Jorge F. Isah
Imagino a receptividade e a comoção gerada pelo
lançamento do romance de Faulkner, em 1931, na América. O assunto versa sobre o
estupro de uma jovem e como isso afetou a vida de inúmeras pessoas. O ambiente
é o sul dos EUA, nos momentos finais da Lei Seca, onde a degradação moral,
ética e, sobretudo, espiritual, descreve o estado de miséria, perturbação e
desequilíbrio em uma sociedade marcada pelos “novos” ventos da modernidade e ruptura das tradições. Este livro,
guardadas as devidas proporções, é a conclusão, melhor, o aperfeiçoamento e
amadurecimento em relação aos temas originalmente propostos por Fitzgerald e a
geração perdida, no início dos anos 20.
O primeiro terço do livro é de tirar o fôlego,
digno de um manifesto de horror e terror. É impossível conter e não se
impressionar com as descrições e o clima caótico e claustrófobo, descomedido e
perverso no qual o casal de amigos se vê arrostado pelos moradores de um
alambique clandestino. Lembre-se, os EUA viviam a proibição do álcool, e o que
se viu foi a proliferação de destilarias e bares ilegais, onde o consumo não
somente era possível como a corrupção se encarregava de deixar tudo “legítimo”, a seu modo. E havia toda
uma sorte de crimes associados a ela.
Temple e Gowan, este um bêbado inveterado, egoísta
e bufão, faz tudo por um gole e a satisfação do seu desejo. Temple é a
adolescente ingênua, excessivamente vaidosa (sempre com o seu espelhinho e
maquiagem), mas isso em certas circunstâncias que, alteradas, transfiguram-na.
Não que ela perca ou suprima todas as suas peculiaridades, existem coisas que
se leva para a vida toda, mas assim como o papel de vários personagens vai se “moldando” no decorrer da narrativa,
Temple não resistirá à sua própria natureza, a tomá-la de assalto, como se ela
mesma fosse refém de si.
Procuro, na medida do possível, manter um certo
mistério; em geral, há êxito, mas nem sempre. A verdade é que a história nos
pega de uma maneira onde abandoná-la é inconcebível. De todos os livros de
Faulkner, os lidos, claro, este foi, juntamente com “Luz
em Agosto”, a me deixar mais impressionado com o estilo
e complexidade, não apenas narrativa, mas temática e profundamente
desenvolvidas.
Seja ao acentuar e potencializar certas
personalidades e apresentar outras de maneira indecisa e apática (e não raro,
esses aspectos alternam-se, a não deixar o autor um mero replicante da sua
moralidade); entender os enredos de Faulkner não é a garantia de que as
aparências são somente aparências. Ao lançar o leitor no mundo caótico, imoral,
às vezes sensível, quase sempre trágico e ironicamente cruel e paradoxal, o
leitor se vê às voltas com uma profusão de ambiguidades, hipérboles e
subjetividades a demolir o cartesianismo, e por tabela o sentimentalismo,
presente no imaginário de escritores e leitores modernos. No final, não ficará
pedra sobre pedra, mas se terá material suficiente para, ajuntado, erguer algo
novo, ainda que o novo não seja originariamente inédito, já que isso não existe
“debaixo do céu”, tal qual
afirmou o Pregador.
Do ponto de
vista faulkneriano, a resposta para o desenrolar da vida é metafísico, mas
fatalista, quase determinista, se não houvesse as implicações de agentes e
pacientes a alterarem o curso das coisas dentro do fluxo previamente
estabelecido. Ao que parece, o início e o fim estão definidos pelos deuses do
destino, enquanto os meios, as causas secundárias, estão ao sabor dos ventos
humanos. Se não, por que uma espécie de “chefão”, homem rico e poderoso, mas impotente, se daria ao luxo de
empreender uma saga a fim de manter uma amante? Ou o acusado de homicídio se
sujeitaria à morte por medo de morrer pelas mãos do verdadeiro assassino? Ou a
mulher humilhada, até o último momento, se mantém fiel ao seu algoz? Na
simplicidade ou reducionismo dessas súmulas, o autor tece um emaranhado denso,
complexo e intricado, que nenhuma imagem jamais será capaz de falar, seja por
uma frase ou parágrafo.
Faulkner descreve o mundo não preparado para os
homens, e homens não preparados para o mundo; não importa quem seja, o que
seja, quanto tenha ou não, a vida está muito além da superfície e, como o mar,
esconde enigmas que se não são impenetráveis, demandará empenho e compromisso.
Em Santuário temos o sagrado aos olhos de Deus, o
homem como o ápice da criação; para Faulkner, ele foi profanado. E não haverá
nenhum “santo” que sobreviva.
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Nota: Este não é um livro presente
nas listas dos melhores de Faulkner, onde “Luz em
Agosto”, “O Som e a Fúria, “Enquanto Agonizo” e “Absalão” são os mais, digamos,
populares. Não li ainda o último, mas “Santuário” não está a dever a nenhum deles, pelo contrário, em vários
aspectos é melhor. Acredito que do ponto de vista “bestseller”, algo que Faulkner jamais se propôs a fazer, ele facilmente
seria o seu livro mais “palatável”.
Ainda assim, é o mesmo que comer espinha de peixe incandescente com pimenta jalapeño
e tomar um suco de vidro moído. Infelizmente, está esquecido pelas editoras, e
somente edições mais antigas, de mais de 20, 30 anos, estão disponíveis em
sebos. Merecia, certamente, a atenção e uma nova edição. Mas como Faulkner não
é politicamente correto, ou empenhado na militância ideológica, política e
social, editores podem torcer o nariz e deixar o público ainda mais órfão de
escritos universais, a expor a humanidade como ela é, e não como alguns querem
que seja. No frigir dos ovos, até mesmo aqueles que acham estar ganhando,
acabam perdendo o que não têm.
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Avaliação:
(****)
Título:
Santuário
Autor:
William Faulkner
Editora:
Abril Cultural
Páginas:
258
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