21 dezembro 2023

Estudo sobre a Confissão de Fé Batista de 1689 - Aula 30: A bondade de Deus e o Salmo 23




Jorge F. Isah

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CAPÍTULO 2: DEUS E A SANTÍSSIMA TRINDADE

1. O Senhor nosso Deus é somente um, o Deus vivo e verdadeiro, [1] cuja subsistência está em si mesmo e provém de si mesmo; [2] infinito em seu ser e perfeição, cuja essência por ninguém pode ser compreendida, senão por Ele mesmo. [3] Ele é um espírito puríssimo, [4] invisível, sem corpo, membros ou paixões; o único que possui imortalidade, habitando em luz inacessível, a qual nenhum homem é capaz de ver; [5] imutável, 6 imenso, 7 eterno, [8] incompreensível, todo-poderoso; [9] em tudo infinito, santíssimo, 10 sapientíssimo; completamente livre e absoluto, operando todas as coisas segundo o conselho da sua própria vontade, 11 que é justíssima e imutável, e para a sua própria glória; 12 amantíssimo, gracioso, misericordioso, longânimo; abundante em verdade e benignidade, perdoando a iniquidade, a transgressão e o pecado; o recompensador daqueles que o buscam diligentemente; 13 contudo justíssimo e terrível em seus julgamentos, 14 odiando todo pecado, 15 e que de modo nenhum inocentará o culpado. 16 Deus tem em si mesmo e de si mesmo toda a vida, 17 glória, 18 bondade 19 e bem-aventurança. Somente ele é auto-suficiente, em si e para si mesmo; e não precisa de nenhuma das criaturas que fez, nem delas deriva glória alguma; 20 mas somente manifesta, nelas, por elas, para elas e sobre elas a sua própria glória. Ele, somente, é a fonte de toda existência: de quem, através de quem e para quem são todas as coisas, 21 tendo o mais soberano domínio sobre todas as criaturas, para fazer por meio delas, para elas e sobre elas tudo quanto lhe agrade. 22 Todas as coisas estão abertas e manifestas perante Ele; 23 o seu conhecimento é infinito, infalível e independe da criatura, de maneira que para Ele nada é contingente ou incerto. 24 Ele é santíssimo em todos os seus pensamentos, em todas as suas obras, 25 e em todos os seus mandamentos. A Ele são devidos, da parte de anjos e de homens, toda adoração, 26 todo serviço, e toda obediência que, como criaturas, eles devem a criador; e tudo mais que Ele se agrade em requerer de suas criaturas. Neste ser divino e infinito há três pessoas: o Pai, a Palavra (ou Filho) e o Espirito Santo; 27 de uma mesma substância, igual poder e eternidade, possuindo cada uma inteira essência divina, que é indivisível. 28 O Pai, de ninguém é gerado ou procedente; o Filho é gerado eternamente do Pai; 29 o Espirito Santo procede do Pai e do Filho, eternamente; 30 todos infinitos e sem princípio de existência. Portanto, um só Deus; que não deve ser divido em seu ser ou natureza, mas, sim, distinguido pelas diversas propriedades peculiares e relativas, e relações pessoais. Essa doutrina da Trindade é o fundamento de toda a nossa comunhão com Deus e confortável dependência dEle.
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EXPOSIÇÃO:

A bondade de Deus está manifesta não em ele nos livrar das lutas, dores e tristezas do mundo, mas no fato dele nos manter em paz mesmo nas tribulações, de permanecermos confiantes quando tudo está desmoronando ao nosso redor, de nos manter dispostos a lutar ainda que estejamos fracos, de resistir ao pecado e à incredulidade quando as dúvidas nos assolam. Deus é supremamente bom ao estar sempre conosco, sem jamais nos abandonar, mesmo quando nos sentimos perdidos e sós. Como está escrito: “Provai, e vede que o Senhor é bom; bem-aventurado o homem que nele confia” [Sl. 34.8].

A bondade de Deus em dar bens materiais ao homem pode ser percebida por qualquer um, mas mais do que isso, a sua presença, e estar diante dela, é que o torna essencialmente bom para com os seus filhos. Veja bem, a bondade de Deus não está naquilo em que ele dá, mas naquilo que ele é, e sendo, transfere e participa aos que escolheu participar. Deus é bom, do ponto de vista humano, por suprir nossas necessidades, por nos dar a vida, saúde, livrar-nos do mal, mas o ápice da sua bondade é nos fazer semelhantes ao seu Filho Amado, Jesus Cristo, o qual é bom.

No Salmo 23, o rei Davi compôs um hino de amor e gratidão a Deus por seu cuidado, providência, vigilância e eterna presença, que mesmo nas agruras, perseguições e dificuldades da vida, ele jamais se sentiria desamparado, antes tinha a certeza de estar protegido por Deus. O profeta reconhece esse atributo maravilhoso do Senhor, de que ele é bom. Através de imagens inspiradas e que remetem ao conforto, refrigério da nossa alma, e à certeza do zelo divino para com os seus filhos, temos uma doxologia à sua bondade.

A presença constante e incessante de Deus em nossa vida é o que o faz bom. De uma bondade especial que somente pode ser sentida por aqueles aos quais ele se entrega. Por isso, digo sempre que a maior dádiva de Deus para conosco é ele mesmo se entregar a nós, de uma forma tão maravilhosa que é impossível não recebê-lo como o favor máximo, majestoso e esplêndido que se pode ter. Sem mérito algum de nossa parte, Deus se entregou por nós e cuidou que o aceitássemos como o dom, o presente, insuperável.

É também um cântico de confiança, em que Davi demonstra conhecer profundamente aquele em quem depositou a sua vida. E isso nos leva a crer que somente aqueles que conhecem a Deus podem confiar nele; de forma que Deus se revelará apenas aos que ele conheceu eternamente. Este Salmo é completamente dedicado à bondade de Deus, em suas várias formas de se manifestar na vida daquele que foi feito santo pela obra de Cristo.

A ideia da presença do Senhor na vida do servo é constante. E aqui, ao que parece, Davi estava em uma posição difícil, provavelmente cercado por inimigos, numa situação de morte iminente, em um “beco-sem-saída”. E, ainda assim, ele foi capaz de compor este hino, glorificando a Deus, que é bom.

“O Senhor é o meu pastor, nada me faltará”.  Temos a imagem de Deus como um pastor, aquele que cuida e protege as suas ovelhas, suprindo-as em tudo. Davi não somente se utilizou de uma forma poética ou retórica, mas quis dizer exatamente o que disse: o Senhor é o meu pastor; e, assim, reconheceu o cuidado de Deus para com ele, e de que era fruto da sua bondade. Somente quem é bom pode suprir o outro em tudo, e essa é uma característica que somente Deus tem, pois somente ele é capaz de saciar a necessidade mais básica do homem [se é que há alguma necessidade que se possa chamar de “básica”] até a mais exigente, sendo que em todas elas pouco ou nada podemos fazer para colaborar.

Infelizmente as pessoas têm apenas uma idéia material e imediatista deste verso. Não há nada de errado nisso, mas o erro está em se pensar apenas nisso, de que Deus é capaz somente de suprir nossas necessidades materiais. Mas ele cuida de nós de forma total, completa, sendo que as maiores necessidades do homem moderno não são materiais, mas da alma. De forma que ricos e pobres, brancos e negros, homens e mulheres, adultos e crianças, encontram-se enfermos, e a cura somente é possível através do Bom Pastor, Jesus Cristo [Jo 10].

“Deitar-me faz em verdes pastos... “. É uma imagem bucólica, tranqüila, reconfortante. Dando-nos uma ideia de segurança, de certeza em descansar mansamente sob os cuidados sublimes do bom Deus. Novamente, somente aquele que é bom pode dar ao outro a serenidade, a pureza e o descanso seguro.

“Refrigera a minha alma; guia-me...”. Mais uma vez, temos a imagem do descanso, o que nos faz lembrar do que nos disse o Senhor Jesus: “Vinde a mim, todos os que estais cansados e oprimidos, e eu vos aliviarei. Tomai sobre vós o meu jugo, e aprendei de mim, que sou manso e humilde de coração; e encontrareis descanso para as vossas almas. Porque o meu jugo é suave e o meu fardo é leve” [Mt 11.28-30]. Cristo é ao mesmo tempo aquele que nos refrigerará a alma, mas também ele é o caminho da justiça, as veredas da justiça, pelo qual fomos feitos justos e capazes de trilhar no terreno da justiça. Morrendo por nós, na cruz, ele se fez justiça para que fôssemos justificados e feitos justos diante de Deus. E Cristo se torna, assim, o nosso duplo descanso pois, ao descansarmos nele, descansamos de nós mesmos, e da nossa busca impossível pela justiça meritória.

“Ainda que eu andasse no vale da ...” O que é a morte? Durante muitos anos, décadas, fui afligido com a ideia da morte. Ela sempre me perseguia, como um inimigo a me fustigar intermitentemente, desde a mais tenra idade. Precisei muitas vezes me embriagar para conseguir dormir. A morte é uma certeza na vida, de que todos, um dia, morreremos. Porém há uma diferença: aquele que confia no Senhor não a teme, porque sabemos que ela não nos pregará surpresas, pois Cristo venceu-a, dando-nos a vitória [1Co 15.55-57]. O que mais me incomodava era a incerteza que a morte traria: se havia vida pós-morte, como seria essa vida, e em que condições eu a desfrutaria, se é que a desfrutaria. A morte, em si mesma, era uma conhecida, mas o que ela traria de conseqüências é que me atormentava. Essa ideia não mais existe. Com isso não quero dizer que a morte não possa trazer sofrimento e dor, mas de que Deus nos capacitará a atravessá-la de uma maneira confiante, porque ele estará sempre conosco, e o seu consolo estará presente, mesmo no momento mais doloroso e sofrido que se possa ter na morte.

