Por Jorge Fernandes Isah
A Bíblia esteve nas mãos dos judeus e, ainda que a estudassem diligentemente, não compreendiam os reais propósitos divinos; escutavam muitas vozes, muitas sugestões, muitas interpretações, mas a voz do Espírito Santo era-lhes por silêncio. De forma diabólica, os escribas e sacerdotes ouviam apenas a si mesmos e aos seus pares, corrompendo e acrescentando à palavra de Deus seus próprios conceitos, insuflando o povo a segui-los como se fosse o conselho divino. É o que está escrito: “Na cadeira de Moises estão assentados os escribas e fariseus. Todas as coisas, pois, que vos disserem que observeis, observai-as e fazei-as; mas não procedais em conformidade com as suas obras, porque dizem e não fazem. Pois atam fardos pesados e difíceis de suportar, e os põem aos ombros dos homens; eles, porém, nem com seu dedo querem move-los” (Mt 23.1-4).
Ao sentarem-se na cadeira de Moisés, os líderes do templo liam as Escrituras, tanto a Lei como os Profetas, explicavam-nas e ensinavam-nas, de forma que cumpriam o trabalho honrado de preservar e propagar a palavra escrita. Contudo, a despeito da autoridade investida (eram também juízes no tribunal onde a Lei Mosaica era a lei civil), suas atitudes não eram compatíveis com aquilo que proferiam. Eles eram “atores”, interpretavam o papel de alguém que não é, não pode ser, ou não quer ser. O hipócrita encontra-se no mais miserável de todos os estados, o de guiar os outros quando está completamente perdido; e de ser incapaz de ver a própria ruína e inutilidade. Por isso, Cristo exortou o povo a ouvi-los, mas não a segui-los (1).
Por diversas vezes, Ele os chamou de hipócritas, insensatos, cegos, assassinos, raças de víboras. Há os que vêem nas palavras do Senhor uma admoestação branda, um apelo amoroso para que os fariseus e escribas se convertessem da sua disposição ao pecado e a oposição a Deus. Porém, em Mateus 23, Jesus os censura duramente através de uma série de “ais” e em descrições pormenorizadas das suas atitudes pecaminosas. Não vejo, na contundência de Suas afirmações, nenhuma demonstração de amor para com o alvo do Seu ataque. Antes, em Suas palavras, é visível a sentença condenatória.
A forma como os “ais” são proferidos, mostram a nítida ira do Senhor para com aqueles homens; e não há porque ser diferente, visto que a Bíblia revela a soberana autoridade de Cristo para salvar e também para condenar. E é esse o caso. Cristo está a julgar os principais. Aqui Ele não se refere a eles como amigos, mas como a inimigos. Parece que, de certa forma, para alguns, se Ele está julgando-os, está agindo injustamente. Mas, lembremo-nos de três coisas:
1-Cristo é Deus. A segunda pessoa da Trindade Santa; o Filho eterno; nosso Senhor e Salvador, cuja morte na cruz propiciou a libertação e vida a muitos; Aquele pelo qual todas as coisas foram feitas; e pelo qual o mundo será julgado. Portanto, se há alguém com autoridade, justiça, santidade e retidão para julgar qualquer pessoa ou evento no universo, esse alguém é o Verbo encarnado: Jesus Cristo.
2-A ira divina é santa. Ela é o reflexo da Sua justiça. Portanto, dizer que Cristo, ao mesmo tempo em que se ira e condena, o faz em amor ao objeto da Sua ira e condenação é, no mínimo, uma contradição. O problema é que se espalhou pelo mundo que Deus ama a todos, quando, na verdade, Deus ama aquele que o obedece, aquele que cumpre os Seus mandamentos, aquele que foi regenerado e lavado no sangue do Seu Filho amado, os eleitos, pelo qual morreu e se entregou para que fossem salvos. Quem se atreverá a rogar por aquele que Deus condena? Ao fazê-lo, não estará questionando a Sua justiça e a santidade? E se fazendo como ele? O “ai” de Cristo é uma acertiva inexorável, do qual não se pode escapar.
3-Deus é justo, e não pode ser questionado por ninguém. Foi o que Ele disse a Jó: “Porventura também tornarás tu vão o meu juízo, ou tu me condenarás, para te justificares?” (40.8).
O que não quer dizer que Cristo não tenha outro objetivo em mente. O alvo do Seu amor está implícito na maneira com que os condena, e desta forma, todos os eleitos lerão e ouvirão aqueles exemplos como alerta para não repeti-los, para afastarem-se deles, para condená-los igualmente, e assim, buscarem fazer exatamente o oposto do que os líderes de Israel faziam. Em outras palavras, Cristo revela-nos toda a sordidez e vilania dos fariseus e escribas, condenando-as e a eles, para que nós visualizemos o erro, saibamos do desagravo de Deus a quem os comete, e nos afastemos de suas práticas. O alvo da Sua ira é a liderança judaica e seus seguidores, o alvo do Seu amor, os eleitos (podendo ser mesmo alguns desses líderes e seguidores).
