10 maio 2023

Estudo sobre a Confissão de Fé Batista de 1689 - Aula 5: A Palavra Imutável!


      





 
Jorge F. Isah




CAPÍTULO 1: ESCRITURAS SAGRADAS

8. O Antigo Testamento em hebraico (que era a língua vernácula do povo de Deus na Antigüidade),14 e o Novo Testamento em grego (que em sua época era a língua mais conhecida entre as nações), tendo sido diretamente inspirados por Deus e, pelo seu singular cuidado e providência, conservados puros no correr dos séculos, são, portanto, autênticos, de maneira que, em toda controvérsia de natureza religiosa, a Igreja deve apelar para eles como palavra final.15 Mas visto que essas línguas originais não são conhecidas de todo o povo de Deus – Que tem direito e interesse nas Escrituras, e que é ordenado a ler16 e examinar17 as Escrituras no temor de Deus – os Testamentos devem ser traduzidos para a língua de cada nação,18 a fim de que, permanecendo a Palavra no povo de Deus, abundantemente, todos adorem a Deus e maneira aceitável, e pela paciência e consolação das Escrituras possam ter esperança.19
[14- Romanos 3:2. 15- Isaías 8:20. 16- Atos 15:15. 17- João 5:39. 18- I Coríntios 14:6,9,11-12,24,28. 19- Colossenses 3:16.]


INTRODUÇÃO

Parece que tudo que se refere à Sagrada Escritura acaba por se envolver em alguma polêmica, certamente pelo seu caráter sobrenatural, e por dirigir-se ao homem natural, e muitos debates acontecem desnecessariamente. Mas não podemos nos esquecer de que Deus se utiliza até mesmo da nossa inconstância e fragilidade para que os seus santos propósitos se cumpram. Foi assim na formação do Cânon, tanto do Antigo como do Novo Testamentos, e ainda persiste quando o assunto é da Palavra de Deus. E não é diferente o ensino sobre esta importante seção do Capítulo 1 da C.F.B. Ela revela-nos algo de que já discutimos anteriormente, em outras aulas, dando ênfase especial na direta e efetiva inspiração divina na formação do Cânon, de forma que todos os seus autores estavam submetidos à vontade e ação de Deus ao escreverem os 66 livros que compõem a Bíblia. 

Em linhas gerais, o que temos aqui, como primeiro ponto, é o fato de que na Escritura não há componentes que não tenham sido inspirados, dirigidos, e não fossem provenientes da mente santa, perfeita e sábia de Deus. Tudo o que temos nela tem origem no próprio Deus, por isso ela é a sua palavra. E este é um ponto inegociável na fé cristã [se é que há algum ponto que possa ser considerado negociável]. 


PRESERVAÇÃO DO TEXTO SAGRADO

A C.F.B. prossegue afirmando que Deus, "pelo seu singular cuidado e providência", ou seja, por sua ação direta e pessoal, conservou-a pura e autêntica no decorrer dos séculos. Este é um princípio fundamental e que também já foi exposto preliminarmente, o de que Deus preservou a sua palavra de forma que as gerações futuras, até o fim dos tempos, terá acesso à sua palavra infalível, inerrante e inspirada. Todos os homens, em todos os tempos, puderam e poderão se beneficiar do texto sagrado, incorruptível, não adulterado, assim com o Senhor o transmitiu aos seus servos que o redigiram; assim como Deus o transmitiu nos primórdios ao seu povo; nos primórdios da Igreja, para que sejamos, hoje, guiados no conhecimento e entendimento de todas as maravilhas que nos foram dadas conhecer por sua vontade.

Como já dissemos também, muitos críticos questionaram a inspiração divina da Escritura, como o fez Marcião, no séc. II. Ao ponto de alterarem e mudarem o texto, numa tentativa de eliminar o que consideravam não inspirado, e, assim, anularem a palavra de Deus. Mas com qual autoridade se arvoraram a realizar esse absurdo, além do foro íntimo e pessoal? Em outras palavras, quero dizer que o único motivo foram os seus pecados a motivarem-nos à rebeldia contra Deus.

O problema não está na doutrina da preservação da palavra, mas naqueles que a querem confirmada por seus métodos pessoais ou gerais, mas que têm origem no próprio homem, de forma que é ele a autoridade capaz de validá-la ou não. E sabemos que muitas coisas que passam pelo crivo humano certamente não são reconhecidas por Deus, pois têm claramente o objetivo de se insurgirem contra ele, em mais um motim ainda que motivado por um pretenso rigor e zelo com a verdade. Ora, a Escritura é pródiga em nos alertar: "Pois quê? Se alguns foram incrédulos, a sua incredulidade aniquilará a fidelidade de Deus? De maneira nenhuma; sempre seja Deus verdadeiro, e todo o homem mentiroso" [Rm 3.3-4]. De forma que a estupidez e malignidade de uns invalidaria o sábio propósito divino? De manter intacta e inalterada a sua palavra para todas as gerações? Se houve Marcião e muitos como ele que adulteraram a palavra a fim de satisfazerem aos seus próprios intentos e aos do seu mestre, satanás, em que isso deporia contra a Escritura preservada divinamente? Ou o diabo não tem também interesses na Escritura? É claro que tem! Por isso, durante séculos, nenhum livro em toda a história foi tão examinado, testado, e submetido às mais intensas provas a fim de se estabelecer a sua autenticidade. E, igualmente, nenhum livro tem provas tão contundentes da sua autenticidade como a Bíblia, ao ponto de os críticos mais ferrenhos reconhecerem-na [os que têm honestidade intelectual]. 

Mas a questão é: o que torna a discussão da preservação da Escritura possível? 


TEXTO MAJORITÁRIO E A ALTA CRÍTICA 

Primeiro, entre os séc. I e III, muitos textos surgiram alegando para si a chancela de palavra de Deus, porém não havia outro objetivo a não ser o de confundir e enganar a Igreja. O grande volume de apócrifos [muitos tão descaradamente falsos e inverossímeis que apenas as mentes indecorosas consideravam verdadeiros] e de cópias mal-feitas e descuidadas [algumas não intencionais, enquanto outras intencionais] coexistiram paralelamente à transmissão fiel da palavra, as que a Igreja utilizava e distribuía livremente entre os irmãos, em detrimento daquelas que eram rejeitadas e ficaram guardadas até suas descobertas, quase 18 séculos depois.

Vejam bem, haviam cópias fiéis dos Evangelhos e das Cartas Paulinas e Universais que eram lidas nas igrejas como a voz do próprio Deus. Eles são o que chamamos hoje de Texto Majoritário[1], consistindo do Texto Massorético do Antigo Testamento. e o Textus Receptus do Novo Testamento. Mas também haviam os textos corrompidos, sejam apócrifos ou cópias que circulavam também, contudo eram rejeitados pela Igreja Primitiva como não inspirados. Com isso, não estou a dizer que todos os apócrifos eram heréticos e tendenciosamente malignos, pois haviam epístolas de bispos e pastores que eram lidas nas congregações pelo seu caráter nitidamente cristão e espiritual, e que se baseavam na tradição de Cristo e dos apóstolos, mas que não eram inspirados diretamente por Deus, ainda que não possuíssem erros doutrinários. Como exemplo, podemos citar a I e II Epístolas de Clemente.

Desta forma, o Espírito Santo encarregou-se de, com o decorrer dos tempos, levar ao desaparecimento as cópias defeituosas [que não eram utilizadas pela igreja], que cairam no esquecimento da Igreja, diante do volume predominante do texto fielmente preservado [Majoritário]. 

Então, o fato de haver cópias fiéis da palavra transmitida por Deus e cópias corrompidas dessa transmissão, suscitou e ainda suscita este debate, mas somente porque alguns homens consideraram estas mais próximas dos autógrafos ou originais pelo critério de tempo, e não de sua aplicabilidade. 

Segundo, ela não seria levantada se não houvesse o interesse da crítica em questionar aquilo que foi estabelecido por Deus como verdadeiro e fiel. O homem, em sua constante sublevação à ordem divina, colocou-se na condição de "juiz" do que pode ser verdadeiro ou não e, ao apelar para a metodologia aparentemente superior do academicismo teológico, o Texto Majoritário foi progressivamente abandonado em favor do Texto Eclético ou Crítico[2], de forma que, aquilo que era individualizado no passado [vide Marcião e Mani] tornou-se corrente entre a cristandade, num estado de soberba e ostentação intelectual. 

A preservação da Escritura decorre da ação direta de Deus, a sua providência, utilizando-se dos meios humanos e dos próprios homens para manter intacta a sua palavra, através de homens que a "copiaram com reverência e fidelidade e depois a imprimiram com igual cuidado, a fim de que o texto original continuasse sempre disponível, em todas as épocas"[3]. Ao passo que as cópias corruptas, motivadas intencionalmente ou não, mas sempre contendo e perpetuando inúmeros erros e discrepâncias, estavam esquecidas e abandonadas pela igreja, até que foram despertadas do limbo para, atualmente, serem testificadas pela erudição cristã com a alcunha de serem "os melhores textos" do hebraico e do grego. E isso tem a intensão de retirar do texto bíblico o seu caráter absoluto, como a fidedigna palavra de Deus, de sorte que a terminologia "os melhores textos" traz subliminarmente um sinal, o de que a Bíblia não é um livro sobrenaturalmente preservado, o que consequentemente torna-o em um livro não inspirado divinamente, e dando-lhe a áurea de humanamente falível como tudo o mais produzido pelo homem. E isso tem sérias implicações quanto à doutrina e mensagem tradicionalmente proclamada pelos cristãos, afetando diretamente a fé e a confiança na Escritura, ao ponto em que um grande número de críticos já desistiram definitivamente de encontrar o texto original do Novo Testamento. 

Com isso, cristaliza-se o grave erro de se trazer para a Escritura um sentido que Deus não lhe deu, ao se interessar apenas pelo "sentido" que o texto bíblico possa transmitir [equivalência dinâmica], de forma que as palavras usadas originalmente por Deus e reveladas aos autores humanos não têm importância. É um terrível engano, e um perigo muito grande, pois se havia algo que os copistas se preocupavam era com a exatidão de cada frase, palavra e letra de forma que o texto original fosse fielmente transcrito [equivalência formal]. Para isso, eles dispunham de vários métodos para conferir se aquela cópia era realmente fiel ao texto original ou não [por exemplo, se contavam as sílabas e letras de cada frase para certificar-se de que o número delas não tinha sido alterado na cópia]. 

Fica a pergunta: qual o sentido pode se obter de um texto que tem tantas variantes textuais? É-se possível ter um sentido uniforme em meio à diversidade e profusão de erros textuais? 


CONCLUSÃO 

1) Assim, todas as dúvidas, contradições e discrepâncias que porventura surja na Igreja devem ser dirimidas exclusivamente pelo exame da Escritura, a qual é a palavra final e única regra em todas as questões doutrinárias/teológicas e eclesiásticas.

2) A Bíblia foi preservada intacta no decorrer dos séculos pelo poder e vontade de Deus, assim como ele mesmo é o seu autor, também é aquele que zela e guarda eternamente a sua santa palavra.

3) É possível dizer que há um texto que foi preservado por Deus? Sim. E esse texto é o Majoritário através do qual a Igreja Primitiva era edificada, santificada e crescia no conhecimento divino, e que também foram utilizados pelos reformadores, como Wycliff, Lutero e Calvino. E a nossa segurança está, especialmente, na forma como Deus o preservou, mantendo a unidade doutrinária da sua mensagem, de forma que não restam dúvidas quanto à sua fidelidade aos autógrafos ou originais. 