A imagem de vara e cajado alude à disciplina, à correção, de forma que possamos ser conduzidos no bom caminho, aprimorados na santidade, e certos de que aquele a quem o Pai corrige esse ama, e se ama, a sua bondade está derramada sobre ele; e ainda que a correção não pareça ser uma alegria mas tristeza, o seu exercício produz um fruto pacífico de justiça [Hb 12.11]. 

Mas o profeta nos revela também que Deus nos chama, como o melhor anfitrião, a assentarmos na mesa para o banquete que ele nos preparou. Revelando-nos que somos íntimos de Deus, e nela, ele se alegra em agradar-nos com mais do que a comida e a bebida, mas com a sua presença. Os preparativos do banquete são provas da bondade divina, do seu cuidado e zelo, mas mais do que isso, ela nos remete à sua presença, à essência e à natureza santa, bondosa e perfeita do ser divino. Que pode ser reconhecida por qualquer um, em princípio, mas que é rejeitada pela maioria dos homens em sua insistente ignorância de se considerar autossuficiente e em um permanente estado de alienação, de rejeição da verdade. Para isso, se apegam à falsa realidade; à ilusão que não os deixam escapar da prisão que se autoimpõe.  

E é nesse contexto que a igreja tem um papel fundamental, como emissária da boas-novas, de que há cura para o sofrimento humano. Podemos agir de duas maneiras, as quais se complementam: a primeira, é suprindo as necessidades imediatas das pessoas, ajudando-as naquilo que lhes faltam. Mas não podemos nos esquecer de que a barriga cheia logo se esvaziará, e precisará novamente de algo que a preencha. E não devemos nos furtar a sempre estarmos atentos a cumprir a missão de auxiliar o próximo materialmente.

Contudo, não podemos nos esquecer de que a barriga cheia atenuará apenas uma parte do sofrimento humano, e, provavelmente, a parte menos significativa do homem. O Evangelho tem o poder de alimentá-lo e sustentá-lo naquilo que ele tem de mais importante e mais urgente: o seu relacionamento com Deus. O pecado, e a condição do homem de pecador, ainda que ele resista a admitir, sempre o deixará em constante angústia. O fato de muitos não pensarem nisso, de negligenciá-lo, é usado como um recurso para não se sofrer. Mas é um engano ao qual o homem é levado pelo pecado. Ele, esteja-se consciente ou não, sempre manterá o homem em angústia e sofrimento. O próprio fato de sustentá-lo em sua voracidade, com as conseqüências naturais que ele provoca, é a prova de que, mesmo na ostentação e na satisfação de todos os desejos materiais e carnais, o homem permanece angustiado e em sofrimento. O alívio físico não alivia a alma; mas o alívio na alma, o refrigério que Davi nos mostra, e somente possível em e por Cristo, é capaz de nos fazer compreender que a corruptibilidade da carne é algo aceitável, ainda que fruto da desobediência e do pecado, o que nos deve entristecer, mas que uma alma restaurada pelo poder de Deus resultará em um corpo incorruptível. O corpo saudável e que se deteriorará não pode garantir a saúde da alma, mas a alma saudável, transformada por Deus, assegurará um corpo igualmente saudável, transformado à semelhança do corpo do nosso Senhor.

E não é interessante que essa seja a resposta para a aflição humana? E de que, somente assim, podemos verdadeiramente ajudar e auxiliar os necessitados? Sejam eles materialmente ricos ou pobres? Porque o problema maior do homem não é o material mas o espiritual. Davi, cercado, ameaçado por seus inimigos, prestes a sofrer o ataque, encontrava-se me paz, no descanso que somente Cristo pode dar.

Devemos ajudar as pessoas como conseqüência de uma fé viva, mas sem jamais nos esquecer da mensagem do Evangelho, o qual cura a alma doente; e que se assim permanecer, doente, jamais ocupará um corpo são.

Mais uma vez repito, Deus é bom não naquilo que ele simplesmente dá, mas ele é bom em si mesmo, e isso é o que ele nos dá, a si mesmo, porque ele é bom. Sobretudo, somente quem o conhece pode reconhecer a sua bondade; e essa é a prova maior da bondade de Deus, deixar-se revelar e conhecer até pelo mais mísero pecador, ao ponto em que, cada um de nós, se alegre em reconhecer e dizer que Deus é "o meu Senhor e o meu Pastor".

Pode-se ter quase tudo ou pode-se ter quase nada, mas se você conhece a Deus e confia nele, você tem tudo.  


Notas: 1 - Aula realizada no Tabernáculo Batista Bíblico 

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ÁUDIO DA AULA 30:


04 dezembro 2023

Estudo sobre a Confissão de Fé Batista de 1689 - Aula 29: A bondade de Deus no mundo injusto





Jorge F. Isah
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CAPÍTULO 2: DEUS E A SANTÍSSIMA TRINDADE

1. O Senhor nosso Deus é somente um, o Deus vivo e verdadeiro, [1] cuja subsistência está em si mesmo e provém de si mesmo; [2] infinito em seu ser e perfeição, cuja essência por ninguém pode ser compreendida, senão por Ele mesmo. [3] Ele é um espírito puríssimo, [4] invisível, sem corpo, membros ou paixões; o único que possui imortalidade, habitando em luz inacessível, a qual nenhum homem é capaz de ver; [5] imutável, 6 imenso, 7 eterno, [8] incompreensível, todo-poderoso; [9] em tudo infinito, santíssimo, 10 sapientíssimo; completamente livre e absoluto, operando todas as coisas segundo o conselho da sua própria vontade, 11 que é justíssima e imutável, e para a sua própria glória; 12 amantíssimo, gracioso, misericordioso, longânimo; abundante em verdade e benignidade, perdoando a iniquidade, a transgressão e o pecado; o recompensador daqueles que o buscam diligentemente; 13 contudo justíssimo e terrível em seus julgamentos, 14 odiando todo pecado, 15 e que de modo nenhum inocentará o culpado. 16 Deus tem em si mesmo e de si mesmo toda a vida, 17 glória, 18 bondade 19 e bem-aventurança. Somente ele é auto-suficiente, em si e para si mesmo; e não precisa de nenhuma das criaturas que fez, nem delas deriva glória alguma; 20 mas somente manifesta, nelas, por elas, para elas e sobre elas a sua própria glória. Ele, somente, é a fonte de toda existência: de quem, através de quem e para quem são todas as coisas, 21 tendo o mais soberano domínio sobre todas as criaturas, para fazer por meio delas, para elas e sobre elas tudo quanto lhe agrade. 22 Todas as coisas estão abertas e manifestas perante Ele; 23 o seu conhecimento é infinito, infalível e independe da criatura, de maneira que para Ele nada é contingente ou incerto. 24 Ele é santíssimo em todos os seus pensamentos, em todas as suas obras, 25 e em todos os seus mandamentos. A Ele são devidos, da parte de anjos e de homens, toda adoração, 26 todo serviço, e toda obediência que, como criaturas, eles devem a criador; e tudo mais que Ele se agrade em requerer de suas criaturas. Neste ser divino e infinito há três pessoas: o Pai, a Palavra (ou Filho) e o Espirito Santo; 27 de uma mesma substância, igual poder e eternidade, possuindo cada uma inteira essência divina, que é indivisível. 28 O Pai, de ninguém é gerado ou procedente; o Filho é gerado eternamente do Pai; 29 o Espirito Santo procede do Pai e do Filho, eternamente; 30 todos infinitos e sem princípio de existência. Portanto, um só Deus; que não deve ser divido em seu ser ou natureza, mas, sim, distinguido pelas diversas propriedades peculiares e relativas, e relações pessoais. Essa doutrina da Trindade é o fundamento de toda a nossa comunhão com Deus e confortável dependência dEle.
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Pergunta: Por que a igreja prega, hoje, o Novo e não prega o Antigo Testamento?


INTRODUÇÃO E O “MOVIMENTO DESCONTINUÍSTA”

Este é um questionamento que quer dizer, nas entrelinhas, haver um Deus no AT e outro Deus no NT. Mais explicitamente quer dizer que o Deus do AT é mau, enquanto o Deus do NT é bom e, com isso, desprezar aquele, como parte de um mito criado pela nação de Israel a fim de justificar seus atos. Mas quais seriam os critérios para que se possa chegar a esse entendimento?  Há algum fundamento que possa levar a essa compreensão?

Na verdade, essa diferença não existe. Sabemos que Deus é um só, e que ele tanto se manifesta no AT quanto no NT, sendo o mesmo Deus. Ocorre que ele se revelou ao homem de maneira progressiva no decorrer da história; contudo sem alterar o seu Ser imutável [desculpe-me a redundância; o que é imutável, por si mesmo, não pode mudar. Mas a ênfase foi proposital]. Deus se apresenta de uma forma, podemos dizer, pedagógica, face à nossa limitação e incapacidade de compreendê-lo plenamente; pois como pode o imperfeito entender o perfeito? E o temporal o eterno? E o pecaminoso o santo? Apenas pela sua bondade é que nos foi dado conhecê-lo, dentro dos limites que ele mesmo estabeleceu para que acontecesse. De forma que, pouco a pouco, nos mostra quem é, e qual a obra está a realizar neste mundo. Ainda que essa revelação seja limitada, é por demais grandiosa, maravilhosa e sublime para que a apreendamos totalmente.

