30 junho 2022

"Pode o Homem Viver sem Deus?", de Ravi Zacharias

 



Jorge F. Isah


Ravi Zacharias é um dos maiores apologistas da atualidade; mesmo falecido em 2020, seus vídeos e livros persistente em levar a todos tipos de leitores a sua cosmovisão cristã, e o Evangelho ao qual tanto se empenhou em divulgar. Por todo o mundo, ele ministrou palestras e debates defendendo a existência de Deus e os princípios cristãos.
Neste livro, em sua primeira parte, ele faz uma defesa da “ideia” de Deus a partir de analogias morais e filosóficas. Há de se reconhecer o seu esforço, seu vasto conhecimento e erudição, seus pressupostos filosóficos (a maioria baseada em Aristóteles), e a defesa apaixonada de Deus.

Apesar de haver alguns "buracos", no conjunto ele é convincente, porém, nem tanto eficiente, já que o viés racional ou intelectual, obstante ser necessário, credencia o convencido a postulante da regeneração, sem, contudo, ser aspecto suficiente para torná-lo em um.

Pode parecer que estou contra Zacharias, o que não é verdade. Mas a questão é que não creio em apologética sem Cristo e seu Evangelho. Ideais filosóficos e estéticos são bons para se promover debates, para a discussão acadêmica, para inflar egos, mas nunca conversões; ao menos em sua plenitude de efeitos e finalidade. Conheci, e conheço, muitas pessoas que têm uma compreensão clara e inequívoca quanto à obra de Cristo, sua missão e o resultado dela na vida do crente, da igreja e no mundo, mas jamais se submeteram verdadeiramente a ele, não se arrependeram de seus pecados, e permanecem tal como sempre foram, levando a vida da mesma forma que sempre levaram, indispostos a abandoná-la, ainda que reconhecendo a necessidade. Existem acadêmicos e estudiosos (entre leigos, também) que conhecem todos os detalhes históricos, culturais, religiosos e relacionais das Escrituras, mas jamais se converteram, e os têm para satisfazer seus desejos por conhecimento, talvez o ego ou condição profissional.

Alguns dirão que Paulo demonstra conhecimento dos filósofos e poetas gregos em suas pregações. Concordo. Provavelmente, o apóstolo, como um homem extremamente culto, um douto em sua época, conhecia profundamente os filósofos e poetas gregos, como os judeus e outros tantos. Mas não vejo Paulo usando "sabedoria de palavras, para que a cruz de Cristo se não faça vã" (1Co 1.17), pelo contrário, como ele mesmo disse, a única coisa que lhe interessava era pregar a Cristo, e este crucificado, visto que Ele era escândalo para os judeus e loucura para os gregos (1Co 1.23).

O fato de Paulo conhecer filosofia e citá-la parcamente (e ainda assim, de forma indireta) não nos autoriza a substituir a pregação do Evangelho por ciências antropocêntricas, amoldando e acondicionando a Palavra a conceitos e teses humanas. Isso é pecado, esvazia a mensagem de Cristo, torna-a refém de nossa mente caída, e ineficiente diante dos homens. Com isso, mais uma vez, não desprezo o estudo, a análise, o escrutínio social, político, filosófico, artístico, cultural, ou outro elemento qualquer a validar e revelar o Criador, sua palavra, sua ação individual e entre as nações. Mas ater-se apenas a eles, sem entrar no cerne, no âmago da Revelação, ou seja, que Cristo encarnou, morreu e ressuscitou para resgatar para si um povo, a noiva, seus eleitos, ou a igreja, se assim julgar melhor, é um grave erro.

Paulo, como Pedro, João, Tiago e todos os apóstolos eram apologistas. Mas o eram com a mente de Cristo, e não com suas mentes imperfeitas; evangelizavam pela pregação da Palavra e o poder que somente ela tem; pois, se não há pregação, como crerão aqueles que não creem? (Rm 10.14-15).

Por isso, quase desisti de continuar a primeira parte de "Pode o Homem viver sem Deus?"... Por mais convincente que Ravi fosse em sua argumentação, não via muitas possibilidades de que alguém pudesse crer diante da sua exposição; crer no sentido em que já expliquei, para redenção. Pelo fato de não ser o Evangelho, seus pressupostos filosóficos eram passíveis de refutação. E ao revelar a verdade, como um conceito filosófico, tornava-a contra argumentável. Evidente que o Evangelho também pode ser refutado, negado ou distorcido, mas ao menos não se ficará iludido por uma simples acolhida ou receptividade intelectual discutível. E esse é, para mim, o principal problema dos cristãos racionalistas, o de acreditarem no convencimento pela razão à conversão; ainda que não excluam a ação do Espírito Santo, em sua maioria, ela se dá quase ou apenas no campo intelectual, e de que tudo pode e deve ser explicado racionalmente. Ora, a Queda afetou todos os aspectos humanos, inclusive a razão, e pôr todas, ou quase todas as fichas nela, me parece arrogância, no mínimo prova da sua própria corrupção (da razão, no caso).

Contudo, na segunda parte do livro, o autor da "nome" à Verdade: Jesus Cristo, o Deus Filho! E começa a expor a Verdade através do Evangelho. Então, fica evidente e patente a solidez de suas argumentações, e como torna-se impossível contradizê-las (apesar do quê, para os escandalizados e loucos com a cruz, somente há oposição na loucura e soberba do homem caído, abandonado por Deus)... Somente através da ação do Espírito Santo pela ministração da Palavra, ateus e todos os tipos de incrédulos se curvarão diante de Cristo, reconhecendo-o como Deus, Senhor e Salvador de suas almas.

Há alguns inconvenientes nos postulados filosóficos/psicológicos com os quais Ravi sustenta a existência de Deus, e Cristo como a única solução para o homem. Nitidamente, ele não quer expor o Evangelho em sua totalidade, e acaba por delinear Cristo com tintas suaves demais.

O Evangelho parte de um único fato: que Deus é santo e o homem pecador, e que esse homem está debaixo da ira de Deus, a qual somente Cristo pode aplacar, e sem Cristo o homem está e será condenado eternamente. O problema é que Ravi toca no assunto, mas de uma forma leve, tentando atenuar ao máximo o impacto que a revelação da verdade pode gerar no leitor. Entendo a sua cautela, afinal não deseja afugentar o leitor, e deseja retê-lo até estar diante de todos os seus argumentos e, assim, convencê-lo da sua irracionalidade em não crer no Cristo.

Ele não se omite em revelar a sua fé, nem em quem crê, mas, aparentemente, fica-se com a ideia de que essa é a sua opção, e de que pode haver outra (não digo que Zacharias frauda a sua fé, fazendo-a parecer descartável ou moldável. Não é isso. Ele refuta qualquer ideia de Deus contrária ao Evangelho de Cristo. Mas, talvez, o tom conciliatório e o apelo excessivamente intelectual o distancie muito de uma exposição pastoral e evangelística).

Ao citar os casos de "conversão", emite este sentido, passando uma noção de transformação ou mesmo de adequação do homem às mudanças que Deus opera nele. Novamente, Ravi não quer impactar o leitor com algo "primitivo" como uma conversão.

Abordando a questão da corrupção do homem e sua natureza pecaminosa, Zacharias acerta, ainda que não se aprofunde no conceito bíblico da queda e do pecado.

O livro daria uma boa discussão numa sala de bate-papo virtual ou não, mas não sei se levaria um incrédulo (ateu ou não) à conversão.

Oro, para estar errado!

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P.S.: Recebi a seguinte mensagem de um irmão, que não quis se identificar:

"Existe algo que não foi observado aqui na análise da obra em questão e eu gostaria de lembrar os leitores.

Estive vivendo na Europa por alguns anos e como estudo Apologética Cristã pude ver um problema típico de livros traduzidos sem ter o mesmo contexto / público. Vou explicar o que quero dizer: Para uma sociedade europeia, cínica quanto a fé cristã, alérgica a apelos e a sutis referências da Bíblia e a qualquer palavra que a lembre - a abordagem filosófica faz-se necessário. A lógica tem sido a melhor maneira até o presente momento para dar a liberdade aos europeus e apelar a eles de uma coerência na fé cristã.

Alemães e Ingleses por exemplo gostam de tomar a decisão por si mesmos, e apelos como fazemos no Brasil não são coerentes na realidade deles.