4) Felizmente, o mesmo não pode ser dito do Texto da Alta Crítica que além de divergir entre si mesmo[4] [lembre-se, num número reduzidíssimo de cópias em relação ao Texto Majoritário, algo em torno de 5% das cópias existentes, no total de aproximadamente 5.000], historicamente não foi utilizado pela Igreja, não tendo, portanto, a sua autenticação. 

5) O que nos deixa o seguinte questionamento: não estaria ligada à constante apostasia e o declínio da fé bíblica na igreja atual o fato de se propagar, divulgar e adotar como forma superior e sofisticada o Texto da Alta Crítica sem maior avaliação, baseado exclusivamente na autoridade dos eruditos? Não haveria uma clara inversão de valores em que os homens se sobrepõem e sobrepujam o que Deus estabeleceu no decorrer da história? 

Na próxima aula, falaremos de outro assunto ligado a este tópico, as traduções.

________________________ 

Notas: [1] Texto Majoritário - pertencente ao período não-crítico, é formado pela padronização encontrada na grande maioria dos manuscritos utilizados pela Igreja Primitiva e Medieval, cujas diferenças entre si são mínimas, e nenhuma delas apresenta contradição doutrinal. É também chamado de texto bizantino, sírio, tradicional, e eclesiático.
[2] Texto crítico - caracteriza-se por um afastamento do Texto Majoritário, e pelo aparecimento de um texto eclético, com base em um número reduzido de manuscritos [cópias], que discordam bastante entre si, e ainda mais da maioria esmagadora das cópias ou manuscritos pertencentes ao Texto Majoritário. O critério para a sua "autenticação" é a sua antiguidade, ainda que não representem 5% de todos os manuscritos existentes.
[3] Sola Scrptura - A Doutrina Reformada das Escrituras, Paulo Anglada, Ed. Os Puritanos, pag. 103.
[4] Somente nos Evangelhos, os Códices Sináitico e Vaticano, contêm mais de 3.000 erros, sendo que mais da metade deles deixam o texto sem sentido. 
[5] Resumo da aula na E.B.D. do Tabernáculo Batista Bíblico em 23/10/2011.


01 maio 2023

Estudo sobre a Confissão de Fé Batista de 1689 - Aula 4: A Unidade da Palavra
























Por Jorge F. Isah



CAPÍTULO 1: AS SAGRADAS ESCRITURAS

"7. Na Escritura não são todas as coisas igualmente claras, nem igualmente evidentes para todos.12 Mesmo assim, as coisas que precisam ser conhecidas, cridas e obedecidas para a salvação estão claramente propostas e explicadas em uma passagem ou outra; e, pelo devido uso de meios comuns, não apenas os eruditos, mas também os indoutos, podem obter uma compreensão suficiente de tais coisas.13
12 II Pedro 3:16. 13 Salmo 19:7; Salmo 119:130."


Temos aqui claramente ensinado um princípio que foi distorcido e abandonado no decorrer dos séculos, antes da Reforma, especialmente pela ICAR, o de que não há obscurantismo nem ininteligibilidade na Escritura; de que é possível compreendê-la e entendê-la sem a necessidade de que homens "iluminados" a interpretem. Por muitos séculos, a ICAR proclamou ser a Bíblia enigmática, de forma que ao homem comum estaria vedado o seu entendimento, o qual aconteceria somente pela autoridade da igreja; de forma que somente através do clero a Bíblia estaria habilitada a ser interpretada e compreendida, dando-se-lhe o sentido exato e correto. Como já vimos, isto é uma mentira, uma forma de enganar e manter o homem preso à ignorância, de maneira que ele estaria sujeito a aceitar passivamente tudo o que a igreja definisse como autoridade no texto sagrado, e muitas vezes a corrupção do texto com a implementação de tradições humanas que nada têm a ver com a verdade revelada e o seu sentido intrínseco. 


A C.F.B. deixou evidente e patente que a Bíblia não é ininteligível, nem obscura, nem cheia de mistérios enigmáticos, ainda que haja passagens que não são compreensíveis a todos os homens, como Pedro alertou acerca das cartas paulinas [2Pe 3.16]. 

Porém não é preciso ser um catedrático ou acadêmico para compreender as doutrinas essenciais e necessárias para a salvação e a vida cristã. O que acontece, na maioria das vezes, é a rejeição e a não aceitação de determinada doutrina, seja porque o homem tem pressupostos[1] firmados em falsos princípios e ensinos [paganismo, humanismo, materialismo, misticismo, por exemplo], ou por interesses estritamente pessoais. Um homem que esteja disposto a abandonar a esposa e a família por outra mulher, cometendo adultério, estará invariavelmente em rebeldia contra o preceito divino do casamento indissolúvel e, portanto não o reconhecerá como verdade, como doutrina bíblica. Então, para corroborar a sua conduta pessoal, ele abandonará a verdade, de que a Bíblia é a inteligível e verdadeira palavra de Deus para, nesse aspecto, questioná-la ou simplesmente ignorá-la, baseado em convicções pessoais e alheias ao ensinamento escritural. Em outras palavras, ele adaptará a Bíblia aos seus conceitos, negando a sua autoridade naquilo em que ela afirma e os seus atos e práticas contradizem e rejeitam.

Por isso não creio que a Bíblia contenha mistérios. Ao contrário do entendimento geral da Igreja, penso que Deus não nos deu "pegadinhas". Quando Pedro diz que as cartas de Paulo eram de difícil compreensão, ele não quis dizer que eram impossíveis de se compreender. O que fez foi apelar para o cuidado em sua leitura, e a não precipitação em se procurar um entendimento instantâneo, irreflexivo, muitas vezes contaminados pelos nossos pressupostos, a fim de não se criarem distorções e heresias, as quais os indoutos e inconstantes torciam, assim como às outras escrituras. 

Pedro equipara as epístolas de Paulo às Escrituras, e diz que não eram apenas os pontos difíceis delas que os indoutos pervertiam, mas outras porções também [a meu ver, ele refere-se aos lobos cruéis que adentrariam à igreja e não poupariam o rebanho, e falariam coisas perversas para atraírem os discípulos após si mesmos (At 20.29)]. Sei que este ponto trará algum problema para muitos irmãos, visto que a questão dos "mistérios" na Bíblia está arraigada ao pensamento cristão moderno. Mas entendo que ela é uma explicação trôpega, pois apontaria para uma revelação parcial e não total da parte de Deus. Ou seja, aquilo que ele quis nos revelar para a nossa edificação e crescimento não seria suficientemente claro para que fôssemos edificados e crescêssemos. 

Logo, os problemas não estão no texto sagrado; não há nele incompreensibilidade, mas ela reside no homem caído e que, em sua natureza imperfeita e pecaminosa, não pode apreender toda a sabedoria divina, todo o conteúdo daquilo que Deus deu-nos, e que é uma pequena fração da sua infinitude, perfeição e majestade. E, ainda assim, sua imensidão é por demais assombrosa para as nossas declaradas e manifestas limitações. Contudo isso não nos exime da obrigação de buscar, de desejar entendê-la, e teremos, no Espírito Santo, a ajuda necessária para consegui-lo. 

Providencialmente, é aí que entra o Corpo, a Igreja, onde nem todos têm os mesmos dons, mas a união de todos os dons traz ao Corpo a unidade necessária para que todos participem do bem comum: a revelação especial. A piedade de um irmão nos levará a conhecer a Deus. A caridade de outro, também. E assim será com o zelo, reverência, sabedoria, ensino, oração, e tantos outros dons que Deus distribuiu generosamente ao seu povo, o qual juntamente chegará à compreensão de tudo o que se relaciona a si mesmo e sua obra redentora; uns auxiliando aos outros mutuamente, sob os cuidados e ação do Espírito Santo, "até que todos cheguemos à unidade da fé, e ao conhecimento do Filho de Deus, a homem perfeito, à medida da estatura completa de Cristo" [Ef. 4.13]. 

O corpo local, a igreja local, é o lugar onde os crentes se reúnem não somente para louvar e realizar um culto de adoração, mas se reúnem para auxiliarem-se mutuamente, edificarem-se mutuamente, santificarem-se mutuamente, e realizarem a obra que Deus deu para a sua igreja fazer; não a uma ovelha solitária e desgarrada, mas ao rebanho marcado com o selo do Espírito e unido no amor sacrificial de Cristo. O Senhor jamais disse: onde um de vós estiver... mas "onde estiverem dois ou três reunidos em meu nome, aí estou eu no meio deles" [Mt 18.20]. O Cristianismo é solidário e comunitário, ainda que Deus chame um por um e o redima e justifique individualmente. E assim, todo o Corpo é edificado e fortalecido, ainda que seja uma pequena congregação, um grupo reduzido de santos, mas que estarão em comunhão harmônica ao Corpo, guiados e justificados no nome santo e bendito de Jesus Cristo, a cabeça. 

Fato é que a Bíblia não é um livro obscuro e hermético. Pelo contrário ela é inteligível e disponível a todos os homens. De forma que ela se autointerpreta; de maneira que os textos mais complexos podem e devem ser entendidos à luz de outros textos mais claros e correlacionados. Porém há dois elementos fundamentais para a sua compreensão: 

a) A ação direta do Espírito Santo, seu autor, na mente e coração do pecador a fim de que ele tenha o discernimento espiritual para compreender as coisas do Espírito: "ora, o homem natural não compreende as coisas do Espírito de Deus, porque lhe parecem loucura; e não pode entendê-las, porque elas se discernem espiritualmente. Mas o que é espiritual discerne bem tudo, e ele de ninguém é discernido. Porque, quem conheceu a mente do Senhor, para que possa instruí-lo? Mas nós temos a mente de Cristo" [1 Co 2.14-16]. 

b) A disposição e interesse pessoal no estudo da Palavra. Se entendemos que ela é a nossa regra de fé e vida, e de que o seu conhecimento nos preparará para evitar erros e desvios a fim de se andar nos santos e perfeitos caminhos de Deus, em obediência, o homem deverá se empenhar e esforçar para fazer dela o seu mapa, a sua bússola e, para isso, o estudo diligente, piedoso, reverente, concomitantemente à oração e à meditação, é fundamental. Não podemos nos aproximar da Escritura como um livro qualquer, dispondo de uma leitura superficial e desleixada. Mesmo o homem menos preparado intelectualmente se se aproximar da Escritura em temor e reverência, reconhecendo-a como a fiel e santa palavra de Deus, será muito mais edificado, e compreendê-la-á satisfatoriamente, do que um erudito que a examina como mais uma obra das mãos humanas, como um livro entre tantos livros. 

Todos os homens podem entender a Escritura, mesmo os não regenerados, especialmente em seus aspectos morais e éticos, pois Deus colocou nele o sentido da Lei, de tal forma que muitos a cumprem ainda que na completa ignorância quanto a Cristo. É o que Paulo diz: "os quais mostram a obra da lei escrita em seus corações, testificando juntamente a sua consciência, e os seus pensamentos, quer acusando-os, quer defendendo-os" [Rm 2.15]; de forma que encontramos pessoas que, no dia-a-dia se revelam mais obedientes aos preceitos divinos do que muitos de nós. Com isso não estou a dizer que eles têm a motivação correta, aquela que somente o Espírito Santo pode dar; mas como o apóstolo disse dos judeus, têm zelo de Deus, mas sem entendimento [Rm 10.2], de maneira que acabam por procurar uma justiça própria ao invés de se sujeitarem à justiça divina [Rm 10.3]. 