Outro ponto no qual os proponentes da descontinuidade do AT em relação ao NT falham é que essa visão somente pode existir por causa de pressupostos falsos, com o objetivo de se chegar a conclusões tendenciosas e antibíblicas. Ao ponto de considerarem como divinas apenas as palavras do Senhor Jesus nos Evangelhos, ainda assim com uma série de restrições. Mas, se Cristo não escreveu ele próprio suas palavras, por que duvidam dos demais escritos? Não foram Mateus, Marcos, Lucas e João os seus autores? Que garantia têm que as palavras proferidas pelo Senhor foram ditas por ele? É algo que nem eles mesmos conseguem explicar. Ainda mais se levarmos em conta que Cristo, em momento algum do seu ministério, questionou, rejeitou, anulou ou desmentiu o AT, pelo contrário, fez inúmeras citações de versos contidos nele. Logo o que se tem é a má-fé e incredulidade desses homens, os quais se fazem juízes para julgar o que não lhes é permitido nem capacitado julgar: Deus e sua palavra. Novamente é um caso de arrogância, ignorância, presunção e ceticismo. Afinal, já nos primórdios da Igreja, homens como Marcião e Manes propuseram exatamente o que hoje se pode chamar de “movimento descontinuísta” [não sei se o termo já existe, mas se não existe, está criado], rejeitando boa parte das Escrituras unicamente com o intuito de respaldar suas loucuras. Essa é a mesma tática utilizada pelo “TJ’s” também, mas o interessante é que, sejam os heréticos primitivos ou modernos, nunca encontrarão na Bíblia os fundamentos para os seus díspares e ofensivos ataques a Deus. Ao se defender alguma parte do texto sagrado em detrimento de outros, não se defende nada além do próprio pecado. Ao rejeitarem-se partes como mera manifestação humana e não-sobrenatural, escolhendo aqui e acolá o que aparentemente sustentaria os seus interesses, acalenta-se a iniqüidade, arrastando da consciência qualquer perspectiva de se chegar à verdade. Assim agem os sábios deste mundo, os quais Deus chamou loucos.

Quando não se reconhece Deus no AT e no NT, como sendo o mesmo Deus, não se está rejeitando apenas os trechos que a mente limitada, imperfeita e pecaminosa não quer reconhecer, mas essa mente está a rejeitar o único e verdadeiro Deus. Porque Deus não muda, assim como a sua palavra. E o que temos é o que já disse muitas vezes antes, o homem voltando ao Éden, um retorno ao antigo pecado que levou à morte toda a humanidade, acreditando possível tomar o lugar de Deus ou ser como ele. Quando esse mesmo homem profere suas blasfêmias contra Deus e sua palavra, ele simplesmente está tentando se fazer de Deus, e como qualquer imitação mal-feita apenas realçará as virtudes e qualidades do original e verdadeiro. O homem, em sua manifestação ostensiva de arrogância, ao pretender julgar a Deus, mostra-se cada vez mais injusto ao fingir ser o que jamais será. Pensando-se especial, o homem revela a sua indignidade; acreditando-se auto-suficiente, revela a sua insuficiência; exibindo a auto-estima, mostra-se invejoso e pusilânime; procurando a glória, desperta apenas a repulsa. É esse homem que se faz de juiz, e quer questionar o Todo-Poderoso. E, como Paulo argüiu o tolo do seu tempo, pergunto: Quem és tu, ó homem, que a Deus replicas?

Ao contrário, todos os homens deveriam fazer como o salmista, e louvar o Senhor, “porque ele é bom, porque a sua misericórdia dura para sempre” [Sl 106.1].


AINDA SOBRE DEUS E A INJUSTIÇA

Há outro tipo de incrédulos, aqueles que sempre estão a acusar Deus de injusto, posto ter criado um mundo injusto. Esse também é um questionamento gnóstico, com o qual os apóstolos tiveram de combater a seu tempo, e que redundou no dualismo. Eles são os “descrentes intermediários”, enquanto os que dizem não haver Deus [pois sendo bom e justo como explicar a maldade e a injustiça no mundo de Deus?], seriam os “descrentes derradeiros”. Mas proporiam eles a verdade? A maldade e a injustiça somente podem ser imputadas a Deus? E caso possam imputá-la, ele não existiria?

Há duas coisas a serem levantadas na questão:

A primeira é de que Deus criou todas as coisas, e considerou-as boas. Já disse que o fato de Deus considerá-las boas não as tornam perfeitas, pois se fossem perfeitas seriam uma reprodução do próprio Deus. Nesse sentindo, nada é perfeito. Mas se o perfeito significa que elas não tinham defeitos e estavam em ordem, acredito que se possa utilizar o termo. Contudo, é sabido que se o homem, e mesmo a natureza, não fosse originalmente criado com a possibilidade de queda, de pecado, de morte e corrupção, nada disso aconteceria. Logo a possibilidade teria de existir para que elas pudessem se manifestar. Deus não criou o pecado, nem o mal, mas em seu projeto eterno havia essa possibilidade, não como algo que viesse ou não a ocorrer, e que aconteceu à revelia divina ou por conta das contingências na história, mas como algo real no “mundo das possibilidades”... Ficou difícil entender?... Para que tudo exista e se torne real é necessário que exista no “mundo das possibilidades”.

Tentarei uma analogia. Dois homens estão à margem de um rio. Existe uma ponte ligando as duas margens, mas também se pode alcançá-las a nado. Há as duas possibilidades de se chegar à outra margem. Um dos homens decidiu atravessar a ponte, enquanto o outro resolveu nadar. Mas tanto uma como a outra, para existirem, teriam de ser criadas por processos que culminassem na sua realidade. A ponte seria primeiramente projetada, em seguida os materiais comprados, os trabalhadores selecionados, etc, somente então, se iniciaria a construção. E somente depois de concluída, existiria. Mas mesmo depois de pronta, ela teria de ser mantida em perfeito funcionamento a fim de assegurar a sua funcionalidade. A ponte foi um projeto criado a partir de um desejo ou necessidade que a levou a existência. Da mesma forma, para que o homem atravessasse o rio a nado teria primeiramente de existir e, depois, aprender a nadar. Também fruto de um desejo ou necessidade. De tal forma que nem a ponte nem a técnica de nadar existem por acaso, fortuitamente [mas para além de tudo isso é necessário que o rio exista]. Se não houvessem essas possibilidades teríamos reduzidas as chances de atravessá-lo, ainda que se pudesse dispor de outros meios para a travessia: um barco, uma balsa, um tronco de árvore ou em qualquer outro artefato apropriado para sustentar um homem sobre as suas águas. Mas seja qualquer um deles, teria de haver o desejo ou a necessidade que os levasse a existir.

Contudo, não existe a possibilidade do homem chegar à outra margem voando como um pássaro ou flutuando. No “mundo das possibilidades” não há homens com a capacidade de voar inerente a si mesmo, sem o auxílio de equipamentos e instrumentos. Com isso, estou dizendo que algo somente existirá se houver a possibilidade de existir, pois se não houver, é impossível que exista; logo, ele jamais existirá.

Usei toda essa exposição para dizer que o homem foi criado com a possibilidade da queda, de forma que não haveria a possibilidade de não cair. O homem foi criado “caível”, o que redundou na sua queda real. Por mais que a idéia não seja agradável, ela está em conformidade com o que a Bíblia nos revela acerca da vontade divina, de que ela é única, e infalivelmente acontecerá. Em outras palavras estou a dizer que tudo existe somente pela vontade de Deus, por aquilo que é possível no “mundo das possibilidades divinas”. O fato de não pertencer a ele é sinal de que nunca existirá, pois não existe como possível, mas como impossível.

Alguém pode alegar que Deus é o Deus do impossível, e isso é verdade como possibilidade. Ele pode fazer tudo sem qualquer restrição, a não ser a da sua vontade. Por exemplo, João o Batista disse aos fariseus que Deus poderia fazer das pedras filhos de Abraão. Com isso, ele afirmou que tudo é possível para Deus, mesmo as coisas impossíveis e improváveis, porém, não se vê pedras transformadas em filhos, posto Deus não querer filhos dessa forma, ainda que ele transforme o nosso “coração de pedra” em coração de carne, sem o que ninguém será filho. O que o profeta disse não pertence ao “mundo das possibilidades” de Deus, pois uma mente perfeita e santa como a dele não cogitaria algo que fosse contrário ao seu propósito. O Senhor fará tudo conforme a sua vontade, e não simplesmente por querer nos mostrar que é capaz de fazer. Interessa-o revelar a sua vontade; e por ela devemos entender que há uma “limitação” que se transfere ao seu plano e à sua execução. Deus não pode fazer o que não quer, logo, o que ele não quer não existirá, nem mesmo como possibilidade [uso o termo aqui como probabilidade]. Nenhuma força age sobre Deus além de si mesmo, estando sujeito apenas e tão somente à sua consciência. Como Deus santo, justo e perfeito, muitos aspectos, tanto do seu ser, como da sua vontade, como da sua obra, nos são incompreensíveis. Sabemos que o mal e a injustiça existem, e somente existem porque fazem parte do plano divino, de que na sua mente eles são “possíveis”, e somente por isso existem. Novamente quero frisar que “o mundo das possibilidades” de Deus não se refere ao que é possível como hipótese, como algo que se possa recusar ou resistir a ser, mas como algo a ser, no seu devido tempo [visto que o próprio tempo veio a ser sem chance de não-ser. Ainda que ele seja, de certa forma, parte ou elemento da eternidade. Mas sempre a partir dela, não o contrário].