E, hoje, as coisas são diferentes? Não há milhares de estudiosos mundo afora, Bíblias em mãos, examinando-a, assim como os fariseus e escribas faziam? E, igualmente, não são guiados por suas mentes pervertidas a rebelar-se contra aquilo que dizem acreditar?
Vejamos alguns pontos:
1-Os fariseus e escribas tinham o conhecimento das Escrituras, e sabiam da chegada do Messias.
2-Cristo veio ao mundo, e os fariseus e escribas odiavam-no exatamente porque Ele se opunha a tudo o que faziam e era contrário as Escrituras.
3-Os fariseus e escribas eram “obreiros fraudulentos” (2Co 11.13) e, por isso, combatiam declaradamente o Evangelho de Cristo.
4-Eles se diziam servos de Deus, mas na verdade eram idólatras, pois faziam “todas as obras a fim de serem vistos pelos homens” (v. 5). Faziam ídolos de si mesmos.
5-Não eram humildes; usurparam e usavam o título que não lhes pertencia (Rabi), considerando-se mestres, quando “um só é o vosso Mestre, a saber, o Cristo, e todos vós sois irmãos” (v. 8).
O quadro dos “principais” descrito pelo Senhor, em nada lhes é favorável, ao contrário, é totalmente adverso, desventurado. E muitos discípulos dos fariseus e escribas estão a andar por aí, cheios de vaidade, exibindo-se como pavões na cópula, a fim de serem vistos e engrandecidos como se fossem deuses. A ferida na qual Cristo colocou o dedo é a vergonha exposta por muitos crentes. Não apenas pastores, presbíteros e diáconos, mas muitos de nós estão inchados por todo o tipo de cobiça, de vanglória, de louvor, de adoração, ostentando títulos e honrarias usurpadas de Deus. Como aqueles à época de Jesus queriam ocupar o lugar que somente o Filho de Deus pode ocupar, muitos se iludem com as falsas promessas de que podem ser rabis modernos, mestres de uma legião de tolos e incautos.
Quem lhe deu olhos para ler? A mente para entender? O espírito para discernir? E a vontade para obedecer? Quem lhe revelou o pecado? E a salvação? Quem lhe deu a vida? Ou será que foi você que se entregou na cruz por seus pecados? Ou, onde estava quando Deus fundou a terra? (Jó 38.4).
Se atentarmos, veremos que nada do que temos é fruto do nosso esforço, ou pode ser determinado por nossa vontade, ou aconteceu por mérito. Provavelmente, haverá no mundo pessoas muito melhores do que eu, muito mais inteligentes, sábias, talentosas e dispostas, mas de uma forma inexplicável, Deus escolheu-me para Si e não eles. Por isso, ninguém será justificado por obra de justiça que houver feito (Tt 3.5-6), "para que nenhuma carne se glorie perante ele" (1Co 1.29), e "aquele que se gloria glorie-se no Senhor” (1Co 1.31). Paulo está nos dizendo que tudo é pela graça e misericórdia de Deus, que nada do que somos ou temos é fruto nosso, mas gerado em nós por Cristo. Então, por melhor que eu seja, por mais bem situado social e financeiramente, por mais poder e prestígio que tenha, nada disso foi-me dado por mérito, mas por graça; o que me torna duplamente responsável pela forma como decido usar o que me foi entregue por Deus. Fazendo-o sabiamente, guiado pelo Espírito, serei instrumento de justiça, do contrário, de injustiça. E toda injustiça será castigada, condenada, parafraseando Nelson Rodrigues.
Vem à mente a advertência:
“Portanto, pelos seus frutos os conhecereis. Nem todo o que me diz: Senhor, Senhor! entrará no reino dos céus, mas aquele que faz a vontade de meu Pai, que está nos céus. Muitos me dirão naquele dia: Senhor, Senhor, não profetizamos nós em teu nome? e em teu nome não expulsamos demônios? e em teu nome não fizemos muitas maravilhas? E então lhes direi abertamente: Nunca vos conheci; apartai-vos de mim, vós que praticais a iniqüidade” (Mt 7.20-23).
Sem entrar na análise profunda deste trecho, o que fica evidenciado é que, mesmo muitos sendo usados para a obra de Deus, não são de Deus. Fazem-na, estão nela, cumprem uma obrigação específica determinada por Deus, como todos no mundo, crentes ou não fazem, mas não estão entre os escolhidos. O que revela, mais uma vez, o poder divino de fazer o que quer, como bem quer, com quem quer, porque Ele é o padrão máximo de soberania, justiça e santidade, e para que em tudo o Seu nome seja glorificado. Ninguém pode enganá-lo, ou rir-se dEle, antes é Ele quem ri do tolo, porque “o tolo não tem prazer na sabedoria, mas só em que se manifeste aquilo que agrada o seu coração” (Pv 18.2).