Há algumas décadas tínhamos uma sociedade mais ordeira, em que as pessoas se preocupavam com o nome, a dignidade e a honra; não somente com a própria, mas com a dos outros também. Havia uma máxima: o que não se quer para si mesmo, não se quer para o outro. Observar essas coisas não levará ninguém ao céu, mas revelará um senso de justiça que somente a Lei divina pode dar e transmitir. E isso, através da leitura bíblica, pode ser alcançável por qualquer homem [reafirmo: por vários motivos que não seja glorificar a Deus, o que somente o crente pode fazer]. Infelizmente, para a blasfêmia ao nome de Cristo, muitos crentes ignoram e desprezam a Lei, assumindo uma graça barata que nada tem a ver com o ensino sagrado. Quão bom seria se todos nós honrássemos e louvássemos o nome do Senhor com nossas vidas, não apenas com nossos lábios e gestos [maneirismos gestuais]. Cristo revelou-nos sua filiação não por dizer-se "Filho de Deus", mas por que agia e se comportava como o Unigênito Filho de Deus. 

Portanto, o desprezo à palavra de Deus, o desprezo à igreja local, apenas revelará que esse homem não ama a Deus, ainda que ele proclame isso aos quatro ventos, ainda que ele mesmo se convença, enganosamente, desse amor, o que, contudo, a prática o negará. 

Concluindo, todos devemos seguir o ensino de Paulo e reconhecer que "toda a Escritura é divinamente inspirada, e proveitosa para ensinar, para redarguir, para corrigir, para instruir em justiça; para que o homem de Deus seja perfeito, e perfeitamente instruído para toda a boa obra" [2Tm 3.16-17], ainda que existam dificuldades de ordem espiritual e humana.

Nota: 1 – Pressuposições ou pressupostos são idéias e crenças que temos, conscientes ou inconscientes, que afetam a forma com que interpretamos os fatos e as provas. Nossos pressupostos afetam o modo como raciocinamos.
2- Resumo da aula realizada na E.B.D. do  Tabernáculo Batista Bíblico  em 15/10/2011 


17 abril 2023

A generalização do caos





Por Jorge F. Isah



Muitas pessoas encontram-se desanimadas com o quadro político, econômico e social do país, e são tomadas de sobressalto a cada novo escândalo veiculado pela mídia, chegando-se mesmo a uma angústia da alma, a um estado de desolação, sem esperanças ou perspectivas a motivá-las a um futuro, mesmo longínquo, em que o Brasil possa ressurgir da lama na qual está atolado até o cocuruto.

A questão não se resume aos escândalos diários, como se fosse apenas o desdobramento do ofensa à ordem do dia anterior, mas deve-se ter a real dimensão de tudo isto que está acontecendo e por quais motivos e objetivos acontecem. Não é simplesmente roubalheira ou corrupção ocasionais, ainda que perdurem ao menos nos últimos 12 anos de governo (até porquê o histórico de corrupção na república é algo germinal; iniciou-se antes mesmo do fim da Monarquia), e nem tão somente ligados apenas a um partido. É claro que as dimensões do furto, da corrupção, dos desvios públicos atingiram níveis inimagináveis nas mãos de “companheiros”, ao ponto em que a maior empresa brasileira e uma das dez maiores do mundo até 2008, encontra-se em estado falimentar; se fosse uma empresa privada já teria quebrado, mas como não é, respira por aparelhos, em coma.

A pergunta que se deve fazer é: Como se mantém um governo no poder? Como fazê-lo perpetuar-se? E garantir que se perpetue?

O dinheiro é apenas o meio para se conseguir isso, comprando votos, coaptando, alugando cargos, favorecendo aos amigos do "rei", ou seja, aparelhando o estado de tal maneira que não haja resistência à permanência ou manutenção no poder de um grupo ideológico. E os políticos sabem e souberam muito bem fazer isso (e estão fazendo "com louvor"), debaixo de nossas barbas, sem haver uma efetiva oposição, onde muitas lideranças, por conveniência, desonestidade, cumplicidade ou ignorância se desse conta do que acontece e foi tramado há mais de trinta anos pelo Foro de São Paulo¹, seguindo a cartilha do Fabianismo e Gramscianismo². Seria injusto imputar toda a culpa do caos nacional a eles, aos progressistas, pois a alma desta nação está tão arraigada à “Lei de Gerson”, o levar vantagem em tudo, que as chances de alguém furar essa bolha é de 1 para 100, e olhe lá!

O que se chama "oposição" não o é de princípios, mas de cargos e postos, no intuito de apenas assumirem o seu lugar no governo e tocar o barco tal ou qual eles tocam. Em suma, seria trocar seis por meia dúzia. Então, pensar apenas em um escândalo, em um roubo, em um desmando, em uma afronta à lei, é ter uma visão localizada, minimizada da realidade, faltando-se compreender a abrangência efetiva do propósito e união continental para a implantação de uma "pátria totalitária" nas Américas. Saindo o atual governo, quem entrará em seu lugar? Caso haja um lugar a se ocupar?... E a valsa continuará sendo tocada na mesma toada.

Isso se agrava pelo fato da maioria das pessoas acreditarem no absurdo de que existam partidos conservadores ou de direita no país, quando se tem apenas cartas do mesmo baralho ou a outra face da mesma moeda. No fim das contas, o establishment só quer saber de si mesmo, e os cidadãos e a nação se virem e lasquem para pagar as suas contas, via impostos e taxas quase sempre imorais e escorchantes. É pessimismo, podem dizer alguns, mas a realidade o prova, e a história mais recente (vide Argentina, Venezuela, Bolívia, Nicaragua, etc) apenas se repete por aqui e em tantos outros lugares também.

Qual a solução?... A curto e médio prazo não vejo nada de efetivo. A coisa está tão preta, mas tão preta, que o "reino de terror" está em franco desenvolvimento, e o que virá pelos próximos meses e anos não é nada animador. Enquanto as pessoas permanecerem atentas apenas ao "último escândalo", nada ou pouco poderá ser feito de factual e legítimo. A solução é a longo prazo, uma mudança de mentalidade, o abandono da mente carnal por uma mente cristã. E isso somente acontece quando as pessoas entendem e aceitam o evangelho, em todo o seu corpo, em toda a sua totalidade e sabedoria. Para um veneno (o pecado, o crime, a impiedade, a imoralidade, p.ex.) apenas o antídoto: Cristo³!

Para muitos parecerá simplismo ou reducionismo, mas como alguém pode caracterizar ou considerar o evangelho de Cristo dessa maneira?

Entretanto, o ódio deste mundo a ele e a sua palavra é algo entranhado no DNA humano, subindo à cabeça e descendo ao coração, de uma maneira tão virulenta que é mais fácil imaginar um paraíso perfeito criado pelas mãos humanas, mas que não saí do discurso ideológico e do papel, pois a realidade e a história provam, e provaram (e reprovaram) a sua eficácia em negá-lo na prática; é mais fácil o delírio e o jogo de palavras do que se submeter ao jugo leve e suave de Cristo.

Ainda que o mundo não conheça a graça divina, é-se possível viver nele minimamente em ordem (se é que tal existe), mesmo na desordem pós-Queda. Sociedades não muito antigas como a europeia e a americana, fundadas em valores cristãos, parecem-me ainda possíveis; mesmo que na atual conjuntura de degradação mental e espiritual seja uma loucura para as multidões de desavisados!

______________

Notas: 1] O Foro de São Paulo é uma organização criada em 1990 por Fidel Castro, Hugo Chaves e Lula com o nítido objetivo de implementar a "grande pátria", ou seja, a comunização de toda a América Latina nos moldes de Cuba. Basta olhar para os nossos vizinhos, e também o Brasil, para ver como eles foram bem-sucedidos em seus intentos. 

2] Fabianismo e Gramscianismo são movimentos políticos marxistas que acreditam na progressiva e gradual evolução da sociedade, utilizando da democracia, para instalar o comunismo. 

3] Mesmo sabendo que um reino de paz não acontecerá antes do retorno do Senhor Jesus, urge-se ainda mais a pregação do evangelho. Não para mudar o estado geral de coisas, as quais parecem quase irreversíveis, e não somente no Brasil mas no mundo, mas para que, ao menos, alguns saibam que a saída está aí, bem na cara de todos, mas por uma série de fatores, entre eles a Queda e a depravação total do homem (que a mentalidade moderna teima em não reconhecer), eles escolheram o caminho tortuoso da ilusão, de se criar uma outra realidade, onde o massacre ideológico teima em afirmar e insistir na criação de um mundo perfeito à margem de Deus e do seu Evangelho, o que é impossível, um sofisma dos mais grandiosos. De qualquer forma, como servos, resta-nos proclamar o Reino, e que ele venha!

4] Queda é o evento no qual o homem e a mulher, no Éden, desobedeceram a Deus e, por isso, o pecado entrou no mundo. A visão bíblica e cristã é de que com ela toda a criação foi corrompida, contaminada pelo pecado e desobediência, não somente o homem, mas todo o Cosmos, por causa do homem. 

10 abril 2023

Estudo sobre a Confissão de Fé Batista de 1689 - Aula 3




























Jorge F. Isah



CAPITULO 1: AS SAGRADAS ESCRITURAS

"4. A autoridade da Sagrada Escritura, razão pela qual deve ser crida e obedecida, não depende do testemunho de qualquer homem ou igreja, mas provém inteiramente de Deus, sendo Ele mesmo a verdade e o seu autor. A Escritura, portanto, tem que ser recebida, por ser a Palavra de Deus.
[II Pedro 1:19-21; II Timóteo 3:16; II Tessalonicenses 2:13; I João 5:9.]

5. Pelo testemunho da Igreja de Deus podemos ser movidos e persuadidos a ter em alto e reverente apreço as Sagradas Escrituras. A santidade do assunto, a eficácia da doutrina, a majestade do estilo, a harmonia de todas as partes, o propósito do todo (que é dar toda glória a Deus), a plena revelação que faz do único meio de salvação para o homem, e muitas outras excelências incomparáveis e perfeição completa, são argumentos pelos quais abundantemente se evidencia serem elas a Palavra de Deus. Contudo, a nossa plena persuasão e certeza quanto à sua verdade infalível e divina autoridade provém da operação interna do Espírito Santo, que pela Palavra e com a Palavra testifica aos nossos corações.[João 16:13-14; I Coríntios 2:10-12; I João 2:20,27].

6. Todo o conselho de Deus, concernente a todas as coisas necessárias para a sua própria glória, para a salvação do homem, a fé e a vida, está expressamente declarado ou necessariamente contido na Sagrada Escritura. A ela nada em tempo algum se acrescentará, quer por nova revelação do Espírito, quer por tradições de homens. Entretanto, reconhecemos ser necessária a iluminação interior, da parte do Espírito de Deus, para a compreensão salvadora daquilo que é revelado na Palavra. Reconhecemos que há algumas circunstâncias, concernentes à adoração a Deus e ao governo da igreja, que são peculiares às sociedades e costumes humanos, e que devem ser ordenadas pela luz da natureza e pela prudência cristã, segundo as normas gerais da Palavra que sempre devem ser observadas.[II Timóteo 3:15-17; Gálatas 1:8-9. João 6:45; I Coríntios 2:9-12. I Coríntios 11:13-14; I Coríntios 14:26,40]."