Acontece que o mal e a injustiça são componentes do plano divino a cumprir o propósito santo e perfeito de Deus. Através deles, reconhecemos que Deus é bom e justo, e através de Deus, somos exortados a rejeitá-los, evitando-os, reconhecendo-os como antíteses de Deus. Qualquer tentativa de imputar-lhe maldade ou injustiça somente revelará o quanto o desconhecemos e quão equivocados somos. Porque somos nós a praticar a injustiça, somos nós a praticar a maldade, somos nós a agir em desordem e não Deus. Por isso, querer culpar a Deus é o mesmo que tapar o sol com a peneira: a culpa é e sempre foi toda e completamente nossa.

E este é o segundo ponto da questão. Foi o pecado de Adão o gerador para que o mal e a injustiça, assim como o caos, entrassem na criação. Não podemos lançar essa culpa nem mesmo sobre satanás, pois não foi ele quem pecou esse pecado mas o homem. Satanás foi um componente sedutor, que deu ao homem exatamente o que ele queria e desejava, um empurrãozinho em direção à desobediência, à ilusão de que poderia ser Deus. Mas, convenhamos, sem querer ser “advogado do diabo”, não foi satanás quem pecou esse pecado, ainda que também tenha sido punido por ele. Querer eximir o homem dessa responsabilidade é uma fraude. O diabo não tomará o nosso lugar, tornando-se fiador, pois ele tem muito o que responder por si mesmo. Tentar desesperadamente imputar a culpa a Deus, é o ápice do insensato. Não resta outra coisa a não ser reconhecer o pecado, e de que necessitamos desesperadamente da graça, misericórdia e favor de Deus para não sermos condenados. O arrependimento, confessando a nossa condição pecaminosa, e de afronta a Deus, é a única forma de trazer ordem e paz à nossa condição miserável e odiosa. Reconhecendo o sacrifício de Cristo na cruz, o justo e santo tomando o lugar dos injustos e pecadores, porque nós, e não Deus, estamos nesta condição de miséria. E somente pelo sangue do Cordeiro, derramado em favor daqueles que Deus amou eternamente, pode limpar-nos de todas as transgressões. O mal e a injustiça têm a função de nos revelar o que somos, de nos mostrar aquilo em que nos tornamos, e a premência de, em Deus, sermos feitos santos e imaculados. De forma a cada vez mais termos a consciência de quanto mais próximos dele mais distantes do mal, e quanto mais distantes de Deus mais rapidamente voltamos ao próprio vômito.

Outra questão evocada por este debate é o da inspiração divina do AT. Muitos justificam o fato de não reconhecerem-no porque ele está repleto de sangue e injustiças, e, muitas delas, segundo eles, ordenadas pelo próprio Deus. Ora, tamanha má-fé de quem faz tais proposições é digna de morte. Apelam sempre para a inocência das pessoas para rapidamente culparem a Deus; e mesmo que elas fossem inocentes, Deus não poderia ser acusado de crime algum. A verdade é que ninguém é inocente, e todos somos merecedores de morte. Isso me parece algo tão claro, do ponto de vista bíblico e lógico, que nem é preciso tecer argumentos mais elaborados. Todos pecaram, e destituídos estão da glória de Deus, diz o apóstolo [para quem não sabe, o livro de Romanos está no NT; mas muitos não gostam de Paulo, e não dão valor aos seus escritos. Pior para quem age assim, pois é a mesma palavra divinamente inspirada como qualquer trecho escrito pelos quatro evangelistas]. Apenas a bondade divina pode livrar da morte uma parte dos defuntos, mortos muito antes de virem ao mundo, dando-lhes vida, sem que haja qualquer injustiça. Pelo contrário, quando todos estariam definitivamente condenados, Deus teve misericórdia de alguns, absolvendo-os. A alegação de injustiça parte da falsa premissa de que todos os homens são dignos e não merecem a morte. Mas quem diz isso? Normalmente o morto que não quer a vida, mas permanecer em seu estado de ruína. Que dignidade tem uma pedra? Ou um pedaço de madeira? Não os vemos clamando por dignidade. Simplesmente porque não podem; e mesmo se pudessem não saberiam o que estão pedindo, por não entendê-lo. Pois diante de Deus, ninguém é digno, posto serem todos indignos. E se podemos triturar uma pedra até ela se tornar em pó, e queimar uma madeira até se transformar em cinzas, por que Deus não pode dispor das suas criaturas conforme a sua vontade? Se nós que não criamos nada, nem a pedra nem a madeira ou outra coisa qualquer, podemos dispor delas conforme a nossa vontade, o que nos leva a crer que Deus esteja impossibilitado de agir assim? E, agindo, quem pode acusá-lo de injusto e mau?

Mas, novamente, afirmo que essa tentativa sempre provém da mente daqueles que não reconhecem em Deus esse direito, pelo simples fato de não se disporem a reconhecer a sua autoridade e a necessidade urgente de se reconciliar com ele. Em sua soberba e orgulho se consideram tão bons quanto Deus, de forma que ele não pode agir contra a vontade do homem, ou melhor, contra os interesses dele. E sabemos o que é conveniente ao homem caído, exatamente o que ele não reconhece como sendo: a maldade e a injustiça. Somente por não constatarem em si mesmos aquilo que são, culpados daquilo que dizem não fazer mas fazem, zombando da própria à loucura ao imputá-las a Deus. É o típico caso de mascaramento, de se travestir de Deus quando não passam de farsantes; e que a psicologia chama de esquizofrenia, de se criar uma falsa realidade e não querer contato com o real e verdadeiro. Não há desculpa para eles; por mais que não queiram também se desculpar, preservando incólume o seu estilo de vida, digo, de morte; porque o "deus-homem" jamais poderá salvar a si mesmo.
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Notas: 1- Entendo que a resposta à pergunta inicial envolve uma série de questões, mas a primordial é mesmo a soberba e arrogância humanas de se fazer "Deus", o sonho de voltar ao Éden. Então, não acredito necessário abordar todos os elementos decorrentes desse pecado "maior".
2- Textos analisados no áudio desta aula: Nm 14.4-20; Dt 18.9-15; Mt 5.17 e 25:26-30.
3- Aula realizada na EBD do Tabernáculo Batista Bíblico 

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ÁUDIO DA AULA 29:

28 novembro 2023

Estudo sobre a Confissão de Fé Batista de 1689 - Aula 28: A bondade de Deus e o mal







Jorge F. Isah



INTRODUÇÃO

Bondade é a disposição natural para o bem, a qualidade do que é bom. E apenas Deus tem essa disposição em sua natureza, de forma que ele é completamente bom, de maneira que Deus não pode ser mau ou deixar de ser bom. Ele é bom, porque em seu ser não há qualquer maldade; o atributo da bondade não pode ser alterado, seja para mais ou para menos, porque Deus é a perfeita, infinita e imutável bondade, ela tem de existir em Deus sem limites ou medidas. Nele há simples, uniforme e infinitamente todo o bem. Como o salmista diz: "A bondade de Deus permanece continuamente" [Sl 52.1]; a terra está cheia da sua bondade [Sl 33.5]; e ainda: "Porque o Senhor é bom, e eterna a sua misericórdia; e sua verdade dura de geração em geração" [Sl 100.5].

A bondade inclui a benevolência, o amor, a misericórdia e a graça. Ela está presente na forma como Deus sustenta toda a criação, sejam anjos, homens, animais e a natureza. Todo o universo é a prova categórica da sua bondade para com as suas criaturas. E ela se manifesta na sua providência, em que todas as suas obras louva-lo-ão, "e teus santos te bendirão" [Sl 145.10]. Assim, o salmista diz que Deus, em sua bondade, dá o mantimento a todos no seu devido tempo, implicando no sustento e preservação. É por isso que o Senhor diz: "Olhai para as aves do céu, que nem semeiam, nem segam, nem ajuntam em celeiros, e vosso Pai celestial as alimenta... Olhai os lírios do campo, como eles crescem, não trabalham nem fiam; e eu vos digo que nem mesmo Salomão, em toda a sua glória, se vestiu como qualquer deles" [Mt 6.26, 27]. E até mesmo o ímpio não está isento de receber as bênçãos divinas, através da sua providência: "Porque faz que o seu sol se levante sobre maus e bons, e a chuva desça sobre justos e injustos" [Mt 5.45].