Bem simples - Ao falar com chineses e japoneses, europeus, hindus, budistas e principalmente muçulmanos, nossa abordagem precisa ser adaptada” (Anônimo)


Entendo a necessidade de se utilizar de meios, sejam culturais ou outros, para se levar o Evangelho. Não é uma crítica a isso, pura e simples. Apenas que, concomitante a essas ferramentas, não se pode diluir ou amenizar a mensagem da cruz, tão viva e necessária à época de Cristo e dos apóstolos quanto o é hoje; e, sem a qual, ninguém será regenerado, nem verá a Deus. Como está escrito: um pouco de fermento leveda toda a massa... e um pouco, um pouquinho apenas de jactância faz de incrédulos religiosos formais e pirrônicos.

 


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Avaliação: (***)
Título: Pode o homem viver sem Deus?
Autor: Ravi Zacharias
Páginas: 296
Editora: Mundo Cristão

10 junho 2022

Mil Tsurus, de Yasunari Kawabata: O ferro quente no couro

 



Jorge F. Isah


O primeiro contato com a literatura japonesa se deu com Yukio Mishima e o seu “O marinheiro que perdeu as graças do mar”, lido, provavelmente, nos finais dos anos 80 e início dos 90, não sei precisar ao certo. Depois dele veio, do mesmo autor, “Neve de primavera”; e, por um bom tempo, mesmo sabendo da necessidade de revisitar e ler outros volumes de Mishima, os autores japoneses foram deixados no ostracismo. Uma falha que, reconheço, se torna quase imperdoável.

Pois bem, instigado pelo prof. Rodrigo Gurgel, resolvi ler Yasunari Kawabata, e me decidi por “Mil Tsurus”, nova tradução da Estação Liberdade, e que também tem o título de “Nuvens de pássaros brancos”, pela Nova Fronteira, e outra tradução portuguesa “Chá e amor”, da Nova Vega; todas a partir do título original “Senbazuru” (Mil Tsurus) – com a referência à ave símbolo nacional no Japão, o grou.

Primeiro, quero acentuar, pois hoje em dia existem pessoas que não estão muito interessadas em leitura mais, digamos, “pesada”, cuja linguagem guarda elementos e significados mais profundos, de que a linguagem de Kawabata não é hermética ou incompreensível, pelo contrário, é fluída, lapidada o suficiente para não deixar dúvidas quanto aos objetivos do autor. Nada parecido com James Joyce ou Thomas Mann (deste sou fã, e do outro, é-me quase intragável... Tudo bem que a leitura de Joyce se deu há muito tempo, quase imediatamente após sair da adolescência, o que pode ter pesado na minha antipatia e desagrado. Talvez devesse relê-lo... se eu tiver coragem suficiente), por exemplo, asseguro.

Segundo, a história é acessível, sem digressões e mudanças abruptas do tempo narrativo, sem muitas personagens e temas secundários. Com isso, não estou a dizer que ela seja banal ou simplória, não é isso. É muito bem elaborada, delicada, diria quase poética, cujo tema central aparenta ser a feminilidade ou a sexualidade mas trata mesmo da complexidade dos relacionamentos, a consciência e o quão perigoso pode ser renunciar a ela, e os desejos... Por mais diferente e exótica seja a realidade oriental, no Japão dos anos 1940, o homem é o mesmo, seja lá ou cá, e as dúvidas, permeadas pela instabilidade emocional, apenas tornam isso ainda mais evidente, inexplicável e embaraçoso.

Terceiro, os personagens vivem em constante disputa, seja por afetos e carinhos, vingança ou autoafirmação, sutilezas e exageros, amor e ódio, presença ou ausência... Nada se perde em meio ao presente atrelado ao passado, como se ele fosse, e dele não se pudesse desvencilhar.

Tudo começa em uma cerimônia de chá ou Chadô (uma tradição iniciada no séc. XII, exclusivamente para homens, e que no final do séc. XIX foi aberto às mulheres). Mais do que uma simples reunião é um ritual budista, cujo Japão moderno e ocidentalizado queria se desvencilhar, ignorar e, por que não, combater. O Japão, ao negar a tradição, negava a si mesmo, desprezava-se, na busca de outra identidade, a aplacar a decadência moral, espiritual, e satisfazer-se à cata de novos desejos e anseios, sem saber ao certo aonde chegariam. É esse o pensamento e vontade de Kikuji, protagonista da história, e que se envolve com duas amantes do pai, falecido. Yukiko, a amante que tem uma mancha escura no seio, quer arrastá-lo de todo jeito para o complexo mundo da cerimônia do chá, e assim tornar-se proeminente em sua vida. Ao mesmo tempo, cínica e impiedosa, não se importa com nada ou ninguém além de si mesma e daquilo a apanhar as pessoas, torná-las subordinadas a seus princípios e interesses. Via de regra, toda a habilidade e presteza em realizar e conduzir as cerimônias do chá têm por fim seduzir e confinar as pessoas à sua vontade.

A outra amante do pai, a senhora Ota, enebria-o com a sua sensualidade, a ponto de, como Absalão fez com as concubinas do seu genitor, Davi, deitar-se com ela. Ela o seduz em sua fragilidade, em seu carinho, e ainda que inconsciente, pelas memórias afetivas e ternas e respeitosas do seu velho. A ponto do seu amor por Kikuji confundir, atormentar, molestar, levando-a a exaustão emocional. É a morte do velho, substituído pelo novo, aflitivo, perturbador, triste... As exigências do presente são impossíveis de se suportar, tornam-na vulnerável, em frangalhos.

Por fim, Kikuji mantém a amizade com Fumiko, filha da senhora Ota, e mais uma vez a novidade, neste caso o próprio Kikuji, parece vir mais para confundir e dilapidar as estruturas, o arcabouço convencional da vida japonesa, enquanto assiste, estoico e leviano, os desejos distanciá-lo mais e mais da realidade, não apenas a mera tradição, mas da responsabilidade com as pessoas... E assim se vê, pouco a pouco, em um círculo vicioso do qual não pode sair, não tem forças para sair, e nele se isola. Não é mau ou perverso, apenas desgovernado por suas paixões, confuso ao negar o passado sem saber o que lhe reserva o futuro. Em última análise, também morre ao idealizar um mundo morrediço enquanto vislumbra outro natimorto... Fumiko se torna também no fracasso do novo mundo, das expectativas e esperanças afogadas no nascedouro; e Kikuji vislumbra-se perdido, sem o passado descartado em prol das novidades e essas frustradas, sem sobrar nada além do apetite irrequieto e malsucedido.

Kawabata sabia muito bem isso e, à sua maneira, elegante e diáfana, imprimiu uma marca bruta na alma (assim como a mancha de Kurimoto, oculta, mas ainda uma chaga), como o ferro quente a atravessar o couro.


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Avaliação: (***)

Título: Mil Tsurus

Autor: Yasunari Kawabata

Páginas: 176

Editora: Estação Liberdade

Sinopse: 

"Publicado originalmente em capítulos por revistas japonesas, este romance foi escrito entre os anos 1949 e 1951. Nesse contexto em que a sociedade japonesa se reestruturava e também se defrontava com valores culturais vindos do Ocidente, Kawabata resgata valores tradicionais de seu país, fazendo da cerimônia do chá o pano de fundo para a história de Mil tsurus. Kikuji Mitani é um jovem que, durante uma cerimônia do chá, reencontra duas antigas amantes de seu falecido pai, Chikako Kurimoto e a viúva Ota, e de repente se vê profundamente envolvido com elas."









18 maio 2022

A Morte de Ivan Ilitch - Léon Tolstói

 




Jorge F. Isah

 

Mais do que a descrição da morte física (uma descrição tão detalhada e assustadora que senti as dores de Ivan, o personagem principal, como se minhas fossem), o livro descreve uma destruição progressiva e inevitável da vida pessoal e familiar de Ivan, onde muros eram construídos e aumentados à proporção da solidão, distanciamento e autopiedade na qual se lançava no curso da doença. Uma doença muito mais da alma, do espírito, do que física, culminando nas incertezas e desesperanças em que se via cada vez mais profundamente atrelado e mergulhado. E isso refletia diretamente em seus familiares que sofriam com a sua dor, mas sobretudo com a sua injustiça ao imputar-lhes a causa do seu mal.