No fundo, os antigos e os novos fariseus orgulham-se tanto das suas obras, como uma espécie de manifestação das suas bondades pessoais, como o fruto da aplicação e esmero de uma vida voltada para o serviço religioso e, com isso, esperando serem justificados perante Deus, corrompem todo o bom ensinamento doutrinário que porventura venham a realizar. Ele está tão seguro de si mesmo, tão cheio de si, que mesmo desejando glorificar a Deus o que consegue é glorificar-se, revelando todo o caráter vaidoso e soberbo que possui (dissimuladamente), e o desprezo para com tudo o que não seja ele mesmo (Lc 18.11-12). Ele é um fraudador da fé cristã, um embuste, uma vergonha para a igreja, pois diz o que está em conformidade com as Escrituras, mas age diametralmente oposta a elas (2). Está tão orgulhoso de suas obras (apontar os erros alheios), ensimesmado com seus dotes e atributos, com o destaque e proeminência alcançados, que é incapaz de acusar em si mesmo os pecados que acusa nos outros. Em suma, é o desobediente crônico; finge que é, mas não é; faz o que não deve quando devia fazer o que diz fazer; é odioso ao criticar o pecado de outrem, talvez por se ver nele e no seu pecado. Ele é um obstinado; perseverante na teimosia.
Paulo o descreve assim: “Tu, pois, que ensinas a outro, não te ensinas a ti mesmo? Tu, que pregas que não se deve furtar, furtas? Tu, que dizes que não se deve adulterar, adulteras? Tu, que abominas os ídolos, cometes sacrilégio? Tu, que te glorias na lei, desonras a Deus pela transgressão da lei?” (Rm 2.21-23). Esse é o pior inimigo da verdade, porque ainda que a proclame e muitas vezes aceite-a intelectualmente, é incapaz de praticá-la, prefere viver a mentira deslavada, e terminar por blasfemar, com suas atitudes, o nome de Deus entre os incrédulos (Rm 2.24).
Como diz o pregador: “vaidade de vaidades! Tudo é vaidade” (Ecl 1.2).
Mas ao que “a si mesmo se exaltar será humilhado; e o que a si mesmo se humilhar será exaltado” (Mt 23.12). Porque quando tivermos a mente e o sentimento que houve também em Cristo, o qual se humilhou a si mesmo, e esvaziou-se a si mesmo, tomando a forma de servo, achado na forma de homem, e foi obediente até a morte na cruz (Fl 2.5-8), então seremos “irrepreensíveis e sinceros filhos de Deus inculpáveis, no meio de uma geração corrompida e perversa, entre a qual resplandeceis como astros no mundo” (Fl 2.15).
Retendo a palavra da verdade (o fariseu não consegue fazê-lo), humilhar-se significa considerar os outros superiores a si mesmo, não atentar para o que é propriamente seu, mas também para o que é dos outros (Fl 2.3-4). Para que isso aconteça, é necessário que Cristo cresça em nós, enquanto diminuímos e finalmente morremos para nós mesmos (Jo 3.30; Gl 2.20); pois o nosso velho homem foi crucificado com Ele, para desfazer o corpo do pecado, a fim de que não sirvamos mais ao pecado (Rm 6.6).
Cristo nos deu o exemplo: o maior se fez menor para ser exaltado soberanamente.
Notas: (1) Ainda que não diretamente, aqui encontramos o princípio da autoridade. Os líderes, mesmo afundados em suas corrupções, foram instituídos por Deus, e, portanto, não haveria por que os judeus desprezá-los naquilo em que falavam. O Senhor não mandou que o povo se rebelesse contra eles, que os destituíssem dos seus cargos, e colocassem outros mais honrados para exercê-los. Logo, o crente não é chamado à revolução. Não há componentes revolucionários no Evangelho, no sentido de algo afrontoso, insubordinado, desrespeitoso e injusto. O fato dEle ordenar que não praticassem os mesmos atos dos líderes, demonstrava a necessidade de se ter sabedoria, discernimento, santidade, a fim de não se contaminar com o pecado. Em nada nos autoriza ao desrespeito à lei, às normas que somente existem porque cumprem o propósito soberano de Deus; a menos que se oponham à expressa vontade divina. Como Pedro disse, "mais importa obedecer a Deus do que os homens" (At 5.29).
(2) Note-se que estou a falar de um fariseu moderno em um ambiente doutrinariamente ortodoxo, onde os princípios bíblicos estão preservados; já que qualquer tentativa de revelar esse erro em um ambiente corrompido doutrinariamente não surtiria nenhum efeito.