mencionar tal idéia.
Eu: Ou seja, até que ponto um pecado pode me levar a defender outro pecado? Ou um estado de pecaminosidade pode me levar a defender o direito ao pecado? Não seria o nítido conflito entre luz e trevas, ao qual Paulo se refere em Coríntios? De que qual comunhão é possível entre o bem e o mal? Ao ponto que um cristão possa defender o direito ao mal? Mesmo que seja o mal para quem o pratica?
Esli: Está errado defender um Estado laico; está errado defender uma democracia; porém, o cristão tem de viver o hoje. Se o Estado é laico temos de saber como defender a nossa causa nessa situação. Se vivemos numa democracia temos de nos defender nos moldes possíveis dentro de um regime democrático.
Eu: Mas se os próprios cristãos defendem o direito ao pecado, e não é somente um, mas li opiniões favoráveis de vários [alguns faziam defesas apaixonadas] que esperar do Cristianismo? Nesses moldes, como cumprir o ide de ser sal e luz neste mundo caído?
Esli: É, ai é mau. Sempre tenho falado que não posso defender essa ordem natural do mundo capitalista e democrático, mas sempre me confundem, dizem que eu estou defendendo o comunismo... O Estado livre é o estado que permite e incentiva o pior pecado, o qual é  o homem se achar Deus; e em assim sendo, Deus mesmo os entregará a praticas repugnantes e torpes, em contra partida.
Eu: Os regimes de governo humanos são assim mesmo, uns piores dos que os outros. Por isso, penso que o dirigir-se pela Lei de Deus tornaria justa a sociedade; seria bom para todos, menos para os criminosos contumazes. O fato é que, no mundo atual, não há lugar para arrependimento, apenas para a ostentação degradante do pecado. E é isso que alguns de nós defendem por aí, ainda que digam que não. Mas se não estão defendendo esse direito, estão defendendo o quê? Penso que a pior torpeza não é a de quem a pratica, mas a daquele que vê o outro praticando e se cala ou bate palmas.
Esli: Quanto à aplicação da Lei de Deus, creio que isso não vai acontecer. É ai é que divergimos...
Eu: Mas posso defendê-la... O acontecer pertence ao Senhor.
Esli: Eu acho que devemos como Igreja, e não como força política. Nossa ação é na sociedade e a sociedade redimida vai pressionar o governo e esse vai fazer algumas coisas por pura pressão dos homens redimidos.
Eu: De certa maneira, foi o que aconteceu com o Kit Gay... São as regras do jogo político.
Esli: Devemos ser gratos, pois Deus nos protegerá nesses tempos de angústia.
Eu: Certamente. Mas outra questão é: se defendemos o direito ao pecado, é sinal de que não amamos o pecador. Pelo contrário, está nítido o nosso desprezo por ele.
Esli: Sim; como tenho sempre dito, se proibirem falar contra o homossexualismo, serei preso toda semana, se bem que eu raramente fale desse assunto.
Eu: Não precisa falar, mas não tem porque não falar. O fato é que, mesmo se não falar, alguém pode acusá-lo de homofóbico, de perseguidor de gays, e irá preso do mesmo jeito.
Esli: Por isso disse que serei preso toda semana. Será bom, pois os presos ouvirão o Evangelho e se converterão; sabendo que a população carcerária é cada vez maior, vamos tomar o Brasil para Cristo.
Eu: Por que a lei contempla o pecado, infelizmente! E a sociedade estimula os pecadores; estimula o conceito de pecado, para depois, quando é prejudicado por eles alegar injustiça e frouxidão do Estado. Mas se esquecem de que são os primeiros a defender a impiedade, como um salvoconduto para pecar livremente. Isso é comum entre os homens naturais, só faltava os cristãos defenderem-no também, agora, não falta mais [rsrs].
Esli: Hehehe... Sim, mas há 7.000 que não se dobraram a Baal.
Eu: Amém!... Meu irmão, terei de sair. Foi muito bom o papo!
Cristo o abençoe! 
EsliAmém!
Nota: Indico o texto do pr. Josafá Vasconcelos, "Decisão do STF: Direito de pecar?!"

25 junho 2011

O julgamento de Deus*




















Por Jorge Fernandes Isah

         Se há um absurdo, esse é o de se transferir para Deus a responsabilidade que nos pertence. Em nome de uma pretensa liberdade humana, que nada mais é do que a liberdade de ser livre de Deus, ou autonomia humana, ou a liberdade da indiferença, os proponentes dessa idéia de liberdade, sem a qual não haveria responsabilidade, ao ver deles, transferem-na para Deus quando confrontados com inúmeras passagens bíblicas que afirmam a plena e completa soberania divina. Mais que um disparate, fruto da incompreensão e distorção de conceitos escriturísticos, essa tentativa de defesa é um ultraje.
         O argumento é mais ou menos o seguinte: se Deus escolheu e decidiu tudo, então não se é culpado de nada, logo não se é responsável, e se houver culpa e culpados, Deus é injusto. Aparentemente se tudo, inclusive a ação humana, é determinada pelo Todo-Poderoso, então o homem não pode ser responsabilizado por nenhum dos seus atos, estando desde já inocentado pelo que faz ou vier a fazer. Nesse molde, o argumentador conclui o mesmo que o interpelador de Paulo: “Por que se queixa ele [Deus] ainda? Porquanto quem tem resistido à sua vontade?” [Rm 9.19]. Se tudo foi decretado, até mesmo os mínimos detalhes, pensamentos e desejos, como se pode ser responsabilizado pelo que se faz? Já que ninguém pode resistir-lhe, por que ainda se queixa contra nós? Não seria Deus injusto ao nos condenar por fazer aquilo que não temos como evitar? Que nos é impossível resistir? E que não temos como não realizar? Sem chance alguma de fugir da realidade pré-ordenada? Como ser responsável se não há liberdade na escolha?
       Há de se analisar alguns pontos:
      1)Responsabilidade não pressupõe liberdade, de tal forma que ninguém pode ser livre de Deus simplesmente porque, como diz a Escritura, é ele quem opera em nós tanto o querer como o efetuar segundo a sua boa vontade [Fp 2.13]. Por querer, entende-se a vontade de, ter a intenção de, almejar, anelar, intentar algum ato. Por efetuar, levar a efeito, consumar, realizar ou fazer determinado ato. E o que significa isso? Deus, do alto de sua autoridade como único legislador e administrador do mundo, decretou, ordenou e exigiu que todas as coisas se cumprissem segundo a sua vontade; porque “fez tudo o que lhe agradou” [Sl 115.3].
       É o que Jó também diz: “Mas, se ele resolveu alguma coisa, quem então o desviará? O que a sua alma quiser, isso fará. Porque cumprirá o que está ordenado a meu respeito, e muitas coisas como estas ainda tem consigo. Por isso me perturbo perante ele, e quando isto considero temo-me dele. Porque Deus macerou o meu coração, e o Todo-Poderoso me perturbou” [23.13-16].
     Jó não vê a chance de sequer argumentar com Deus; de tentar dissuadi-lo de abandonar o seu propósito eterno; até porque reconhece que o Senhor ordenou tudo a seu respeito, e de que tudo ordenado se cumprirá infalivelmente. E quando considera essa situação,    ao invés de se revoltar ele teme e se perturba, porque tudo o que o Senhor quiser, assim fará, independente do homem ser livre ou não, porque como está escrito, não depende de quem quer ou quem corre, mas de Deus querer ou não [Rm 9.16]. Ao ponto em que Jó teme e se perturba, pois sabe impossível não acontecer o que Deus decidiu, e ele não arvora para si nenhuma inocência ou não-responsabilidade, e reconhece que Deus o macerou. Macerar aqui tem o significado de sujeitá-lo, de submetê-lo à vontade divina, colocando-o completamente sob o seu domínio. E mesmo se considerarmos o termo como sinônimo de dilacerar, afligir, não estaríamos errados, pois parece ser também esse o sentimento de Jó ao reconhecer-se perturbado.
      2)O livre-arbítrio ou libertarismo propõe que os indivíduos escolhem, agem e são moralmente responsáveis pelas suas escolhas e ações, e para isso é necessário que ele possa escolher fazer “A”, mas também possa evitar e não escolher fazer “A”. Ele teria o que se chama de “controle duplo da vontade”, de se poder ir para uma decisão ou outra pela “liberdade da indiferença” ou seja, a capacidade de escolher entre duas alternativas sem  inclinação ou tendência tanto para uma como para outra. Partir-se-ia da neutralidade, da isenção, sem qualquer coerção externa ou interna. Isso é simplesmente impossível, pois nenhuma decisão é neutra, e nem é possível sê-la [1]. Acontece que todos os homens, sem exceção, “se extraviaram, e juntamente se fizeram inúteis. Não há quem faça o bem, não há nem um só” [Rm 3.12]. Ora, estando debaixo do pecado, como se pode ter a mesma capacidade de escolher entre o bem e o mal? Entre o certo e o errado? 
       3)A melhor definição para responsabilidade é a que define-a como a obrigação de responder pelas ações próprias; o dever de dar conta de alguma coisa que se fez ou mandou fazer. Em linhas gerais é imputar, atribuir acerto ou erro a alguém pelo que se faz, pelos atos que praticou. Não há implicação em se ser livre para se ser responsável. Ainda que os elementos objetivos ou subjetivos que o levaram a tomar a decisão estejam implícitos na decisão. Ela não aconteceu por si só, mas pela vontade do indivíduo. Mas essa vontade não é livre, nem livre de causação. De tal forma que a causação ou coerção sobre a vontade do homem não elimina a sua responsabilidade.
      Com essas idéias em mente, por que o defensor da liberdade humana, para se ser moralmente responsável, diz que não havendo liberdade o homem não pode responder por seus atos? E se for, Deus é injusto?
     De certa forma, esse advogado defende uma causa errada, porque Deus, e não o homem, é quem estabeleceu o que é justo e injusto, o que é certo e errado, o que é bom e mau, e assim todas as coisas são ordenadas conforme a sua sabedoria, sem que nada possa escapar ao seu juízo. O que acontece é que ele não está disposto ou inclinado a reconhecer a verdade. Com isso não estou excluindo-o do rol dos santos. Não é isso. Há equívocos, e mesmo os grandes heróis da fé os cometeram: Noé, Abraão, Davi, Pedro, João, etc. E nem por isso foram eliminados da fé uma vez dada aos santos [Jd 3]. O que estou a dizer é que, de alguma maneira, a verdade é-lhe tão dura, inflexível, humilhante e dolorosa que prefere se contentar com a mentira ou com uma falsa-verdade. E ele é responsável por isso, não Deus; mesmo que esteja fazendo-o com a melhor das intenções: absolvê-lo de ser o autor do mal.  
     Quando o determinismo bíblico é levantado, e a questão da liberdade versus responsabilidade deixa de estar na esfera humana para se encontrar na esfera divina, as coisas se tornam claras, e fica evidenciada a verdade bíblica. O determinismo bíblico é comumente confundido com fatalismo, que nada mais é do que “forças” indefinidas como o destino, o azar, a sorte, o acaso, etc, agirem e determinarem todas as coisas. O fatalismo é aleatório, injusto, imperfeito e não tem nenhum caráter onisciente e providente. Já o determinismo estabelece que Deus é quem ordenou e decretou todas as coisas no universo, de tal forma que elas acontecem por sua sabedoria, santidade e perfeição, segundo a sua vontade, uma vontade providente que levará a cabo o final decidido e fixado por ele no transcorrer do tempo e da história. Enquanto o fatalismo é impessoal, o determinismo é pessoal. Enquanto o fatalismo é imperfeito, o determinismo é perfeito. Enquanto o fatalismo é indefinido, não tendo uma causação delimitada, o determinismo tem como causa primeira o próprio Deus, e por ele é posto em execução.
       Mais do que buscar um sentido moral no homem, o sentido moral está no Todo-Poderoso o qual estabeleceu o que venha a ser moral e imoral, bem e mal, certo e errado, verdade e mentira... E isso tem-se de entender: por mais que se queira proteger a Deus, não podemos ser tolos ao ponto de considerar que alguma coisa pode ter sido criada alheia à sua vontade, ou sem que quisesse. Se tal ocorresse, não estaríamos a falar de Deus, mas de deuses. O fato de todas as coisas existirem, e nelas incluídas o mal, o pecado, satanás e seus demônios, o inferno... acontecem por deliberada resolução divina. Não passiva, mas ativamente. Não que um problema tenha-lhe sido colocado nas mãos para resolver sem que esperasse ter de resolvê-lo, mas todas as coisas existem por sua vontade e estão postas diante de si mesmo antes de existirem; muito antes de haver o problema, Deus já tem pronta a solução.
       Então se Deus determinou tudo, como o homem pode ser considerado responsável por aquilo que fez, mas que não poderia deixar de fazer?
      Foi assim que um inquiridor cínico interpelou Paulo: “Por que se queixa ele[Deus] ainda? Porquanto quem tem resistido à sua vontade?”. Ao que Paulo respondeu: “Mas, ó homem, quem és tu, que a Deus replicas? Porventura a coisa formada dirá ao que a formou: Por que me fizeste assim? Ou não tem o oleiro poder sobre o barro, para da mesma massa fazer um vaso para honra e outro para desonra? E que direis se Deus, querendo mostrar a sua ira, e dar a conhecer o seu poder, suportou com muita paciência os vasos da ira, preparados para a perdição. Para que também desse a conhecer as riquezas da sua glória nos vasos de misericórdia, que para glória já dantes preparou, os quais somos nós, a quem também chamou...?” [Rm 9.20-24].
      Não há a menor chance de tentar fazê-lo responsável pelo que somos ou realizamos. A alegação de que algo foi feito sob coerção impossível, visto vir do decreto e da determinação de Deus em nada ajudará o indivíduo, nem poderá absolvê-lo. Usar essa desculpa não o fará inocente diante de Deus. A culpa está no ato praticado, e quer se queira ou não, fazemos o que queremos, pois o fazemos. Se os nossos atos estão em comunicação direta com a nossa vontade, a qual decidirá efetivamente o que se tornará real, não importa se a vontade é dirigida ou não; importa que o faremos por querer, e assim procedemos em cumprir a nossa vontade. A coerção é um detalhe irrelevante, visto Deus condenar o homem não por ser constrangido ou não, mas por praticar o mal. Se praticar o mal, por coerção, o que determinará a condenação será o ato praticado. Se praticar o mal, sem coerção, o que determinará a condenação será o ato praticado. Seja um ou outro, o que definirá a culpa ou não será se o homem transgrediu ou não transgrediu a Lei de Deus. Portanto os homens ficarão sempre indescupáveis, pois tendo o conhecimento de Deus, “não o glorificaram como Deus, nem lhe deram graças, antes em seus discursos se desvaneceram, e o seu coração insensato se obscureceu” [Rm 1.21].
      Porém, há um agravante. Quando julgamos a Deus [“Por que se queixa ele ainda?], incorremos novamente na completa impossibilidade de nos tornarmos desculpáveis diante de dele, pois, “és inescusável quando julgas, ó homem, quem quer que sejas, porque te condenas a ti mesmo naquilo em que julgas a outro, fazes o mesmo” [Rm 2.1]. Se Deus aqui julga os hipócritas, aqueles que condenam os que fazem exatamente o que eles mesmos fazem sem que profiram condenação a si mesmos, o que dirá daqueles que pretendem, ainda que inconscientemente, julgar o Senhor? Se tornarão indesculpáveis, condenados pelo próprio pecado, pelo ato de supor ou formar um conceito errôneo a respeito de Deus, e de quererem enquadrá-lo em seu esquema imperfeito e injusto. Acusar o Senhor disso ou daquilo em nada facilitará as coisas para o homem, pois não somos responsáveis segundo o nosso padrão, nem seremos julgados por ele, mas exclusivamente por aquele que tem toda a autoridade e poder para julgar.
       Deus pode condenar? Sim. Pode absorver? Sim. Criou as regras? Sim. Há outro julgamento igual ou mais perfeito que o dele? Não. Há possibilidade dele errar? Não. De ser injusto? Também, não. Então, por que não se reconhece que, sendo Senhor e Criador de todas as coisas, pode controlar nossas decisões? E de que, mesmo sob o seu controle, continuamos responsáveis pelo que fazemos? O princípio da responsabilidade está na autoridade divina e não na liberdade, porque o homem jamais será livre de Deus, mas Deus sempre será autoridade sobre o homem. E ninguém poderá alegar injustiça, porque Deus não é injusto [Rm 9.14]de maneira que cada um de nós dará conta de si mesmo a Deus” [Rm 14.12].

Nota: [*] Texto publicado originalmente em em 04.10.2010, aqui mesmo, o qual reproduzo juntamente com os comentários à época, sempre mais esclarecedores que o próprio texto. Como estou escrevendo outro  que tem semelhanças com este assunto, considerei a sua republicação, como uma introdução.
[1] Para saber mais sobre a incoerência do livre-arbítrio, clique AQUI