De um problema físico, Tostói aborda, delineia e expõe as feridas e doenças da alma, em que as relações se tornam em angustiante tristeza e flagelo; a luta insana por conforto enquanto se trava uma batalha sem vitoriosos, todos vencidos.

A morte, tão presente, trazia ao homem confiante e seguro de si mesmo, satisfeito com o seu sucesso, suas realizações e conquistas, como o era Ivan, sentimentos de autocomiseração, falta de piedade, desamor e sobretudo medo; um medo tão tangível, que o apreendeu como uma moeda entre os dedos; o medo desesperançado, de atroz mortificação, implacável em seus infortúnios e flagelos. Destaco dois trechos a descreverem essa percepção:

"Em alguns momentos, depois de um período prolongado de sofrimento, desejava, mais do que outra coisa - envergonhava-se de confessá-lo, alguém que sentisse pena dele como se tem pena de uma criança doente".

"Chorou por sua solidão, seu desamparo, pela crueldade do ser humano, a crueldade de Deus e ausência de Deus".

Aqui certamente  está a resposta que tão relutantemente Ivan desdenhou quanto ao sofrimento e a desesperança: o abandono do homem em si mesmo, e a procura tresloucada de encontrar as respostas e o alívio em outras pessoas, quando em si não as há, nem mesmo em outras; a despeito de se compartilhar a humanidade, ela não se explica, nem se entende, muito menos conforta ou consola, traz esperanças ou expectações benévolas se não tiverem no Criador os seus princípios e fundamentos. Com isso, não estou a dizer que o homem, tal qual o conhecemos ou fingimos conhecer, ignorando suas origens e propósitos, é o “espelho” de Deus, ainda que o seja parcialmente e em algum sentido. Na verdade, se é fruto do acaso e forças impessoais, não há muito a ser descoberto além daquilo que somos ou podemos ser, sem ser o que imaginamos pela impossibilidade de sê-lo de fato.

Ivan esperava respostas que os seus interlocutores, ele e parentes e amigos, eram incapazes de decifrar, quanto mais explicá-las à luz das próprias consciências, autônomas e independentes. Então, não lhe restava outra coisa a não ser imputar nos outros, em Deus, ou fatalidades (a vida injusta, por exemplo) a sua própria incompreensão, ou melhor, a inaptidão para reconhecer o quão profundas, e até mesmo insondáveis, eram seus inquéritos... Somente Deus pode dá-las, e elucida-las, e mais do que isso, satisfazê-las, sem o que não restará nada a se fazer, a não ser sentir-se amargo e cínico, culpar a todos e tudo pelo que não se foi capaz de alcançar e não alcançará.

"Enquanto ela (a esposa) o beijava, ele (Ivan) odiou-a do fundo da sua alma e foi com dificuldade que conseguiu conter-se para não empurrá-la.

- Boa noite. Se Deus quiser, você dormirá bem!".

No final das contas, parece-me que Ivan não queria mesmo se curar (se não no início, durante a enfermidade agradou-lhe o sofrimento e a angústia e a indiferença, algo próximo da vitimização, e o medo que causava); e reunindo as forças que lhe restavam, sofria e fazia sofrer com empenho, a dedicação cega daqueles que ignoram o bem, não sabem vivê-lo nem deixam outros vivê-lo também. Apenas quando já não podia mais lutar, encontrou o sentimento de piedade pelos da sua casa, o que, de alguma maneira, trouxe-lhe paz e libertação, ainda que parcial, da morte iminente. Talvez esteja aí uma resposta ou fragmento de uma resposta, com a qual teve de lutar até se ver vencido. Da mesma forma que o antigo ditado diz, onde não há pão ninguém tem razão, pode-se dizer que onde não há amor há dor em profusão. E o que pode ser o amor se não um dom divino, no qual Cristo resumiu tudo: amar a Deus e ao próximo como a ti mesmo?

Ainda que tarde, Ivan talvez tenha experimentado uma centelha do amor, onde o corpo aflito poderia guardar uma alma confortada, ainda que enferma e à porta da morte.

Mais do que uma tragédia anunciada, Tolstói quis revelar a redenção, aquela pela qual somos finalmente tornados à semelhança de Deus... e apenas ele pode ordená-la.


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Avaliação: (****) 

Autor: Leon Tolstói

Páginas: 112

Editora: LP&M Pocket

Sinopse: "Esta obra mostra a história de um burocrata medíocre, Ivan Ilitch, um juiz respeitado que depois de conseguir uma oferta para ser juiz em uma outra cidade, compra um apartamento lá, para ele, sua mulher, sua filha e seu filho morarem. Ao ir para o apartamento, antes de todos, para decorá-lo, ele cai e se machuca na região do rim, dando início à uma doença"



22 abril 2022

A Humilhação, de Philip Roth

 





Jorge F. Isah



Um artista renomado, uma lenda viva do teatro, o último dos grandes atores, a figura emblemática, lendária e consagrada, este é Simon Axler, a história viva dos palcos americanos. O que poderia acontecer-lhe de pior? Perder o talento, a capacidade de interpretar? O sentido da vida? A própria vida? A saúde? O controle? O fracasso é inevitável? Ou seria possível suportar as perdas e reconstruir-se?... Já no primeiro parágrafo é possível se fazer essas e outras tantas perguntas, ao se ler:

“Ele perdera a magia. O impulso se esgotara. Ele nunca havia fracassado no teatro, tudo o que fizera sempre fora vigoroso e bem-sucedido, e então aconteceu esta coisa terrível: ele não conseguia representar. Subir ao palco tornou-se uma agonia.”

Philip Roth nos apresenta o principal dilema na vida do herói, um homem em declínio, nocauteado, a beijar a lona sem forças para se erguer, fustigado pelo passado glorioso, enquanto a encará-lo está o presente e futuro indignos.

“Humilhação” nos agarra inesperadamente, quase à força, e nos arrasta por suas páginas a conhecer o declínio, o crepúsculo do ícone entregue à própria incapacidade de se soerguer, de retomar o caminho ou, talvez, convergir a outro não tão glamoroso, mas ainda assim capaz de trazer-lhe a esperança de dias menos brilhantes mas viçosos e alentadores. Simon é um fatalista, niilista e, portanto, pessimista quanto ao seu destino. E não existem fatores externos a produzir desânimo e tristeza, pois a fonte das suas dores está em si mesmo, na negação, na autossabotagem, impedindo-o de recriar-se, de estabelecer novos vínculos e projetá-los para o amanhã. Resta-lhe então perder-se no passado, e colocar-se nele como fraude, embuste, nada do que viveu foi real, verdadeiro; e se sua vida constituiu-se de ensaios, atuações e prêmios, além de fama e reconhecimento, ele não viveu, não se realizou. A amargura assoma-o de tal maneira que não existe espaço para mais nada além da frustração de ter sido um “malogrado sucesso”.

Axler é um homem velho, solitário, e recusa qualquer ajuda, como um naufrago submergindo às ondas ciclópicas, nega-se ao socorro, afogado em seu orgulho, imerso em queixas, desprezo e autoestima, ainda que esta lhe traga vergonha e desgraça. É exatamente por não ser mais aquele grande homem do passado que está a negá-lo e a si mesmo. Teria a sua vida se misturado às dos seus personagens, em tantas tragédias, dramas, paródias e comédias? A torná-lo inábil, incapaz de se distinguir além das técnicas e arte? Aos sessenta e cinco anos, dores terríveis nas costas, chegando a imobilizar uma das pernas, sem família, sem amigos, não estaria em um palco, monólogo em curso, diante de uma plateia de cadeiras vazias? Permanentemente abandonado?... Esta foi a sua escolha, dentre tantos movimentos explícitos e furtivos de subjazer-se ao aparente, o seu adequado personagem valer-se do homem. Porém, o homem se rebela contra o personagem, e leva Simon ao sofrimento, à tristeza, ao desamparo, à quase loucura, a internar-se em uma clínica psiquiátrica; e para tanto é necessário o homem morrer e pôr fim às mentiras impostas pelo personagem.

No segundo ato, ele se reencontra com Peggeen, filha de amigos que viu nascer, e agora, aos quarenta anos, surge em sua vida como a tábua de salvação. Aqui, neste ponto, Axler tenta desesperadamente a redenção, ao mesmo tempo em que Peggeen também procura o recomeço, após viver uma relação homossexual frustrada, em que sua parceira decide, à sua revelia, transformar-se em um “homem” heterossexual, por meio de hormônios e cirurgias (digo, amputações: ou arrancar os seios seria o quê?). Duas personalidades erráticas se encontram, e nada pareceria mais improvável, ao mesmo tempo possível, do que a cooperação de almas aflitas e desconectadas da realidade, ou melhor, em um estado de hipérbole realista, onde parecem lançar-se para baixo, uma curva onde os focos são diferentes mas se vislumbra apenas a autodestruição. Se havia a confluência de escolhas e desejos, a aparentar solução dos dilemas, ele se mostrou frágil e efêmero, como um fio podre e quebradiço a conduzir as suas almas sobre o abismo. Enquanto Peggeen deixou-se modelar, reconstruir-se pelas mãos inseguras de Simon, este imaginou redimir-se no papel de “Criador”, ao transformar a amante, de homossexual no estilo “Joãozinho”, a uma heterossexual feminina e sedutora. A momentânea submissão de Peggeen se releva desesperadora, forçosa e débil, quase pantomímica; e a obstinação de Axler em reconduzi-la à naturalidade deixou-o inebriado com a sensação de controle, da situação exterior se refletir em equilíbrio ao seu interior arrasado pela descrença e ceticismo. Por um tempo, a esperança pareceu real, a expectativa vindoura de nova vida, novos rumos, a promessa de realização presumível.

A ideia do sexo e os necessários malabarismos e esquisitices a fim de sustentar o relacionamento provou-se frágil, enganosa, cuja escolha tornou-se ainda mais dolorosa, devastadora, quando extinguiu-se em si mesma, após alguns meses. Aqui temos o terceiro e último ato. Interessante que, no primeiro momento, o que se afigurava apenas apelativo e pretensioso (a narrativa de vários momentos de volúpia irrefreada) configurou-se em crítica, de Roth, ao vazio e insano valor que as pessoas dão aos desejos, ao irracionalismo, o verdadeiro “carrossel de emoções”, onde a gangorra da insegurança e desatinos não preenche as lacunas deixadas na alma, antes as põe a ferros, impenetráveis, sem a menor possibilidade de serem completadas ou satisfeitas. Constrói-se camadas e camadas de insatisfação e desgosto, ao ponto em que fugir, seja voltar-se à vida pregressa, no caso de Peggeen, ou aos planos interrompidos de Axler, tornam-se a única saída. O homem moderno, tão cheio de si, autossuficiente, a proclamar em bom som a sua autonomia, é presa fácil para o mundo cada vez mais pálido, inseguro, cinza e sem qualquer piedade aos maneirismos e vaidade, mais especificamente com aqueles dispostos a erguer um altar a si mesmos, e, no fim das contas, tornarem também a imolação, o sacrifício voluntário ao domínio da vontade; quando o preço a ser pago é a supressão da consciência, do fundamento, da vida. Então, restou a Simon ver suas forças exaurirem-se, e, por fim, ser completamente humilhado.

Ao final, até mesmo o personagem apagou-se. O esplendor fátuo entregou-o às sombras do tempo... no encerrar do último ato.

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Avaliação: (***)

Título: A Humilhação

Autor: Philip Roth


Páginas: 104

10 março 2022

O anti best-seller em "Grandes Esperanças", de Charles Dickens

 




Jorge F. Isah


É um livro fabuloso, em vários sentidos, e não poderia abarcar todos em uma simples resenha, talvez em um longo ensaio, mas não é este o objetivo. Quero ater-me à capacidade impressionante, e quase hipnótica, com a qual Dickens seduz e captura o leitor. De maneira que se torna impossível abandoná-lo, mesmo diante de quase mil páginas. Sim, é volumoso não apenas quanto ao número de laudas, mas quanto a profusão de personagens, lugares, descrições e sentimentos aflorados, expressos ou implícitos. Talvez, por isso, tenha me sido difícil sequer iniciar a escrita desta resenha, tal o grau de complexidade da narrativa se apresentava. Vinha-me tantas coisas à cabeça, ao mesmo tempo, que não sabia ao certo por onde começar. Porém, tudo tem um começo, e o meu se dá assim, em dizer ao caro leitor: escrevo não para desnudar a obra, mas apresentá-la do melhor jeito a fim de que se interesse em lê-la e desvendá-la.

Simplesmente, não há como ser ou ficar indiferente a uma só linha, a uma descrição, ação ou reação no enredo. Pode-se gostar ou não, e gosto não é, na maioria das vezes, a melhor forma de se avaliar um livro, música, filme ou qualquer outra coisa. Antes ele deve se subordinar ao caráter objetivo, intelectual e emoção à qual se está exposto. O crivo para a crítica jamais pode ser algo apenas questão de ânimo, simples paladar ou sensação, sem a habilidade e análise dedicada e criteriosa. Ou seja, literatura de qualidade não é apenas diversão, mas se mede com o equilíbrio da meditação e discernimento, o escrutínio de frases, parágrafos, capítulos, necessários à compreensão da mensagem, ou mensagens, entregue pelo autor. Não é uma ciência exata, algo a se imprimir rigor extremo, porém não pode tornar-se banalizada pelo capricho ou achismo, sem o exame íntimo, a capacidade de influenciar e alertar o leitor para as verdadeiras e essenciais questões a trazer sentido e revelação sobre a vida. Portanto, ao ler, ouvir ou ver qualquer obra de arte, não diga que é “bonitinha”, “engraçadinha” ou “legalzinha”, mesmo que a deteste profundamente, fuja do clichê, confronte-a consciente, e dê a definição, mesmo que não seja precisa e exata, do seu conteúdo, e o porquê de abominá-la.

Posto isso, o que dizer de “Grandes Esperanças”? Em muitos aspectos a temática do jovem órfão (tanto de Oliver Twist ou David Copperfield) está presente, com todos os aspectos trágicos, dolorosos e injustos aos quais os desamparados estão sujeitos. Não é diferente com “Pip”, sem pais e criado pela irmã, inflexível, severa e cruel, casada com Joe, um homem simples, ingênuo, bondoso e cujo coração é incapaz de revidar as agressões da mulher, habituada a tratá-lo com desprezo e violência física. Ele é uma alma terna, branda, benigna, e vê em Pip não o fardo ao qual a esposa se refere sempre, mas o amigo de infortúnios, cúmplice das mazelas pelas quais a vida arrocha. Ambos têm na comunhão, nos poucos momentos de solidão mútua, o descanso e alívio para o dia a dia conturbado, no qual esposa e irmã insiste em impor-lhes.

Quase todas as personagens à volta de Pip lhe são hostis, à exceção de Joe, como dito, Bitty, a amiga e professora, Herbert, futuro amigo de Londres, Wemmich e Magwitch, o “anjo da guarda” do órfão. Então, não é difícil imaginar as diversas situações em que o caráter de Pip é testado, diante de pessoas incapazes de agirem sem o desejo (mesmo inconsciente) de prejudicar e subjugar a pobre alma. E, entre elas, Dickens expõe as misérias sociais, mas também, e sobretudo, as moléstias e feridas individuais, sem as quais a sociedade não seria como era, ou não seria como é. Ou seja, ele fala, descreve, a humanidade, a nossa essência, de tal maneira que é possível, em um único ser, coabitar o mal e o bem, a mentira e a verdade, moral e cinismo, indiferença e arrependimento... Todos, não somente eles mas também nós, estamos diante dessa realidade, enquanto alguns satisfazem-se na perpetuação do mal, o descaso com o próximo, notabilizando-se naquilo a torná-los mais execráveis e hediondos, outros buscam a redenção, transformar, aperfeiçoar-se e serenar todas as guerras, em busca da paz interior, a despeito de haver ou não trégua do lado de fora.

Alguém pode aludir que esse estado de coisas nada mais é do que egoísmo disfarçado de superioridade, mas inquiro-o: é possível fazer a paz com o mundo se existisse a guerra no íntimo? O orgulho promove a guerra interna e externa, enquanto a caridade, em princípio, vê no outro aquilo a ser visto em si mesmo, com todas as suas implicações para o bem ou o mal. É entender o outro como deseja ser entendido, mesmo que não seja, e se não é possível o acordo e o fim das disputas, deve-se, no mínimo, não encorajá-la, antes esmorecê-la. Como Jesus diz: “Amai a vossos inimigos, bendizei os que vos maldizem, fazei bem aos que vos odeiam, e orai pelos que vos maltratam e vos perseguem” (Mateus 5:44)... Desta forma, Pip descobre, com o passar dos anos, a verdadeira essência da vida, e de as “grandes esperanças” inicialmente vista como acaso ou sorte, se declarar providência e servir, ao mesmo tempo, de queda mas também de escada para compreender o seu lugar no mundo, e se relacionar saudavelmente com ele. Foi preciso adentrar a escuridão completa para desejar a luz e apreciá-la... Não é assim com todos, em maior ou menor grau?... Há, contudo, aqueles incapazes de anelar e perseguir a luz; para eles existem apenas breu e trevas, nada além da própria cegueira.

Algo notável em Pip é o fato de, em boa parte da infância, viver com o estigma do medo, da apreensão, à espera de castigos, reprimendas e sanções. À medida em que os anos se passavam, e sua vida se transformava radicalmente, persistiam medo e apreensão, não mais em relação aos outros, mas a si mesmo, de as grandes expectativas se transformarem em fracasso, de não alcançar aquilo que sempre desejou, de frustrar a si e suas promessas. Não é difícil notar o desregramento, a futilidade, a ingratidão, e o esforço estéril em fugir do passado, do presente, sem perceber o quão distante e improvável era-lhe as ambições futuras... O curso da vida sinalizava-lhe um horizonte nada auspicioso; talvez, por não levar a sério os alertas, optou em desprezá-los, não conseguindo suprimi-los ou derrotá-los.

Se você espera apenas se distrair, esqueça “Grandes Esperanças” ou qualquer outra obra de Dickens. Se busca um enredo histórico, saiba que ele transcende, em muito, a este detalhe. Se for uma trama de época, vale a mesma observação. Se for curiosidade, talvez se satisfaça, não pela curiosidade em si, mas pelo que ela o incitará a descobrir, ou, em outras palavras, descortinará de si mesmo enquanto lê; pois está a falar do âmago humano, do qual todos somos partícipes, uns mais outros menos, sem exceção.

Charles Dickens, como a maioria dos autores do século XIX, escrevia seus romances em periódicos, semanalmente, e foi um dos mais famosos de seu tempo, se não o mais famoso. Alguns dizem ser o equivalente aos autores de best-seller da atualidade, em nível de popularidade e vendas. Não consigo, por mais esforço dispenda, encontrar um único autor líder de vendas que seja ao mesmo tempo simples e profundo, pessoal e universal, peculiar e geral, característico e abrangente, como Dickens. A expressão “best-seller” tornou-se sinônimo de vulgar, ruim, comercial e descartável ao longo do tempo, e se existe uma coisa da qual Dickens não pode ser acusado é disso. Reputá-lo também como um mero contador de históricas ou fazedor de tipos, seria reduzi-lo a algo que jamais foi ou será, bastando ler qualquer das suas obras para se certificar desse engano... Talvez, e somente talvez, haja um “torcer de nariz” por conta da linguagem acessível, límpida e fluída, elegante e refinada, quase poética, a compor o texto, sem hermetismos, dubiedades e pedantismos típicos a agradar boa parte dos críticos e vanguardistas das artes. Para esses, se uma obra não for ininteligível, confusa e estanque não é arte, mesmo que se disserte e delongue sobre o extenso vazio de sua concepção. No caso, Dickens não somente tem muito a dizer, mas o diz, para leigos e peritos, doutos, eruditos ou simples mortais. Qualquer um pode, na medida do possível, apreender e apropriar-se da diegese, da realidade a fluir das suas centenas de páginas.

Portanto, sem citar Estela, Miss Havisham, Mr. Jaggers, Drummie, Mr. Pumblechook e tantos outros vultos imprescindíveis à compreensão da história e repletos de humanidade, deixo ao leitor essas parcas impressões que, contudo, espero ser suficientes para aflorar o desejo de tomar esta obra em suas mãos, degustá-la (mesmo indigesta, em vários pontos), e então compreender toda a complexidade, íntima e abissal, do homem. E Dickens é um dos maiores embaixadores ou representantes do espírito e coração a emanar da nossa natureza.

Leitura recomendadíssima!


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Avaliação: (*****)

Título: Grandes Esperanças

Autor: Charles Dickens

Páginas: 704

Editora: Penguin

Sinopse: 

“Grandes Esperanças” é, sobretudo, um romance de redenção e perdão de seus protagonistas: Narra a história de Philip Pirrip, ou simplesmente Pip, órfão criado pela irmã EM um ambiente de pobreza, Pip vive na casa de sua irmã mais velha, casada com um ferreiro do vilarejo. São pobres, mas não miseráveis, porém, o que aflige Pip, e seu cunhado e único amigo Joe Gargery, é a truculência com que são tratados por Mrs. Joe"





21 fevereiro 2022

O Idiota, de Dostoievski: A rejeição do bem

 



Jorge F. Isah


A primeira vez que li “O Idiota” foi antes de completar meus dezoito anos; um exemplar emprestado à Biblioteca Pública de Minas Gerais, quando os livros eram realmente caros (ainda o são, mas não tanto como antes) e a possibilidade de tê-los, mesmo por um par de semanas, era através dos poucos e imprescindíveis acervos públicos, aos quais incluo o Sesc, Sesi, etc. Porém, em BH, nenhum deles tinha o conjunto de obras tão vasto e diverso quanto a B.P.E.M.G. Foi lá que tomei conhecimento de autores nunca citados, sequer ouvidos, como André Gide, Sinclair Lewis, Salinger, Dos Passos, Maupassant, Prost e Camus, entre outros. Boa parte da minha adolescência gastei-a em tardes vasculhando as estantes e a folhear quase todos os livros ao alcance dos olhos e das mãos. Podia-se levar apenas dois exemplares para casa, o que significava a ida duas ou mais vezes por semana a fim de devolver e pegar outros volumes. Com o tempo, e a experiência, comecei a tomar livros cada vez mais grossos, no intuito de ir não mais de uma vez por semana. Há de se entender que as condições de se arcar com o custo das passagens de ônibus, de casa ao centro, era algo oneroso para um ginasiano morador da periferia. Minha mãe se esforçava em custeá-las, mas não era justo expô-la a um sacrifício desnecessário. Por mais de vinte anos fui habitué daquela casa, ao lado do antigo Palácio do governo, na Praça da Liberdade. Posto isso, não o escrevo para me vitimar ou coisa que o valha, mas fazer o leitor entender a importância da literatura em minha vida; não fui o melhor leitor, com certeza, e nem sei se sou um bom leitor hoje, entretanto era-me, assim como é, algo indispensável.

Acalentava, havia algum tempo, o desejo de reler “O Idiota”, e apagar algumas das impressões absorvidas e que me fizeram, de certa forma, odiar o protagonista, príncipe Liév Míchkin. Vou explicar: naquele tempo, talvez a imaturidade ou arrogância, sei lá, o herói tinha de ser alguém capaz o suficiente de ser dono do próprio nariz, não quanto à sabedoria ou capacidade de escolhas lógicas e virtuosas, mas à rebeldia, a quebra dos padrões morais e institucionais (sim, a mentalidade revolucionária estava presente e atuante), e nem mesmo o amor poderia ser sacrificial, auto negador e cordial. Talvez a leitura de o “Apanhador no campo de centeio”, poucos dias antes, influenciou na aversão ao príncipe; pois, para mim, era impossível existir uma alma tão pura, benigna, tolerante e pacificadora como a dele... Haveria alguém assim no mundo? Dostoievski não estaria a construir um indivíduo utópico, insólito e extravagante? Quem se disporia a ser assim? Se angustiar e punir por não ser ainda melhor?... Em nada se parecia com o mimado e rebelde Holden, de Salinger. E isso pode ter pesado muito no meu desagravo.

         Havia ainda o fato de Míchkin ser uma personagem completamente despojada de vaidade, orgulho e, pode-se dizer, amor-próprio. A alcunha de “idiota” parecia cair-lhe bem demais, e a isso acabou por acostumar-se e, algumas vezes, reconhecer publicamente. Nem pessoas definitivamente asquerosas e perversas como Rogójin, Ippolit, Liébediev eram afastadas do seu convívio, tratando-as generosa e fraternalmente, perdoando-as mesmo sem que pedissem, enquanto tramavam às suas costas. Para mim, o pior de tudo era o príncipe saber quem eram e seus feitos, de não estar iludido quanto a qualquer um deles, e mesmo assim reservar-lhes clemência, misericórdia, compreensão. Se ao menos estivesse enganado ou desconhecesse suas índoles, ambições e condutas, eu entenderia; mas não era o caso, parecia que quanto mais íntimo de suas indignidades, mais permitia estarem à sua volta, rodeando-o à espreita.

         Pois bem, parte dessas sensações persistiram na segunda leitura, a diferença é que, tendo hoje uma cosmovisão cristã que não tinha à época, consigo entender os motivos pelos quais Dostoievski criou um personagem tão abnegado e altruísta. Ele é o molde, o exemplo de Cristo, e de muitos santos a permear a história. Nitidamente é padrão de santidade que o autor imprime, num momento histórico no qual as pessoas são cada vez mais interesseiras, egoístas e dispostas aos conflitos e vinganças. O príncipe Míchkin é um puro, de uma pureza quase ingênua mas sábia, incapaz de julgamentos apressados, de sentenças imediatas, de rancor e desforra. E assim, aos olhos dos homens comuns, não passa de idiota, incapaz de compreender as pessoas e suas ações, disposto a sacrificar-se pelos pecados alheios, sem qualquer esperança de ser reconhecido em seu esforço. Ele o faz por si mesmo, a sua ética e moral não estão associadas aos favores de outrem, mas exclusivamente pela sua incapacidade de aspirar o mal e ser incompreensível; como se ao presenciar a inaptidão das pessoas em decifrá-lo, em penetrar-lhe o íntimo, o insuflasse a entendê-los em suas desordem. Neste sentido, eles são os idiotas, em seus rompantes e desejos primitivos... Há de se lembrar também o fato do príncipe ter características do Dom Quixote de Cervantes, e até mesmo uma explícita alusão, apelidado por Aglaia, ao compará-lo com o “Cavaleiro Andante”; acabando por ser mais um motivo de zombaria e desprezo no seu círculo (a intenção de Aglaia não é de pilhéria, mas realçar características a tornarem o príncipe tão simpático e, talvez, romântico, aos seus olhos; entretanto, ninguém considera-o dessa forma).

Toda essa ligação religiosa com o cristianismo tem a finalidade de combater o niilismo, sendo aquele o antídoto para este. Em vários momentos, o príncipe discorre sobre o assunto postulando ao cristianismo a superioridade em relação a outros sistemas, em especial a única maneira de combater e erradicar o niilismo das terras russas. Talvez, por isso, em um mundo onde as correntes apontavam para uma existência sem sentido, onde tudo era infundado e reduzido ao materialismo imediato, ele defendia valores incompreendidos e impossíveis numa sociedade viciada pelas aparências e a confusão dos sentidos. Para ele, nada podia ser meramente aparente; nada poderia ser desconectado da essência humana que, em não poucos sentidos se ligava a Deus. Atacado por todos os lados, tentou resistir, mas até mesmo alguém desprendido e generoso se perde em suas dúvidas; não que elas se relacionassem à corrupção ou imperfeição do bem, mas se ele era capaz de consegui-la pelos seus próprios meios e esforços, se não havia nada mais que pudesse fazer a fim de colaborar para a manifestação das mais sublimes virtudes. Ele desejava ser bom não porque isso traria benefícios a si mesmo, mas os direcionava ao próximo, e era o fundamento da natureza humana.

A cena final do livro, em que ele afaga piedosamente a cabeleira de Rogójin, após este cometer desatino movido por vingança e orgulho, demonstra o quanto o príncipe se compadecia, e até certo ponto entendia, o sofrimento e as consequências de vidas tresloucadas, firmadas no individualismo, no egoísmo, na crença de nada ser importante, de não haver fundamentos, se não se pode alcançar... E se o alcança, qual a razão para se tê-lo? Resta, no fim, a loucura, os pecados, a transformar semelhantes em explícitos inimigos. E Míchkin enlouquece, não por si mesmo, mas pela incompreensão que, via de regra, leva-o a não entender a si; e os seus “sacrifícios” são mistérios, quando não ignorados são tratados com preconceito e violência.

Reler, portanto, O Idiota, fez-me encontrar elementos e pontos não identificáveis ou esquecidos nos longínquos anos da primeira leitura. Não é um livro fácil. Suas mais de 700 páginas não devem, contudo, tornar-se empecilho ou entrave para o leitor se privar de um livro magistralmente escrito, onde não se encontra o homem ideal, aos moldes ideológicos e comportamentais planejado neste tempo, como um quebra-cabeças planificado, montado com apenas um modelo de peças, sem se encaixar em nenhuma outra e produzir a imagem geral da humanidade. Dostoievski não produz mentes seriais, clones de um mesmo doador, mas destrincha, investiga, extrai o de mais verdadeiro, e também falso, a habitar este ser dual: indivíduos e suas gentes. Por isso, e o deleite de ver-se, de alguma forma e em alguma proporção, nas personagens  do velho e bom Fiodor somente pode trazer o conhecimento, a intimidade, da qual as gerações posteriores a ele se especializaram em negar, a privar-se; e, assim, como muitos se especializaram, criar um arquétipo de si mesmo, confundir-se e ignorar quem seja e o que seja.

Leitura imprescindível.   

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Avaliação: (*****)

Título: O Idiota

Autor: Fiodor Dostoievski

Tradutor: José Geraldo Vieira

No. Páginas: 712 

Editora: Martin Claret

Sinopse: "O idiota é uma das obras mais comoventes de Fiódor Dostoiévski. Abstrusa para os contemporâneos do escritor, mas atual e compreensível para quem a conhecer em nossos dias, ela conta a história de um jovem aristocrata russo que se atreve a defender o sublime ideal humanista numa sociedade regida pelas leis do livre comércio. Ovelha negra da alta-roda de São Petersburgo, o príncipe Míchkin é tachado de idiota em virtude das suas qualidades morais e acaba perdendo de fato o juízo."




15 fevereiro 2022

Sermão em 2Coríntios 1.3-10: O Deus que consola!

 



Jorge F. Isah


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INTRODUÇÃO


“1. PAULO, apóstolo de Jesus Cristo, pela vontade de Deus, e o irmão Timóteo, à igreja de Deus, que está em Corinto, com todos os santos que estão em toda a Acaia.”


Paulo afirma três coisas:

- Ele é apóstolo de Jesus Cristo, pela vontade de Deus; ou seja, foi chamado por Cristo especificamente para o apostolado. A palavra apóstolo, do grego απόστολος (apóstolos), significa enviado, aquele escolhido diretamente por Jesus e encarregado de levar as “boas novas” aos perdidos. Portanto, não é possível haver apóstolos nominados como tais em nossos dias, já que nenhum deles foi “diretamente” chamado a esse ministério pelo Filho. Qualquer um que se autodenomine “apóstolo” está usurpando o direito exclusivo do nosso Senhor, ferindo a sua autoridade.

- Ele nomeia como testemunha de tudo o que relatará na carga a Timóteo, a quem se refere como irmão;

- E a carta se destina à Igreja de Deus que está em Corinto, mas não somente lá, na cidade, mas em toda a região da Acaia. Para situar os irmãos, Acaia era uma província romana onde hoje é a Grécia Central, e Corinto era a segunda cidade em importância da região, perdendo apenas para Atenas. Havia em Corinto dois portos movimentadíssimos, fazendo dela uma cidade rica, próspera e de intenso comércio.

- Paulo escreveu esta carta por volta do ano 55 ou 56 D.C.


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“2. Graça a vós e paz da parte de Deus nosso Pai, e da do Senhor Jesus Cristo.”

- Paulo saúda os irmãos a expressão equivalente a do A.T., quando os autores se referiam ao Senhor como o “Deus de Abraão, Isaque e Jacó”. Assim, no N.T. temos os autores felicitando os irmãos com a expressão “Deus nosso Pai, e do Senhor Jesus Cristo”, ressaltando a divindade de Cristo e a sua geração eterna pelo Pai.


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“3. Bendito seja o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, o Pai das misericórdias e o Deus de toda a consolação;”

- Paulo louva, glorifica a Deus, utilizando-se da expressão “bendito” que significa “aquele que só faz o bem; aquele que é todo o bem”.

- Antes de relatar as tribulações e lutas, ele exalta a Deus, ao nomeá-lo o Pai das misericórdias ou misericordioso, indicando que Deus não é somente cheio de misericórdia, mas ele é a fonte, a origem de toda a misericórdia.

- Igualmente ele é o Deus de toda a consolação; não há nada nem alguém a suplantá-lo no conforto, na paz e alegria concedidas.



DESENVOLVIMENTO


“4. Que nos consola em toda a nossa tribulação, para que também possamos consolar os que estiverem em alguma tribulação, com a consolação com que nós mesmos somos consolados por Deus.”

- Entramos agora no cerne da nossa meditação: o Deus que consola.

- Primeiro, somos consolado porque somos afligidos, atribulados, entristecidos, perseguidos, torturados. Só haverá consolo se houver tristeza e dor; do contrário, qual o motivo da conforto?

- Segundo, a relação é sempre de Deus para os seus filhos. Assim como amamos porque Deus nos amou primeiro, somos capazes de consolar porque ele nos consola. E neste sentido, sendo o Senhor governante de toda a Criação, podemos compreender que o sofrimento faz parte do plano divino, sendo nós quem infligimos a dor ao nosso próximo.

- Com isso, não estou a dizer que cada um de nós, em sã consciência, batalhamos para fazer os outros sofrerem, não é isso.

- Entretanto, não podemos descartar as consequências da Queda, da desobediência a Deus, e da qual participamos juntamente com Adão, sendo prometido a ele e a nós os efeitos e resultados das nossas transgressões.

(Ler Gênesis 3:11-19 – Discorrer rapidamente sobre o resultado do pecado)

- Ou seja, o mal e todas as suas sequelas são oriundas do pecado, e somente podem ser produzidos pela criaturas caídas, homens e demônios. E essa é a única e verdadeira explicação para o mal, as tristezas, as tribulações neste mundo. E não devemos esquecê-las, no sentido de não florear ou escorregar para desculpas e falsas definições: o mal e a dor são responsabilidade nossa, e imputá-las a Deus é elevar-nos a nossa injustiça ao mais alto nível de pecado e iniquidade.

- Por isso Paulo, em momento algum, reputa a Deus a origem dos males que o assolaram, o sofrimento ao qual foi exposto como mensageiro das boas novas do evangelho de Cristo.

- Podíamos vê-lo se rebelar, lamuriar, maldizer aos céus contra as adversidades e reveses da vida, mas não. Ele não somente glorifica a Deus, mas reputa a ele toda a bondade e misericórdia e consolo com que foi agraciado, fortalecido, e sustentado.

- Veja bem, o apóstolo nos fala de graça sobre graça, algo não merecido e recebido apenas como favor e bondade divinas. Nada mais. Nenhum mérito de Paulo. Nenhum arranjo de Paulo. Nenhum sacrifício de Paulo. Apenas o amor infinito com Deus o amou desde antes da fundação do mundo. Graça imerecida, e por isso, graça apenas, mas também graça completa e plena emanada do bom Deus.

- Nos fala ainda de sermos consolados somos capazes de consolar. Aqui existe claramente a lição de ser o consolo aprendido, algo experimentado e então possível de ser distribuído. Entretanto, não é um consolo fracionado, imperfeito, mas um dom concedido a Deus para cada um disposto a aprender e se submeter ao ensino divino, e, então, levar exatamente o que recebeu; entregar ao próximo aquilo com que foi presenteado, gratuita e amigavelmente, como nos foi dado.



*****


“5.Porque, como as aflições de Cristo são abundantes em nós, assim também é abundante a nossa consolação por meio de Cristo. 6. Mas, se somos atribulados, é para vossa consolação e salvação; ou, se somos consolados, para vossa consolação e salvação é, a qual se opera suportando com paciência as mesmas aflições que nós também padecemos; ”

- Vivemos um mundo hedonista, em que se busca o máximo de prazer em coisas fugazes, seja o sexo, os vícios, o dinheiro, aventuras, ou qualquer outra coisa. O homem moderno busca incessantemente o prazer a qualquer preço, e por isso, por não conseguir se satisfazer plenamente apesar de buscar de todas as formas o gozo, temos milhares, senão milhões de pessoas afogadas nos vícios, em salas de terapeutas que pouco ou nada podem fazer para ajudá-los, entupindo-se com antidepressivos, ansiolíticos, e tantas outras coisas para aplacar, de alguma forma, as frustrações da vida.

- Outra prova de aceitação do conceito hedonista é a Teologia da Prosperidade, a defender propagar o equívoco de que o cristão não sofre, e se sofre é porque não tem fé, pois a tendo, ele viverá neste mundo quase como um Midas, a tornar ouro tudo o que toca. Esse é um grande erro, pois distorce e nega os princípios entregues por Cristo e os apóstolos, ao afirmarem exatamente o contrário:

- Aos cristãos, o Senhor disse que seríamos afligidos, mas jamais derrotados, porque ele venceu o mundo: “Mas não estou só, porque o Pai está comigo. Tenho-vos dito isto, para que em mim tenhais paz; no mundo tereis aflições, mas tende bom ânimo; eu venci o mundo” — João 16.32-33

- O que o Senhor está a dizer? Que ele e o Pai são um, e de que o Pai está sempre com ele, consolando-o e confortando-o, mesmo quando todos fugiram e o abandonaram, ele jamais esteve só. Da mesma forma, Cristo estará sempre conosco, independente de sermos abandonados ou estarmos solitários; porque, se estamos nele jamais nos faltará paz, mesmo nas piores batalhas, nas lutas mais cruéis.

- E isto não pode ser apenas um conceito ou dogma, algo apenas intelectual pois, desta maneira, não seríamos capazes de auxiliar e confortar os aflitos. É algo real, a mover a nossa alma na direção de Deus e por ele ser amparado, protegido.

- Claro que, nenhum de nós quer sofrer, sentir dores ou ser afligido por castigos e perseguições. É óbvio que em nossa humanidade a angustia e lágrimas não deveriam fazer parte da vida. O Cristianismo não defende o masoquismo ou o sadismo, distúrbios psicológicos nos quais o homem sente prazer com o suplício e o martírio de si próprio ou do próximo. Não é isso.

- Mas, certamente, você já se deparou com doenças, a morte, a destruição de pessoas e lares pelo vício, a perseguição no trabalho, o desemprego, a fome ou qualquer ou desgosto e tragédia. Podemos simplesmente lamentar e rebelar quando for pessoal; podemos ignorar ou evitar quando for o próximo; mas esta seria a realidade a qual Deus nos chamou?

- Sendo sal e luz neste mundo, devemos propagar o sabor e o brilho de Cristo. E a mensagem dele não é um placebo, como os céticos afirmam, mas factual, efetiva e terapêutica, no sentido de ser o único remédio eficaz para a dor e o sofrimento.

- Se somos participantes das aflições de Cristo também o seremos da consolação.

- Se o próprio Senhor sofreu, por que não sofreríamos também? Ele, justo, santo e perfeito, em sua humanidade passou por inúmeras dores e aflições, seria justo não passarmos também?

- Aqui encontramos o princípio de Cristo ter padecido para ser capaz, também, de consolar. Como está escrito:

“Assim também Cristo não se glorificou a si mesmo, para se fazer sumo sacerdote, mas aquele que lhe disse: Tu és meu Filho, Hoje te gerei. Como também diz, noutro lugar: Tu és sacerdote eternamente, Segundo a ordem de Melquisedeque. O qual, nos dias da sua carne, oferecendo, com grande clamor e lágrimas, orações e súplicas ao que o podia livrar da morte, foi ouvido quanto ao que temia. Ainda que era Filho, aprendeu a obediência, por aquilo que padeceu. E, sendo ele consumado, veio a ser a causa da eterna salvação para todos os que lhe obedecem”(Hb 5.5-9)



*****


“8. Porque não queremos, irmãos, que ignoreis a nossa tribulação que nos sobreveio na Ásia, pois que fomos sobremaneira agravados mais do que podíamos suportar, de modo tal que até da vida desesperamos. 9. Mas já em nós mesmos tínhamos a sentença de morte, para que não confiássemos em nós, mas em Deus, que ressuscita os mortos. 10. O qual nos livrou de tão grande morte, e livra; em quem esperamos que também nos livrará ainda”

- O apóstolo então começa a descrever os infortúnios e ameaças sofridas na Ásia. Para ele, Ásia significava a Ásia Menor ou Turquia, local onde ficavam as sete igrejas das cartas do Senhor Jesus no livro de Apocalipse, cuja capital era Éfeso.

- Paulo relata aos irmãos ter passado por grande tribulação. A ideia não é se vitimar ou queixar-se e chamar sobre si a atenção da igreja, a se vangloriar dos sofrimentos infligidos.

- A ideia é antes de tudo mostrar que sendo apóstolo de Cristo sofria como Cristo sofreu, e se ele era capaz de suportar, pela graça de Deus, tamanho sofrimento, também os crentes não estavam isentos da dor e angústia.

- Poucos homens passaram por tantas provações em seu ministério como o apóstolo. Um pouco mais à frente, neste livro, ele relata:

“22. São hebreus? Também eu. São israelitas? Também eu. São descendência de Abraão? Também eu. 23. São ministros de Cristo? (Falo como fora de mim) Eu ainda mais: em trabalhos, muito mais; em açoites, mais do que eles; em prisões, muito mais; em perigo de morte, muitas vezes. 24. Recebi dos judeus cinco quarentenas de açoites menos um. 25. Três vezes fui açoitado com varas, uma vez fui apedrejado, três vezes sofri naufrágio, uma noite e um dia passei no abismo; 26. Em viagens muitas vezes, em perigos de rios, em perigos de salteadores, em perigos dos da minha nação, em perigos dos gentios, em perigos na cidade, em perigos no deserto, em perigos no mar, em perigos entre os falsos irmãos; 27. Em trabalhos e fadiga, em vigílias muitas vezes, em fome e sede, em jejum muitas vezes, em frio e nudez. 28. Além das coisas exteriores, me oprime cada dia o cuidado de todas as igrejas. 29. Quem enfraquece, que eu também não enfraqueça? Quem se escandaliza, que eu me não abrase? 30. Se convém gloriar-me, gloriar-me-ei no que diz respeito à minha fraqueza.”

- Além dos perigos físicos, perseguições, torturas, atentados e tantos outros perigos, Paulo se afligia com o cuidado da Igreja, com as lutas dos irmãos, a fim de cumprir completamente o ministério recebido do nosso Senhor, sabendo que ele era quem o sustentava.

- Ele entendia que o sofrimento era parte da vida cristã; E que Deus usava-o com dois objetivos:

a) Disciplinar, conforme nos diz o próprio apóstolo:

“E já vos esquecestes da exortação que argumenta convosco como filhos: Filho meu, não desprezes a correção do Senhor, E não desmaies quando por ele fores repreendido; Porque o Senhor corrige o que ama, E açoita a qualquer que recebe por filho. Se suportais a correção, Deus vos trata como filhos; porque, que filho há a quem o pai não corrija? (Hb 12.5-7)


b) Ensino, aprendizado; e este é o teor deste capítulo da epístola, revelar que somente aquele que sofre e é consolado pode consolar o próximo em seu sofrimento.

- Paulo diz que ele sofreu de maneira insuportável, na Ásia. Quanto a isso, não existe consenso entre os eruditos. A maioria aponta para o incidente descrito no livro de Atos 19.23-41, quando, insuflados por Demétrio, um ourives, toda a cidade de Éfeso se levantou contra Paulo, por causa da deusa Diana.

- O apóstolo não foi específico quanto ao incidente, podendo ser esse ou outro, mas talvez a reunião de todos eles, como descreveu no capítulo 11.

- E ele fala de “sentença de morte” contra ele, de maneira que a vida se lhe tornou desgostosa. E uma sentença tão terrível, quase as portas da morte, que ele compara o livramento, a libertação de Deus daquele sofrimento, como a ressurreição dos mortos. Ele não está a falar na ressurreição no fim dos tempos, quando todos seremos renovados, ganharemos novos corpos, e seremos santos e perfeitos como é o Senhor Jesus. Mas ele equipara a “salvação” divina daquela morte como a ressurreição, tala forma como ela se apresentava para ele, inexorável, inevitável.

- Mas havia uma razão, e sempre existe, para nos sentirmos frágeis e incapazes diante das contingências da vida: porque não somos nada sem a graça de Deus.

- Sim, é a graça divina operando em nós que nos torna fortes e capazes de vencer as lutas; na verdade, vencemos porque, como o Senhor Jesus disse, ele venceu e nos deu a vitória a nós. A vitória é sempre dele, e é por ele que alcançamos êxito nos piores momentos, nas piores crises, para não depositarmos a confiança em algo indeciso e hesitante: nós!

- Por isso, a ordem é para confiar em Deus, e somente nele depositarmos todas as nossas esperanças, porque ele prometeu cuidar de nós, como Pai zeloso; ele nos prometeu jamais nos abandonar, e de sermos um com ele; e descansarmos, repousarmos em sua segurança e poder e amor.

- Paulo, certa vez, pediu ao Senhor para tirar-lhe um espinho na carne, e por três vezes orou; qual foi a resposta de Deus? “A minha graça te basta!” (2 Co 12.7-9).

- Entendamos isso de uma vez por todas, a graça de Deus é tudo, e ela não somente deve mas tem de nos bastar, mesmo que afligidos, como o apóstolo por um incômodo, doloroso e vergonhoso espinho na carne. E Deus usou esse flagelo para aperfeiçoar, para fortalecer Paulo, fazendo com que o poder de Cristo habitasse nele.


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10. "O qual nos livrou de tão grande morte, e livra; em quem esperamos que também nos livrará ainda"

- Por fim, para concluir este estudo, é-nos dito pelo apóstolo, na esperança e certeza das promessas divinas, que o livrou, no passado, aquela morte líquida e certa de que foi salvo; e livra, significando que no presente, naquele momento em que Paulo escrevia a epístola, Deus o estava libertando de outros perigos, de novas ameaças; e ainda de futuras, pois havia a certa de que Deus o livrará novamente.


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CONCLUSÃO

- Evidente que, em certo momento, as perseguições e perigos alcançaram o apóstolo de tal maneira que Deus não o livrou. O preço do pecado é a morte; e mesmo santificado, resgatado e expiado pelo sacrifício de Cristo, Paulo morreria, como morreu. Preso pelos romanos, foi a julgamento e condenado à decapitação, como a História Eclesiástica de Eusébio de Cesareia, relatou.

- Mas, certamente, a morte definitiva não o alcançou. A separação eterna de Deus havia sido anulada pela graça e o sacrifício de Cristo; e a promessa de estar com ele por toda a eternidade se cumpriu fielmente naquele dia, quando teve o pescoço decepado. Já não mais haveria sofrimento, ou dor, ou ameaças contra ele. Usando as palavras do Senhor Jesus, Paulo poderia dizer: está consumado, pelo amor e graça do meu Senhor.

- Foi ele pois, um homem de dores como era também Cristo, que escreveu:

“33. Quem intentará acusação contra os escolhidos de Deus? É Deus quem os justifica. 34. Quem é que condena? Pois é Cristo quem morreu, ou antes quem ressuscitou dentre os mortos, o qual está à direita de Deus, e o que também intercede por nós. 35. Quem nos separará do amor de Cristo? A tribulação, ou a angústia, ou a perseguição, ou a fome, ou a nudez, ou o perigo, ou a espada? 36. Como está escrito: Por amor de ti somos entregues à morte todo o dia; somos reputados como ovelhas para o matadouro. 37. Mas em todas estas coisas somos mais do que vencedores, por aquele que nos amou. 38. Porque estou certo de que, nem a morte, nem a vida, nem os anjos, nem os principados, nem as potestades, nem o presente, nem o porvir, 39. Nem a altura, nem a profundidade, nem alguma outra criatura nos poderá separar do amor de Deus, que está em Cristo Jesus nosso Senhor.” (Rm 8.33-39)

- Para o próprio Paulo concluir com mais outro escrito:

“55.Onde está, ó morte, o teu aguilhão? Onde está, ó inferno, a tua vitória?... 57. Mas graças a Deus que nos dá a vitória por nosso Senhor Jesus Cristo.” (1Co 15.55; 57)

- Honra, glória e louvor ao nosso Senhor Jesus Cristo!

- Que ele nos fortaleça e capacite a, assim como somos consolados em nossas tribulações, também consolemos aqueles que estão sofrendo, sempre com a verdade e boas novas e promessas do Evangelho de nosso Senhor!

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Notas: 1 - Sermão ministrado no Tabernaculo Batista Bíblico

2- Para ouvir o áudio da pregação, clique no link   

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