Deus é bom, e somente ele é. Foi o que o Senhor Jesus disse ao jovem: "Por que me chamas bom? Ninguém há bom senão um, que é Deus" [Mc 10.18]. Não há o que seja contestado nas palavras de Cristo. Apenas Deus é bom. Os homens, por mais que sejam considerados bons, por mais que pratiquem a bondade, ela nada mais é do que uma ínfima e quase indelével amostra da bondade divina. Se temos algo de bom em nós, ele provém de Deus, o qual somos a imagem e semelhança, que, por causa da Queda, tornou essa imagem em quase um espectro indistinguível e indefinível. O pecado nos arrasta para uma condição oposta à bondade; ele nos faz trilhar o caminho mal, que é a antítese do caminho de vida, o qual Deus nos deu a conhecer na pessoa do seu Filho Amado. O pecado nos faz transitar na morte, na dor, no sofrimento, da amargura, mas, sobretudo, no caminhos erráticos da rebeldia e descrença. Dizer que o sofrimento e dor não decorre do pecado é querer tampar o Sol com a peneira. Mesmo que não seja por conta de um pecado individual e específico, elas são originariamente causadas por nossa natureza pecaminosa, pela Queda, pela quebra da ordem. Por isso, nenhum homem pode ser chamado de bom; nem mesmo o mais abnegado e dedicado homem a buscar a bondade. Aquele jovem rico não considerou o que dizia. Não ao chamar Jesus de bom, porque ele é bom, sendo o Deus encarnado. Mas em pedir algo que era incapaz de realizar. Ao perguntar: "Bom Mestre, que farei para herdar a vida eterna?", ele demonstrou uma preocupação com a possibilidade de, por si mesmo, alcançar a salvação, ao mesmo tempo em que demonstrava desconhecer os reais significados tanto da sua condição como pecador, como da salvação e da impossibilidade do homem obtê-la por esforço próprio. A sua pergunta nem mesmo fazia jus à pessoa do Senhor Jesus. O seu pensamento estava errado em quase tudo que se relacionasse com a sua inquirição. 

A alegada não divindade de Cristo, cogitada por muitos, a partir deste relato, é uma avaliação frágil e descuidada de quem a proferi. Cristo não disse que não era Deus, mas que apenas Deus era bom. Ele sabia que aquele rapaz não consideraria as suas palavras, logo, as desobedeceria, revelando a descrença em sua própria afirmação: "Bom Mestre". O seu erro foi querer algo que era-lhe impossível alcançar. Há, também, um certo ar de orgulho e soberba na sua pergunta: "que farei para herdar a vida eterna?". Sabemos que o homem nada pode fazer para mudar a sua condição de perdição. Como o Senhor disse aos apóstolos, um pouco à frente, a salvação para os homens é impossível, mas não para Deus, pois para Deus tudo é possível [v.27]. Esse jovem considerou de maneira errada que era capaz de obter a vida eterna. Mas ela estava muito distante do seu alcance. Apenas Cristo, o Bom Mestre e Pastor, poderia fazê-lo por ele.

E então, entra-se na questão da divindade de Cristo. Se Cristo não é Deus, como o homem pode ser salvo? A suposição é de que ele não se considera Deus ao afirmar que apenas Deus é bom. Mas é possível ler isso nas entrelinhas? Não. Essa é uma inferência completamente despropositada e equivocada. Pois, que diferença há entre o "Bom Mestre" proferido pelo rapaz, e a autoproclamação do Senhor em João 10.11? Ali ele chama a si mesmo de o "Bom Pastor". Com todas as letras ele diz: "Eu sou o bom Pastor" [numa referência clara ao Salmo 23, onde Deus é o "Bom Pastor"]. O que torna uma afirmação diferente da outra? Há diferença entre os dois "bons"? Não. Se Cristo é o bom Pastor, segue-se que ele é bom, por isso, Deus. Discutir a divindade de Cristo a partir da sua resposta ao jovem rico é impossível. Assim como é impossível questioná-la à luz da Escritura. O certo é que Deus é bom em sua unidade, mas na diversidade pessoal do Pai, do Filho e do Espírito Santo.


A BONDADE DE DEUS E O MAL

A bondade está refletida na criação, a qual Deus considerou muito boa [Gn 1.31]. É claro que não podemos dar o sentido de "muito bom" à criação significando cada item dela como bom. O ato divino de criar e de fazer todas as coisas é que me parece "muito bom"; creio que ela está mais ligada ao fato de o Senhor ter se agradado por cumprir aquilo que imaginou e determinou criar. É possível mesmo divagar um pouco e acrescentar que, em vista do decreto eterno, a criação foi o cumprimento bom, correto, apropriado, daquilo que Deus estabelecera eternamente em seu plano. Creio não ser um disparate afirmar que a execução do plano divino na obra de criação é que ele considerou boa. Já que ele, como o Ser supremo e perfeito, não poderia jamais criar algo ruim em conformidade com o seu projeto perfeito. E isso não tem nada a ver com a perfeição da criação, a qual muitos teólogos se referem. Se Deus criasse algo perfeito, do ponto de vista metafísico, estaria se autocriando, o que é impossível; visto ser Deus eterno, não haveria como criar a perfeição. O que temos é a assertiva do Senhor em se agradar com a sua obra, de executá-la perfeitamente em conformidade com o seu decreto e vontade. E, certamente, como a Bíblia nos revela, os planos do Senhor incluíam tanto o mal como as coisas ruins, sem que elas procedessem dele, fossem causadas por ele. O mal é sempre causado pela deficiência do agente, de forma que os anjos ou os homens caídos realizam o mal por haver em suas naturezas uma deficiência que os inclina a praticá-los. E essa inclinação é decorrente da natureza pecaminosa, que contaminou a todos, sem exceção, a partir da queda de Adão no Éden. O mal, portanto, procede dessa deficiência natural do homem [que já estava presente em Adão, senão ele não pecaria], mas de forma alguma está presente em Deus, porque ele é o ser supremo, como Tomás de Aquino dizia: Deus é o Bem Supremo ou Sumo Bem, onde não há imperfeição ou falta alguma, pois ele é, também, a suprema perfeição. 

De certa forma, o mal metafísico está presente na criação. As imperfeições quanto aos seres pode-se ser percebida em relação a Deus, o ser perfeito. O homem, por exemplo, existe, vive, age e pensa. Uma pedra apenas existe, não vive, não age nem pensa. Nós, como seres criados à imagem e semelhança de Deus não atingimos a perfeição divina, o que é impossível, mas na escala da criação estamos mais próximos da sua perfeição; e, em relação às demais criaturas, somos mais perfeitos. Nesse sentido, tudo o que se aproxima mais do ser de Deus é "mais perfeito"; e também nesse sentido podemos dizer que Deus é o autor ou a causa do mal, mas do mal metafísico. 

Acontece que o mal moral é aquele que tem de ser punido. E, nesse sentido, apenas os anjos e homens podem cometê-lo. E o que seria o mal moral? Ao meu ver, e em concordância com o que diz Agostinho, é a ausência do bem. Temos de entender que o pecado, em si mesmo, exercer uma desordem na natureza humana, resultando na supressão de todo o bem, impelindo-o às escolhas opostas e conflitantes com os preceitos divinos; o que o torna incapaz, por sua deficiência moral, de orientar-se na realização do propósito final de Deus: fazer o bem, ser bom. E ele, em conformidade com a sua natureza, ausente do bem, dispõem-se a realizar o mal. Quando lemos Isaías 45.6-7, temos de entender que aquele mal ao qual o Senhor se refere não é outro senão a aplicação da sua Justiça, a sua ira, punindo o infrator pela transgressão, pelo pecado cometido contra o Deus santo e reto. Pois sendo Deus necessária e essencialmente bom, é impossível que ele faça o mal. 

Alguns dirão que Deus não é bom porque há pessoas com fome, sede, sem vestimenta... crianças nascem mortas ou falecem prematuramente... e de que, em suma, há muita injustiça no mundo. Então, num mundo onde há dor, sofrimento, morte e injustiça, não é possível que ele seja governado por um Deus bom. Mas, pergunto, o que tem a ver as tragédias e dores do mundo com Deus? Não seria essa a culpa do próprio homem? Que ao se entregar ao pecado causou o caos e a degeneração na ordem de forma que houvesse a desordem? E essa desordem não trouxe somente a morte espiritual, mas a morte física, ou seja, a desordem que nos fez perder as qualidades da imortalidade, mas sobretudo, a boa disposição de todas as coisas, a harmonia em toda a criação, para sucumbir à confusão, o desalinho e a anormalidade? E não foram elas que culminaram nas doenças, limitações e fragilidade do corpo? Mas não somente do nosso corpo, mas de toda a estrutura do universo? Porque Deus é acusado do mal praticado por nós? Não é o que Paulo nos diz em Romanos 8.19-22, que a culpa do caos é do homem? De que toda a criação, sujeita à vaidade do homem, geme com dores de parto até agora, esperando que a criatura seja libertada da corrupção, "para a liberdade da glória dos filhos de Deus". Toda a criação espera a manifestação dos filhos de Deus, para se ver também livre da corrupção e da degeneração. Deus criou todas as coisas em ordem, o pecado levou-as à desordem, e ele está executando o seu plano para devolver novamente tudo à ordem. Por que então ele já não fez isso de uma vez?, pode dizer alguém. Ora, porque ele é Deus, e executará o seu plano segundo a sua vontade e no devido tempo estabelecido por ele. Nem antes, nem depois, mas no momento exato.

