Por Jorge Fernandes Isah
Em virtude dos debates nos posts anteriores com o estimado e dileto irmão e amigo Natan de Oliveira, do blog Reflexões Reformadas, decidi-me, ao invés de respondê-lo na seção de comentários, fazê-lo em forma de artigos [1]. Em muitos detalhes concordamos, mas, no geral, há desacordo quanto às conclusões.
É preciso esclarecer que esta tentativa não explicará todos os pontos, nem mesmo é exaustiva, em decorrência da dificuldade do tema, e da minha própria incapacidade de compreendê-lo totalmente. Mas como a minha ignorância não é desculpa para não buscar entendimento no texto bíblico, oro ao Espírito Santo que me instrua naquilo que me é impossível compreender naturalmente, pois, “para os homens é impossível, mas não para Deus, porque para Deus todas as coisas são possíveis” [Mc 10.27].
Primeiramente, analisarei o texto apresentado de Efésios 2.3:
"Entre os quais todos nós também antes andávamos nos desejos da nossa carne e dos pensamentos: e éramos por natureza filhos da ira, como os outros também".
Ao que o Natan concluiu: “Assim neste primeiro exemplo acima, Deus sentia ira (ódio) por mim quando eu ainda não era nascido de novo, mas ao mesmo tempo sendo eu um escolhido seu desde a eternidade, era também ao mesmo tempo, fruto do seu amor salvífico, uma vez que ele já conduzia a história, inclusive o pecado, para me trazer salvação no tempo certo” [2].
Faz-se necessário analisar os termos:
1) Ódio: Inimizade perpétua [Sl 11.5, Ez 35.5]. Forte oposição ao amor [Lc 16.13, Jo 15.18-19]. Aversão intensa [Ml 1.3; Rm 9.13].
2) Ira: Furor, indignação [Jr 21.5, Lm 4.11, Ez 7.8, Jo 3.36, Rm 1.18, Ap 19.15]. Ato de castigar [Jr 30.14, 2Ts 1.9]. Vingança [Dt 32.35, Sl 58.10, Is 34.8, Rm 12.19]. Cólera [Sl 38.3, Na 1.6].
Aparentemente os conceitos de ódio e ira estão muito próximos. Ambos indicam uma oposição ao amor, mas nem sempre. O ódio me parece mais um estado, uma condição, do que um ato, uma emoção, como a ira tende-se a assemelhar.
A ira pode ser mesmo uma conseqüência do ódio, uma forma dele se manifestar, mas também pode se apresentar, a princípio, como decorrente do amor, na forma de disciplina, de correção.
O ódio estaria mais para uma espécie de aversão absoluta, algo duradouro e contínuo, ininterrupto. O ódio seria antagônico ao amor, enquanto a ira seria antagônica à tolerância, à indulgência. Por exemplo, a Bíblia afirma que o ódio de satanás por Deus não terá fim, assim como o ódio do ímpio por Cristo e Seu povo não terminará nem mesmo quando estiverem cumprindo a pena eterna no Inferno. Ao passo que, por exemplo, Paulo nos exorta a irar, e não pecar; para que “não se ponha o sol sobre a vossa ira” [Ef 4.26]; dando-nos a entender que a ira é momentânea, circunstancial, incidental, o que me leva à conclusão de que ódio e ira são matérias diferentes, ainda que possam se relacionar. É claro que estamos a falar da relação do homem e suas manifestações. Mas, e Deus? Como o ódio e a ira podem se relacionar com a Sua natureza, do ponto de vista bíblico?
1) Temos de entender que Deus não está no tempo; Ele age no tempo, e não segundo o tempo ou conforme o seu desenrolar, pois “conhecidas são a Deus, desde o princípio do mundo, todas as suas obras” [At 15.18]; as quais são os frutos, o resultado da Sua santa vontade.
2) A imutabilidade de Deus jamais poderá implicar em incoerência, contradição, porque isso resultará na desordem do universo, e sabemos que "Deus não é Deus de confusão" [1Co 14.33].
Efésios 2 nos diz que:
1) Deus nos vivificou quando ainda estávamos mortos em ofensas e pecados [v.1]. 2) Éramos filhos da desobediência e andávamos no curso deste mundo, segundo satanás [v.2]. 3) Éramos filhos da ira por andarmos na carne, fazendo a sua vontade, como escravos do pecado [v.3]. 4) Novamente, o apóstolo afirma que aprouve a Deus nos vivificar juntamente com Cristo, por sua misericórdia, “pelo seu muito amor com que nos amou estando nós ainda mortos em nossas ofensas” [v.4-5]. 5) Deus “nos ressuscitou juntamente com ele e nos fez assentar nos lugares celestiais, em Cristo Jesus” [v.6]. 6) Para mostrar a sua graça e benignidade para com os eleitos, nos séculos vindouros [v.7].
Paulo nos faz ver que há uma idéia de tempo, mas também uma idéia atemporal, que transcende o próprio tempo. Há a concepção de eternidade, de que as coisas na mente de Deus não se passam como nas nossas; de que Ele estabeleceu tudo muito antes do tempo existir; e de que, de fato, elas já existem porque acontecerão inevitável e inexoravelmente, não podendo ser frustradas nem impedidas por nada ou ninguém de ocorrerem.
É o que está dito: quando Deus nos vivificou com Cristo; nos ressuscitou juntamente com ele; nos fez assentar nos lugares celestiais, em Cristo. O apóstolo não utilizou verbos no futuro, mas os utilizou no passado: vivificou, ressuscitou, assentou. O Senhor que não está contido no tempo, e que é o criador do tempo, já realizou todas essas coisas para com os eleitos, os Seus filhos adotivos, mesmo aqueles que sequer nasceram, e mesmo os que ainda terão seus pais e avós nascidos num futuro distante.
A obra de Cristo já está consumada eternamente, e podemos dizer que ela foi realizada eternamente, por causa da imutabilidade divina que não poderia ser alterada, nem tomaria outro rumo, mas culminaria infalivelmente no sacrifício do Senhor na cruz do Calvário. É o que Paulo assevera: “sabendo isto, que o nosso homem velho foi com ele crucificado, para que o corpo do pecado seja desfeito, para que não sirvamos mais ao pecado” [Rm 6.6].
Não há dúvidas de que a nossa salvação é eterna.
Porém Paulo se utiliza da linguagem temporal para indicar o estágio em que estávamos antes da conversão: éramos filhos da desobediência; filhos da ira; andávamos na carne, satisfazendo-a e a satanás; estávamos mortos em ofensas e pecados. Essa é a nossa condição no tempo, na nossa relação com o tempo, o pecado e o mundo [significando toda a criação divina]. Mas também indicando a forma maravilhosa como o Senhor nos resgatou da perdição e condenação.
Partindo-se deste texto bíblico é presumível que:
1) Deus odeia eternamente o pecado. 2) Deus odeia eternamente o pecador que nunca se arrependerá dos seus pecados, terá o coração endurecido, e jamais foi alvo da Sua graça salvadora. 3) O pecador não resgatado por Cristo será alvo da ira eterna de Deus, como conseqüência da Sua justiça, que pune o pecador por causa dos seus pecados, da sua desobediência, e da inimizade perpétua para com Deus. Porque Ele é justo e justificador apenas daquele que tem fé em Jesus [Rm 3.26].
Podemos ver que há diferença entre o ódio e a ira. A ira de Deus pode cair mesmo sobre o eleito, como um castigo, como uma indignação, como conseqüência do pecado, no tempo. Esse me parece o caso de Davi. Após adulterar com a mulher de Urias [2Sm 11.4], assassiná-lo [2Sm 11.14-17 (a perversão de Davi foi tamanha que o próprio Urias levou a sua sentença de morte ao comandante das tropas de Israel, Joabe)], e desposar Betseba [Sm 11.27]; alguns castigos sobrevieram-lhe da parte de Deus: 1) O seu filho, fruto do adultério com Betseba, morreu [2Sm 12.18]. 2) Amnon, filho de Davi, cometeu incesto com sua irmã, Tamar [2Sm 13.14]. 3) Absalão, filho de Davi, matou Amnon, seu irmão, por causa de Tamar, sua irmã [2Sm 13.29]. 4) Davi foi obrigado a fugir de Jerusalém, escapando da morte, por causa da rebelião de Absalão, seu filho [2Sm 15.16]. 5) Absalão possuiu, em afronta, todas as concubinas do seu pai, Davi, diante de todo o Israel [2Sm 16.22].
Outras coisas mais aconteceram a Davi como castigo por seus pecados, provavelmente a que mais lhe doeu o coração, foi ser impedido de construir o Templo. Todas como conseqüências do juízo de Deus sobre Davi, os quais foram profetizados por Natã: “Agora, pois, não se apartará a espada jamais da tua casa, porquanto me desprezaste... Eis que suscitarei da tua própria casa o mal sobre ti, e tomarei tuas mulheres perante os teus olhos, e as darei a teu próximo, o qual se deitará com tuas mulheres perante este sol... também o filho que te nasceu certamente morrerá” [2Sm 12.10, 11, 14].
O Senhor perdoou o pecado de Davi, contudo, a Sua ira disciplinadora, que tem como um dos objetivos o arrependimento e a santificação, permaneceu sobre ele na forma de castigo, de punição temporal [2Sm 12.13].
A minha conclusão é: 1) Ódio pode parecer com ira, mas são coisas diferentes. 2) O ódio de Deus pelo pecado e os pecadores recalcitrantes (os réprobos, irreconciliáveis) é eterno. 3) A ira de Deus sobre o pecado e os pecadores obstinados é eterna, e se manifestará plenamente no Dia da Ira, quando os réprobos forem lançados no Inferno juntamente com satanás e seus anjos. 4) A ira de Deus sobre os eleitos é temporal, no sentido de ser uma manifestação educativa, que o levará, primeiramente, à conversão, e, posteriormente, à santificação. 5) Portanto, Deus não ama e odeia ao mesmo tempo os réprobos, porque Ele apenas os odeia, e não os ama. 6) Deus não ama e odeia os eleitos, porque Ele apenas os ama, ainda que lance sobre nossas desobediências o justo castigo.
Fica ainda a questão da graça comum sobre os réprobos, que tentarei expor em outro post [3].
Apenas para não deixar passar em branco, acredito que a graça comum sobre os inimigos eternos de Deus se dá exatamente por sua misericórdia e amor para com os eleitos. Ou seja, os vasos da ira, preparados para a perdição, existem para que também Deus “desse a conhecer as riquezas da sua glória nos vasos de misericórdia, que para glória já dantes preparou” [Rm 9.22-23]. Eles existem para a glória de Deus, mas também para que o Seu amor, graça e misericórdia por nós ficasse notória, evidente.
Alguns exemplos que favorecem essa idéia: 1) Deus nos pede para orar pelos homens, reis e eminentes a fim de que “tenhamos uma vida quieta e sossegada, em toda a piedade e honestidade” [1Tm 2.1-2]. Isso quer dizer que, muito provavelmente, se Deus não operasse a restrição aos ímpios, os crentes seriam destruídos. 2) Os crentes serão beneficiados com o que é produzido pelos ímpios, como uma dádiva de Deus para os Seus filhos: a tecnologia, os avanços da medicina, os tribunais de justiça, a arte, etc; como a ação de Deus sobre os reprovados a fim de que pratiquem o bem para com os eleitos; porque “toda a boa dádiva e todo o dom perfeito vem do alto” [Tg 1.17].
Não é o que diz o Salmo 136? Deus feriu o Egito nos seus primogênitos; “porque a sua benignidade dura para sempre” [v.10]. Sendo que a sua benignidade era para com os egípcios ou para com Israel?
Porque “tirou a Israel do meio deles” [v.11]; e fez passar Israel pelo meio do Mar Vermelho, mas derrubou a Faraó com o seu exército no Mar Vermelho [v.13-15]; “aquele que feriu os grandes reis [v.17]; e matou reis famosos... Sion, rei dos amorreus... Ogue, rei de Basã... E deu a terra deles em herança a Israel seu servo; porque a sua benignidade dura para sempre” [v.17-22].
Não há dúvida de que os réprobos cumprem finalidades específicas. Como já disse, foram criados para manifestar a ira de Deus [Rm 2.4, 9.22], e para que fosse conhecido o Seu amor pelos eleitos, e a eles revelada a Sua graça e misericórdia, assim como a Sua glória.
De outra forma, por que Cristo diria: “Ninguém tem maior amor do que este, de dar alguém a sua vida pelos seus amigos” [Jo 15.13]?
Ou será que Ele morreu por todos como querem arminianos e universalistas?
Ou ao invés disso, “Deus prova o seu amor para conosco, em que Cristo morreu por nós” [Rm 5.8]?
Bem, essa é outra história...
Notas: [1]Pretendo responder às inquirições do Natan em três postagens distintas, a fim de que, tanto eu como ele, possamos pormenorizar nossas convicções.
[2]Para ler todo o comentário do Natan click em Oliveira .
[3]Quanto à utilização de Jo 3.36 como argumento para validar o amor e ódio simultâneos, não há a menor possibilidade, porque a questão debatida por João resume-se a relação entre fé e vida eterna, ou seja, aquele que crê em Cristo terá a vida eterna, e aquele que não crer em Cristo não terá a vida eterna, mas a ira de Deus permanece sobre ele. A ira de Deus está sobre aquele que não crê e que não terá a vida eterna, o réprobo. Portanto, ele não serve como argumento para a nossa disputa que é sobre amor e ódio, ainda que ela favoreça mais ao meu ponto de vista do que ao do Natan.
[4] Texto publicado originalmente aqui mesmo, no Kálamos, em 04/11/2009