22 novembro 2010

Pagando a dívida, e ainda devedor [Comentário a Gl 2.20]













Por Jorge Fernandes Isah

    Gálatas 2.20 é um versículo precioso, poderia dizer, inigualável. Não somente porque foi o versículo da minha conversão [que descrevi no texto O dia em que Cristo me fez], mas porque, de uma forma singular, poder-se-ia resumir a vida cristã ou, ao menos, descrevê-la plenamente. É também o alvo, o de um dia poder dizer: “Já estou crucificado com Cristo; e vivo, não mais eu, mas Cristo vive em mim”. São palavras que me acalentam, me dominam, me compungem a encontrar-me nelas. Poderia ser a epígrafe cravada na minha sepultura, porém, muito mais a quero gravada em meu coração. O resumo de tudo o que almejo e quero experimentar. Mais do que isso, ser. E desde aquele momento, decorei-as, como se decora a melodia da mais bela entre todas as canções. Como se ouvisse a sinfonia perfeita, inefável, a síntese do mais puro e santo sentido, ainda que com palavras indizíveis em sua verdade absoluta e extraordinária. Como se estivesse a construir algo que sei impossível, por mim mesmo, construir. De certa forma, invejo a Paulo por ter sido ele e não eu a proferi-las; mas creio que saídas de sua boca, elas têm o som da minha voz, o som da sua voz, o som da voz de todos os santos, daqueles que são um em Cristo, e por ele vivem.
     
       Mas, o que levou o apóstolo a proferi-las?
    
     A mensagem central de Gálatas é a disputa: Lei x Evangelho. Em vários momentos, parece haver o desprezo de Paulo pela lei, como se fosse descartável e não existisse mais nenhum sentido nela. Mas esse não é o caso. Em outra carta, ele diz: "E assim a lei é santa, e o mandamento santo, justo e bom” [Rm 7.12]. E, ainda: “Anulamos, pois, a lei pela fé? De maneira nenhuma, antes estabelecemos a lei” [Rm 3.31].
    
   O que está em disputa entre Paulo e os judaizantes é a lei como instrumento de salvação. Eles pregavam contra o Evangelho, ao afirmar que era necessário se cumprir toda a lei para salvar-se. Por isso, o apóstolo diz: “Se a justiça provém da lei, segue-se que Cristo morreu debalde” [ 2.21]. Ora, se para ser salvo o crente deveria cumprir toda a lei, qual a razão de Cristo encarnar, padecer, e morrer na cruz? Por isso o homem não é justificado pelas obras da lei, mas pela fé em Jesus Cristo [2.16]. Desta forma, Paulo constrói a defesa do Evangelho da Graça, sem que haja nenhum tom antinominiano [1] em seu discurso, pelo contrário: “É porventura Cristo ministro do pecado? De maneira nenhuma. Porque, se torno a edificar aquilo que destruí, constituo-me a mim mesmo transgressor” [2.18].

     Se Cristo pagou na cruz a dívida que tínhamos para com Deus, e se está paga, definitivamente paga, o que mais podemos fazer que ele não fez? Fico a imaginar Paulo rindo-se da tolice desses homens, mas entristecendo-se pelo caráter sutil e maligno de distorcerem a fé a fim de enganar incautos, e anular a graça.  Cristo, ao destruir o pecado e seu caráter condenatório sobre os eleitos, não poderia restituí-lo novamente, ao ponto em que seria exigido o cumprimento da lei para a salvação. Se a justiça foi decretada na cruz para os que crêem, se o pecado foi morto, ressuscitá-lo significaria dizer, entre outras coisas, que a obra do Senhor não foi eficaz, e de que, loucamente, ao trazer a justiça, trouxe a injustiça.

  O apóstolo está a condenar aqueles que anteriormente pregavam o Evangelho da graça, para agora viver pela lei, tornando-os em transgressores, porque quem não está morto para a lei, vive para ela, ou seja, vive para a morte, pois pela lei ninguém pode ser justificado perante Deus [3.11],  antes está debaixo da maldição da lei. Ao contrário, quem está morto para a lei, vive para Deus, eternamente. Paulo ensina a teologia correta, a doutrina correta, mas muito mais do que isso.

      Ele disse que estava morto para a lei.

      Que estava crucificado com Cristo.


      Que vivia, não mais ele, mas Cristo.


      Que Cristo o amou, e se entregou a si mesmo por ele.


      Então, o que levou o apóstolo a proferir o verso 2.20?

    A consciência de tudo isso acima, mas, sobretudo, reconhecer que, sem Cristo, nada disso seria possível. Nem mesmo ele, Paulo, seria possível. De uma forma maravilhosa, Paulo reconhecia a completa dependência do Senhor, e a obra fantástica que fez para que ele pudesse reconhecer-se em Cristo. Sem ele, o que seria Paulo? Sem Cristo, o que seria eu? Você? Não haveria esperança, não haveria o perdão, nem a salvação. Apenas a tristeza assoladora de que a condenação era questão de tempo, irremediável, uma maldição a pairar sobre nossas cabeças eternamente. E se eu, antes condenado, agora salvo pelo poder de Deus, o que quereria exaltar em mim mesmo para voltar à destruição? Ou seria possível exaltar-me na ruína? Ou antes, arrependendo-me de mim mesmo para ser um dia como Cristo é? Pois se olharmos para nós, como somos, sem Cristo, não haverá nada além de  condenados sem que seja preciso esperar o castigo, pois estamos já a “curtir”, sobre nós, a ira de Deus. Se olhar para mim, descobrirei apenas que sou miserável, e nu, e cego. Se olhar, e apenas me ver, há um pecador naufragando em pecados. Se sou o futuro, não há futuro; apenas o passado de morte, de sofrimento e angústia. Ao contrário, se vejo Cristo em mim, assim como Paulo o via em si, as coisas mudam de figura. Já não sou mais um condenado, antes justificado. De pecador, a santo. De maldito, a bendito. De desgraçado e vil, a agraciado e amado.

    A teologia de Paulo [2] estava certa. Ela lhe trouxe esperança, certeza, convicção. E abriu-lhe os olhos para a mais surpreendente e inesperada verdade, de que ele já não era mais ele, mas Cristo a viver nele. E trazia no seu corpo as marcas do Senhor [6.17], marcas profundas que não o impediam de se ver como era, de reconhecer o que era, de gloriar-se nas fraquezas para que o poder do Senhor em si habitasse [1Co 12.9].  Porém, antes era necessário que compreendesse e conhecesse isso, para depois sentir; pois, como sentir o que não se conhece ou não compreende? Como alguém desejará o que não conhece?

    Como qualquer homem, ele tinha de nascer, crescer e amadurecer na fé. Mas ninguém nasce por si mesmo; era necessário que fosse gerado por Cristo; que o sangue do Senhor não somente o limpasse dos pecados, mas corresse em suas veias e bombeasse no seu coração a vida. A vida que somente o Senhor poderia dar, e deu, a despeito de todo o desejo de nos apossar dela como se fosse nossa por direito, e não por dádiva, misericordiosa, e graciosamente entregue pelo amor com que Deus nos amou. O caminho nos é mostrado, mas não há nada que nos faça andar nele, se não nos for revelado. Quem não pode ver, como saberá onde andar?

    O certo é que, como João o Batista disse, era necessário que ele diminuísse e Cristo crescesse [Jo 3.30].

      E assim será para todos os que foram crucificados e mortos com Cristo.

     Se ele não viver em nós, a morte viverá.