É claro que temos um aliado sinistro na obra de manter a desordem no cosmos: o diabo. Dizer que a sua participação não é efetiva no conjunto da obra que o homem realiza, e de que há uma conjunção de forças para perpetrar essa situação, ainda que o diabo nos veja como um inimigo desprezível e odioso, o seu próprio desejo de nos destruir e a toda obra divina, representa o caos do qual ele não consegue se livrar, sendo ele a causa da sua justa condenação e precipitação no inferno, criado para ele e seus anjos, e de onde jamais sairá depois do Juízo, onde estará em sofrimento eterno. 

Mais alguém pode se levantar e dizer que a própria ideia de "sofrimento eterno" imposto por Deus aos rebeldes é prova de que ele não é bom. Mas essa pessoa se engana quanto à natureza divina, que também é santa e justa. Um mundo onde não há a punição para o pecado, o delito e a rebelião, seria um mundo injusto, como o que vivemos. Porém, Deus não o criou assim. E, no seu decreto, caberá a ele estabelecer novamente a ordem, aplicando a sua santa justiça e ira sobre os irregenerados. Deus, em sua perfeição, não pode abrir mão da justiça em prol do infrator. Como Justo Juiz cabe aplicar a pena sobre ele. Ainda pode-se dizer que a justiça de Deus é má, pois inflige dor e sofrimento. Contudo, ele alertou o homem das consequências da sua desobediência: "Mas da árvore do conhecimento do bem e do mal, dela não comerás; porque no dia em que dela comeres, certamente morrerás" [Gn 2.17]. E elas vieram como resultado da transgressão, do homem considerar imprudentemente que a sua vontade era superior à vontade de Deus, dele desconsiderar a verdade, e relativizá-la como algo possível de se fazer mantendo-se em seu estado original. Mas veio a queda, e com ela a desordem e a degeneração, e as consequências estão aí para todos vermos. Por mais que o homem descubra as curas para velhas doenças, muitas delas persistem matando [pois até mesmo o remédio não é eficiente para todos], enquanto novas surgem, manifestando que o homem é incapaz de trazer à ordem as coisas, antes ele é a causa, pelo seu pecado, do caos quase absoluto. Com isso temos que o homem não é bom em sua essência, ainda que ele reflita-a parcial e esporadicamente, como fruto do "Imago Dei", das frações da bondade divina que nos foi comunicada.

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Notas: 1- Textos bíblicos analisados em áudio: Mt 6.26-27 e Rm 8.18-23.
Aula realizada no Tabernáculo Batista Bíblico 
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ÁUDIO DA AULA 28: 

25 novembro 2023

Moda¹ Betume²

 



ClodoKill Fernandes



Dizem que moda é arte. Vá lá, pode até ser mesmo, ou ter sido um dia, em um longínquo século onde o gosto, quero dizer, o bom gosto era valorizado. Os pós-modernos dirão que a minha afirmação é por demais subjetiva para ser universal e válida. Tudo bem, entendo a parcialidade, mas por que o p.m. (sic) pode ser subjetivo em tudo e eu nem um pouquinho?... Ao dizer que sou subjetivo, o p.m. também usa da inclinação pessoal para confrontar a minha... E que raios quis dizer com ‘universal e válida’? Eu hein!... Mesmo tendo visões opostas, ou melhor, opiniões divergentes, estamos na mesma seara colhendo frutos diferentes: eu o trigo, ele o joio...

Deixando isso para lá, o fato é que as pessoas deveriam, por um mínimo de bom senso e ridículo, perceber a inferioridade de certas “criações”, em suas bizarrices, insanidades e desjeitos. Existem coisas simplesmente escalafobéticas (ah!, essa você não conhecia), próximas da insanidade ou psicopatia, a tornar alguns sujeitos e sujeitas verdadeiros serial-killers estéticos. Se não pleiteio a prisão, ao menos deveria ser-lhes tirado lápis, canetas, papeis, tablets, notebooks e escâneres, numa espécie de desintoxicação, e completa privação, tais quais os dependentes químicos, p.ex. Devia-se criar o E.A. (estilistas anônimos), com reuniões semanais a fim de conservarem a saúde e equilíbrio mental e, sobretudo, visual.

Existem coisas inexplicáveis, e, certamente, na moda esta verdade se acentua aritmeticamente. Talvez, por isso, a maioria se conforme em aceitar certas “criações” pelo simples fato de não serem compreensíveis. E como tudo tem de ser aprovado e permitido, as críticas e rejeições a determinado padrão (ou anormalidade), fere as sensibilidades das gentes; então, é melhor deixar tudo como está, mesmo não devendo estar ou sequer ter desejado estar, entende... Se não captou, esquece!

Veja, p.ex., estas sumidades de fedos e infames modelos!


   Calças para esculturas modernistas                             Síndrome de Ciclope e porco-espinho

 

 
                                                 Para Freud, traumas na infância provocaram isto.                                                                                            Esta imagem vale por mil descargas.


Não sei onde vamos parar. Sinceramente, espero não ser obrigado, um dia, a usar coisas assim ou piores. Ninguém deveria ser exposto a este tipo de “pornografia”, verdadeiro terrorismo ao belo e elegante. Ah, sim, novamente o p.m. me dirá que beleza e elegância são elementos culturais, subjetivos e, até mesmo tirânicos, fruto da cultura patriarcal, cristã e machista. Pois bem, eu disse ao p.m.:

- Amigo, dispa-se de todos os seus clichês e preconceitos, e veja as coisas como elas realmente são.

Olhou-me intrigado, e parecia refletir nas minhas palavras. Mas, ao percebê-lo tirar a camisa, o relógio, a pulseira de contas e esvaziar os bolsos da calça, corri o máximo que pude, objetivamente, e larguei-o lá com suas subjetividades.

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 Notas:

[1] Inauguramos esta nova seção, que tratará de moda e modismos e, eventualmente, canções folclóricas. [2] Betume não tem nada a ver, exclusivamente, com pinche ou asfalto. Muito menos conotação à cor e etnia. Betume, fique sabendo, é qualquer tipo de massa ou argamassa... E daí, você poderá compreender a ironia, entendeu? [3] Texto publicado originalmente na Revista Bulunga


20 novembro 2023

Estudo sobre a Confissão de Fé Batista de 1689 - Aula 27: A justiça de Deus





Jorge F. Isah



INTRODUÇÃO:

Não se pode falar do atributo da justiça de Deus sem relacioná-lo com a sua santidade. Tenho que Deus somente pode ser justo por ser absolutamente santo; e a sua justiça é derivada da sua santidade, não como um atributo isolado e independente [apenas para efeito de comparação, visto os atributos divinos se comunicarem plenamente em seu ser], mas como uma necessidade inevitável da sua santidade. É como se a santidade necessitasse de um complemento a fim de ser distinguida, identificada; seria, guardadas as devidas proporções, as impressões digitais que identificam Deus como o ser santo. Ela se afigura como uma consequência natural do ser absolutamente santo de Deus, ou seja, ele tem de ser justo, pois, se assim não fosse, iria contra a sua santidade. A justiça comprova que Deus é santo, e a sua santidade confirma a sua justiça [Sl 145.17]. Sem a justiça, creio que a santidade estaria incompleta; mas isso valeria para qualquer atributo divino, os quais se interligam e se complementam perfeita e maravilhosamente. Com isso não estou dizendo que exista uma ordem de precedência entre elas, que tivessem surgido em momentos diversos, pois, como sabemos, Deus não está sujeito ao tempo visto ser eterno, e o eterno não tem o seu caráter moldado ou privado pelo tempo, estando além dele. Os efeitos temporais não têm nenhum poder sobre Deus, por isso que todos os seus atributos são igualmente eternos como o seu ser é eterno.

Contudo, pode-se dizer que a justiça divina se aplica no tempo; e ainda que ela sempre existisse, deu-se a conhecer a partir da Criação, mais especificamente quando Deus estabeleceu os preceitos pelos quais o homem deveria manter-se obediente e fiel à sua lei, sem a qual não conheceria a santidade nem a justiça divinas. O que reforça o ensino bíblico de que a Criação, antes de tudo, tem por objetivo exaltar e glorificar o Senhor, e é através dela que Deus pode ser conhecido em seu esplendor e perfeição intocáveis.

O que nos leva a reconhecer que qualquer "justiça" fora dos padrões estabelecidos por Deus como justos são injustos. E o que determinará o valor da justiça não pode ser outra coisa além do próprio Deus, visto ser ele santo e não haver nenhum padrão de santidade fora dele. Até mesmo a santidade dos seus filhos adotivos é fruto daquilo que Deus faz neles, e assim podemos dizer convictamente que somos santos porque ele nos fez santos; somos santos porque ele é santo; e, finalmente, somos santos porque ele quis que assim fôssemos para a sua glória. Sendo que muitas vezes o mundo reconhecerá a santidade divina através da nossa santidade, numa glória impossível ao homem se não fosse pela vontade e obra do Santo e Justo. A mais tênue demonstração de justiça dos homens nada mais é do que o reflexo da justiça divina, sem a qual não há a menor chance de existir.