AUTORIDADE DA ESCRITURA

INTRODUÇÃO

Entramos agora na parte talvez mais complexa do nosso estudo sobre a Escritura, a doutrina da sua autoridade. Como já pontuei em nossas duas aulas anteriores, a Bíblia é a nossa regra de fé e prática, mas não somente quando tratamos de assuntos religiosos, ou apenas quando estamos na igreja ou realizamos um estudo teológico. Ela é a nossa regra, o norte, o "mapa", como disse anteriormente, que nos levará ao conhecimento de Deus e da sua vontade, sua obra e salvação; mas também ao nosso autoconhecimento, tão necessário para que compreendamos a obra de regeneração e transformação que Deus necessita operar no pecador para torná-lo a imagem do nosso Senhor Jesus Cristo.


Dizer que a Bíblia trata apenas de regras, de normas morais, como qualquer código de costumes, é fruto da maior ignorância, a ignorância que indicará o desconhecimento do texto sagrado, e o pouco ou nenhum envolvimento com ele.

Um dos lemas da Reforma Protestante é o "Sola Scriptura", mas o que é isto?

Antes de explicar o significado do termo, vamos a um breve resumo de como a Escritura era entendida, quero dizer, mal entendida pelos cristãos pré-reforma protestante.

O CONCEITO DE BÍBLIA ANTES DA REFORMA
Como já disse, durante séculos, a leitura da Bíblia foi proibida aos cristãos. Apenas o clero católico podia fazê-lo, e interpretá-lo, de tal forma que o leigo comum recebia o ensino que a igreja lhe dava, sem a menor chance de confirmar se esse ensino era verdadeiramente bíblico ou não [creio que o objetivo era o de não facilitar a "livre-interpretação", já que nos primórdios da Igreja muitos se aventuraram à especulações e criaram uma rede de heresias. Vide os nestorianos, arianos, pelagianos, unitarianos, etc. Contudo, proibir-se o livre exame, a sua simples leitura, é um exagero sem precedentes pelo qual muitos pagaram com suas próprias almas, visto permanecerem na ignorância quanto à revelação especial e desconheciam a obra redentora do Senhor Jesus].

TRADIÇÃO X TRADICIONALISMO
Apegado ao tradicionalismo, a ICAR reconheceu que somente a igreja estava apta a interpretar a Escritura, de forma que ninguém estava autorizado a fazê-lo, sob a pena de ser considerado herege, ser excomungado, e morto [o que se chamou de "Inquisição", na verdade era o tribunal eclesiástico que julgava, inicialmente, os crimes contra a doutrina da igreja, praticado pelos heréticos; mas que também passaram a valer para os discordantes, em vários níveis, da autoridade clerical e papal, mesmo que não implicasse em questões teológicas].

Esse tradicionalismo foi registrado na Escritura, o qual o Senhor Jesus teve de enfrentar. A religião judaica, no período em que Deus silenciou-se com o povo de Israel, durante o período chamado de Interbíblico ou Intertestamentário [entre os últimos eventos do AT e os iniciais do NT; em que Deus não levantou nenhum profeta pelo qual falasse ao seu povo], que durou aproximadamente 400 anos [O Velho Testamento termina com as palavras de Malaquias, o qual profetizou entre 450 e 425 a.C.. Nesse tempo, a Palestina estava sob o domínio do Império Persa, o qual se estendeu até o ano 331 a.C.], tornou-se extremamente tradicionalista, levando-os a produzir uma infinidade de regras e tradições complementares à Lei. Essas regras eram transmitidas oralmente, explicando o que as escrituras significavam e como interpretá-las e como aplicar suas leis. Houve, na verdade, a corrupção e a má-interpretação da Lei, de maneira que se constituíram volumosos códigos moralistas na sociedade judaica, verdadeiras distorções do ensino do A.T. Acontece que elas se tornaram, em muitos aspectos, mais autoritativas do que a própria Escritura. Veja bem, estamos discutindo aqui o tradicionalismo, não a tradição. Há uma diferença entre os termos. A palavra tradição vem do latim traditione que quer dizer o ato de se entregar ou transmitir algo. A Bíblia é a única forma tradicional de se transmitir a palavra de Deus, a qual nos foi entregue pelo próprio Deus. Então a Bíblia é uma tradição. Ela possui em seu corpo normas e doutrinas invioláveis que não podem ser alteradas. Quando, por exemplo, ela transmite a mensagem de que se deve amar a Deus acima de todas as coisas, e ao próximo como a si mesmo [Mt 22.37-39], esta é uma tradição. Honrar pai e mãe [Dt 20.12] é uma tradição que verdadeiramente recebemos de Deus e, como porta-voz dele, devemos transmiti-las a todos os homens. Não há erros nem equívocos nestas afirmações, que nos são entregues para o nosso favor e dos nossos semelhantes, e que fazemos bem em segui-las. É o que nos diz o apóstolo Paulo: "Então, irmãos, estai firmes e retende as tradições que vos foram ensinadas, seja por palavra, seja por epístola nossa" [2Tes 2.15]. 

O tradicionalismo, mesmo tendo muitas semelhanças com a tradição, e sendo originário dela, tem um componente que distinguem-nas: o fato de se arraigar e se apegar a hábitos que parecem bons mas na verdade é a corrupção da norma tradicional, e que em nada acrescentam à vida da pessoa, pelo contrário, são-lhe nocivas. Quase sempre o tradicionalismo é uma deterioração da tradição. É claro que estamos relacionando tanto um termo como outro dentro do universo cristão, pois é ele que nos interessa. Há tradições em outras religiões que não são expressões da verdade, nem dela originam. Fazemos um parâmetro entre a revelação escriturística, a verdade, dada-nos como tradição, e a sua corrupção ou deterioração por parte de grupos religiosos, descaracterizando-a como verdade e como aquilo que Deus nos transmitiu. 

A tradição bíblica tem também como componente a sua imutabilidade, o que o tradicionalismo não tem. Este se distingue por estar sempre em contato com mudanças e inovações adaptáveis às políticas, culturas, sociedades, indivíduos, etc, sendo mutável em seu objetivo de alargar seus horizontes, de maneira que um maior número de pessoas sejam circundadas por ele e sofram sua influência. 

Cristo combateu o tradicionalismo judaico, de maneira que, quando acusado de não guardar as tradições dos anciãos, replicou-lhes: "por que transgredis vós, também, os mandamentos de Deus pela vossa tradição?" [Mt 15.3] ao não honrarem pai e mãe [Ex 20.12]. 

Há uma tradição que é verdadeira, e que devemos obedecê-la, honrar pai e mãe, pois procede dos preceitos divinos. E há uma tradição humana que somente tem o objetivo de escravizar e sujeitar o homem à tolice, a de lavar as mãos antes de comer o pão [Mt 15.2]. Que até pode ter um fundamento verdadeiro, mas o que está por trás dela é a autoexaltação e o domínio [poder] de quem o estabelece. 

TRADIÇÃO = TRADICIONALISMO?
Então alguém dirá: mas o tradicionalismo que você diz ser nocivo é a mesma tradição que você diz ser benéfica. De certa forma os termos parecem semelhantes, mas não são. Mas se alguém quiser usar o mesmo termo para definir as duas coisas, fique à vontade. Em nada modificará o sentido que estou dando aos termos e explicando-os. Senão, vejamos:

a) Há a tradição como verdade divina, expressamente entregue pela Escritura, por exemplo, honrar pai e mãe;

b) Há a tradição como subversão da verdade entregue por Deus, uma recriação humana, corrupta, imperfeita e insana, a deterioração da verdade, onde se misturam elementos da verdade com falsos elementos formando um conjunto inverídico e equivocado, ao qual o Senhor Jesus definiu como invalidar pela tradição humana o mandamento de Deus [Mt 15.6]. O exemplo é dado no próprio texto: os escribas e fariseus consideravam válido por sua tradição o abandono dos pais, o não sustentá-los materialmente [descumprindo o mandamento divino], desde que o dinheiro fosse revertido ao templo, ou seja, para o benefício pessoal deles. Certamente, muitos filhos, mentirosos e desonestos nem dispunham do sustento dos pais nem do sustento do templo, gastando-o exclusivamente consigo mesmos, gananciosamente. 

c) Há a tradição como mera formulação da mente caída, um embuste em si mesmo, sem nenhum elemento verdadeiro. Por exemplo, a adoração aos santos.

Assim, pode-se ver que a é o que eu defini como tradição; b e c é o que defini como tradicionalismo.

A ICAR COMO FONTE DA AUTORIDADE ESCRITURÍSTICA
A ICAR e outras religiões [muitas delas se dizendo cristãs] abandonaram a verdade, a tradição bíblica, e se entregaram aos seus delírios e enganos, abraçando o tradicionalismo através do qual o homem, não Deus, é aquele que julga tudo e todas as coisas. A começar pela própria palavra de Deus. O que o tradicionalismo fez e ainda faz é tornar o homem em autoridade máxima, numa autoridade a qual o próprio Deus estaria sujeito; de forma que a Escritura tem uma autoridade conferida pelo clero, os quais são os que determinam em e quais sentidos a Palavra de Deus tem autoridade. Isso é usurpação, é tentar-se ter o que não tem; é tirar de quem tem aquilo que não pode ser tirado; e receber aquilo que não pode ser recebido. A Bíblia é autoritativa e cabe a Igreja, pelo poder do Espírito Santo, reconhecer e receber os seus ensinamentos e conselhos como a própria voz de Deus ao homem; Deus falando diretamente com o seu povo.

O "SOLA SCRIPTURA" DA REFORMA
Lutero encontrou uma igreja entregue ao tradicionalismo religioso, de maneira que coisas absurdas e impensadas eram tidas como verdadeiras, proclamadas como verdadeiras, ensinadas como verdadeiras, e suas observâncias exigidas como se verdade fossem, quando não passavam de completa patifaria. A venda e compra de indulgências [absolvição ou perdão papal das almas ao Inferno, mediante o pagamento de penitências, muitas delas em moeda-corrente], o culto as relíquias [restos de vestes, objetos ou mesmo ossos dos apóstolos] e a falsa ideia do purgatório, são algumas das práticas vigentes na ICAR as quais Lutero combateu. Ele apelou para a tradição da Escritura, o que Deus entregou ao homem como o seu santo, sábio e perfeito conselho, anulando a tradição ou tradicionalismo humano, corrupto, venal e pecaminoso em vigor na igreja daquela época. Por isso, Lutero afixou na porta da Capela de Wittemberg as 95 teses, opondo-se às práticas religiosas mundanas e malignas sustentadas, naquela época, por Roma. O Sola Scriptura, portanto, quer dizer, somente a Escritura, de forma que temos o papa perdendo a sua "autoridade" religiosa, e ela sendo transferida a quem de direito a detém, Deus e sua palavra. 

Em todos os tempos, sempre houve homens que, agindo enganosa e fraudulentamente, tentaram transferir para si mesmos ou suas organizações a autoridade que jamais lhes pertenceu, mas que apenas a Escritura tem. Movimentos de restauração das tradições judaicas, neopentecostalismo, teologia da prosperidade, evangelho social, missão integral, etc, são corrupções da verdade, de forma que nos encontramos quase que na mesma situação de Lutero em 1517, ano em que levou a público suas 95 teses; precisamos de uma nova reforma, que leve as igrejas à Escritura, como única fonte de fé, verdade e de prática cristã. 

A C.F.B. assevera que somente a Bíblia é autoridade, de forma que não há nada superior a ela, além do próprio Deus, nela revelado. Como Deus é imutável, assim também a sua palavra é imutável, de forma que a sua autoridade também é imutável, e não pode ser transigida, cedida a outro, ainda que seja a Igreja. Por isso ela diz que a autoridade escriturística não depende de nenhum homem ou igreja, pois não emana de nenhum deles, mas tem de ser recebida como a Palavra de Deus, pois procede do próprio Deus.

O QUE É AUTORIDADE?
Mas, o que é a autoridade da Escritura? 
Com isso se quer dizer que a Bíblia é inerrante, verídica, exata em todas as suas afirmações, "não contendo erro algum, histórico ou doutrinário, o que as torna infalíveis, e, portanto, autoritativas quanto a todos os assuntos sobre os quais faz asseverações... a única regra infalível de fé e de prática" [1]. 

A FALSA AUTORIDADE DOS CRÍTICOS
Vejam bem, a autoridade da Bíblia é algo inegociável, que está muito acima da nossa capacidade de julgamento, de forma que ela está isenta de qualquer crítica, ou melhor, de qualquer possibilidade de crítica. Neste caso, entramos num problema que vem se arrastando há séculos, desde que Marcião, filho do bispo da região do Ponto, hoje Turquia, criou a doutrina que levou o seu nome, o marcionismo, onde defendeu a falsa ideia de que havia dois deuses: um no AT, Demiurgo, o deus da criação, e outro no NT, o Deus Pai; levando-o a rejeitar todo o A.T. e a maior parte do NT, restando apenas parte do Evangelho de Lucas e 10 cartas paulinas. Ele é o "pai" de todos os críticos bíblicos modernos, tais como os liberais, os membros da alta crítica, os teístas-relacionais, e outros tantos que se rebelaram contra a Escritura e se colocaram acima dela, ao ponto de elaborarem críticas com base no pressuposto de que ela não é infalível, inerrante e divinamente inspirada. E estes são realmente os fundamentos de todos os críticos. Eles partem da falsa premissa da não divindade da sua mensagem para avaliá-la como objeto de estudo, mas sobretudo como objeto criticável, num verdadeiro trabalho de desconstrução da sua mensagem e rejeição da sua autoridade. Eles se colocam em posição de superioridade, considerando-se tal qual um cientista a examinar uma lâmina no microscópio, na qual se acha um novo vírus. Tentam dissecá-la, revelar suas falhas, incongruências, contradições, fazendo-se de crentes, mas trabalhando tenazmente para a incredulidade. Na verdade, a única solução que apresentam para os problemas que não existem é a si mesmos: são os inventores do “quadrado-redondo”, e os únicos capazes de explicar a sua criação, ainda que ela não passe de idealização impossível e somente possível em suas mentes doentes e transtornadas, tamanho absurdo representam e querem representar.

O TESTEMUNHO DO ESPÍRITO SANTO
Por isso, é necessário que o homem seja regenerado e sua mente controlada pelo Espírito Santo para persuadi-lo quanto à autoridade da Escritura, de maneira que este entendimento é o resultado direto da ação do próprio Deus na mente humana, iluminando-a, tirando-a das trevas, da cegueira, capacitando-a a reconhecer espiritualmente o que é espiritual. Quando Marcião, Ário, Pelágio, Schleiermacher, Ritschl, Bultmann e Tillich fazem críticas e defendem absurdos como a não ressurreição de Cristo, pois não há provas históricas que corroborem o relato bíblico[fica a pergunta: quais provas seriam necessárias para comprovar o fato? Além dos muitos testemunhos e relatos da Escritura? Uma foto? Um vídeo?]. Para eles, qualquer prova é suficiente, desde que não seja o texto bíblico. Eles simplesmente clamam por um testemunho genuíno quando estão diante dele mas não o admitem. Por que? Falta-lhes o testemunho interno do Espírito Santo e sobra-lhes a loucura do homem natural, que Paulo esclareceu: "Ora, o homem natural não compreende as coisas do Espírito de Deus, porque lhe parecem loucura; e não pode entendê-las, porque elas se discernem espiritualmente" [1Co 2.14]. Falta-lhes o entendimento, e em sua presunção e arrogância, sobra-lhes a tolice da incredulidade e da ignorância. Ao se considerarem superiores, demonstram-se deficientes e impossibilitados de entender a Deus e sua revelação, pois não têm a mente de Cristo; tornando suas conclusões em respostas baseadas na mais completa ignorância, a qual querem evitar, mas acabam apenas confirmando-a.

CONCLUSÃO
A Bíblia é a santa e perfeita palavra de Deus, e sua autoridade é intocável, pois procede de Deus, o seu autor. Logo, não há a menor chance dela ser alvo de críticas, visto ser o perfeito conselho de Deus para o homem.

NOTA: [1] "Sola Scriptura", Paulo Anglada, Editora Os Puritanos, pg.61.


31 março 2023

Não há bem que se torne em mal!



Por Jorge Fernandes Isah



O mundo está mesmo uma coisa, parece o campo de recreação do diabo, se é que ele é capaz de se divertir com algum evento. No fundo, ele é apenas um fracassado, mesmo conseguindo uma vitória ali, outra acolá, é um malogrado, uma desgraça!

Hoje, pela manhã, recebi a ligação de uma funcionária, em prantos, comunicando-me o assassinato do seu filho, ontem à noite. Ele havia saído da penitenciária, onde cumpria pena por tráfico, e estava em condicional. Quase certo ser um caso de “acerto de contas” entre bandidos. Porém, não pude deixar de me apiedar do sofrimento daquela mãe com a perda do filho. Seja bandido ou o que for, ele é filho, e não dá para aquilatar a dor pela perda. Orei com ela, pedindo ao Senhor para fortalecê-la e confortá-la, assim como a sua família. 

Por certo, ele encontrou o que procurou durante a sua vida, um fim trágico para uma vida desperdiçada, na qual o caminho da bandidagem parece ser uma via fácil, porém curta. 

Há tempos, ouvi uma entrevista de um garoto de nove anos, mula do tráfico na favela onde morava, no Rio, dizendo que pouco importava o que lhe acontecia, morrer, matar, não fazia diferença. Para alguém que sequer começara a viver, uma afirmativa dessas reflete o quão expostas as crianças estão ao mundo adulto, onde a morte ou o assassinato (assim como o sexo inconsequente) parece ser uma opção como escolher o sabor de um sorvete. 

Logo depois, outra funcionária relatou um tiroteio onde morava, noite passada, quando chegou em casa; tempo suficiente para se esconder atrás do fogão junto com a filha, enquanto a netinha e o marido refugiavam-se atrás do sofá, ao som do espocar das balas, algo que, segundo ela, durou cerca de cinco minutos. Descreveu, com uma naturalidade assombrosa, o incidente, entremeado por sorrisos que pareciam ignorar a gravidade da situação. Disse que a netinha ficou em estado de choque, e custou a dormir em meio a pesadelos e acessos de pânico, mesmo tomando um chá de maracujá com açúcar. 

Tudo isso parece muito comum e natural na sociedade, uma sociedade em que os valores morais foram se perdendo à medida em que ela se afastou proposital e (in)conscientemente de Deus e sua Lei. 

Alguém pode dizer que estou a tratar a questão com cinismo ou insensibilidade, mas descrevo apenas a causa pelo estado atual de degradação, apatia, e contemporização com o mal ao qual nos aliamos silenciosamente, e que o mundo, de forma geral, ignora e não quer ver, por teimosia, autossuficiência, ignorância ou insensatez. A destruição de valores caros ao ocidente, os fundamentos a estabelecerem a sociedade (a tradição judaico/cristã), não se daria impunemente, sem consequências dramáticas e nefastas para o cidadão comum, muito distante das reuniões regadas a "comes e bebes" onde o mal é maquinado e lançado sobre as pessoas com o falso argumento de serem para o seu próprio bem. Não há bem que se torne em mal, se antes não for o mal travestido de bem. Deus transformou o mal na vida de José em bem (Gn 50.20), mas nunca o contrário pode ser reivindicado, demonstrando a insensatez, o descalabro e a malignidade dos proponentes de “um bem utópico”, impossível, cujos resultados são a desgraça, a morte e a destruição. 

Penso não haver muito mais a se acreditar neste mundo, pois ele caminha célere para o abismo mais profundo e tenebroso; podemos sim, pelo poder do Evangelho, como servos inúteis de Cristo, resgatar um ou outro, ou mesmo alguns, desse redemoinho sinistro, funesto, no qual a humanidade se envolveu e do qual não pode sair por suas próprias forças, a despeito da ilusão propagandeada de ser uma questão de tempo para tudo chegar ao seu devido lugar; o homem encontrando, em si mesmo, a autorredenção. 

A queda vertiginosa dos fundamentos do ocidente, a família, a lei, o Cristianismo, a educação, principalmente, e não nesta ordem, têm tornado o mundo em um local caótico e desenfreado, onde o certo é tido como errado, e o errado é posto como certo, numa trilha destrutiva, capaz de ser revertida se o homem voltar-se para o Senhor em busca da verdadeira sabedoria, da verdadeira paz e espiritualidade, do conforto seguro de estar em suas mãos santas. 

O profeta já alertava, há milênios:

“Ai dos que ao mal chamam bem, e ao bem mal; que fazem das trevas luz, e da luz trevas; e fazem do amargo doce, e do doce amargo!
Ai dos que são sábios a seus próprios olhos, e prudentes diante de si mesmos!
Ai dos que são poderosos para beber vinho, e homens de poder para misturar bebida forte;
Dos que justificam ao ímpio por suborno, e aos justos negam a justiça!
Por isso, como a língua de fogo consome a palha, e o restolho se desfaz pela chama, assim será a sua raiz como podridão, e a sua flor se esvaecerá como pó; porquanto rejeitaram a lei do Senhor dos Exércitos, e desprezaram a palavra do Santo de Israel” (Isaías 5.20-24).

A resposta está naquele que, sendo Deus, humilhou-se e assumiu a forma de homem, fazendo-se um de nós, e, por nós padeceu, morreu e ressuscitou, a fim de ajuntar para si mesmo um povo que, independente do mundo e daqueles que o governam, esperam firmes na sua volta, quando estaremos para sempre com ele, o Pai e o Espírito, em comunhão perene, trinitariana, em adoração constante, sem as distrações e a superficialidade desta vida, na qual o pecado é a sua força motriz. É a garantia dada por ele mesmo, Jesus Cristo: 

“Todas as coisas me foram entregues por meu Pai, e ninguém conhece o Filho, senão o Pai; e ninguém conhece o Pai, senão o Filho, e aquele a quem o Filho o quiser revelar.
Vinde a mim, todos os que estais cansados e oprimidos, e eu vos aliviarei.
Tomai sobre vós o meu jugo, e aprendei de mim, que sou manso e humilde de coração; e encontrareis descanso para as vossas almas.
Porque o meu jugo é suave e o meu fardo é leve” (Mateus 11.27-30).

E, deixo ao final uma questão: por que você não reconhece a verdade, Cristo, e contenta-se com a mentira mais vergonhosa e insana alardeada pelos agentes do Inferno?

Com você a resposta, para hoje e sempre.

 

13 março 2023

Homem Comum, de Philip Roth: Atulhar o vazio

 






Jorge F. Isah



O homem e suas contradições, contraposições, escolhas e rutilantes incertezas... Mesmo a mais convicta das pessoas se vê, vez ou outra, metida em paradoxos e desfechos indesejados, cruéis e ordinários. Isso ocorre com todos, excepcionais ou comuns, de sorte que ninguém escapa aos dilemas e embaraços do cotidiano. Assim também são os personagens de Philip Roth, e a bem da verdade de qualquer bom escritor. Podemos rotular e estigmatizar pessoas ao bel-prazer de nossas definições e imprecisões, mas certamente o estereótipo será muito mais resultado de quem avalia ou interpreta do que propriamente do responsável ou causador, pois quase sempre vemos a capa ou o invólucro e pouco ou nada sabemos do íntimo, o que está por dentro da casca. Vá lá!, tem gente oca, onde existe apenas a casca, e essa na maioria das vezes fininha, diáfana, e permite observar com clareza o vácuo intimidador, mas não se pode ampliar ao todo o pertencente a alguns ou poucos, mesmo sendo muitos. A generalização é inimiga da reflexão, e o ser humano vai muito além de simples adereços ou penduricalhos a defini-lo.

O Homem Comum trata portanto de um homem comum, não tão comum, mas essencialmente comum. Daqueles possível de se encontrar em qualquer esquina ou mesa de lanchonete ou no ônibus ou metrô. Desprendido do senso moral, equilibra-se (ou tenta fazê-lo) a partir dos seus instintos, do hedonismo capaz de trazer-lhe prazer e realização momentâneas; a busca por aventuras juvenis, ao quebrar regras de convivência e em seu egoísmo deparar-se constantemente com a mais consistente solidão. As pessoas são meros instrumentos, nada que não possa ser abandonado e substituído, e a vida vai tecer-se em uma bolsa irremediavelmente vazia e despojada de sentido. Ele se dá relativamente bem no âmbito profissional, e poderia ser ainda mais bem-sucedido se não fosse tão somente uma exigência dentro das suas necessidades: o desfrute e os prazeres, independente dos seus efeitos.

Ao envelhecer e aproximar-se da morte, várias vezes a espreitá-lo em suas recentes internações e cirurgias, começa a ter, mesmo parcialmente, a visão realista da sua vida e sobretudo do modo em dispô-la. Algo tornava-se insuportável em sua inevitabilidade, cada vez mais ostensiva e inegável. Algo se tornava irreconciliável pelos anos e anos de disputas, pela instabilidade emocional, muito mais do que física, pelos desprezo aos vínculos, à lealdade, ao convívio superficial e instantâneo com que teceu os relacionamentos e, por que não, a própria relação consigo mesmo. Estranhamente ou melhor, ordinariamente, o protagonista de Roth é a multidão de vozes da humanidade, em especial neste tempo onde as certezas e esperanças absolutas não são cultivadas mas ignoradas em favor das incertezas e do pessimismo a tornar as vidas em amontoados de acidentes, contingentes e circunstanciais, uma armadilha tosca, primitiva mas terrivelmente eficiente. É aquela mosca, no exercício da sua plena liberdade, capturada na teia estática e quase invisível aos seus inúmeros olhos. Apanhada, não tem como escapar, e se torna naquilo sequer imaginado, pensado, sugerido, a despeito dos embustes a circundá-la. Ao negar não ver, a própria visão torna-se espólio na cilada.

Tal como o “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, o morto reflete sobre a sua vida, sem qualquer possibilidade de alterá-la, de redenção, talvez servindo de alerta aos leitores, o gemido transcendente a ecoar em ouvidos vulgares, como a dizer: fujam de mim! Faz-me lembrar do Rico e do Lázaro. Mortos, o Rico sofre nas profundezas do inferno e pede a Abraão para enviar Lázaro até os seus amigos e parentes a fim de alertá-los sobre o lugar terrível para onde foi e inevitavelmente também iriam. Abraão não atende ao pedido do Rico, porque eles, os vivos, tinham Moises e os profetas a exortá-los (não vou entrar nos pormenores teológicos), mas, de alguma maneira, Roth recebe a mensagem do além e a retransmite, sem indicar a direção correta e perfeita, apenas revelando a precariedade vivida pelo nosso herói.

O livro inicia-se com o funeral e a morte é presença constante durante a narrativa. Aos nove anos, internado, presencia a morte de um garoto, e isso o impressionou tanto que carrega o sentimento de perda por toda a vida, como se aquele menino fosse também parte de si mesmo. De alguma maneira, naquele episódio, o protagonista morre um pouco, e morrerá muitas outras vezes enquanto vê partirem parentes e amigos. Ele sente-se fragmentar, esfarelar-se nos anos e décadas, e nada mais lhe resta do que escolher os prazeres porque o dia seguinte pode não mais existir. O desconforto e inconsciência refletem em amargura, aflição, suportada pelo sexo obstinado e, por meio dele, aos próprios olhos, fazer-se invulnerável, um estoico diante do destino.

Ao abandonar esposas, filhos e irmão (de quem inveja a saúde), afasta-se de si mesmo; a tentativa desesperada de fugir ao desígnio iminente e, tal qual aquela mosca, acaba aprisionando-se ainda mais a ele. Nada disso, entretanto, é capaz de aplacar a solidão e alterar-lhe o fim.

Roth, como tantos outros autores judeus, vislumbra um mundo sem Deus, sem propósito, e existências vazias reparadas somente pela morte. Ela é o “grand-finale”, quase uma divindade, terrível, o Tânatos banal e inevitável das vidas comuns (sim, todos acabarão, cedo ou tarde, se defrontando com o “esconderijo da vida”), mas aglutinadora de todos os enganos ambíguos e duvidosos, o desfecho lógico e consciente de um mundo irracional e leviano. E neste aspecto não resta outra opção a não ser entregar-se a ela, ainda que o encontro lúgubre estenda-se como em um longo velório por toda a vida.

 _________________

Avaliação: (***)

Título: O Homem Comum

Autor: Philip Roth

Páginas: 128

Editora: Cia das Letras

Sinopse: “Em Homem comum, Philip Roth explora o tema da perda, do arrependimento e do estoicismo ao voltar sua atenção para a luta de um homem contra a mortalidade. Acompanhamos o destino do protagonista a partir de seu primeiro confronto com a morte, nas praias idílicas dos verões da infância, passando pelos conflitos e pelas realizações da idade adulta, até a velhice, quando ele fica dilacerado ao constatar a deterioração de seus contemporâneos e dele próprio.”

07 março 2023

Sermão em Filipenses 4.1-3: "Firmes e em paz!"

Por Jorge F. Isah


PRIMEIRA PARTE: INTRODUÇÃO


Bom dia, irmãos!

O Pastor Luiz Tibúrcio e sua família tiraram alguns dias de férias, descanso que não tinham há alguns anos, então, fui incumbido de pregar hoje, em nosso culto, uma honraria imerecida, mas que pela graça de Deus espero cumpri-la para a sua gloria.

Esta honra se faz ainda maior por ser o primeiro culto do ano e, também, o primeiro sermão. Não por haver algo de excepcional ou encantado nesta data, o primeiro domingo de 2015, mas pelo fato de o Ano-Novo guardar uma expectativa e a promessa de novas realizações, decisões e empreendimentos, levando muitos a acreditarem em algo sobrenatural ou mágico apenas por iniciar-se um novo ciclo. Alguns esperam realizar o que não conseguiram no ano anterior, outros elaboram planos, projetos e metas a cumprir, como uma promessa inicial. Trabalhar ou estudar mais; descansar ou curtir a vida mais; emagrecer ou iniciar a prática de algum esporte; ler um certo número de livros; ficar noivo ou casar; ou seja, há um certo misticismo na virada de ano, uma esperança em realizar sonhos e expectativas. Talvez renovar as esperanças de cumprir o que prometera a si mesmo no penúltimo ano... Um compromisso de fazer o que prometeu e não realizou.

Contudo, não há nada demais além da mudança de páginas no calendário. Este é um dia como outro qualquer, e para os crentes é mais um dia de agradecimento, louvor e glória ao nosso Senhor. O máximo permitido pela minha imaginação é elaborar um resumo de todas as bênçãos e providências divinas, agradecendo-o por tê-las dado. Assim devem ser todos os dias, em todos os anos, durante toda a nossa vida, seja aqui ou na eternidade.

Por isso, nada mais justo do que rendermos a Deus toda a glória devida; observando alguns mandamentos ou ordens deixadas por ele.

Escolhi, então, o trecho mais importante em minha caminhada cristã (senão o mais, um dos mais), e que causou-me um grande impacto ao lê-lo pela primeira vez; e está na Carta de Paulo aos Filipenses, no capítulo 4, verso 1 a 4, e diz:

“Portanto, meus amados e mui queridos irmãos, minha alegria e coroa, estai assim firmes no Senhor, amados. Rogo a Evódia, e rogo a Síntique, que sintam o mesmo no Senhor. E peço-te também a ti, meu verdadeiro companheiro, que ajudes essas mulheres que trabalharam comigo no evangelho, e com Clemente, e com os meus outros cooperadores, cujos nomes estão no livro da vida. Regozijai-vos sempre no Senhor; outra vez digo, regozijai-vos.”


SEGUNDA PARTE: CONTEXTO

Entendamos o contexto em que o Apóstolo escreveu esta carta:

1 – Esta carta é considerada uma das mais belas e amorosas do Novo Testamento. Nela, Paulo abre e derrama o seu coração aos filipenses, como uma igreja das que mais alegria trazia-lhe, pois sempre estiveram juntos do Apóstolo em todas as suas viagens, auxiliando-o de várias maneiras, seja na colaboração efetiva da pregação do Evangelho, seja no sustento material, em orações, ou seja, em muitos momentos, dos mais difíceis, a igreja de Filipos estava pronta, a disposição, para auxiliá-lo em seu trabalho.

2 - Ele estava preso em Roma, acusado injustamente pelos judeus de levar gentios ao templo, o que era proibido.

Lucas relata os motivos pelos quais Paulo foi preso, e os irmãos certamente hão de lembrar pois o Pr. Luiz tem desenvolvido esse estudo expositivo no livro de Atos:

“E quando os sete dias estavam quase a terminar, os judeus da Ásia, vendo-o no templo, alvoroçaram todo o povo e lançaram mão dele, clamando: Homens israelitas, acudi; este é o homem que por todas as partes ensina a todos contra o povo e contra a lei, e contra este lugar; e, demais disto, introduziu também no templo os gregos, e profanou este santo lugar. Porque tinham visto com ele na cidade a Trófimo de Éfeso, o qual pensavam que Paulo introduzira no templo.” [At 21.27-29]

3 – Depois de preso e levado a Roma, Paulo ficou sob os cuidados da guarda pretoriana, a elite do exército romano, os soldados mais bem treinados, e responsáveis pela proteção do imperador.

4 - Os cristãos eram perseguidos, presos e mortos tanto por judeus como por romanos.

5 - Ser cristão era o mesmo que estar condenado à morte, no primeiro século. A acusação básica dos judeus era a idolatria, acreditar que o Pai, o Filho e o Espírito Santo era Deus. A acusação dos romanos era a desobediência cristã em não adorarem os seus deuses, especificamente o César, o Imperador, que era o poder divino instaurado na terra.

Não é difícil perceber, naquele tempo, que as coisas não eram fáceis, pelo contrário, havia todo o tipo de provações e sofrimento para os cristãos. Mas, como o próprio Apóstolo reconheceu, “De maneira que as minhas prisões em Cristo foram manifestas por toda a guarda pretoriana, e por todos os demais lugares; e muitos dos irmãos no Senhor, tomando ânimo com as minhas prisões, ousam falar a palavra mais confiadamente, sem temor” [Fl 1.13-14]. Mesmo diante da limitação de pregar e levar o Evangelho, posto estar confinado a um espaço exíguo, provavelmente algemado a dois soldados, ele levou a Palavra a toda a guarda pretoriana, evangelizando-a, e, por causa desse testemunho, muitos irmãos sentiram-se fortalecidos e, ousadamente, proclamavam a palavra de Deus em todos os lugares, sob todas as condições.

É nesse ambiente hostil, tendo a sua liberdade cerceada, acusado injustamente de um crime que não cometeu, privado de levar pessoalmente o conforto, o ensino, a orientação aos irmãos nas muitas igrejas plantadas por si, e impedido de evangelizar livremente, que Paulo escreveu aos filipenses. Acontece que nada impede os desígnios divinos, e estava decretado que ele haveria de levar Cristo até Roma, para dentro do palácio imperial, para os corredores e salões da elite romana, sob as barbas do tirano e assassino, Nero; ocasionando na conversão de muitos, como atesta ao fim da epistola:

“Todos os santos vos saúdam, mas principalmente os que são da casa de César” [Fp 4:22].
Podemos ver que não há desculpas para não evangelizarmos, pois assim como Paulo, todo lugar, toda condição, toda situação é propícia para levarmos a mensagem de vida, o Evangelho das Boas-Novas, de que Cristo, o Filho de Deus, morreu para ajuntar a si um povo santo.



TERCEIRA PARTE: PRIMEIRAS EXORTAÇÕES

Pois bem, além deste momento, você já parou para pensar na profundidade do que Paulo nos diz, e de termos uma ordem e não uma opção a qual podemos ou não aceitar?

No início do capítulo 4, há ordenanças ou obrigações apontadas por Paulo para a igreja de Filipos. Senão, vejamos:

Verso 1: “Portanto, meus amados e mui queridos irmãos, minha alegria e coroa, estai assim firmes no Senhor, amados.”

Primeiramente, Paulo chama os filipenses de “meus amados e mui queridos irmãos”. Declarando o seu contentamento, alegria e amor sentidos por aquela igreja, capaz de leva-lo a exortá-los com carinho, fraternidade e bondade. Os filipenses são a sua alegria e coroa, como um troféu do seu ministério, uma honraria na qual se deleitava por tê-los como irmãos e auxiliadores; aqueles irmãos que auxiliaram o seu ministério com orações e petições a Deus, mas também materialmente, na Macedônia, em Corinto, em Tessalônica, sendo a única, em vários momentos, a comunicar-se com ele, para o efetivo avanço do seu ministério.

Em seguida, ele exorta-os: “estai assim firmes no Senhor”. Ora, não é um mero pedido, um conselho, ou uma possibilidade dada à igreja, mas uma ordem. O verbo “estai” está na forma imperativa, como uma necessidade, um dever, um compromisso assumido ao qual se deve submeter.

Mas eles deveriam estar firmes em quem ou no quê? No Senhor! Não é em qualquer coisa ou em si mesmos. Não podemos nos firmar em nós mesmos pois somos inconstantes, imperfeitos, falhos, e, caso dependêssemos de nós mesmos não alcançaríamos nada além da justa condenação por nossos pecados e fraquezas, culminando na garantia de um lugar no Inferno.

Se nossa dependência é completa e total de Deus, somente podemos estar firmes se estivermos nele. Como o salmista diz:

“O Senhor é o meu rochedo, e o meu lugar forte, e o meu libertador; o meu Deus, a minha fortaleza, em quem confio; o meu escudo, a força da minha salvação, e o meu alto refúgio” [Sl 18.2]

E, ainda:

“O Senhor é a minha luz e a minha salvação; a quem temerei? O Senhor é a força da minha vida; de quem me recearei? Quando os malvados, meus adversários e meus inimigos, se chegaram contra mim, para comerem as minhas carnes, tropeçaram e caíram. Ainda que um exército me cercasse, o meu coração não temeria; ainda que a guerra se levantasse contra mim, nisto confiaria. Uma coisa pedi ao Senhor, e a buscarei: que possa morar na casa do Senhor todos os dias da minha vida, para contemplar a formosura do Senhor, e inquirir no seu templo. Porque no dia da adversidade me esconderá no seu pavilhão; no oculto do seu tabernáculo me esconderá; pôr-me-á sobre uma rocha” [Sl 27.1-5].

Em nenhum momento o salmista se exaltar ou se vangloriar com a sua própria força, por estar firme em si mesmo, por ser ele o seu libertador, ou em quem confia. Sabendo que foram escritos por Davi, o homem segundo o coração de Deus; que quando ainda um jovem derrotou o temido gigante Golias; que liderou o exército de Israel em dezenas de batalhas vitoriosas contra os seus inimigos; foi Rei, conquistou e erigiu a mais forte nação do Oriente Médio à época; não é interessante ele não fazer nenhuma menção aos seus dons, feitos e habilidades? À sua força, valentia, inteligência e liderança? Pois bem, ele sabe quem é, e sabe-se totalmente dependente e sujeito a Deus, não colocando nenhuma esperança em si mesmo, posto reconhecer-se incapaz sem os favores e bênçãos divinas.

Sabendo disso, Paulo exorta, conclama, ordena, a igreja de Filipos a manter-se firme no Senhor. Este é o primeiro ponto abordado pelos profetas, não confiar em si mesmo, não depositar as esperanças em si mesmo. E qual o segundo?

Se não devemos e podemos confiar em nós mesmos, devemos confiar em outrem; o qual não é outro senão o Senhor da glória, Cristo! Se estamos nele, e ele em nós, precisamos de uma comunhão constante, ininterrupta e arraigada nele. Este segundo ponto fala da perseverança dos santos, de mantermo-nos firmes em Cristo até o fim. É claro que não fazemos isso por nós mesmos, já que é o Senhor quem nos preserva, nos sustenta, e garante a nossa santidade. Mas há um componente humano, transformado e motivado pelo Espírito: queremos e ansiamos permanecer firmes em Cristo, crendo inabalavelmente que nos conservará, impedindo-nos de cair na vida miserável e desgraçada de antes, de voltarmos, como o cão ao próprio vômito e a porca lavada ao espojadouro de lama [2Pe 2:22]. De uma maneira maravilhosa, sabemos ser o Senhor quem nos suporta e ampara nesta caminhada, mas também ansiamos permanecer nela, pelo seu poder, graça e favor.

Então, particular e individualmente (talvez porque elas, mais do que outros, necessitavam deste encorajamento, visto haver uma divergência entre elas ou entre elas e a igreja), roga a Evódia e a Síntique que sintam o mesmo, viver em paz, em unidade, e em harmonia entre si e com a congregação. Muitas vezes, este é um sério problema na igreja; por um desentendimento ou mesmo falta de compreensão, um irmão se aborrece com a igreja e pensa em abandoná-la, ou então permanece destilando a sua insatisfação. É claro que não existe uma igreja perfeita e, penso, não existiu nem existirá uma na terra; e damos vazão à carnalidade e ao pecado quando promovemos dissensões ou disputas dentro dela. Deus deu um dom para cada um dos irmãos, e é a unidade e harmonia desses dons que fará a igreja crescer, podendo crescer numericamente, mas, sobretudo, em maturidade espiritual, na realização da sua obra.

Paulo cita especificamente Evódia e Síntique, duas irmãs, o que seria, nos tempos atuais, um absurdo na igreja. As pessoas vêm-se como independentes, donas dos seus narizes, num estado de autonomia tal que ninguém, nem mesmo a igreja, tem algo a ver com a sua vida. Por isso, há um número cada vez maior de pessoas que se dizem crentes e estão fora da igreja, não congregam, não têm comunhão, não realizam a obra de Deus, nem compartilham do grande ministério de ajudarem-se mutuamente, consolando, exortando, orando, instruindo e sendo instruído. Já imaginou se o pr. Luiz Carlos, por exemplo, exortasse irmãos nominal e publicamente a apaziguarem os seus corações e viverem em unidade com os demais?

Imagino a resposta: “Mas o que o pastor tem com isso? Não é problema seu, mas meu!”; “A igreja cuida da vida dela e eu cuido da minha”, ou alguma desculpa similar.

Há uma geração inteira de “crentes” que acreditam piamente na falácia de haver uma distinção entre as suas vidas e a vida cristã, de maneira que apenas algumas horas por semana são devotadas à última, e, quanto ao restante do tempo, a face não-eclesiástica, ninguém, muito menos a igreja tem algo com isso. O crente autônomo está em conformidade com o pensamento mundano e deste século, no qual ele está sujeito a praticamente tudo, às normas e regras do Estado, do seu empregador, do mercado (caso seja o empregador), do seu condomínio, no trânsito, na escola, no hotel, ou seja, onde estiver ele deve se submeter a regras e, caso não o faça, arcará com as consequências pecuniárias, de espaço (sendo impedido de entrar nos locais onde é um indesejado ou é-lhe vedado), e até mesmo com a privação física (a prisão ao descumprir uma lei capital). Mas, quanto a se sujeitar à igreja, a qual foi constituída por Cristo como o seu Corpo, ah, isso jamais!

Em 1 Co 5:11-13, Paulo ordena à igreja para tirar o iníquo de dentro dela. Por que? Para que seja julgado por Deus, pois é ele quem julga os que estão fora da igreja (v.13); mas, na igreja, o Corpo é que tem a prerrogativa e autoridade para fazê-lo, não se deixando eximir da responsabilidade dada (v.12).

Ao se retirar um ímpio da igreja, ele perde a proteção eclesiástica e, portanto, será julgado por Deus; pois a igreja não será julgada, posto Cristo ter morrido por ela, e limpado-a de todos os seus pecados.

Então, a conclusão não é outra senão a seguinte: os “crentes” que insistem em permanecer fora da igreja, por estarem em desobediência, ao terminarem suas vidas assim, serão julgados por Deus, pois é ele quem julga os de fora, o que não é uma coisa boa, estar passível e sujeito ao julgamento divino. O estado desses “crentes” é o mesmo de um não-crente, um ímpio, e por isso, mesmo achando que são melhores (e o fato de não haver uma igreja boa o suficiente para eles demonstra um grau exacerbado de superioridade e orgulho pessoal), estão se colocando entre os piores, entre aqueles que serão julgados por Deus. Cristo diz:

“Quem não é comigo é contra mim; e quem comigo não ajunta, espalha” [Mt 12.30]; uma clara alusão à posição do homem diante da neutralidade, ou seja, nenhuma. Ninguém é neutro diante de Cristo. Ou se está com ele ou não se está; ou se trabalha com ele ou não.

Alguns apontarão que Paulo está a falar de uma igreja universal e invisível, mas ao destinar a sua carta a igreja de Corinto, de citar pecados e omissões dos irmãos de Corinto, e de ordenar que coloquem para fora o ímpio da igreja de Corinto, não há como se pensar em igreja universal e invisível, mas em corpo local, congregacional e visível (por isso a redundância intencional em repetir a qual igreja ele destinava a sua ordem). E os dentro da igreja serão julgados por ela, como irmãos salvos e remidos pelo sangue de Cristo (convenhamos, um julgamento muito mais brando do que o divino), a corrigirem o seu caminho, a voltarem à verdade, arrependerem-se dos seus pecados, serem perdoados pela igreja, o corpo, e pela cabeça, Cristo.

Voltando ao texto de Filipenses, no verso 3, o apóstolo exorta um companheiro na fé a ajuda-las, Evódia e Síntique, na reconciliação, no trabalho e harmonia dentro da igreja dos filipenses. Há um componente interesse no relato do Apóstolo: essas duas mulheres haviam trabalhado com ele, na propagação, na difusão do Evangelho em Filipos, juntamente com Clemente e outros colaboradores, como puderam então se distanciarem, ao ponto de uma não mais cooperar com a outra na igreja?

Infelizmente, algumas vezes, damos vazão aos dardos inflados de Satanás, deixando o nosso orgulho e vaidade se sobreporem ao amor, à piedade, à unidade laboral. Como já disse, cada um de nós recebeu um dom do Senhor, e a união desses dons é que fazem a igreja progredir e crescer no conhecimento de Deus e da sua vontade. Evódia e Síntique, duas irmãs empenhadas no auxílio ao ministério de Paulo, trabalharam em outros tempos juntas, em comunhão, visando um único bem, levar o nome de Cristo ao conhecimento dos filipenses. Provavelmente, elas passaram por muitas lutas, obstáculos e provações, e, agora, a igreja estava plantada mas elas não se entendiam. Não sabemos os motivos pelos quais antipatizaram-se mutuamente, mas creio que o motivo foi, pois via de regra é, a falta de perdão, motivada pelo orgulho. Há um ditado mineiro que diz: quando um não quer, dois não brigam. E pode ser aplicado na vida por qualquer pessoa, mas, especialmente os cristãos devem estar imbuídos do espírito de não contenda, de inimizade.

Em Gálatas 5:20, Paulo relaciona a inimizade como fruto ou obra da carne, algo a ser combatido pelas igrejas. Porém, o problema parece muito mais frequente, ao ponto de haver sectarismo, desde os primórdios do Cristianismo. Aconteceu até mesmo no grupo seleto do Senhor Jesus. Em Mateus 20.20, a mãe de Tiago e João, juntamente com os filhos, aproximaram-se de Jesus para adorá-lo e fazer um pedido. E qual era o pedido? Que os seus dois filhos assentassem, um à direita e outra esquerda do Senhor (v.21). Cristo respondendo-a, disse: “Não sabeis o que pedis. Podeis vós beber o cálice que eu hei de beber, e ser batizados com o batismo com que eu sou batizado?” (v.22). Eles disseram que sim, podiam. Jesus confirmou, afirmando que eles beberiam do seu cálice e seriam batizados como mesmo batismo com que ele era batizado, “mas o assentar-se à minha direita ou à minha esquerda não me pertence dá-lo, mas é para aqueles para quem meu Pai o tem preparado” (v.23).

Após ouvirem o diálogo, como se comportaram os outros dez apóstolos? Se indignaram contra os Tiago e João (v.24). Nesse momento, temos uma disputa entre eles; de um lado os filhos de Zebedeu, do outro, os demais apóstolos. E qual o motivo da disputa? Um lugar especial ao lado do Senhor. Ora, mas todos queremos um lugar mais próximo de Cristo, não é? Porém, esse lugar não pode ser exigido, pois, se o for, demonstrará haver um mérito pessoal, um destaque especial, para se alcançar o posto. E, felizmente, essa prerrogativa não é do homem mas de Deus. O erro, em algum momento, foi Tiago e João considerarem-se merecedores daquela posição, de estarem sentados lado a lado do Senhor. Houve um pouco de tudo, arrogância, ambição, e desprezo aos demais apóstolos. De alguma maneira, eles se consideravam mais merecedores daquela posição do que os demais, uma honra destinada apenas a eles, ao ponto de, alertados pelo Senhor quanto ao absurdo do pedido, algo impróprio e inadequado (“Não sabeis o que pedis”), eles não titubearam, mesmo quando Jesus acrescentou: Podeis beber do cálice que ei de beber e ser batizados com o batismo com que eu era batizado?, e disseram: Sim, Senhor, podemos! Será que por algum momento eles tiveram a noção exata do que viria a ser o cálice bebido por Cristo e o batismo no qual ele estava batizado? Será que no afã de terem os seus lugares ao lado do Senhor, uma honra e uma glória pessoal, responderam sem meditar nas consequências, sem saber o que representavam verdadeiramente, e de uma maneira autômata estavam dispostos a tudo, mesmo o que não sabiam ao certo, para ocuparem aqueles lugares de destaque?

Fato é o Senhor ter-lhes respondido que beberiam o seu cálice e seriam batizados com o mesmo batismo. Mas, o que isto representa? Cristo estava a falar do seu sofrimento, da sua agonia, culminando com a morte na cruz. O cálice bebido era amargo, triste, doloroso, e, mesmo inconscientemente, João e Tiago aceitavam um sacrifício desconhecido, ou seja, como não sabiam o que pediam, também não sabiam o que respondiam ao Senhor, pois não tinham ideia do significado daquelas palavras, nem conheciam o destino que lhes estava reservado; se a pergunta foi tola, a resposta foi ainda maior, tudo para obterem um lugar de destaque no Reino. E não sei até que ponto surpreenderam-se com a resposta de Jesus, de que beberiam do mesmo cálice e seriam batizados com o mesmo batismo; mas acredito que o orgulho deles aumentou, e a consciência de merecerem o lugar de destaque aumentou, já que a prova apresentada seria realizada, mesmo sendo-lhes, naquele momento, algo obscuro, um enigma. Cristo, porém, encarrega-se de dar-lhes um banho de água fria, ao proferir que a incumbência de escolher quem estará à sua direita e à sua esquerda não é ele, mas o Pai o destinará a quem tem preparado tal honraria.

Em seguida, os outros discípulos, observando o desenrolar da conversa, indignam-se com João e Tiago. Eles sentiram-se inferiorizados, menosprezados, humilhados pelo pedido dos “filhos do trovão” (Lc 9:51-56). De alguma maneira, eles se colocaram como vítimas da ofensa dos irmãos, mas, não agiriam eles igualmente? Em Lucas 9:46-48, o texto fala-nos de uma discussão, entre todos os apóstolos, para se saber qual era o maior entre eles. Esse não era um sentimento apenas dos filhos de Zebedeu, mas havia uma disputa interna, na qual o Senhor sempre os repreendia, a fim de entenderem a verdadeira mensagem de que, assim como ele, sendo Deus fez-se homem para ajuntar para si um povo, humilhando-se na cruz, o maior seria o menor e o menor seria o maior. Diferentemente da forma como as coisas se conduzem no mundo, um mundo caído, contaminado e dominado pelo pecado, onde os grandes e poderosos exercem autoridade sobre os pequenos e fracos, entre os seus discípulos não seria assim; aquele que quiser fazer-se grande ou o primeiro seja o que serve. E explica porquê: “o Filho do homem não veio para ser servido, mas para servir, e para dar a sua vida em resgate de muitos” (v.28).

Ora, se Cristo, sendo o Filho unigênito de Deus, aquele no qual está toda a glória e poder e honra e perfeição, veio ao mundo para servir, por que os homens cogitariam algum privilégio que não fosse o servir, também? Se o Mestre estava a serviço de muitos, o que dizer dos discípulos, cuja missão era somente aprender e praticar o ensino ministrado? Desta forma, Jesus ensina-lhes o caminho da humildade e da servidão, antagonicamente oposto ao caminho trilhado pelo homem natural, onde o poder, a soberba e o status de ser servido é o senso comum, um reflexo da condição pecaminosa da humanidade de se exaltar e fazer de si mesmo um ídolo efêmero, cujos tropeços espelham o estado de queda espiritual no qual subsiste.

Outro exemplo de disputas dentro da igreja foi relatado por Paulo em 1 Coríntios 3:3-7. Aquela igreja vivia divisões insanas, formando grupos distintos e rivais, usando-se da figura de Cristo, Paulo e Apolo para criar uma competição onde havia unidade. Paulo e Apolo não eram rivais, mas estavam unidos em um só propósito, em uma única missão, levar o conhecimento, a palavra e a fé em Cristo para os incrédulos. Cada um tem a sua missão, segundo o dom dado por Deus, e não há motivos também de vangloria, mas de humilhação, pois nem quem planta ou rega é alguma coisa, mas Deus quem dá o crescimento. Uma semente pode ser jogada no solo, regada e não brotar. De nada adiantará o trabalho da semeadura e de molhar a terra, se ela não germinar, crescer e der frutos. Deus utiliza-se da instrumentalização humana para realizar a sua obra, mas a obra é dele, não dos instrumentos. Como já disse algumas vezes, somos como um bisturi nas mãos de um cirurgião, que pode usar o laser ou outro artefato para realizar a operação, enquanto o bisturi, por si mesmo, não pode fazer nada. Paulo e Apolo eram instrumentos, assim como João, Pedro e tantos outros irmãos foram nas mãos providentes de Deus, e é ele quem opera, usando os seus servos. Seremos glorificados? Sim. Por nossos méritos? Não. Mas pela graça infinita de Deus, porque ele quer partilhar a sua glória conosco, e isso o alegra e o apraz.

CONCLUSÃO:

Pois bem, Paulo, seguindo os passos de Cristo, distribui a honra do seu ministério com todos os seus colaboradores, homens e mulheres, cada um com o seu dom e missão dentro da igreja; cada um como instrumento de Deus na realização da sua obra; cada um cumprindo o propósito estabelecido por ele antes da fundação do mundo; logo, qualquer orgulho, vaidade e, não nos esqueçamos da inveja, são pecados plantados pelo diabo para trazer transtorno, para atrapalhar a missão à qual a igreja foi constituída, para embaralhar os irmãos, fazendo-os tropeçarem em seus próprios pés e caírem.

A igreja é unidade de propósitos, de ações, visando exclusivamente a glória de Deus e a expansão do reino de Cristo. Qualquer outro motivo, não importando qual, levando a igreja a divisões, dissensões, disputas e rivalidade em seu Corpo, traz em si mesmo a marca do inimigo, da carnalidade, do distanciamento e rebeldia a Deus. Há de se ter cuidado, e zelar pela unidade do Corpo, pois Cristo, nosso Senhor, morreu e derramou o seu sangue por ele. 

SAUDAÇÃO FINAL:

"A graça do Senhor Jesus Cristo, e o amor de Deus, e a comunhão do Espírito Santo seja com todos vós. Amém"! 

Notas: 1 - Não fiz uma revisão do texto, portanto, desculpem se houver algum erro ortográfico, de concordância ou de digitação.

2 - Há partes tocadas no texto que não puderam ser tocadas na pregação e vice-versa. Portanto, sugiro tanto a leitura como a audição do sermão. 
3 - Sermão pregado no Tabernáculo Batista Bíblico