Nota: [1] Antinomianismo significa “antilei”. É o oposto de legalismo, e como ele, uma heresia. Para os defensores do antinomianismo, o crente não tem de obedecer à lei de Deus, pois Cristo à pregou na cruz. E se a pregou na cruz, está-se livre para viver como quiser, inclusive pecando o quanto quiser; ao ponto de até mesmo distorcerem o sentido de graça, ao afirmar que, quanto mais se peca, mais a graça se manifesta.
[2] Paulo, ao defender magistralmente o Evangelho da graça, afirmando a justificação somente pela fé no sangue derramado de Cristo na cruz, defende também a sua autoridade e ministério contra os falsos-mestres, os detratores que buscavam difamá-lo e desqualificá-lo como apóstolo. E nada mais verdadeiro do que reafirmar que estava morto para si, para viver para Cristo, enquanto aqueles queriam viver por si mesmos.
[3] Aguçado pela conversa com uma querida irmã, lembrei-me que devia um texto sobre Gl 2.20. E, por mais que escreva, sempre serei devedor a Deus por tê-lo dado a mim.
[4] Não entrei muito na questão da impossibilidade da lei como meio de salvação, a qual farei brevemente em outro texto.
  

19 novembro 2010

Manifesto em defesa da liberdade de expressão religiosa

A Universidade Presbiteriana Mackenzie vem recebendo ataques e críticas por um texto alegadamente “homofóbico” veiculado em seu site desde 2007. Nós, de várias denominações cristãs, vimos prestar solidariedade à instituição. Nós nos levantamos contra o uso indiscriminado do termo “homofobia”, que pretende aplicar-se tanto a assassinos, agressores e discriminadores de homossexuais quanto a líderes religiosos cristãos que, à luz da Escritura Sagrada, consideram a homossexualidade um pecado.  Continue a ler

15 novembro 2010

Um pouco de escatologia, vida cristã e esperança














Por Jorge Fernandes Isah

    Este texto é parte de um bate-papo com um irmão que me consultou, por email, sobre algumas questões que achei pertinentes reproduzi-las aqui, com a devida autorização dele; cujo nome será preservador, e o chamarei de Ivan. O questionamento dele virá primeiro, entre “aspas”  e em amarelo, e o meu comentário logo em seguida, em branco.

   “Estou escrevendo esse e-mail para tirar algumas dúvidas sobre Escatologia. Encontrei seu blog, Kálamos, a pouco tempo e gostei muito de muitos artigos. Pude ver que você segue a linha de interpretação pós-milenista referente a Escatologia. É isso mesmo? Ou entendi mal?” 
    Sou um falso pós-milenista [rsrs]. Na verdade, não me defini escatologicamente, por falta de tempo para estudar o assunto. Como fui convertido há exatos 6 anos, tenho preferido estudar assuntos mais urgentes sobre os quais me tenho debruçado e, infelizmente, a questão escatológica vai-se arrastando até quando Deus quiser que se arraste. 
     O que causa a confusão, e não somente a você mas a outros irmãos, é que sou teonomista [até onde estudei], e a teonomia é sempre confundida com dominionismo, reconstrucionismo e pós-milenismo. Sou o que gosto de dizer, um teonomista pessimista. Defendo a aplicação da Lei do AT nos dias de hoje para todos os homens, mas não acredito que isso vá acontecer, exatamente por acreditar que o mundo caminha mesmo para a rejeição e negação de Deus e sua vontade. Mas isso não me impede de lutar, defender, e tentar a todo custo que os crentes entendam a unidade da Escritura e a urgência de se voltar a essa unidade, inclusive na aplicação da Lei, para que o mundo seja mais justo. O fato de eu não crer que a Lei divina será aplicada no mundo, não me impede de lutar para que seja. Por isso, acho que me confundem com pós-milenista, exatamente porque não defendo a apatia, omissão e a "espera" do crente na volta de Cristo, enquanto os ímpios ganham espaço em todas as esferas, a imoralidade e a antiética campeiem, e o cinismo de muitos se eleve à potência máxima, com aquele discurso de querer ver o mundo explodir para que Cristo volte mais rapidamente a reinar.
     Acontece que Cristo reina e nunca deixou de reinar. A Escritura diz que pelo poder de sua palavra sustenta todas as coisas, até mesmo esse mundo caído. E sustentar vai muito além de apenas dar as condições mínimas para que o mundo sobreviva, mas quer dizer controlar todas as coisas, em seus mínimos detalhes. Ajo sem me preocupar com os resultados, da mesma forma que evangelizo sem me preocupar se vão crer ou não, sem me preocupar em quantos crerão na palavra ou não, pois cabe-me apenas proclamar o Evangelho de Cristo crucificado, e o resto, deixo para o Senhor. Não tenho de ser eloquente, articulado, convincente [nada me impede também de sê-lo], mas o meu dever, como servo inútil, é falar de Cristo, nada mais. A obra é do Espírito Santo que dará convencimento, regeneração, fé, e convicção ao novo-nascido.

     “Eu já conheço o site monergismo em português, mas parece que há poucos defensores dessa linha no meio evangélico brasileiro”.
      Conheço muitos irmãos pós-milenistas, mas se há alguém que estuda e defende com unhas e dentes essa visão escatológica é o meu amigo Natan de Oliveira. No blog dele há muitas postagens sobre o assunto, inclusive um estudo sobre Mateus 24. Uma pena ele ter excluído todos os comentários de suas postagens, que poderiam ajudar no entendimento do assunto, mas paciência! Dê uma chegada lá, e se quiser, contate-o por email, o qual está disponível na página principal do "Reflexões Reformadas", para dialogar com ele.

   “Confesso que ainda sou pré-milenista, mas abandonei a linha dispensacionalista, pré-tribulacionista. Eu não consigo ler o Apocalipse ou Tessalonicenses e ver um arrebatamento secreto sete anos antes da vinda de Cristo e acho que essa linha é até anti-semita, pois coloca Israel pra sofrer na tribulação, enquanto os gentios convertidos são tirados. Engraçado é que os dispensacionalistas pregam um grande amor por Israel, mas os separam do corpo de Cristo que é a Igreja. Acho contraditório”.
     Também iniciei no dispensacionalismo, mas sem estudar muito, lendo apenas alguns livros; mas o que me tornou incrédulo nessa doutrina é o fato dela se contrapor a princípios claramente bíblicos, revelando-se antibíblicos em muitos aspectos, e um verdadeiro delírio teológico. Também me simpatizo muito com o pré-milenismo histórico, mas, como disse, ainda não me defini escatalogicamente. Pode parecer estranho um Calvinista, teonomista e pré-milenista, mas é mais ou menos o que sou... Por falar nisso, Gordon Clark também o era.

     “Bom, sou batista, e na minha igreja sou minoria, pois a linha ensinada e crida por aqui é a do pré-milenismo dispensacionalista”.
     Os batistas já há algum tempo se perderam em sua história. Mas graças a Deus há igrejas que estão voltando à fé dos nossos pais, crendo na verdade bíblica chamada Calvinismo. E muitas abandonando o dispensacionalismo, e firmando-se no pré-milenismo histórico ou no amilenismo que fazem parte da nossa tradição.

    “Você deve saber também que circula uma infinidade de informações na web sobre conspirações de grupos como maçonaria, clube billderberg, illuminatis, etc. Há artigos e documentários aos montes sobre tudo isso, como no youtube  por exemplo. E algumas coisas que se passam no mundo parecem indicar algo estranho. A gente ouve falar de aquecimento global, de chip, haarp, de aumento de terremotos e catástrofes climáticas e todo esse movimento na economia e na política mundial. Reunião de países emergentes, de G-8, de G-20, tensão entre Israel e Irã, EUA e China, socialização da América do Sul, etc”.
     Olha, sinceramente, evito esse tipo de assunto. Acho muito alarmista e pouco producente. Não vejo o evangelismo, a caridade e o amor aumentarem por causa dessas preocupações. Então, evito-as o máximo que posso. Ao ponto de não ler revistas, jornais e ver noticiários de tv. Sou quase um ermitão numa metrópole [rsrs]. Uso muito a internet e sou seletivo no que leio. Gosto mais de livros que de periódicos. Há uma linha de pensamento de que a escatologia definirá a nossa visão cristã, e de certa forma, creio ser verdade, não para todos, mas para a maioria. Mas o que acontece mesmo é que se pode ter duas visões, por exemplo, dentro do mesmo sistema:
  1) No dispensacionalismo, o crente pode ter a urgência de pregar o Evangelho, pois, segundo ele, Cristo não voltará antes que a palavra seja ouvida em todos os cantos da terra. Então, a motivação de se evangelizar não é para salvar almas, nem para glorificar o Senhor na obra expiatória e justificadora na cruz, mas para que Cristo volte, de tal forma que a vitória seja assegurada e o alívio esteja garantido. E a ordem para o crente é de proclamar o Evangelho e fazer discípulos em todas as nações, sem se preocupar que isso seja um indicativo de que ele está às portas ou não. De outro lado, pode haver irmãos que abandonarão o evangelismo porque os "sinais" da vinda do Senhor são tão evidentes que se torna desnecessária a proclamação e o fazer discípulos, por uma questão de tempo, e porque outros irmãos já se adiantaram na questão e o processo todo está perto de se concluir.
   2) No pós-milenismo, pode acontecer de irmãos proclamarem o Evangelho para o crescimento do Reino, querendo que ele cresça e se multiplique como o grão de mostarda ou as areias da praia, e assim ele se instale. Mas também pode levar muitos a permanecerem estéreis e inertes quanto ao evangelismo, porque tudo se cumprirá de um jeito ou de outro, trabalhando-se individualmente ou não. Deus realizará a sua obra de qualquer maneira, quer me use ou use outro em meu lugar.
   O que eu acho é que a motivação está errada, pois o evangelismo [e aqui evangelismo não é somente para a salvação, aquela pregação que faz com que as pessoas aceitem Jesus, mas também o discipulado de recém-convertidos e mesmo de irmãos mais "velhos" na fé] deve ser, sobretudo, por amor a Cristo, por amor ao Evangelho, por amor à Verdade, e por amor aos que estão perdidos. Se eu tiver isso imbuído em meu coração, estarei fazendo a coisa certa, da forma certa, quer seja dispensacionalista, “a” ou pós-milenista.

   “Diante de tanta notícia e convulsão social parece fazer sentido o que dizem os pré-milenistas. A última eleição, por exemplo, foi decepcionante pra mim, eu vi a esquerda se agigantar e adquirir mais força. Além disso, constatei que no meio cristão temas que antes nos uniam, hoje nos separam. Me assustei com o aparecimento de crentes que defendem o aborto, a prática homossexual e até acharam que a igreja deveria ser alvo de maior controle do governo mesmo, pois estaria falando demais”.
     Essa é a distorção do Evangelho em muitos redutos ditos cristãos. Como sempre digo, há aqueles que fatiam o Evangelho e pegam o que lhes interessam, como se a Bíblia fosse "self-service", onde se escolhe o que quer e descarta-se o que não se quer. Infelizmente, parece cada vez mais um método a se usar, numa falsa interpretação, que, no final, faz com que a pessoa não tenha nada, pois ter uma parte da palavra e rejeitar o todo é o mesmo que se iludir achando possível escolher aquilo em que se vai crer. A Bíblia é para ser crida, entendida e aceita em sua inteireza, de nada adianta se apropriar de pedaços, frações, pois o entendimento somente é possível pelo todo.
      O que esses irmãos que defendem a imoralidade estão a fazer é desprezar a palavra e o próprio Deus, de uma maneira acintosa, vergonhosa, dissoluta. São anticristãos que se dizem cristãos com o intuito de confundir e enganar os cristãos [se fosse possível].
   As ideologias e os esquemas humanistas aos quais eles são convertidos, e pelos quais têm fé, é que ditam a sua doutrina em um falso deus, em um falso evangelho, em uma falsa igreja, em um falso padrão moral, crendo-se vivos quando estão mortos.

     “Será que sou muito pessimista, estou enxergando problema onde não há? Eu tenho visto o pecado se multiplicar, o afeto das pessoas diminuírem, a irreverência aumentar. Eu acho que essa geração atual é uma das mais irreverentes, basta olhar o que se tornou o culto”.
     Você está certo, meu irmão! Tenho a mesma impressão. Acontece que se olharmos para o passado, veremos que o ciclo atual em que vivemos também aconteceu em outras épocas da história. A Escritura mesmo relata uma série de fases em que Israel estava entre à apostasia, dominados pelo pecado, pela imoralidade, pela idolatria e desfarçatez. Porém, sempre houve, em todos os tempos, aqueles que foram separados pelo Senhor para proclamarem a sua palavra, exortando o povo a voltar ao caminho da verdade, vivendo por e para Deus. O mesmo aconteceu em outras fases do Cristianismo, e está acontecendo agora, contudo, não acho que deva haver pessimismo, pois Deus está no controle de todas as coisas, e o mundo e a história caminharão segundo a sua vontade. Sem cruzar os braços e esperar, mas agindo para que o Evangelho se multiplique, as vidas sejam transformadas, a luz resplandeça em meio às trevas, e para não sermos cínicos a ponto de nos rir com a miséria e a desgraça humana.

    “Uma visão superficial das linhas escatológicas me dá a impressão que o pré-milenismo empolga o estudo do assunto, mas nos deixa apreensivos com os acontecimentos e às vezes nos leva a um estado de preocupação excessiva.
   O amilenismo trás um pouco de paz, mas deixa muitas lacunas, não é profundo. Parece que, com exceção de alguns ortodoxos, os liberais se agradam mais dessa linha.
    Já o pós-milenismo é o menos popular, parece que carrega o esteriótipo do puritanismo que fundou os EUA e que jamais vai ter sucesso novamente, numa sociedade secularista como a nossa. Enche o coração de esperança, mas às vezes esbarra na dura realidade do abandono da fé em países outrora cristãos, como na Europa e na luta contra o pluralismo de idéias que deixa esse mundo muito confuso. 
     Essa questão toda tem me incomodado muito”

     Há um ditado que diz que o futuro a Deus pertence. E ele até poderia ser um versículo bíblico, pois reflete a verdade. Acontece que o tempo e a história como toda a Criação pertencem a Deus, de tal forma que uma folha não cai sem que ele não queira. Então, ficar preocupado com o futuro me parece uma perda de tempo, literalmente, pois, nos impedirá de viver o presente e de ser significativo agora. Acredito que foi mais ou menos isso que o Senhor disse: "Buscai primeiro o reino de Deus, e a sua justiça, e todas estas coisas vos serão acrescentadas. Não vos inquieteis, pois, pelo dia de amanhã, porque o dia de amanhã cuidará de si mesmo. Basta a cada dia o seu mal" [Mt 6.33-34]. 
O importante é saber que Cristo voltará a seu tempo, segundo o que foi determinado eternamente por Deus, nem um segundo a mais, nem um segundo a menos, e resta-nos esperar esse dia glorioso em que nos uniremos para sempre com o nosso Senhor; mas, aqui neste mundo, é-nos ordenado fazer a obra que nos foi dada realizar, como testemunhas vivas de Cristo. As inquietações apenas nos tirarão o foco, do objetivo principal de vivermos como sal e luz no mundo caído, perdido e sem esperança.

    “Como você enxerga as coisas? o que você acha de tudo isso?  Muita gente diz que não faz diferença. Creio que relativamente a salvação não faz, porque ela é pela fé em Cristo somente, mas em meu interior faz diferença, produz sensações diferentes. Por exemplo, se levo muito a sério o que diz o pré-milenismo e as teorias de conspiração, então vejo uma preparação para o anticristo muito próxima e a volta de Jesus também, e aí eu não sinto muita motivação para fazer planos de progresso profissional, casar, ter filhos, pois a expectativa é de tudo ir piorando até Jesus voltar e sua volta é a única alegria”.
     Não se preocupe com o que está à sua volta mais do que é necessário. Viva a sua vida, viva-a na plenitude do Evangelho, na plenitude do Espírito Santo, e garanto que você encontrará paz, esperança e fará planos para a sua vida. E qual o maior de todos os planos? Servir a Deus seja em qual condição, situação, estado em que se encontre. Paulo diz que: "justificados pela fé, temos paz com Deus por nosso Senhor Jesus Cristo" [Rm 5.1]. Veja bem, temos paz com Deus e por Cristo, ele é a nossa paz. Isso não quer dizer que teremos paz com o mundo, pelo contrário, o Senhor alerta-nos: "Tenho-vos dito isto, para que em mim tenhais paz; no mundo tereis aflições, mas tende bom ânimo, eu venci o mundo" [Jo 16.33]. Isso deveria ser mais do que suficiente para tocarmos a obra de Deus, mesmo entre as aflições, porém, crendo que ele é quem nos sustenta e sustentará em tudo. Voltando a Paulo, ele diz: "temos entrada pela fé a esta graça, na qual estamos firmes e nos gloriamos na esperança da glória de Deus. E não somente isto, mas também nos gloriamos nas tribulações sabendo que a tribulação produz a paciência, e a paciência a experiência, e a experiência a esperança. E a esperança não traz confusão, porquanto o amor de Deus está derramado em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado" [Rm 5.2-5]. Como ele ainda diz: "Se esperamos em Cristo só nesta vida, somos os mais miseráveis de todos os homens" [1Co 15.19].

    “Se abraço o amilenismo, temo cair numa linha mais espiritualizante da Bíblia que abra porta pra que eu me torne relativista na interpretação de outras doutrinas fundamentais.
    Já o pós-milenismo, me proporciona uma esperança de ver o mundo mudar pra melhor, pelo poder do Evangelho, mas isso num prazo longo e de árduo trabalho, num mundo que dá sinais preocupantes no momento. Também abre o horizonte para sonhar mais com família, trabalho, etc. Tendo por ruim apenas a necessidade de passar pela experiência da morte, o que não me agrada, não tenho medo da morte, me incomoda é o que se sente no momento.
O que devo fazer? O que seria saudável?”.
     Acho que já dei algumas diretrizes acima, sem que eu seja provavelmente a melhor pessoa para ajudá-lo. Mas tento aplicar na minha vida aquilo que Deus nos orienta a viver. Não penso muito no futuro, pois nem mesmo sei se estarei nele. Não me impressiono pelo que acontece ao meu redor, ainda que muitas coisas me entristeçam, algumas me aflijam, outras me irritem, e ainda outras me magoem. Sabendo que todas as coisas concorrem para o bem daqueles que amam a Deus, daqueles que são chamados segundo o seu propósito, lanço todas essas coisas sobre o meu Senhor, que é poderoso para me acalmar, me dar alívio e paz. Vejo os exemplos dos santos, Paulo, João, Pedro e tantos outros irmãos que diante das perseguições, tribulações, dúvidas, injustiças e maldades, esperaram naquele que é o único capaz de nos dar a vitória sobre o sofrimento, a morte e a incerteza: Cristo! E, também, saber que temos uma missão aqui, uma obra que Deus realizará através de nós, sem me preocupar com sinais, com a descrença, com a imoralidade e com a aparente derrota que se faz inevitável [o arrebatamento pré-tribulacionista me parece um "jeitinho" de garantir uma derrota menos vergonhosa para a igreja, como se ela não fosse capaz de lutar, nem mesmo sobreviver em meio à luta]; realmente, isso tudo pouco importa para definir aquilo que tenho de fazer, e aquilo que ainda não fiz. Somos mais do que vencedores na morte à qual somos entregues todo o dia, e como ovelhas que vão para o matadouro, por aquele que nos amou [Rm 8.36-37].
    O que posso lhe dizer ao final? Deixo Paulo falar: "Portanto, meus amados irmãos, sede firmes e constantes, sempre abundantes na obra do Senhor, sabendo que o vosso trabalho não é vão no Senhor" [1Co 15.58]... e, assim, possamos sempre ter gozo nele, em qualquer situação, como nos foi ordenado: "Regozijai-vos sempre no Senhor; outra vez digo, regozijai-vos" [Fp 4.4].

     "Desculpe se estiver incomodando. Mas, gostaria muito que, se você pudesse, estivesse me esclarecendo essas coisas. A grande maioria não se preocupa mais com a verdade, estou falando infelizmente da igreja. Eu quero entender corretamente, acho importante. 
     Aguardo sua resposta, se você puder e quiser.
    Um abraço.
    Ivan".
    Meu irmão, escreva sempre que quiser. Será um prazer conversar consigo.
    Grande abraço!
    Cristo o abençoe!

08 novembro 2010

O que não é, pode não ser mesmo, se não for. Mas, e se for?
















Por Jorge Fernandes Isah

      Se há algo que tem me deixado irritado é o fato de algumas pessoas [e parece que o número está em uma crescente] apelarem para a isenção, para a neutralidade, como se fosse possível erguer um muro, subir nele, e lá do alto observar placidamente os dois lados no esforço "despropositado" de defender seus territórios. É algo que beira as raias do absurdo! O pior é saber que, os que assim pensam, estão imbuídos de propagar essa idéia como se fosse a mais nova revelação do século, como se a última verdade inalienável e irrefutável. São tantos os “furos” que nem mesmo contar os buracos em uma montanha de queijos suíços far-lhe-ia jus.

         Tudo começou quando me chegou às mãos um texto de um heterodoxo[1] que se diz não-heterodoxo, mas que combate veementemente a ortodoxia[2]. A tática é a mais vil possível, sub-reptícia, dissimulada, de parecer algo sem querer ser visto com o que se parece. É mais ou menos como se fingir de morto para continuar vivo. Como o texto é muito grande, e a profusão de bobagens nele contidas daria um livro de refutações, pegarei apenas alguns exemplos que demonstrarão como essa forma de pensar é perigosa, especialmente para quem a lê e vislumbra ali algum sinal de sabedoria e verdade.

       Ele diz [o texto do autor estará entre aspas e o meu comentário logo abaixo]:

Inteiramente irrelevante para o resto do mundo, desenrola-se nos nossos dias um acirrado embate teológico...”.
Se o debate é medieval e irrelevante para o "resto do mundo" [e aqui é necessário dizer: qual autoridade ele se arvora e tem para decidir pelo resto do mundo que o debate é irrelevante?], por que ele está a discuti-lo? E o faz por mais de cinco laudas? Tudo bem que ele parece relevante para o mundo cristão, senão não estaria a debatê-lo; porém, fica a pergunta: o que é relevante para o mundo dos crentes não é relevante para o "resto do mundo"? Por que?... Bastaria esse primeiro parágrafo para eu desistir de lê-lo, visto que irá falar de algo que considera desnecessário; mas é que entre os modernos cristãos o escrevinhador é um tipo de “guru”, um guia de cegos, e como o texto me veio por um amigo, achei que lendo e apontando seus eventuais erros, estaria auxiliando-o [o amigo] a discernir melhor esse comportamento... digamos... incoerente, para ficar no mínimo e usar um termo suave.

          “Entendem eles (os heterodoxos) que o Deus da Bíblia é poderoso não por dirigir a história com punho de ferro, mas por garantir um resultado final positivo sem dobrar-se à solução fácil que seria controlar todas as variáveis”.
É tudo um arremedo de pensamento bíblico, porém sem Biblia.  Essa última frase define bem a "loucura" em que esse pensamento pode levar. Quer dizer que Deus não dirige a história com mão de ferro, nem controla todas as variáveis, mas ainda assim garante um resultado final positivo? Mas como isso se daria? Através de quais meios, de quais elementos? É realista a idéia de se ter um final sem o meio? Seria o mesmo que alguém fabricar um produto sem linha de produção. Como num passe de mágica. E a mágica é exatamente isso: a ilusão de que algo pode existir a partir do absurdo. Por um poder que não se tem. Podem alegar que Deus tem esse poder, até mesmo de fazer o absurdo. Contudo, desde a Criação estamos num processo, num desenrolar da história, num encadeamento de eventos, os quais se não forem controlados podem não resultar no final pretendido. Da mesma forma que uma montadora, para produzir um carro, não pode se utilizar de meios e materiais que resultarão na produção de lingüiça, por exemplo, e vice-versa. Se quero lingüiça, terei de usar carne, conservantes e tripa. Se quero um carro, terei de usar aço, alumínio, plástico, etc. Se Deus quer um final certo, terá de controlar todo o processo e se utilizar dos meios corretos, senão a massa pode azedar... Seria impossível até mesmo aos eventos surgirem; ou seriam eles autorealizáveis? Ou realizáveis por outro deus ou fonte?

         “Se Deus predestinou, Jesus morreu para beneficiar uma elite arbitrária de eleitos, o que é moralmente inaceitável e incompatível com o caráter amoroso e inclusivo de Deus revelado no tom geral da Escritura”.
Qual a prova que ele dá para o caráter amoroso e inclusivo de Deus na Escritura? Pelo contrário, a Escritura é exclusivista, pois advoga para si o direito de única revelação de Deus. E o Deus bíblico como o único Deus, não havendo outro [Is 45.5]. Não há inclusão, não há acomodação, mas recusa em aceitar qualquer um que não se enquadre nos seus princípios. E quais são eles? São os que Deus determinou para o seu povo, e não o que ele deixou “ao deus dará”, como algo que qualquer um poderia se apropriar ou não. Alegar um "tom geral" é disfarçar a própria ignorância quanto ao que se diz, demonstrando claramente não saber o que dizer... E quem define o que é moralmente aceitável ou inaceitável? Deus ou o homem? Quem criou as regras? E quem as deve obedecer? Como está escrito: "sempre seja Deus verdadeiro, e todo o homem mentiroso" [Rm 3.4]. O que o heterodoxo defende abertamente é o direito de ser livre de Deus, e de não estar sob o seu controle, mas de viver um autonomismo que o levará invariavelmente à manutenção da rebeldia, pois também está escrito: "Não há um justo, nem um sequer. Não há ninguém que entenda; não há ninguém que busque a Deus. Todos se extraviaram, e juntamente se fizeram inúteis" [Rm 3.10-11]. Então a qual liberdade ele se apega? À de pecar livremente?

        Falando de dois amigos: “Acusados com freqüência de flertar com o teísmo aberto são os líderes evangélicos que ousaram lamentar as conseqüências morais do calvinismo e opinar que a realidade talvez não seja tão simples”.
Primeiro, quais as conseqüências morais do Calvinismo a se lamentar? Segundo, quem disse que a realidade era simples? Terceiro, e o que a tornou menos simples ainda? Quarto, mais ousado que eles foi o próprio diabo, que ousou opor-se a Deus e querer se fazer como ele. Assim como Adão e Eva que também quiseram ser como Deus. É a essa ousadia que ele está se referindo?

        Ainda sobre eles: “Sua fé diz mais a respeito às suas dúvidas do que às suas certezas; isso cria um precedente que é essencialmente destrutivo à supremacia da ortodoxolatria e precisa ser por essa razão eliminado pelos que se preocupam com esse tipo de coisa”.
A definição de fé do nosso amigo é bastante interessante, para não dizer heterodoxa, pois a Bíblia claramente delineia a fé como sendo "o firme fundamento das coisas que se esperam, e a prova das coisas que se não  vêem" [Hb 11.1]. Ora, ele alega uma fé mais a respeito de dúvidas que de certezas, então isso é a anti-fé, a não-fé bíblica, uma fé às avessas. E não é de hoje que esse tipo de “fé” existe, e não houve um projeto de erradicá-la, a não ser pela proclamação da verdade. Então apelar para uma “ortodoxolatria” é atirar a esmo, no vazio, primeiro, porque adorar a Deus e sua palavra não está no âmbito da idolatria, previsto na própria lei divina. Segundo, pela defesa do autor, facilmente pode-se rotulá-lo de heterodólatra, especialmente por defender uma fé não-bíblica, posta num outro deus, um deus igualmente não-biblico. O que mais salta aos olhos é que os argumentos são flagrantemente contrários ao enunciado da Escritura, que diz: “pela qual também temos entrada pela fé a esta graça, na qual estamos firmes e nos gloriamos na esperança da glória de Deus... e a esperança não traz confusão” [Rm 5.2,5]. Quer dizer que a dúvida está em vantagem sobre a certeza? E, se há tantas dúvidas assim na heterodoxia, porque eles têm tanta certeza de que a ortodoxia está errada? Ou, na verdade, é uma defesa da dúvida contra a certeza, mesmo que seja certo duvidar da certeza sem ter a certeza de que a dúvida é certa? É o samba-do-crioulo-doido entremeado pelo funk tresloucado, cantado por um mudo e dançado por um manco.

        “Prefiro a confortável posição de denunciar o calvinismo sem endossar a doutrina do teísmo aberto - doutrina que é no fim das contas tão limitante e extrema quanto a que pretende invalidar”.
Quer dizer que abóboras são mexericas? Pelos frutos conhecereis a árvore, diz o Senhor. Mas o autor quer criar um mundo de ilusão, onde o que crê pode ser algo tão etéreo que paire sobre as cabeças como um gás venenoso, bastando não respirá-lo para não se morrer. Contudo, sem dispor de qualquer equipamento de proteção que o impeça de se intoxicar. A sua intenção é visível: usar a tática de denunciar o Calvinismo sem endossar o T.A, para assim parecer imparcial, neutro, isento, e poder defender “abertamente” o T.A. Acontece que a mãe da ilogicidade é exatamente essa, achar que se pode combater algo sem que com isso esteja a se defender o oposto. Se combate-se o Calvinismo, certamente, em algum aspecto, se defende o T.A, o Arminianismo e congêneres. Se combate-se a ortodoxia, defende-se a heterodoxia. É simples. Não há saída. O ataque pressupõe a defesa,  e vice-versa. Qualquer menino em fase pré-escolar sabe disso. Mas a idéia aqui é ludibriar, farsear, como disse no início, fingir-se de morto para sobreviver. É a mais deslavada dissimulação, com o intuito de destruir o Cristianismo bíblico, e em seu lugar disseminar o anti-cristianismo. Apelar para uma zona neutra, onde se possa bater à vontade sem tomar partido, é falácia. Como o Senhor disse: aquele que comigo não ajunta, espalha [Lc 11.23]. Não há meio-termo, nem isenção. Qualquer tentativa de se defender essa idéia chama-se embuste, desonestidade, ou autoengano.

       “Isso porque a falta essencial que os calvinistas encontram no teísmo aberto e na teologia racional é de lógica. Seus defensores prestam culto à lógica formal, seguindo implacavelmente de suas próprias premissas a conclusões estanques”.
Bem, diante disso, não é preciso dizer muito. Apenas: há afirmação mais ilógica do que essa? Que se pretende soar como lógica?

         “Porém o que alguém está realmente dizendo quando recorre a abstrações como "Deus é eterno por natureza"? O que é ser eterno por natureza? O raciocínio pode ser considerado um guia claro para a natureza da eternidade? O que é ser onipresente? Pode Deus estar presente em lugares que não existem?”.
Questionamentos dignos de uma criança no maternal; e até mesmo muitas delas poderiam responder acertadamente sem exitar. Mas o mais bizarro é que essas inquirições em nada corroboram sua tentativa de defesa... mas afinal, o quê mesmo está a se defender? Ou lhe basta atacar a ortodoxia?... Conheço o jogo, é mais do que isso. Chama-se astúcia, algo próximo do golpe-baixo, atacar o visível para defender o invisível, e deixar que os tolos acreditem que o visível é invisível, e o invisível é visível. Como está escrito: "Ai dos que ao mal chamam bem, e ao bem mal; que fazem das trevas luz, e da luz trevas; e fazem do amargo doce, e do doce amargo!" [Is 5.20].

       “A mensagem consistente da voz ou das vozes bíblicas parece ser que a verdade de Deus só pode ser experimentada adequadamente pelo relacionamento - jamais pela razão, pela doutrina ou pela lei, que são símbolos ou intermediários”.
Balela! Falsa conclusão repousada em falsas premissas, que sequer indicou, mas que são evidenciadas pelo pensamento heterodoxo de destruir o ortodoxo, como se séculos de história, de debates e de conclusões, em que inúmeros homens usados por Deus organizaram a cosmovisão cristã, pudessem ser jogados na latrina em favor de um pensamento revolucionário que em nada é novo, pelo contrário, está apenas sendo repaginado e adequado em detalhes ao mundo pós-moderno, descrente e insano em que vivemos; em que a palavra desconstrução não constrói mas apenas destrói. Ao apelar-se para a não-logicidade da Bíblia equivale-se a dizer que todo o seu texto sem sentido é realmente sem sentido [no que estou a aceitar], então, por que o autor deveria ser lido como se fosse relevante?

       “Como qualquer pessoa em qualquer relacionamento, a verdade cristã pode ser inquestionavelmente abraçada, jamais explicada ou entendida” [negrito do próprio autor].
A Bíblia nos foi dada para ser entendida, não sentida. Se fosse assim, qualquer animal poderia se converter... mesmo os vegetais. Mas a revelação foi dada aos homens, seres racionais, não irracionais. Até mesmo a revelação natural pode ser percebida por uma mente racional, ainda que não convertida, mas jamais por um animal. Não se vê cães adorando um deus-cão ou ao homem. A relação entre eles e nós é apenas de dominação: ou vão nos dominar, ou iremos dominá-los. Ou estaremos sujeitos à sua autoridade [e é engraçado como uma criatura racional pode ser controlada por outra irracional. pela sua força ou poder], ou eles se sujeitarão à nossa autoridade. Portanto a Bíblia foi escrita com razão e pela razão, para que Deus e a sua vontade fossem conhecidos pelo homem. E a partir do conhecimento, sentíssemos o doce perfume de Cristo. Sem entendimento, como sentir? É possível sentir o desconhecido? O inexistente?... Evidencia-se o que o autor deseja: desqualificar a revelação e valorizar a emoção, o subjetivismo, como sendo algo mais valoroso que o entendimento e a objetividade. E nunca será. Como Paulo disse: "Como, pois, invocarão aquele em quem não creram? e como crerão naquele de quem não ouviram? e como ouvirão, se não há quem pregue?... De sorte que a fé é pelo ouvir, e o ouvir pela palavra de Deus." [Rm 10.14]. Sem que haja a exposição da palavra, como haverá conversão? A proclamação do Evangelho de Cristo, ou seja, o ensino, é que será usado pelo Espírito Santo para operar o arrependimento e o novo-nascimento no pecador. O autor pretende simplesmente relativizar a Escritura, quando alega que a "verdade cristã pode ser inquestinonavelmente abraçada, jamais explicada ou entendida". Mas através de qual princípio bíblico ele apreendeu isso? E como se pode conhecer a verdade sem entendê-la? E o que difere a verdade da não-verdade sem o discernimento de ambas? Sem o entendimento é-se possível defini-la? Sem explicá-la [ao contrario do que ele mesmo tenta em seu texto] pode-se entendê-la? A partir do quê? Qual é a sua proposta afinal? Devemos comer as suas páginas? Ou esfregá-las na pele?... A verdade é que o coração do homem é enganoso [Jr 17.9]. Está lá na Escritura. Mas parece que é mais fácil crer a mentira ou travesti-la de inquestionabilidade. O que me leva a novamente perguntar: como podem ser inquestionáveis e indubitáveis as dúvidas desse escrevinhador? Ou, em outras palavras, ele tem certezas demais para quem duvida tanto. Ou seriam as suas dúvidas nada mais do que as certezas que não quer aceitar? E teima em rejeitar?

        “O efeito dessa nossa obsessão em precisar o conteúdo intelectual da verdadeira fé está em que enquanto fazemos isso conseguimos manter Jesus irrelevante para o restante e vasta maioria do mundo”
Novamente uma conclusão generalizada, que demonstra uma certa onisciência que nem mesmo em Deus ele acredita existir. Uma verdade que nem mesmo na Bíblia ele reconhece. Uma certeza que a sua própria doutrina descarta. É um lengalenga sem fim ao acusar-nos de repetir o que a igreja definiu em 2.000 anos de história, mas que também não os impediu de repetir o proposto pelo “outro lado” nos últimos 2.000 anos, com uma diferença: não querem o rótulo, nem a associação com ele, para assim transmitirem mais fácil e dolosamente o conteúdo que o rótulo, de alguma maneira, pode inibir a propagação. E, pior, nem mesmo querem definir ou construir algo, apenas destruir o que está posto, com a alegação de irrelevância. Mas se irrelevante, por que insistir no debate? E por que se deve aceitar como relevante a opinião de que o debate é irrelevante? Apenas por que o autor o quer irrelevante?

         É para fechar a feira, na hora!

         E está fechada!


Nota: [1] Heterodoxo-(cs) adj (gr heteródoxos) 1 Diz-se de doutrinas, livros etc., contrários a algum padrão ou dogma estabelecido, ou diferentes dele; herético. 2 Diz-se daquele que sustenta doutrina contrária a algum princípio fundamental de uma religião ou sistema. Antôn: ortodoxo.
[2] Ortodoxia-(cs) sf (ortodoxo+ia1) 1 Qualidade de ortodoxo. 2 Doutrina religiosa considerada como verdadeira. 3 Conformidade de uma opinião com uma doutrina declarada verdadeira. 4Conformidade com o dogma cristão.

01 novembro 2010

A liberdade que não se tem
















Por Jorge Fernandes Isah


     Não sei porque, cargas d'água, decidi fazer este pequeno texto sobre o determinismo. Espero ainda realizá-lo de forma ampla, explicativa, e que possa eliminar as dúvida dos que questionam essa doutrina. Este é apenas um resumo mal-acabado do que penso e, por isso, caso esqueça-me, reitero que o determinismo bíblico é plena e claramente verdadeiro, lógico e racional. E de que não tem nada a ver com o fatalismo filosófico ou de outras cosmovisões, como alguns insistem e não se cansam de afirmar, tal qual o operador de máquinas aperta porcas e parafusos sem ferramentas, porcas ou parafusos... atarrachando o vento.
     Antecipo, primeiramente, o meu conceito de determinismo, como sendo todas as coisas, materiais e espirituais, seja a natureza, atos, vontade, pensamentos, etc, subordinados ao eterno decreto de Deus. Em linhas gerais, toda a criação está sujeita à vontade decretiva e providente de Deus. De tal forma, que se uma folha cair, é porque Deus determinou que caísse. Se não, é porque Deus determinou que não caísse. De tal forma, que se escolher um sorvete de laranja ao invés de um sorvete de coco, é porque Deus determinou até mesmo essa escolha. Seja nos eventos complexos ou nos mais insignificantes, eles somente acontecem pela vontade divina.
     Sou o que se pode alcunhar de determinista absoluto ou radical; porque, por mais que leia a Escritura e raciocine sobre inúmeras questões levantadas em suas páginas, não vejo maneiras do homem se desvencilhar do controle divino; não há a menor hipótese do homem ser livre de Deus, ao ponto de fazer qualquer coisa sem que o Todo-Poderoso tivesse pensando e decidido previamente que aconteceria. Para muitos, posso ser taxado de simplista ou reducionista, mas o fato é que o controle absoluto de Deus sobre todas as coisas em nada retira de mim a responsabilidade por minhas decisões, as quais são minhas, realizadas pela minha vontade, de maneira que se não as quisesse, não aconteceriam. Porém [e há um grande porém], se Deus não as tivesse decretado, eu jamais as quereria e realizaria.
     No decreto eterno encontramos a descrição de todos os eventos acontecidos, que estão a acontecer, e que acontecerão na história, os quais não podem ser anulados, revogados ou transformados, pois, infalivelmente, Deus não somente os planejou mas também sustenta-os em todas as suas nuances, detalhes, essência e realização; e, inexoravelmente, cumprir-se-ão segundo a sua vontade; como estabeleceu na eternidade, antes da fundação do mundo.
     Logo, qualquer conceito de liberdade, livre-agência ou compatibilidade entre Deus e o homem é somente aparente, não existindo de fato.
     Como sugestão à reflexão, a história do Faraó e o endurecimento do seu coração por Deus é o exemplo mais emblemático do tipo de determinismo a que me refiro. Ainda mais emblemáticas são as mais de sessenta profecias sobre Cristo, apenas na crucificação. E elas estavam intimimamente ligadas às ações e pensamentos humanos. Todos infalivelmente decretados e pré-ordenados sem que nenhum dos personagens envolvidos pudessem fazer o que não fizeram, ou estivessem em condição de realizar algo à margem ou alheio ao que Deus determinara. Os acontecimentos estão intrisecamente ligados à vontade divina ao ponto em que, se apenas um deles não acontecesse conforme estabelecido eternamente, a vontade divina não se cumpriria, sequer existiria como vontade soberana, e uma cadeia de fatos surpreendentes trariam desordem e caos ao mundo, e teríamos fatos imprevisíveis, acontecendo incontroláveis, significando o que muitos sequer imaginam: a indeterminação das coisas e a quebra da ordem, culminando na não-soberania de Deus. Por isso, as profecias reveladas séculos antes se cumpriram: as suas vontades estavam em completa sujeição à vontade divina, indicando que partiram da mente onisciente de Deus, e se realizaram pelo seu onipotente poder de fazer tudo o que lhe apraz.
     Da mesma forma, pergunto: como ficam passagens em que Deus diz cegar o homem? Para que vendo não veja, ouvindo não ouça, e não se arrependa? Como explicar o que o Senhor disse a respeito de Betsaida e Corazim? De que "se em Tiro e em Sidom fossem feitos os prodígios que em vós se fizeram, há muito que se teriam arrependido, com saco e com cinza" [Mt 11.21]? Ora, se em Tiro e Sidom Jesus realizasse os milagres que fizera em Corazim e Betsaida, aqueles se converteriam e, portanto, o que aconteceu é que não houve pregação naquelas regiões, Cristo não fez milagres por lá, e eles não puderam se converter, porque não estava determinado que houvesse conversões entre eles. Cristo não fez milagres mesmo sabendo que, caso vissem, se converteriam; ao passo que preferiu pregar e operar milagres em Betsaida e Corazim, sabendo que não se converteriam ainda que vissem e ouvissem. Isso não pode ser somente presciência, mas o poder de Deus de condenar tanto uma como outra cidade.
     O fato é que por onde Cristo não operou milagres capazes de levá-los à conversão, mesmo considerando que eles teriam olhos para ver, nada aconteceu porque esta foi a sua vontade; e nos locais onde operou milagres, cegou-lhes os olhos a fim de não verem, fechou-lhes os ouvidos a fim de não ouvirem, para que não se convertessem. Nenhum homem irá ao inferno sem que Deus queira. Isso é fato. E nenhum homem será salvo, livrando-se do inferno sem que Deus queira. Novamente, fato.
     Outro fato, inquestionável, é que somos livres, se assim faz-nos sentir melhor. Contudo, a nossa liberdade está acorrentada à vontade e aos desígnios divinos, aos santos, perfeitos e eternos desígnios divinos, que até mesmo são capazes de levar à crença em... algum tipo de liberdade, ou qualquer outra coisa que Deus queira que acreditemos... e que ele nos dá acreditar que temos.

25 outubro 2010

Deus não faz acepção de pessoas

















Por Jorge Fernandes Isah


      A Bíblia nos diz que Deus não faz acepção de pessoas. Acontece que muitos distorcem esse ensino, afirmando que, por isso, Deus ama a todos, e Cristo morreu por todos. A lógica é a seguinte: se Deus não faz acepção de pessoas, não escolheu uns e rejeitou outros; e Cristo não pode ter morrido na cruz apenas para salvar uma parte da humanidade, mas o seu caráter expiatório favoreceu a todos os homens indistintamente. Caberia ao homem apossar-se dessa salvação ou não.
    A questão é como uma bola de neve: quanto mais se parte de um pressuposto falacioso, e se tenta justificá-lo, mais a mentira ganha corpo, e acaba por se distanciar sobremaneira da verdade. Por fim, não mais como uma pequena bola mas uma avalanche, se volta contra o tolo, a soterrá-lo em meio a uma profusão de equívocos. Resta-nos uma pergunta: então, qual é a verdade?
      Os versos que muitos se utilizam para argumentar que Deus ama a todos indistintamente, e por isso não faz acepção de pessoas são: "Porque, para Deus, não há acepção de pessoas" [Rm 2.11]; e, ainda: "Reconheço por verdade que Deus não faz acepção de pessoas" [At 10.34]. Ora, isoladamente, os versos parecem corroborar o pensamento vigente entre os religiosos atuais, ao ponto em que não seria difícil chegar-se à conclusão universalista, a qual assevera que todos serão salvos, até mesmo o diabo e seus anjos, e o inferno é uma simples metáfora das contradições existentes na criação [1]. Esse seria o grand-finale de todo um pensamento confuso, ilusório e não-bíblico, se fosse verdade. Mas, felizmente, não é.
      Assim, o que esses versos querem dizer?
    No primeiro, Paulo nos mostra a imparcialidade de Deus. Explicando que ninguém pode se considerar inescusável diante dele, e apelar para a inocência por não conhecê-lo e a sua lei; visto a ignorância não ser argumento de defesa para o pecador, "porque todos os que sem lei pecaram, sem lei também perecerão; e todos os que sob a lei pecaram, pela lei serão julgados" [Rm 2.12].
      Ao perguntar: "Por quê? Somos nós mais excelentes?"; Paulo respondeu: "De maneira alguma",  evidenciando que não há distinção entre os homens, e para Deus todos são iguais, pois tanto judeus como gentios estão debaixo do pecado [Rm 3.9]. "Todos pecaram e destituídos estão da glória de Deus" [Rm 3.23]; não há um justo sequer, não há quem entenda ou busque a Deus. Todos se extraviaram, e se fizeram inúteis. "Não há quem faça o bem, não há nem um só" [Rm 3.10-12]. Portanto nenhum de nós merece piedade diante dele; ninguém é melhor aos seus olhos; pelo contrário, todos somos iguais, ímpios, maus, rebeldes, insolentes, escória, indignos até mesmo de existir; e somente não somos consumidos por causa da sua misericórdia, que não tem fim [Lm 3.22].
     Nessa multidão de ignorantes, pecadores e desobedientes, Deus, por sua única vontade, exclusivamente pelo seu querer, elegeu alguns para a salvação e o restante para a perdição. O fato é que ninguém merece ser salvo, mas por sua graça, escolheu aqueles que amou por intermédio de seu Filho, Jesus Cristo; "justificados gratuitamente pela sua graça, pela redenção que há em Cristo Jesus" [Rm 3.24]. Ou seja, Deus escolheu aqueles que amou eternamente, e amou aqueles que escolheu eternamente. Se a eleição fosse pela presciência, ao se antever aqueles que teriam fé, e escolhê-los pela fé que teriam, Deus faria, nesse caso, acepção de pessoas. Ele buscaria uma justificativa na própria pessoa, um mérito nela, e a fé seria esse valor de referência que traria significado a quem a detém, e o fundamento para  Deus salvá-la. A eleição não seria pela graça, mas por mérito pessoal, vista ser alcançada pela fé, como fruto do esforço humano e, assim, Deus preferiria-o em detrimento dos que não a têm. Acontece que isso seria justificação por obras, mas nenhuma justiça própria pode dar a salvação, "mas segundo a sua misericórdia, nos salvou pela lavagem da regeneração e da renovação do Espírito Santo" [Tt 3.5].
     Sendo assim, é complicado e perigoso acreditar que o homem possui a fé antes de se regenerar, pois demandaria uma obra pessoal, numa ação proveniente de uma energia inerente ao homem, alheia à vontade de Deus. Seria o mesmo que alguém ter um fósforo. Ele acenderia o pavio, cujo fogo o percorreria, consumindo-o, a fim de se deflagrar a regeneração. Ele incitaria o Espírito Santo a operar até mesmo contra a sua vontade, de tal forma que, ao menos nesse aspecto, ele se sobreporia a Deus em poder; o qual não poderia fazer nada sem que o pavio fosse acesso, sem que se desse o start para que, somente então, pudesse agir e iniciar a obra de transformação. Deus se tornaria em um agente passivo [com tudo à mão menos o fósforo], enquanto eu e você seriamos quem na verdade ativaria todo o processo. Nós teríamos a chama suficiente, sem a qual Deus seria um mero espectador; com toda a sua graça amontoada pelos cantos, pronto para entrar em ação, mas impotente para fazê-lo por si mesmo. Deus teria quase tudo, mas não teria o principal: o controle sobre toda a cronologia do evento. Sem o fósforo, e alguém para acendê-lo, o arsenal de graça e misericórdia seriam inúteis e lançados no lixo. Se um homem apenas não se decidisse a usar a sua fé, de nada adiantaria Deus ter preparado toda a sua obra. É como uma festa onde o anfitrião encomendaria o melhor  para se comer e beber, e ninguém fosse convidado, ninguém aparecesse de surpresa. A festa não teria sentido, nem os preparativos. O anfitrião veria o salão vazio, a comida intocada, o silêncio, e o despropósito de todos os arranjos comemorativos.
     Isso colocaria a nossa vontade em preeminência, numa escala superior à divina. E, Deus, talvez impassível, talvez ansioso [dependendo da cosmovisão] não poderia fazer absolutamente nada, a não ser esperar que a sorte trouxesse alguém à festa; ou que acendessem o pavio.
     Poderia ainda usar a seguinte ilustração: guardadas as devidas proporções, seria o mesmo que um comerciante ter um grande estoque de um determinado produto, abrisse a loja, e aguardasse os clientes aflorar, se  acotovelar, em busca da mercadoria. Caso eles não viessem, o que faria? Provavelmente, uma liquidação. Para esvaziar o depósito. E não é interessante que o Evangelho não seja um produto de fácil aceitação? E que todos o busquem ansiosamente? Ao ponto em que, para aceitá-lo, o corrompem, distorcendo-o de tal forma que se descaracterize e perca o seu caráter exclusivista e seletivo? Tornando-se palatável, digerível, e assim, facilmente acessível a todos? Possível sem a necessidade de arrependimento e perdão? Contudo, esse não é o Evangelho, mas o antievangelho, que simplesmente acomoda as pessoas aos seus próprios pecados, tornando-as ainda mais cegas e tolas do que já são. O Evangelho separa, divide, leva a perseguições, e até mesmo à morte, como nos diz o Senhor: "Bem-aventurados sereis quando os homens vos odiarem e quando vos separarem, e vos injuriarem, e rejeitarem o vosso nome como mau, por causa do Filho do homem. Folgai nesse dia, exultai; porque eis que é grande o vosso galardão no céu, pois assim faziam os seus pais aos profetas"[Lc 6.22-23]. O que nos leva à seguinte pergunta: a aceitação do Cristianismo e o seu crescimento numérico reflete-se nessa profecia, que garante o ódio do mundo a Cristo e a conseqüente perseguição, ódio e rejeição tanto à sua palavra quanto aos seus discípulos? Se não, o que estamos a fazer? Por que não somos perseguidos? Por não causarmos divisão no mundo? Por que somos aceitos como se fôssemos iguais a eles? Em algum aspecto, o que se tem é um falso cristianismo, que quer e procura ser aceito e não rejeitado, que está pronto a aliar-se ao mundo, e não sofrer as consequências naturais por amor a Cristo, e em seu nome. Alguém pode imaginar uma coalisão ou aliança entre luz e trevas?[2]
     Pois bem, Paulo está dizendo que ninguém pode se autojustificar diante de Deus, logo, Deus não vê nenhuma qualidade no homem para escolhê-lo; e a escolha recai no próprio Deus, que a faz segundo os seus critérios, segundo a sua vontade, sem a ingerência ou mérito algum de quem quer que seja. Como está escrito: "Compadecer-me-ei de quem me compadecer, e terei misericórdia de quem eu tiver misericórdia. Assim, pois, isto não depende do que quer, nem do que corre, mas de Deus, que se compadece" [Rm 9.15-16]. A eleição é algo que vem do Senhor, não do homem [Jn 2.9]. É garantida por sua santidade, perfeição, sabedoria e justiça. Não será determinada por obras humanas, pois todas as nossas justiças são "como trapos de imundícia" diante de Deus, porque todos somos como imundos em nossas iniquidades [Is 64.6-7]. Em suma, todos somos condenáveis diante de Deus. Por isso, em sua justiça, ele não faz acepção de pessoas.
     No segundo caso, Pedro, após ser advertido por Deus em sonho para não preferir os judeus em detrimento dos gentios, na proclamação do Evangelho, reconheceu que ele devia ser apresentado a todas as criaturas, sem exceção. O que ele disse em "Deus não faz acepção de pessoas" foi confessar que as "boas novas" têm de ser levadas também aos gentios, e que não são exclusividade dos judeus, ao ponto dele crer que tanto esses como aqueles seriam salvos pela graça do Senhor [At 15.7-11]. A morte de Cristo na cruz devia ser anunciada entre todos os povos e nações, para que, assim, os eleitos fossem alcançados pela verdade, sem a qual todos estariam irremediavemente condenados e proscritos ao fogo do inferno. Então, o que temos aqui é a proclamação do Evangelho para eleitos e réprobos, judeus e gentios, deixando claro que, nesse aspecto, o da pregação, Deus não faz também acepção de pessoas, e todas estão no mesmo nível de igualdade.
     Neste ponto, não é preciso muita explicação, pois o contexto a que Pedro se refere está suficientemente delineado.
      Portanto, restam ainda duas questões a esclarecer: 
1) Cristo morreu por todos na cruz?
2) No caso da salvação, Deus faria acepção de pessoas?
    Esses serão capítulos à parte, que escreverei em breve, se assim Deus quiser.

Nota: [1] Alguns universalistas chegam ao extremo de afirmar que o diabo, demônios e o inferno são meras figuras de linguagem, usadas para revelar o mal como algo metafísico, abstrato, sem forma definida, onde não há sujeitos, mas parte da essência humana e que será derrotado no homem pelo próprio homem, pelo bem que subjaz em si mesmo. Em linhas gerais, para eles, Cristo veio nos dar exemplos morais, não veio salvar um grupo de eleitos, porque todos são filhos de Deus; o qual, por ser amor, não condenará ninguém.
[2] Esta questão está um pouco desfocada do objetivo do texto, mas considerei apropriado incluí-la sem desenvolvê-la suficientemente, o que poderá ocorrer em outro momento, num texto isolado sobre o assunto.
[3] Interessante que o projeto para escrever esta série estava engavetado há algum tempo, e até achava que não a escreveria mais. Contudo, ao ler o texto do Mizael Reis, "Suponhamos que Deus não fosse soberano", obtive o estímulo necessário para realizá-lo.