Outro ponto é que não se pode falar em justiça alheio aos preceitos santos estabelecidos na Lei divina. Apenas o Justo poderia elaborar e determinar o que venha a ser justiça; e qualquer tentativa de estabelecê-la à margem da Lei somente implementará a injustiça. Tem-se que no mundo moderno e pós-moderno, dogmas e certezas dão lugar ao ceticismo e à dúvida, num reconhecimento evidente da impossibilidade humana de constituir adequada e ordeiramente um padrão apropriado para se instituir a justiça. Na verdade, extemporaneamente, o homem vive de guerrear contra ela, pelo próprio senso de injustiça que traz em si, decorrente da sua natureza pecaminosa. Como se provou em sua mente que é impossível organizar independentemente um sistema justo, após rejeitar o bom conselho divino, coube à humanidade caminhar célere em prol de um sistema onde a injustiça se normatizasse. E o ponto de partida foi o abandono da Lei, e, por Lei, refiro-me a todos os enunciados feitos por Deus em sua palavra que coíba o pecado e puna o pecador; pois nada há mais injusto do que eles. Quando se afirma que a justiça é algo inteiramente subjetivo e as medidas do justo seriam variáveis de grupo para grupo ou até mesmo de pessoa para pessoa, temos que a medida do justo, dada por Deus, tornou-se ilegítima, e o homem encontra-se perdido em meio ao delírio de uma verdade e realidade meramente particular a conflitar com outras verdades e realidades particulares, que se alteram até mesmo em um único indivíduo; de forma que o que lhe parece justo hoje pode não ser amanhã e nem ter sido ontem. Fazendo-o cada vez mais escravo da sua própria injustiça.

Se reconhecemos que Deus é santo e justo, tem-se que a sua Lei também é santa e justa. Se ele é eterno e a sua vontade é eterna, também a Lei, como parte da sua vontade, é eterna. O mesmo vale para a eleição e redenção dos salvos. Não há contingência em Deus, nem poderia haver, pois se houvesse, Deus não seria Deus. Portanto qualquer afirmação de que um único preceito divino possa não ser justo, torna o seu acusador no mais injusto de todos os homens, pois a justiça, assim como a santidade, é um atributo inerente à sua natureza, sem o qual ele não seria quem é. Assim diz o salmista: "Justo és, ó Senhor, e retos são os teus juízos" [Sl 119.137].

Por outro lado, dizer que a justiça é uma virtude humana [como pensam teólogos humanistas e liberais] é negá-la como virtude divina; é mentir duplamente e ser duplamente injusto. Ainda que o homem tenha "momentos" de justiça, ela provém do Senhor. Por isso é um dos seus atributos comunicáveis, mesmo que o homem o exerça parcial, imperfeita e temporariamente. 


O TRATO JUSTO DE DEUS COM OS HOMENS

Neste ponto, faz-se necessário afirmar o que seja justiça. No Direito, se utiliza a frase de Ulpiano, jurisconsulto romano, para defini-la: "Justiça é a constante e firme vontade de dar a cada um o que é seu" [1]. Parece-me vago e inconcludente essa definição, pois nem mesmo se sabe de quem deve ser a constante e firme vontade de dar, como definir o que é e o que não é do indivíduo. Podemos elencar muitas coisas como sendo o "seu", mas certamente essas coisas variarão tanto de pessoa para pessoa como de cultura para cultura e de tempos em tempos. Logo, é uma formulação subjetiva e inadequada, na incerteza de seu próprio conteúdo. Aristóteles diz que: "Uma vez que o transgressor da lei é injusto, enquanto é justo quem se conforma à lei, é evidente que tudo aquilo que se conforma a lei é de alguma forma justo". Os termos do filósofo grego parecem-me muito mais objetivos e mais próximos do conceito bíblico de justiça; a qual é, em suma, considerar justo quem está em conformidade com a lei, ou seja, aquele que é obediente e zela por ela; e também aplicar a lei quando alguém se rebela contra ela. Como a lei é a manifestação da vontade divina, todos os homens devem andar então em conformidade com a sua lei. 

Novamente frisarei que, para mim, a lei é todo o preceito que Deus estabeleceu e enunciou em sua santa palavra. Não apenas os mandamentos mosaicos na forma da letra, mas aquilo que ele inscreveu em nossos corações, a consciência do pecado que significa toda e qualquer atitude, pensamento ou desejo que vá contra a santidade divina. Paulo diz que "assim a lei é santa, e o mandamento santo, justo e bom" [Rm 7.12]. A lei é santa como reflexo da santidade divina, derivada dela, assim também ela é justa, como o próprio Senhor é justo e diz a Israel:"E que nação há tão grande, que tenha estatutos e juízos tão justos como toda esta lei que hoje ponho perante vós?" [Dt 4.8]. Também é por ela que tomamos o conhecimento do pecado, e de que, ao cometê-lo, estamos em flagrante desobediência a Deus [Rm 3.20].

E é este ponto que nos interessa mais detidamente, a justiça relativa de Deus para com os homens. Por relativa não se quer dizer que é o oposto de absoluto, mas de exprimir uma relação na qual todos os homens se reportam a Deus como a autoridade suprema, e a quem todos estamos subordinados. Como diz o Dr. Heber Campos, "é a justiça que se manifesta no dar a cada um conforme os seus merecimentos" [2].

Antes de prosseguirmos, faz-se necessário alertar que Deus é o Senhor de toda a criação, e de que ele exerce o seu governo sobre bons e maus, justo e injustos, e todos os homens estão debaixo de suas leis. Afirmar a injustiça de Deus em nada ajudará o infrator. Ele é a autoridade máxima, e acima dele não há qualquer outra. Nem mesmo a vontade do homem pode demovê-lo de exercer o seu domínio e poder soberanos. Deus é Deus e, por isso, é quem faz as regras, sempre segundo a sua vontade santa, perfeita e reta, em conformidade com o seu ser absoluto. Quer se queira ou não, quer se esperneie ou não, o homem deve satisfação a Deus, e ele será recompensado e cobrado no devido tempo segundo o que fez.

É notório ao cristão bíblico que todos os homens nascem em pecado, e suas obras são indignas, e jamais nenhum de nós poderá reivindicar justiça com base em seus próprios méritos diante de Deus, visto que as suas obras sempre o condenarão.

Esse ponto é importante pois a definição de justiça relativa [aqui, especificamente, tratamos da sua subdivisão, a justiça remunerativa, aquela através da qual Deus recompensa os seres racionais, homens e anjos, segundo o que fizeram de bom], pode levar ao engano de se imaginar que Deus absolverá alguém ou o considerará inocente por alguma coisa que ele faça, por uma justiça própria e meritória. Não. Por ser pecador e miserável, todos os homens, sem exceção, estão debaixo da Lei e pecaram e serão por ela julgados, de forma que todo mundo é condenável diante de Deus [Rm 3.23,19]. Por isso Deus, em sua graça, misericórdia e providência, determinou que o seu Filho Amado, Jesus Cristo, fosse dado em expiação por muitos, para que fossem justificados diante dele, como prova do seu amor [Rm 5.8]. Não há outro meio ou forma do homem não ser condenado. A única justiça que o Senhor reconhece é a realizada pelo seu filho, na cruz, para todos e sobre todos os que creem [Rm 3.22]. E assim, justificados pela fé no sangue do Senhor Jesus, temos paz com Deus, e somos poupados, somos salvos da sua ira [Rm 5.1, 9], e alcançamos a reconciliação [Rm 5.11].

Temos que Deus somente justifica e absolve o homem através da morte de seu Filho e apenas por ela. Sendo a prova da sua graça e bondade para com aqueles que ele amou eternamente, e pelos quais fez manifestar a sua infinita e gloriosa justiça, estando livres do juízo de morte e justificados para a vida. Pela obediência de um único homem à Lei de Deus, aqueles que também foram amados eternamente serão feitos justos [Rm 5.19]. Mas nada disso, como se vê, pode ser creditado ao homem, nem mesmo os atos bons que ele pratica, nem as boas ofertas que dá. Davi compreendeu como ninguém o que ele e o seu povo eram, e como careciam da bondade e providência divina para fazerem o que era bom aos seus olhos, e de que nem ele ou algum dos seus súditos tinham do que se orgulhar diante de Deus, visto que tudo que lhes era dado retribuir, era fruto daquilo que o próprio Deus dava-lhes: "Porque quem sou eu, e quem é o meu povo, para que pudéssemos oferecer voluntariamente coisas semelhantes? Porque tudo vem de ti, e do que é teu to damos. Porque somos estrangeiros diante de ti, e peregrinos como todos os nossos pais; como a sombra são os nossos dias sobre a terra, e sem ti não há esperança. Senhor, nosso Deus, toda esta abundância, que preparamos, para te edificar uma casa ao teu santo nome, vem da tua mão, e é toda tua" [1Cr 29.14-16].

Apenas pela sua vontade, e como cumpridor das suas promessas, Deus se faz devedor ao homem; não porque recebeu algo de nós, mas porque ele prometeu que nos daria segundo as condições que ele estabeleceu, e que realizou por nós. Temos a impressão de que cumprimos a sua vontade voluntariamente, como se não houvesse em nós nenhuma outra motivação além do desejo de servi-lo e honrá-lo, mas como seríamos capazes de dar algo a Deus que ele primeiro não nos desse? De certa forma, é engraçado que além de recebermos o suficiente para dar a ele, ainda seremos recompensados por isso, sendo que não há mérito algum em nós, e nem mesmo somos dignos de alguma honra. O que se revela é uma grande oportunidade para bendizê-lo, louvá-lo e glorificá-lo por tão grande graça e misericórdia e bondade para conosco, servos inúteis, que fazemos apenas o que devemos fazer e que nos foi ordenado realizar [Lc 17.10].

Mas, e o que acontecerá aos que não foram justificados por Cristo e por ele não foram salvos?


A IRA DE DEUS

A ira divina é a justa e perfeita manifestação de Deus diante do pecado. É a sua resposta necessária ao pecado, sem a qual a sua santidade e perfeição ficariam comprometidas. Veja bem, se Deus não se irasse e revelasse indiferença ao pecado, não seria Deus; ele não pode pactuar com a injustiça, sendo o Justo. A ira é uma das condições essenciais do seu ser e, portanto, é também uma perfeição divina, através da qual ele infligirá castigo aos que violarem a sua palavra e vontade. Para eles, não há misericórdia; ele não pode deixar de puni-los, de lançar sobre eles a sua severidade, tal qual o profeta diz: "O Senhor é Deus zeloso e vingador; o Senhor é vingador e cheio de furor; o Senhor toma vingança contra os seus adversários, e guarda a ira contra os seus inimigos." [Na 1.2]. Com isso, estou a dizer que o caráter divino, o seu ser perfeito, não o seria se em Deus a ira não se manifestasse. Ela é a resposta divina ao fato dele ser santo e justo.

O primeiro ponto é que a ira de Deus se manifesta sobre toda a impiedade e injustiça dos homens, "que detém a verdade em injustiça" [Rm 1.18]. Acontece que a ira e o castigo divinos não fazem parte da pregação atual. Por uma visão distorcida de que os homens são bons em sua natureza e essência, muitos consideram falsos os versos bíblicos que exortam o homem a não se rebelar contra Deus, antes deve obedecê-lo, pois do contrário, a ira do Senhor estará sobre ele. Há um falso evangelho sendo pregado, e que tem levado muitos a manterem-se na impiedade, batendo às portas do inferno. Não é preciso que se cometa algum crime atroz para fazer parte desse grupo. O simples fato de não se sujeitar a um mínimo preceito divino, podendo ser, até mesmo, a mera rejeição da sua justiça, implicará na impiedade e injustiça. Deus tem de ser glorificado pelo que ele é, o Senhor de tudo e todos, a autoridade absoluta e perfeita em todos os seus atributos.

É interessante que as criaturas cada vez mais se consideram aptas a fazerem de Deus réu. Acreditam que estão num patamar tão superior que podem tecer críticas, zombar e escarnecer daquilo que nos foi revelado em sabedoria e retidão. Há um desejo crescente de se criminalizar a Deus, fazendo da sua palavra um simples livro de códigos imorais e desumanos. Mas, ó homem, quem és tu que replicas a Deus?, já dizia Paulo. Quem o fez senhor e juiz? Quem investiu-lhe da autoridade que julga ter? Novamente, temos o pecado se manifestando na mente e lábios dos que se consideram, em sua vaidade e soberba, superiores a Deus. Podem não concordar abertamente com esse rótulo, mas o desejo latente de independência os faz amotinados e rebeldes. Essa tentativa de independência sempre significará a incompatibilidade com o que é santo e justo e a compatibilidade com o pecado e a injustiça, em que ambos se toleram mutuamente, e seus desejos se combinam e permanecem conciliados.

A ira divina é algo presente na Escritura, e o próprio Deus não se envergonha de proclamá-la [Dt 32.39-43; Ex 22.22-24; Rm 1.18]. Por que então temos brios em anunciá-la, ao mesmo tempo em que contemporizamos com o pecado? Penso que a ira divina e a certeza do seu juízo estão presentes em nossa consciência, como algo que Deus nos legou. Sabemos que ela é justa, mas a nossa natureza não se conforma a ela, por isso tenta negá-la ou ocultá-la a fim de não haver barreiras ao pecado, deixando-o agir livremente, sem restrições, e não sermos acossados pela ideia de uma merecida punição. O engano nos faz acreditar que Deus, em algum momento, se arrependerá daquilo que prometeu, e não cumprirá a sua palavra: de que todo o pecado será castigado e os pecadores sofrerão na carne pelo mal que praticaram. Deus é fiel em tudo o que promete, e não abrirá exceção para o derramar a sua ira. É o que o apóstolos diz: "Porque bem conhecemos aquele que disse: Minha é a vingança, eu darei a recompensa, diz o Senhor. E outra vez: O Senhor julgará o seu povo. Horrenda coisa é cair nas mãos do Deus vivo" [Hb 10.30-31].

Contudo, os cristãos podem irar-se?

Há uma ideia de que o crente deve ser "paz e amor". Este lema foi muito utilizado pela contra-cultura nos anos 1960, a era "hippie", em que as pessoas se preocupavam exclusivamente consigo mesmas, com o seu prazer, e em negar toda a cultura ocidental judaico-cristã. O pecado não era o cometido individualmente por cada um deles, seja no uso de drogas, no sexo livre, na ociosidade, na idolatria e culto a deuses pagãos, mas na sociedade e na igreja como mantenedores de uma ordem cristã hipócrita, em que se defendia a moral e a ética e se condenava o pecado, mas que não passava de um discurso, enquanto a maioria se entregava mesmo aos desejos da carne. Eles pensavam que escancarando ao mundo a sua própria impiedade, este mundo deixaria cair a máscara e se mostraria como realmente era. Ao invés de se empenharem na construção de um ideal verdadeiramente justo, tomaram o caminho oposto, como se colocar o dedo na ferida pudesse curá-la. Certamente não havia o menor interesse em cura, mas o empenho de se esfregar limão e pimenta na chaga. Não passando de outra justificativa para o pecar livremente e sem culpas. Em outras palavras, eles se especializaram em agir exatamente naquilo em que condenavam, a hipocrisia, pois com a desculpa de se "desnudarem" apenas serviam ao propósito dissimulado de se apegarem mais e mais ao próprio pecado.

Então é que entra a questão da ira, a qual é demonizada pela maioria dos cristãos. Quando muito, consideram-na uma prerrogativa apenas de Deus, estando vedado aos homens. Mas, é realmente isso? Paulo nos exorta a irar e não pecar [Ef. 4.26], indicando que não é todo o tipo de ira que se transforma em pecado. Um exemplo de ira santa nos foi dado pelo Senhor Jesus ao expulsar os cambistas e vendilhões do templo [Jo 2.13-17]. Mas, e para nós, quando é justo irar-se e não? Penso que há uma linha tênue que delimita a ira santa e a ira pecaminosa. Como estamos mais sujeitos a adentrar do outro lado da linha, não é prudente o estímulo ao irar-se. Facilmente nos iramos quando vemos uma injustiça. Quando vemos o pecado campear livremente. Quando a palavra de Deus é desprezada. Quando Deus é escarnecido e insultado pelos tolos. A Bíblia diz que todos eles, se não se arrependerem dos seus pecados, serão condenados e afligidos eternamente pela ira divina. E podemos deixar a vingança para o Senhor, como ele mesmo nos orienta, a descansar e confiar nele. Mas normalmente não nos iramos quando somos nós a cometer o pecado e a injustiça, antes nos tornamos condizentes com o nosso erro, com o de familiares e amigos. Contemporizamos, nos fazemos de vítimas, e encontramos as explicações mais espúrias para justificar o injustificável, e nos enganos em nosso próprio senso de [in]justiça. Ao invés de nos irar contra o próximo, contra o pecado alheio, por que não experimentamos primeiramente irar-nos contra o nosso próprio pecado e contra nós?

Entendo que o "irar-se" é menos uma ordem e mais uma concessão divina, enquanto o "não pequeis" é um imperativo. Na maioria das vezes, os motivos da nossa ira são ofensas e injustiças cometidas contra nós mesmos. Há uma nítida intenção de retribuir a afronta, de restaurar a honra. E não há como proceder assim sem ser levado a pecar, basta lembrarmo-nos das reações, imprecações e insultos que realizamos em nome de uma pretensa justiça. Pois nos ressentimos facilmente diante de uma provocação.

Portanto, entendo que o cristão não pode ser "paz e amor" em relação ao pecado, especialmente ao pecado pessoal, às tentações que se nos apresentam diariamente e que consentimos em presenciá-las, consumando o pecado. Essa é a nossa guerra, a nossa luta diuturna, na qual não podemos dar trégua, antes irar-nos e atacá-la francamente, pois ela é ofensa à santidade de Deus. Devemos deixar a justiça para o Senhor, e aqueles que ele estabeleceu como seus ministros, as autoridades que são seus instrumentos para castigar o que faz o mal [Rm 13.4].

Iremos pois, e não pequemos; é a ordem do Senhor.


Nota: 1- Em conversa com o pr. Luiz Tibúrcio, ele entendeu que Cristo, de certa forma, validou essa frase de Ulpiano, ao dizer aos fariseus: "Daí a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus", de forma que, ao se fazer isso, aplica-se a máxima de justiça do jurisconsulto romano.
2- "O Ser de Deus e seus atributos", Dr. Heber Carlos de Campos, pg 341, Editora Cultura Cristã;
3- Aula realizada na EBD do Tabernáculo Batista Bíblico ;
4- Textos analisados durante a exposição da aula em áudio: Gênesis 6 e 7 e 1Crônicas 29: 14-16;
5 - A foto ao alto, remetendo-nos à crucificação do Senhor, e vem de encontro à afirmação do apóstolo Paulo de que Cristo "para nós foi feito por Deus sabedoria, e justiça, e santificação, e redenção" [1Co 1.30];
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ÁUDIO DA AULA 27: