29 novembro 2025

Jack Lemmon: a felicidade não se compra

 





Jorge F. Isah
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Lembro-me de, ainda criança, esperar todos em casa dormirem para ligar a TV, uma Zenith valvulada de 24”, por volta das 22:30 h, para assistir à antiga “Sessão Coruja”, na Globo. Antes, observava se meus pais estavam dormindo, caso o velho não estivesse roncando, o que era facilmente perceptível quando ocorria. Depois, me dirigia à sala, ligava o transmissor, diminuía o volume e me encostava à tela, esperando um antigo clássico em preto e branco.

Raramente, mesmo tendo 11, 12 anos, dormia antes da madrugada. E assim, vivia a aventura de, furtivamente, desobedecer aos patriarcas e me deliciar com os grandes nomes do cinema, e seus filmes maravilhosos.

Um dos meus atores prediletos à época, e que se conservou, era Jack Lemmon. Em muitos aspectos, Lemmon me fazia lembrar os maneirismos de Ronald Golias, o Bronco (para mim, um dos maiores comediantes brasileiros), sem o exagero tão acentuado. Talvez, a minha admiração pelo americano estava intrinsecamente ligada à simpatia com o brasileiro, a quem conheci muito antes de sequer ouvir falar de Jack Lemmon.

Hoje, provavelmente a maioria o desconhece e, desgraçadamente, se priva de acompanhar um dos maiores atores de todos os tempos.

Mas, quem ele foi?

Jack Lemmon nasceu em 1925, em um elevador na cidade de Boston, Massachusetts. Diz a lenda, que a sua mãe, Mildred Burgess LaRue (casada com John Uhler Lemmon Jr.), quase em trabalho de parto, se recusou a abandonar uma partida de Bridge e, portanto, não houve tempo suficiente de instalá-la numa adequada sala hospitalar. Algo inusitado, mas com algum simbolismo, já que o recém-nascido, mesmo antes de vir ao mundo, “galgou” rapidamente o píncaro, e isto marcaria a sua ascensão ao estrelado cinematográfico.

Autodidata, aprendeu, ainda criança, a tocar piano, gaita, órgão, guitarra e contrabaixo. Formou-se em Ciências Políticas, na prestigiada Universidade de Harvard, mas, desde cedo, sempre almejou tornar-se ator, fato a acontecer tão logo terminou a sua participação, como voluntário, na Segunda Guerra. Começou na TV, em uma série intitulada “That Wonderful Guy”, em 1949.

O primeiro filme, em 1954, foi “Demônio de Mulher” e, já em 1955, aos 30 anos, ganhou o Oscar de melhor ator coadjuvante, com o filme “Mr. Roberts”, com direção de Richard Quine. Indicado 8 vezes, em 1973, ganhou a estatueta de Melhor Ator, em “Sonhos do Passado”.

Trabalhou com os maiores diretores de sua época, em especial se destacam as parcerias com Billy Wilder (7 filmes, entre eles os clássicos: “Quanto mais quente melhor”, “Se meu apartamento falasse” e “Irma La Dulce”), Richard Quine (5), Blake Edwards (3). Mais conhecido por suas comédias (também excelente ator dramático, vide as atuações em “Vício Maldito”, “Síndrome da China” e “Missing”, p. ex.), estão entre as melhores de todos os tempos, e de parcerias famosas com Marilyn Monroe, Tony Curtis, Shirley MacLaine, e a mais famosa foi, sem sombra de dúvidas, com Walter Matthau: participaram de 10 filmes, e Lemmon o dirigiu em “Ainda há fogo sob as cinzas” (1972). Nos anos 90, protagonizaram filmes onde se riam de si mesmos: “Dois velhos rabugentos” e “Dois velhos mais rabugentos”, onde contracenaram com outro grande ator, Burgess Meredith, o impagável “Pinguim” da série Batman, e o treinador de Rocky Balboa, nos filmes Rocky I, II, III e V.

Carismático, engraçado, gentil e cooperativo, levava a qualquer set de filmagem não somente o seu inegável talento, mas também a sua personalidade serena e cordial. Modesto, se definia como um “operário da arte cinematográfica”, a despeito dos inúmeros prêmios e depoimentos de críticos e colegas, que o reputavam um gênio das artes cênicas.

Certa vez, perguntaram a Billy Wilder o que era felicidade, e ele prontamente respondeu: “trabalhar com Jack Lemmon”.

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Algumas frases célebres:

 

"Não importa quão bem-sucedido você seja, sempre mande o elevador de volta."

"Minha carreira foi cheia de coincidências notáveis ​​que não têm nada a ver comigo."

"Ninguém merece muito dinheiro, certamente não um ator."

“Algo, com certeza, vale a pena se não for fácil. Se for, não deveria valer a pena.”

“Eu preferiria atuar em Hamlet sem ensaio do que jogar golfe de TV.”

"É difícil escrever um bom drama, e muito mais difícil escrever uma boa comédia, e mais difícil ainda escrever um drama com comédia. Que é como a vida é."

“Morrer não é pecado. Não viver, é.”

“Falhas não param você. O que para é o medo de falhar”.

“Não tinha desejo de estar no cinema. Todo o meu treinamento foi para o teatro, graças a Deus.”

“A morte é o fim da vida, não um relacionamento.”

“Nunca perdi a paixão total pelo meu trabalho.”

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20 novembro 2025

Submissão - Michel Houellebecq

 




Jorge F. Isah

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Li este livro em 2016, mas, diante das guerras atuais, especialmente o embate entre os grupos terroristas do Hamas, Hezbollah e outros, financiados pelo Irã contra Israel, resolvi aprofundar-me mais em “Submissão” (que em árabe significa Islã), o livro que trata exatamente da invasão muçulmana à França e o fim iminente do que poderia se chamar Ocidente nas próximas décadas.

O autor, Houellebecq, já foi acusado de praticamente tudo e, até mesmo, de ao fazer literatura com nítido viés de aversão e rejeição às pautas humanitárias, ganhar milhares de euros e dólares. A intenção seria causar terror, preconceito e perseguição aos inocentes e bem-intencionados islamitas.

Muitos torcem o nariz, outros o consideram frouxo em suas denúncias, e ainda há aqueles que o têm como porta-voz da derrocada europeia atual.

Gosto de literatura e não me importo se existem fatores à direita ou à esquerda, desde que escrita com apuro e qualidade. Ao revelar os problemas e caminhos que o Ocidente está a trilhar, ela se torna ainda mais necessária e ampla. E o multiculturalismo, com todos os equívocos (e mínimos acertos), seja na Europa, América ou Brasil, é um assunto sobre o qual deveríamos nos debruçar e analisar sem os clichês e paixões nos quais o pensamento moderno se habituou e estagnou.

Por mais que o considere um romance atual, pois trata da invasão cultural e, por que não, militar, algo que já foi decantado e alardeado há décadas por grandes intelectuais como Theodore Dalrymple, Roger Scruton, Olavo de Carvalho, entre outros, nunca é demais escrever sobre o assunto.

Por mais que trate do domínio islâmico no Velho Continente, os atentados, estupros, linchamentos e a implantação da Sharia na Inglaterra, França e Alemanha sejam uma realidade.

Por mais que fale da vitória de um partido, a Fraternidade Muçulmana (aliada ao Partido Socialista Francês), assumindo o poder político do país e rapidamente mudando a legislação e aplicando as suas leis.

Por mais que ele discuta algumas ideias em meio a uma descrença e niilismo do personagem principal, François, que se vê rapidamente cooptado pela liderança muçulmana; ainda assim, o livro de Houellebecq, apesar da propaganda alardeada de escritor polêmico, me pareceu aquém das expectativas.

Em meio às críticas de ser ultradireitista, chocante, divisionista, xenófobo, controverso etc., pela mídia esquerdista/liberal, suas alianças e intenções nada morais, e por aqueles que veem mas fingem não ver, esperava algo do tipo um desnudar, um escancarar da "colonização" islâmica na França, revelando suas táticas, violência e o nítido interesse de destruir a civilização ocidental, com a chancela de muitos cidadãos europeus. Em parte, a narrativa obteve êxito.

Contaminados por discursos década após década, o cidadão comum, e mesmo um “intelectual” tal qual François (leciona na Universidade de Paris, através do benefício de bolsas, e nunca teve um emprego de verdade), não é de se estranhar o escândalo e protestos gerados pelo livro. Anestesiados, não conseguem ver além do próprio nariz, enquanto ateiam fogo em si mesmos, na sua cultura e história.

Certa vez, vi a declaração de um ex-militar israelense (e aqui a razão de aprofundar o assunto de “Submissão”) de que, enquanto os muçulmanos querem o domínio, controle e conquista do Ocidente, o liberal cheio de "não me toques" e higiênico quer eleição, e será por ela que o Islã ganhará seus novos territórios. Alguém duvida? Várias cidades espalhadas na América e Europa têm o seu quinhão de governantes oriundos do Islã. A implosão se dá de dentro para fora, seja em metrôs, aviões, prédios ou nas urnas. A democracia tão venerada, frágil e ineficiente, é a mesma a suicidar-se ao dar lugar à teocracia.

François, após ser defenestrado da cadeira na universidade, foi cooptado em troca de se “converter” ao Islã, ganhando três vezes mais do que antes. E assim, boa parte da intelligentsia está disposta a se “sacrificar” por si mesma.

São também os mesmos progressistas que defendem o terror do Islã, encobrem os seus pecados mais hediondos, os crimes mais abomináveis, e demonizam Israel que, como a França de Houellebecq, é democrata e morrerá com a corda que pôs no próprio pescoço. É claro que não estou a falar de escatologia ou do Israel de Deus, mas analisando os fatos friamente. E eles estão aí para todos verem. Basta querer. E é nesse aspecto, ao descrever o protagonista como o homem moderno sem padrão, sem limites, sem domínio, sem sentido, que o autor se sobressai. François é a derrocada do Ocidente; o homem não somente dominado pelo poder político, mas pela própria fraqueza, imoralidade, maleabilidade para aceitar ou fazer vistas grossas ao mal. Isso vale para todos nós que repetimos diariamente a frase atribuída a Martin Luther King: “O que me preocupa não é o grito dos maus, mas o silêncio dos bons”. Por essas e outras, não me simpatizo em nada com o liberalismo e o seu viés mais radical, o libertarianismo, que visa apenas o sucesso e conquista material, achando que um governo economicamente menos interventor é a solução de todos os problemas, enquanto “pregam” o relativismo moral e o fim dos padrões culturais, religiosos e tradicionais. O que recebem com uma mão acabam por dar com as duas. Tudo é "menos Estado", como se o entrave fossem as leis e não o tipo de leis, e cada um pudesse viver a seu bel-prazer, desde que não se prejudique ninguém... Tá, cara-pálida! Quando o despertador vai tocar?!... Acham que tudo se resolve com o voto, mas, e a qualidade desse voto?

Para resumir, basta uma olhada ao redor e ver onde o relativismo e os votos nos fizeram chegar; muito mais rápido do que alguém, em sã consciência, pudesse imaginar.

François é este homem: vazio, oco, como T. S. Eliot escreveu em seu famoso poema. Um “maria-vai-com-as-outras”, desde que lhe sejam concedidas algumas vantagens. E se vender bem é, no final das contas, a melhor jogada. Com isso, em seu niilismo, multiculturalismo, relativismo, anticristianismo e tudo o mais de fétido que a modernidade construiu, ele se “converte” ao Islã, pensando no gordo salário e nas mulheres com quem se casará. Não é difícil imaginá-lo a rezar o “salat”... submisso e conformado.

Ao terminar a leitura, fiquei me perguntando se aquela descrição e alerta resultariam em um abrir de olhos do leitor: sinceramente, fiquei em dúvida.

Os mais otimistas o viram como um promotor de ideias e, como tal, achei-as, em algum sentido, perdidas em sua própria denúncia. Como um livro polêmico (talvez para a sociedade pós-cristã e ocidental, como a francesa, mas ainda distante da brasileira), pareceu-me quase inofensivo em sua denúncia escandalosa.

Na verdade, não gostei mesmo da narrativa; ela se desenvolve meio sôfrega e não me cativou na maior parte do tempo. Chego a concluir que é um livro mal escrito, não é uma porcaria, evidente, mas está longe dos grandes autores e clássicos. Pareceu-me frio, distante, mas entre o frio e o morno, que não é uma coisa nem outra, é preferível a contenção da geladeira. Esperava mais, sobretudo pela crítica favorável ao estilo e prosa de Houellebecq, e também sobre o enredo proposto.

No final das contas, talvez se eu não tivesse ouvido falar tanto de "Submissão", sem uma expectativa de que leria uma obra incomum, muito superior ao que se tem escrito mundo afora, seria possível o livro me agradar mais. A propaganda, neste caso, não funcionou a contento.

Resumindo: "Submissão" não é um livro ruim, longe disso, mas não é tudo o que dizem. Ele abarca muitos elementos existenciais, culturais e políticos que levam à reflexão. Porém, ficou um gostinho de "quero mais", que o autor pode corresponder em sua próxima obra ou, quem sabe, em uma releitura.


Avaliação: (★★★)

Título: Submissão
Autor: Michel Houellebecq
Editora: Alfaguara
Páginas: 256


03 novembro 2025

Jim Jones - Jeff Guinn

 





Jorge F. Isah

  

      Já ouviu de Jim Jones?...

      Se pudesse resumir a figura de Jim Jones em uma frase: ele foi um vigarista!... Não, um apóstata!... Um psicopata!...  Um assassino!... Talvez essas e mais outras tantas o retratariam, mas fato é que Jim Jones, passados  quase 50 anos do massacre em Jonestown,  permanece um enigma. Para alguns foi um líder socialista. Outros, o próprio deus reencarnado. Ainda outros, esperança. Foi cabo-eleitoral. Ativista de direitos das minorias. Mensageiro de uma nova ordem. Porém, quem era mesmo?

      Nascido James Warren Jones, em Randolph, Indiana, aos 13 de maio de 1931, filho de James Thurman Jones e Lynetta Putnan. O pai foi ex-combatente na 1ªGrande Guerra e sofreu com as sequelas das trincheiras, tendo sérios problemas nos pulmões que o debilitavam e impediam de executar tarefas físicas. Tornou-se alcoólatra e um pária que dependia da assistência estatal e do salário da esposa, apesar de vir de uma família rural e financeiramente estável. Lynetta era um caso à parte. Trocou várias vezes o próprio nome, se dizia descendente dos Cherokees, e vivia enaltecendo a sua origem, empregos e feitos que nada tinham a ver com a realidade. Fantasiava a fim de satisfazer-se e de minimizar o próprio autodesprezo: uma forma de não ser obrigada a aceitar o que todos viam, mas se recusava a ver.

      Com isso, Jim vivia a perambular pelas ruas; era alimentado pelos vizinhos; muitos o recebiam durante o dia enquanto a mãe estava no trabalho e o pai no boteco. Algo que a pequeno vilarejo de Lynn se dispôs a fazer, mesmo a família Jones sendo vista como esquisita. O pai era vítima da guerra, um combatente necessitado de piedade e, por isso, ganhou a simpatia de todos. Lynetta, pelo contrário, era arrogante, desbocada e grosseira, as vezes estúpida, falava o que lhe dava na teia e não raro exaltava a sua sinceridade, quando na verdade era apenas insolente e rude. Os Jones também não frequentavam nenhuma igreja e não professavam nenhuma fé, algo inusitado em uma comunidade maciçamente cristã.

      Aos domingos, a mãe de Jim ficava em casa, o pai era visto no mesmo bar, enquanto os demais moradores se distribuíam nas congregações da região.

Jim, desde pequeno, tinha uma obceção pela morte, e fazia questão de frequentar todos os cultos, em todas as igrejas. Era possível vê-lo saindo de uma em direção a outra e assim sucessivamente. Chegou a se batizar em várias delas. Reunia os amiguinhos para sepultar animais mortos, momento em que pregava e entrega as suas almas. Com o tempo, passou a matá-los, e seus longos sermões afastaram de vez a assistência.

Desde a adolescência, leu muito sobre socialismo, comunismo e nazismo, tendo Lenin, Stalin e Hitler como seus ídolos, e Mao Tsé-Tung por herói. Cada vez mais se interessava por assuntos ligados ao racismo, à pobreza, e acreditava que o objetivo de Jesus era trazer a igualdade entre todos os homens; com isso, o alvo das suas “pregações” eram os pobres e miseráveis e negros e índios, cujas expectativas Jim queria suprir. A ideia de um mundo igualitário não era uma armadilha para apanhar incautos, no início, mas no decorrer da trajetória “messiânica” ele simplesmente os manipulava ao seu bel-prazer, com o fim de sustentar o seu poder e o culto pessoal.


   Se antes havia uma “sinceridade” propositiva, de auxiliar os mais necessitados, a sua moral deturpada, a falta de noção do pecado, a confusão e desordem quanto ao conhecimento de Deus e o valor da santidade, aliado ao ensino e vida de seus ídolos, levou-o às concepções e táticas mais ditatoriais e manipulatórias vistas por um prócer religioso. Na verdade, em entrevista em 1977, Jones afirmou categoricamente nunca ter acreditado em Deus, de Cristo ser o promotor do socialismo e somente isso lhe interessava. Os relatos dos dissidentes e sobreviventes do massacre na Guiana não deixam dúvida: a religião do “Templo do Povo” era apenas a fachada para a insurreição socialista na América. Estava criado o “socialismo apostólico”.








      
     Arregimentou centenas de adeptos com sua figura carismática, os falsos milagres, e profecias que anunciavam um ataque nuclear soviético iminente em 1967. A ideia era lançar o terror, o medo, e assim cooptar novos membros e manter os fiéis. Enquanto isso, atacava outra frente, ao unir-se a movimentos negros, distribuir refeições gratuitas diariamente, e controlar asilos no estado de Indiana. Além das doações, quando defendia que os membros deviam abrir mão de todos os seus pertences em favor do “Templo”, boa parte das receitas baseavam-se nos auxílios previdenciários de aposentados. Os cheques dos seguros sociais eram entregues diretamente para ele.

Uma boa intenção à princípio levou Jim a gradualmente extorquir e se apoderar dos recursos dos membros, com o mote de criar um paraíso terreno, já que não existia o celestial. A sua capacidade não pode ser desprezada, já que não alcançava apenas a ralé social, mas incorporou ao seu séquito contadores, engenheiros, médicos, jornalistas, políticos e ocupou cargos na prefeitura de Indianápolis e São Francisco. Foi bajulado por candidatos à promotoria, câmaras legislativas e, até mesmo, pela esposa do futuro presidente Jimmy Carter, Rosalynn, e o candidato a vice, Walter Mondale.

Era ferrenho defensor do grupo “Panteras Negras”(de viés marxista-leninista), que, em meio ao discurso de justiça e promoção dos direitos sociais, tornava-se mais e mais violento e agressivo, a ponto de torturar e matar desafetos. Eles foram a inspiração para Jim Jones, que se tornava também cada vez mais paranoico, acreditando que o governo americano o perseguia, a criar a sua própria segurança armada, um pequeno exército a serviço do pavor e coação. Segundo os critérios do próprio líder, que não precisava de provas ou investigação para transformar um aliado em inimigo, qualquer um podia ser “abordado” pela tropa, num claro sinal de ameaça.

Em certo momento, no início dos anos 1960, Jim quis migrar o templo para o Brasil, e escolheu Belo Horizonte para sede (em uma lista das cidades mais seguras do mundo, para o caso de haver um ataque nuclear). Veio com a esposa e braço direito, Marceline, os filhos naturais e adotivos (a “família arco-íris” se compunha de crianças de origem coreana, indígena e negra, além dos legítimos). Contudo, se no país natal era um líder em ascensão, em meio ao espírito naturalmente bagunçado do brasileiro, que não tinha qualquer ligação com as pautas sociais e políticas americanas, viu-se apenas como mais um missionário. Não conseguiu apoio do governo, políticos, e muito menos da elite mineira. Desiludido, dois anos depois foi para o Rio de Janeiro onde também passou ileso, a não ser por prostituir-se, com o consentimento ainda que consternado de Marceline (sua esposa), ao dormir com uma ricaça e levantar fundos de US $ 5.000,00 para um orfanato. É aquela história pragmática dos meios justificarem os fins, quando a amoralidade encontra a melhor, talvez a mais oportuna, justificativa para o desejo intolerável.

De volta, criou uma comuna, em Mendocino, na Califórnia.  O local era quase um campo de concentração: havia toque de recolher, as visitas não eram permitidas, sair somente com autorização; a correspondência dos membros era vigiada e, se necessário, censurada; os telefonemas eram rigorosamente controlados; a ordem era trabalhar e se dedicar integralmente às atividades da comuna e, nos “sermões”, Jones sempre batia na tecla do “nós contra eles”, algo facilmente discernível hoje nos movimentos progressistas (infelizmente, por um tipo de osmose, muitos “conservadores e de direita” também têm utilizado o mesmo ardil. E a máxima de Goebbels se espalha como peste: “Uma mentira dita mil vezes torna-se verdade”).

Por essa época, Jones resolveu ter uma amante fixa entre seus “súditos”, mas, para efeitos públicos, a fidelidade a Marceline permanecia. À medida que o seu apetite sexual, associado ao vício alcoólico e posteriormente a drogas mais pesadas, os relacionamentos com mulheres e homens tornou-se notório entre os membros do Templo. O surreal, para não dizer outra coisa, era a proibição aos demais membros de serem libertinos e poligâmicos, bêbados, drogados e gays. A máxima do “faça o que eu digo, não faça o que faço”, mostrava o nível de hipocrisia a pairar no Templo do Povo.

Se a membresia tinha de se sujeitar a trabalhos extenuantes e forçosos, além das rações alimentícias insuficientes para suprir as demandas físicas, e praticamente viverem amontoados em quartos com outros doze ou treze colegas, Jones reservava a si mesmo um estilo de vida quase nababesco: permitia levar a família (com a amante junto) em férias anuais, viagens e passeios esporádicos, idas a cinemas, McDonalds, e utilizar roupas de grife. Foi por essa época que adotou o indefectível óculos escuros, e nunca estava em público sem eles. 


   Certa vez, em um cinema, abordou um policial disfarçado no banheiro, convidando-o à sua intimidade. Preso, após ligar para o advogado pagou fiança e foi solto; mas enquanto não conseguiu, por meios “diplomáticos”, destruir o prontuário, não teve sossego. O medo da informação vazar para a impressa e o público não o deixavam dormir.

Dali, sairia, em 1974, para uma aventura na Guiana Inglesa, país onde o socialismo governava e a comunicação não seria impecílio. No meio da selva inóspita, o Templo do Povo poderia, finalmente, se ver livre das perseguições americanas e proteger-se de um futuro ataque nuclear. Com o aval do primeiro-ministro Burnham, que via na comuna a saída para as constantes ameaças de invasão da Venezuela na fronteira, destinou-lha uma área na região de Port Kaituma. A colônia agrícola de americanos talvez fizesse o governo venezuelano ponderar nas consequências de ataque a cidadãos da maior nação do mundo, e isso refrearia o seu espírito expansionista e belicoso.

Por dois anos, um grupo de 50 membros foi responsável por construir as instalações a fim de receber os cerca de 600 postulantes inicialmente cogitados por Jones. À medida que denúncias se espalhavam na imprensa, reforçada pela dissidência de membros leais, a fuga para a América do Sul se tornava mais real e próxima. O temor das acusações ganharem o apoio popular e do governo, e futuras investigações devassarem o Templo do Povo, suas práticas, finanças e atividades explicitamente ilegais, deixavam a liderança apreensiva, perturbada, e a exposição da realidade poria fim ao movimento.

Jones e Marceline possuíam cerca de 32 milhões de dólares no exterior, enquanto o “Pai” e a “Mãe”(assim chamados carinhosamente pelos súditos) convocavam os adeptos a mais e mais sacrifícios, empenho e volição no sentido de suprir as necessidades comuns.

É possível que Jim quisesse usar os fundos para implementar o seu ideal socialista fora da América. Poderia ser, também, uma reserva para si e seus familiares em caso de o culto extinguir-se. A verdade, porém, é que Jones já especulava o suicídio coletivo, e o chamou de “revolucionário e socialista”, portanto, não somente fazia parte dos seus planos como algo aceitável, mas assumiria o caráter desejável e necessário à causa,  validaria os discursos de rejeitar o capitalismo e apoiar incondicionalmente o socialismo. Seria a maneira dos membros  tomarem nas mãos o próprio destino, repetia em cada reunião.

Na verdade, alguns se dispuseram a morrer pela “causa”, mas muitos não queriam e foram obrigados, à força, receber o “suicídio revolucionário” como bênção e não assassinato. O relato dos sobreviventes deixa notório o fato de muitos estarem cansados com tudo aquilo, e a morte ser melhor do que ouvir e participar das maluquices alopradas de Jim. Mas estou me adiantando um pouco... e Jones, diversas vezes, como um “bom” psicopata, preparou os acólitos encenando o envenenamento, a fim de avaliar o grau de obediência.  

Em 1977, quando as coisas estavam insuportáveis na California, Jones, os filhos, o harém de amantes (fixas e giratórias) e centenas de membros partiram, finalmente, para o paraíso tropical em meio à Floresta Amazônica. Nos Estados Unidos, a esposa Marceline ficou responsável por representar o Templo do Povo, a captação e envio de dinheiro, a compra e transporte de insumos para o projeto na Guiana.

Nesse ínterim, Jones vivia sobre os efeitos de drogas e álcool, expunha as pessoas a trabalhos forçados 14, 15, 16 horas por dia, sob o sol escaldante e o calor asfixiante da selva, e incursionava no que ficou denominado “noites brancas”, onde todos eram obrigados a ouvir nos vários alto-falantes espalhados em dormitórios, corredores e pátios, horas fio, as vezes terminando com o raiar da manhã, a parolagem ideológica e alucinógena do “Pai”. Aquilo ia minando a resistência física e emocional da população. No auge do acampamento havia cerca de 900 moradores em Jonestown, a cidade de Jones, como foi batizada.

Enquanto isso, as denúncias de ex-membros, as investigações de parte da imprensa (a maioria simplesmente não quis ouvir os delatores), e a entrada no circuito do congressista Leo Ryan (notório por farejar situações onde pudesse ganhar fama e fazer o seu marketing pessoal), chamaram a atenção da opinião pública e das autoridades. As acusações de sequestro, trabalho escravo, fraudes, além de extorsão, ameaças (houve relatos de desaparecimentos e mortes de desafeto; nada foi provado, seja pela intervenção de aliados, seja pela inexistência de fatos) e lavagem de dinheiro.  Discutia-se se o Templo do Povo era verdadeiramente uma igreja, já que nada remetia a uma, sequer havia mensagem religiosa, ou um movimento ideológico, político e social. Neste caso, não faria jus à isenção de impostos.

À medida que o cerco apertava, Jim Jones convencia os moradores de que estava em negociações com o embaixador soviético em Georgetown e, em breve, mudariam e se instalariam em uma região ainda não escolhida pelo governo. Poderia ser apenas delírio, se antes não fosse uma trapaça para manter o ânimo da “tropa”.

Mesmo se opondo, Jones consentiu com visitas de algumas comissões da embaixada americana de Georgetown e do governo guianês. Estudava-se a ida de uma comissão do Congresso Americano, encabeçada por Ryan, para uma inspeção em Jonestown. Por meses, Jim se recusou a recebê-los, e as pressões sobre a comuna aumentavam proporcionalmente às exigências de Washington. Descontrolado, Jim Jones intensificou as “noites brancas” e a ideia do fim. Para ratificar o argumento, descrevia à exaustão o relato ocorrido em Masada, 73 D.C., quando 960 judeus sicários cometeram suicídio coletivo, diante da iminente conquista e escravidão pelos romanos. Para ele, não havia saída a não ser o sacrifício, já que os Estados Unidos, tal qual os romanos, estavam em vias de invadir, prender e escravizar pessoas que buscavam apenas viver em paz o socialismo. Rapidamente a maioria se convenceu de estar em iminente ataque, e a solução final não era mais vista com ceticismo.

Depois de Marceline convencer Jim a receber a comitiva de Ryan, após semanas de tentativas, alegando que o Templo não tinha nada a esconder de ninguém, e a visita poria fim aos falsos rumores, o “Pai” ouviu a “Mãe”, mesmo a contragosto, e autorizou.  Se quisesse continuar a tocar o negócio, teria de fazer concessões ou as doações e ofertas, à míngua, cessariam.

Leo Ryan e sua comitiva, acrescida de jornalistas e repórteres, chegaram em novembro de 1978 em Georgetown. Várias reuniões com a embaixada, o governo guianês, membros e porta-vozes do Templo do Povo, se estenderam por dias, enquanto Jim relutava em recebê-los. Foi novamente Marceline quem o demoveu e intermediou o impasse. Mas a tensão e o clima pesado pairava no ar, e somente Ryan, ocupado com o seu espetáculo, e os políticos da capital sentiam que tudo acabaria bem e, ao final, todos estariam satisfeitos. No geral, havia apreensão e muitas dúvidas quanto ao sucesso da inspeção.

No dia anterior ao massacre, Ryan, assessores, repórteres e os “Parentes Preocupados”, grupo de ex-membros e familiares de membros aflitos com as advertências e relatos acerca da autoridade severa,  métodos no mínimo anormais e controle exacerbado de Jones, chegou a Jonestown, recebidos por uma escolta paramilitar. Logo depois, o próprio líder apresentou-se e trocou poucas palavras com os visitantes. Quem fez o papel de cicerone foi Marceline, sempre afável e disposta a apagar qualquer má impressão.

Membros foram entrevistados; acomodações, obras em andamento e a infraestrutura vistoriados, e, praticamente, tudo foi aprovado. A conclusão era de não haver motivos para duvidar da legitimidade e intensões de Jim Jones. Contudo, não sabiam que nos eventos onde estranhos compareciam o esforço em arranjar as coisas e transparecer ordem, fartura, alegria e produtividade, faziam parte da “máscara coletiva”. Nada denunciava o racionamento de alimentos, às vezes água, medicamentos e outras coisas cruciais para a sobrevivência na selva.

No primeiro dia, alguns membros do templo solicitaram à comitiva o retorno aos Estados Unidos. Leo Ryan intermediou, junto a Marceline, a saída de cerca de 15 pessoas. Na verdade, ao chegar, imaginou que o número de desertores seria maior, na casa dos cem. Marceline, novamente, interveio junto ao esposo, que esbravejou e chamou os dissidentes de traidores. Por fim, concordou. Ela ponderou serem apenas 15, ou seja, pouco mais de um por cento. Não havia porquê impedir, ainda que ela mesma tenha tentado dissuadi-los. Aos mais íntimos porém, Jones disse que hoje são 15, amanhã 30, e depois... No fundo, ele não permitiria isso.

Quando o grupo se preparava para abandonar o acampamento, uma tempestade desabou sobre a vila, impossibilitando a partida até o aeródromo de Kaituma. A estrada rapidamente ficou intransitável. Todos tiveram de se acomodar e esperar o dia seguinte, caso a torrente parasse.

Pouco antes, enquanto os moradores eram entrevistados, um grupo dissidente fugiu, aproveitando-se do tumulto provocado pela visita. À noite, após uma inspeção, Marceline descobriu a ausência de alguns membros, reportou isso a Jones que fez as contas de mais 11 traidores, totalizando 26. Ryan não foi informado da fuga, mas Jones havia decidido colocar um ponto final naquela situação.

Na manhã seguinte, 18 de novembro, após mais duas ou três adesões ao grupo que ansiava retornar à pátria, um membro desferiu um golpe de faca em Ryan que por pouco não foi fatal. Aquilo o assustou e aos demais, enquanto Jones permanecia impassível e com um risinho sarcástico. A comitiva e os “traidores” embarcaram no caminhão de volta à Kaituma, e de avião iriam para Georgetown.

A história já vai longe, então, resumirei.

Enquanto Jones executava os planos traçados anteriormente de envenenamento, outro plano se desenvolvia (as transcrições das conversas gravadas entre Jim e os membros são estarrecedoras. Não as farei aqui. Você pode ouvi-las e ver muitas imagens no Youtube ou, por exemplo, ao ler “Jim Jones”, de Jeff Guinn, a principal fonte desta matéria).

Continuando, enquanto em Jonestown 900 pessoas eram mortas por livre vontade ou coagidas, a segurança do acampamento abriu fogo na pista de pouso em Kaituma, matando 5 pessoas e ferindo outras tantas. Entre os mortos estava o congressista Leo Ryan e sua secretária. Curiosamente, quatro soldados guianeses, responsáveis pela escolta do grupo, não interviram no ataque, apenas observando as cenas brutais. Havia o temor de envolverem-se e causar um conflito internacional, pois eram americanos matando americanos.  


    Descrever a negligência e o pouco caso com que os Estados Unidos e a Guiana trataram o assunto, antes da tragédia acontecer, é desnecessário perante os fatos. Depois, cada um tratou de salvar a própria pele.

É como escavar um lixão, quanto mais se mexe, mais lixo aparece.

Jim Jones, com todo o seu carisma, charme e apelo popular, ficará mesmo marcado na história como um frio, louco e desmedido assassino. Em seu orgulho, blasfêmia e falta de afeto natural, tinha aparência de piedade, mas negava-a.

Casos assim nos enche de compaixão e tristeza, e pode ainda ser mais triste, pois, neste mundo, os exemplos, ao invés de servirem de alerta, tornam-se causa e motivação para repeti-los. Se há cinquenta anos, quase mil pessoas foram exterminadas pela cegueira própria ou pela fraqueza moral, pessoas como Jim Jones são o sinal de que nas trevas sempre é possível surgir homens tenebrosos e cruéis.

Que Jim Jones, a despeito da sua crença na reencarnação, esteja definitivamente morto.

E nada, ou alguém, reivindique o seu trono.

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Bibliografia: Jim Jones

Autor: Jeff Guinn

Editora: DarkSide

Páginas: 544

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Li materiais avulsos e assisti a vídeos no youtube. A maioria das informações estavam em harmonia, confirmando, especialmente as fontes primárias (e muitas delas estão vivas), o assombroso e terrível desfecho das loucuras psicóticas e socialistas de Jones, descritos por Guinn.  Por isso, não me referi a ele como pastor e seu culto por igreja, já que as características do Templo do Povo não tinham nada a ver com religiosidade, não no sentido cristão do termo. Era mais um politburo. E um chamariz para atrair incautos.

27 outubro 2025

Maus de Art Spiegelman... e os ilegíveis





Jorge F. Isah

 

 

               Tenho vários parentes e amigos que não gostam de livros. E não gostam porque a leitura é algo chato. Então, os livros são chatos. Silogismo à parte, seja irregular, regular ou outro qualquer,  revela o quanto ler está fora de moda. Até mesmo aqueles que reputam o hábito da leitura necessário e proveitoso não leem. Conheço universitários que concluíram seus cursos e não se esquivaram de afirmar jamais terem lido nada além de trechos dos vários tratados e manuais e artigos e teses, e apenas esporadicamente. E se orgulham da façanha, balançando o diploma no ar. É mais uma vitória do jeitinho brasileiro, aquele capaz de desplugar qualquer possibilidade de luz enquanto se aventura a lutar junto às trevas.

      Ao meu jeito, tento estimular um e outro, aqui e acolá, a desenvolver algum tipo de leitura, desde crianças e adolescentes até adultos e anciões. Mas, convenhamos, é uma tarefa árdua, dada a concorrência dos TikToks da vida.

      Bem, tentei uma última cartada com um associado. Pensei: “é bem possível que a pessoa se interesse, já que tem desenhos e a história se desenvolve também por imagens, não apenas textos”. Pareceu-me brilhante. Depois da compra, falei com os meus botões:  “talvez o meu consumismo tivesse me enganado e, assim, ao invés de comprar o livro para presente, estava pondo mais um exemplar na minha estante, já que as chances de sucesso não eram muitas, talvez uns 20%”.

      Quando chegou, corri, e, após um breve discurso, mostrei-lhe o exemplar: “Maus”, de Art Spiegelman.

      — O que é isso?! — disse entre surpreso e quase indignado — Pensei que fosse um par de meias ou o retrato emoldurado da vovó...

      — Veja bem, pegue, vamos... tem muitos desenhos... é uma história em quadrinhos e os textos são poucos... você vai gostar... anda, pega!

      Fez cara de nojo, como se estivesse a colocar meleca ou santinho de candidato na mão. Relutante, recebeu o livro. E balançou-o.

      — Puxa, como é pesado!... Não, não quero. Vou acabar tendo bursite ou tendinite.

      A verdade é que deixei a Graphic Novel e esperei alguns dias.

      Na véspera do fim de semana, cheguei em casa e “Maus” estava sobre a mesa, com a mensagem: “Tentei, mas não deu.”. Peguei o volume, estava intacto, como se nunca fora manuseado. Não vou dizer que não fiquei decepcionado. Mesmo com as chances mínimas, não esperava fracassar.

      Sentei-me desolado, o exemplar à frente, o símbolo da derrocada da civilização. Nada me tirava da cabeça que, em breve, os homens estariam gruindo pelas ruas e a lambuzar as paredes com os seus excrementos... Ops! Isso já não era novidade... Os sinais, aterradores. E Darwin estava completamente equivocado, ao menos quanto à humanidade: em franca involução.

      Abri o livro e comecei a ler. Não parei até a última página. A história era, à primeira vista, sobre nazistas, judeus e o holocausto. Era mais que uma denúncia. A história também tratava do relacionamento entre pai e filho, Vladek e Art, e sobre o próprio livro. Veio-me a parábola do Filho Pródigo; o que era mais curiosidade em saber sobre a mãe, Anja, suicida quando Art tinha 20 anos, transformou-se em admiração e respeito pelo pai, mesmo com todos os impulsos mesquinhos e avaros. Era também uma história de amor entre Vladek e Anja, que não se extinguiu mesmo entre os horrores. Era a história de perdas, e não foram poucas, e, após décadas, ganhou contornos de vitória. Seja nos campos de concentração, nas vilas e cidades, no pós-guerra, ou depois, quando até mesmo as memórias se desarraigavam.

      Quantas pessoas se beneficiariam do livro, caso se dispusessem a dedicar algumas horas? Quanto se pode ganhar? Conhecer? Entender?

      Não sou afeito a HQ’s. Em décadas, esse foi o primeiro. Havia um preconceito de não se fazer boa literatura a partir de quadrinhos. Porém, agora, reconheço: a ignorância em conhecer o gênero e manter-me distante foi a razão verdadeira. E assim como posso me privar de outras experiências, sendo um leitor usual, imagino os que se abstêm por completo.

      Não sei se farei a resenha de “Maus”; talvez sim, talvez não... Mas já não é mais por preconceito ou por desconhecimento. A pergunta é: alguém lerá? Como o Fábio Ribas certa vez me disse: “se você não fizer, quem o fará?”.

      Então, farei e não farei... continuarei a tentar, e ler, e escrever... Porque alguém só pode falar daquilo que o coração está cheio[1], e o meu transborda palavras.

 



[1] Paráfrase ao que Jesus disse em Mateus 12:34 e Lucas 6:45.


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20 outubro 2025

Estudo sobre a Confissão de Fé Batista de 1689 - Aula 45: "A fiel disciplina da igreja"








Jorge F.Isah


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RESUMO DA AULA PASSADA:

Na aula passada, falamos das marcas de uma igreja verdadeira, fundamentais para distingui-la em meio a tantas denominações que se auto intitulam cristãs.

1) A Fiel pregação do Evangelho - Estudamos que a marca principal é a pregação do Evangelho, não de qualquer "evangelho", mas o Evangelho de Cristo. Conforme o Senhor Jesus nos entregou, em Mt 28.18-20, a "Grande Comissão", a obra de proclamar a sua palavra e fazer discípulos, batizando-os.

2) A correta ministração das ordenanças -
- O Batismo - Mt 26.19-20;
- A Ceia do Senhor - Lc 22.19-20.

Paramos no item 3) que é "O fiel exercício da disciplina".
Deixei, para os irmãos lerem durante a semana, dois versos, os quais leremos, novamente, agora:

Mt 18.15-20: "Ora, se teu irmão pecar contra ti, vai, e repreende-o entre ti e ele só; se te ouvir, ganhaste a teu irmão; Mas, se não te ouvir, leva ainda contigo um ou dois, para que pela boca de duas ou três testemunhas toda a palavra seja confirmada. E, se não as escutar, dize-o à igreja; e, se também não escutar a igreja, considera-o como um gentio e publicano. Em verdade vos digo que tudo o que ligardes na terra será ligado no céu, e tudo o que desligardes na terra será desligado no céu. Também vos digo que, se dois de vós concordarem na terra acerca de qualquer coisa que pedirem, isso lhes será feito por meu Pai, que está nos céus. Porque, onde estiverem dois ou três reunidos em meu nome, aí estou eu no meio deles.".

e

1Co 5.1-5: "Geralmente se ouve que há entre vós fornicação, e fornicação tal, que nem ainda entre os gentios se nomeia, como é haver quem abuse da mulher de seu pai. Estais ensoberbecidos, e nem ao menos vos entristecestes por não ter sido dentre vós tirado quem cometeu tal ação. Eu, na verdade, ainda que ausente no corpo, mas presente no espírito, já determinei, como se estivesse presente, que o que tal ato praticou, Em nome de nosso SENHOR Jesus Cristo, juntos vós e o meu espírito, pelo poder de nosso Senhor Jesus Cristo, Seja entregue a Satanás para destruição da carne, para que o espírito seja salvo no dia do SENHOR Jesus".

O que fica claro para os irmãos nesses textos?

Podemos falar em disciplina na igreja?

Como? Por que?

Primeiramente, no texto de Mateus temos uma ordem cronológica no evento:
- Um irmão encontra-se em pecado;

- Ele é advertido por outro irmão, mas persiste no erro;

- É chamado à presença de mais um ou dois para, novamente, ser exortado ao arrependimento;

- É levado finalmente à igreja, visto não ter se arrependido;

- Ainda assim, se insistir em permanecer no pecado, não arrepender-se, revelando um coração duro e empedernido, a igreja deve considerá-lo como gentio ou publicano, como um incrédulo.

Então, temos o Senhor Jesus investindo a igreja de autoridade, da sua autoridade, ao dizer que, onde dois ou três estiverem deliberando em seu nome, ali ele estará [v.19-20].

E qual é a autoridade da igreja?

A que ela se refere?

Apenas em assuntos ligados à doutrina?

À ordem do culto?

Em deliberar como serão gastos os recursos financeiros da igreja?

Ou também nos assuntos relativos ao comportamento escandaloso de seus membros?

Há uma ideia de que esse verso se refere, pura e simplesmente, a qualquer reunião de crentes, o que é verdade; mas no contexto de Mateus 18, especificamente, ele nos diz da autoridade com a qual Cristo investiu a igreja para deliberar, decidir, dirimir e aplicar todas as resoluções que foram tomadas no âmbito eclesiástico, inclusive em relação à conduta dos seus membros. Mais do que estar no nosso meio [não entendam que eu esteja menosprezando ou conferindo somenos importância a um fato essêncial e fundamental: Cristo presente no seio da sua igreja], deu-nos a autoridade para resolver todas as questões relativas à igreja, inclusive a de juízo, em e pelo seu nome. Quando decidimos algo, o fazemos em o nome de Cristo, e é ao nome dele que devemos honrar e ser leais.

Por isso, Cristo está a tratar exatamente do pecado de um irmão e da necessidade de discipliná-lo. Não é algo ultrapassado, sem cabimento nos dias atuais, pois os mandamentos do Senhor são eternos, e nenhum tratamento humano, seja filosófico, psicológico ou pedagógico pode suprimi-lo. De forma que a prática da disciplina eclesiástica é uma prova de maturidade e amor cristão, tanto a Deus, à igreja, como também ao irmão empedernido. Mantê-lo em seu pecado é dar um "empurrãozinho" em direção ao inferno; e, se alguém considera o desdém como forma de acolhida, saiba que ele é prova maior de rejeição, de falta de apreço e do exercício de um certo sentimento de superioridade que leva a não fazer caso da desgraça e do mal que acomete o pecador, mas também da igreja conivente com o seu pecado.

Quando se aborda o tema da disciplina estamos tratando diretamente de dois aspectos: a dependência do crente à igreja e a autoridade da igreja sobre o crente.

Alguém tem dúvidas de que seja isso o que o Senhor está dizendo?

Penso que a igreja, ao se omitir quanto a esse assunto, revela alguns sérios problemas.

Vamos agora a 1Co 5.1-5; não vou transcrevê-lo novamente.

O que salta aos olhos dos irmãos nessa passagem?

O pecado, escândalo de um irmão levou Paulo a comparar a igreja com o mundo, ou melhor, a considerá-la mais pecaminosa do que o próprio mundo.

O que os irmãos entendem quando Paulo chama os Coríntios de estarem "ensoberbecidos" [vaidosos, orgulhosos, soberbos]? Não é esse o sinal de desprezo que apontei acima?

A soberba que é um tipo de autossuficiência, de se considerar superior e até mesmo intocado ou inatingível, levou a igreja a:

- Negligenciar e fazer vistas-grossas ao pecado;

- Tornou-se conivente com o pecado, associando-se a ele;

- Faltou o temor do Senhor, levando-a à insensatez [Pv 9.10];

- Faltou-lhe amor e piedade para com o irmão em pecado, sabendo que a prática exercida por ele flagrantemente afrontava a Deus;

- E eles mesmos desprezavam o conselho divino e a sua Lei;

- Por fim, tudo isso levou a igreja de Corinto a não se envergonhar do pecado daquele irmão, de forma que ele permanecia no meio deles. Paulo alertou-os de que o orgulho impediu-lhes de tirá-lo dentre eles [v.2].

Em seguida, invocando a autoridade dado por Cristo, falando em nome dele, pela união que há entre o espírito de Paulo e dos irmãos de Corínto [aqui temos o princípio da igreja invisível, espiritual e universal da qual já falamos, e pela qual a igreja tem autoridade para deliberar em todos os assuntos a ela pertinentes, em conformidade com o que Cristo disse em Mt 18.19-20, em uma clara relação entre o que o Senhor disse para fazer e Paulo, como apóstolo da igreja, fez], ele entrega o tal irmão pecador a Satanás, para que a carne seja destruída e o espírito seja salvo [v.5].

O que lhes parece isso? A carne destruída e o espírito salvo pela disciplina da igreja? Mas como se dá isso? E, por quê?

Paulo diz o mesmo de Himeneu e Alexandre em 1Tm 1.20, entregando-os, como blasfemadores, a Satanás. Aqui não é possível saber se ele já é salvo ou não, ainda que pareça que não. O certo é que ele comete um pecado grave, e ao que tudo indica foi exortado individualmente por um ou outro irmão, não arrependeu-se e insistiu na rebeldia. A igreja, portanto, tem o dever de excluí-lo, para que, estando fora da proteção da igreja, padeça nas mãos de Satanás e reconheça e busque a necessidade de perdão. Deus utilizará o diabo para disciplinar na carne aquele homem.

Hebreus 12.4-13 parece-me a chave da resposta. O apóstolo nos remete ao castigo que não é punitivo, mas educativo, pedagógico, como se gosta de dizer atualmente. Com o objetivo de sarar, de curar e, porque não, salvar o perdido. Veja bem, não é possível saber se aquele irmão era salvo ou não; o texto aponta para o fato dele não ser salvo, pois precisaria ser entregue ao diabo para que o fosse, mas o certo é que o castigo tinha o intento de curá-lo, e sará-lo do quê? De uma vida de pecados, empedernida e de resistir ao arrependimento. E tudo isso é prova do amor de Deus para com os seus, e da igreja para com os irmãos.

Qual atitude é mais fácil para um pai que sabe do envolvimento do seu filho com as drogas, por exemplo? Procurar curá-lo [e muitas vezes com atitudes que vão contra a vontade rebelde do filho de se drogar, podendo ser a internação ou entregá-lo à justiça] ou abandoná-lo ao próprio vício, como muitos pais e mães agem atualmente? Em qual delas ele demonstrará amor verdadeiro? Em qual delas temos piedade e misericórdia?

Certa vez, vi uma declaração impactante de uma mãe na Tv. O seu filho estava envolvido em crimes, um jovem de 15 anos, e ela preferiu entregá-lo à polícia do que vê-lo caminhar a passos largos para a morte prematura. Ela disse ter tentado de tudo para demover o filho da vida de crimes e não houve mudanças. Então, em um ato desesperado, ela o denunciou. Muitos a criticaram por essa atitude. Muitos entenderam que a posição dela não traria resultados à correção do filho. Mas, entendo que, na simplicidade daquela senhora, ela agiu como uma verdadeira mãe que ama o seu filho. Ela não foi negligente nem omissa, preferiu a dor de denunciá-lo e levá-lo certamente à condenação, do que vê-lo viver uma vida miserável de crimes [e as suas lágrimas e a expressão de sofrimento eram evidências claras de como o seu coração estava partido e angustiado]. Ela vislumbrava na prisão uma chance que ele não teria levando a vida que levava do lado de fora... Ela entregava o filho à justiça para que pudesse resgatá-lo novamente. Tal qual Paulo diz, ela esperava que ele, no fim de tudo, se salvasse da vida criminosa e da morte iminente.

Então, temos que o princípio da disciplina da igreja visa o arrependimento e deve ser aplicada em amor piedoso e misericordioso, que levará, como consequência, caso o irmão se arrependa, ao perdão por parte da igreja e de Cristo [não nessa ordem, claro!].

E isso traz tristeza à igreja, e deve trazê-la também ao irmão em pecado, como Paulo diz em 2Co 2.4-11. Aqui, exatamente, encontramos uma outra exortação relativa a esse mesmo irmão, de que a igreja o perdoe e não aja de maneira excessivamente dura para não aumentar-lhe a tristeza. Ao que tudo indica, esse irmão se arrependeu, mas a igreja não parecia muito disposta a perdoá-lo e tratá-lo novamente como um dos seus. Tem-se de ter cuidado para não extrapolar o ensinamento bíblico e não agirmos no mesmo nível de carnalidade do pecador.

Mas, e se o irmão não se arrepender? Como deve proceder a igreja? Este é o segundo objetivo da disciplina: manter a unidade da igreja. Um exército dividido, sem um objetivo comum, o de glorificar a Deus, não subsiste.

Leia o que Paulo diz em 2Tm 3.1-9 e 4.2-4; e veja o que João, chamado de o apóstolo do amor, nos diz em sua Carta segunda, versos 9-11:

“Todo aquele que prevarica, e não persevera na doutrina de Cristo, não tem a Deus. Quem persevera na doutrina de Cristo, esse tem tanto ao Pai como ao Filho. Se alguém vem ter convosco, e não traz esta doutrina, não o recebais em casa, nem tampouco o saudeis. Porque quem o saúda tem parte nas suas más obras”.

A palavra “prevaricar” significa proceder mal; transgredir a moral, os bons costumes: aquele jovem prevaricara. Vti: Faltar a, deixar de cumprir: Prevaricar aos deveres, às promessas. Corromper, perverter. 

É preciso entender que o crente não pode nem deve ser motivo de escândalos para a igreja, o que, consequentemente, significa escândalo para o nome de Cristo. Por isso, há tantas e tantas advertências ao comportamento e modos de agir do cristão. É nosso dever testemunhar, não somente com palavras mas com atos, tudo o que nos foi entregue por Deus como a sua vontade, de que sejamos irrepreensíveis e exemplos para os homens e a sociedade. Ser luz no mundo não é outra coisa a não ser guiá-lo [o mundo] na verdade, tirando-o das trevas, do engano, da mentira e do pecado. Mas se nós mesmos estamos em trevas, como podemos enxergar o caminho, seguir a Cristo, e levar outros conosco?

Para finalizar, entendemos que a disciplina pode ser exercida de várias formas, desde a simples exclusão do irmão das atividades de liderança, o não participar da Ceia do Senhor, até, em último caso, a exclusão do rol de membros. Mas estes serão assuntos que abordaremos mais detidamente à frente. Por hora, é-nos necessário ter a certeza de que a disciplina eclesiástica é bíblica e uma das mais importantes marcas de uma igreja verdadeiramente cristã.

Notas:  Aula realizada na EBD do Tabernáculo Batista Bíblico 

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ÁUDIO DA AULA 45: 

13 outubro 2025

Fazenda Africana ou África Minha - Karen Blixen

 




Jorge F. Isah

 

 

      Li, há uns 10 anos, “A Festa de Babette”, de Karen Blixen e, para ser sincero, não me lembro de praticamente nada. Foi um livro que passou por mim como se não tivesse passado, ou o fizesse tão rapidamente que não deixou rastros. Isso acontece por vários motivos, sejam pessoais (alguma instabilidade ou preocupação momentânea que bloqueia a concentração), descuido ou pouco caso, e o corre-corre da vida que nos impede às vezes de atender ao realmente importante. Não sei precisar ao certo a razão, mas durante os anos seguintes nutri o desejo de relê-lo.

      Como coleciono exemplares da Cosac & Naify, quase um fetiche, caiu-me às mãos o volume “A Fazenda Africana”; comprei-o e fui baixar a versão em ebook para não desgastar o livro físico, já que estava impecavelmente novo e não foi nada barato (também não foi absurdo; considerei a compra quase uma pechincha, dado os valores exorbitantes que exemplares da Cosac ganharam no mercado). Pois bem, encontrei a tradução portuguesa, “África Minha”, e por ser lusitana (Tradução de Ana Falcão Bastos), animei-me ainda mais; tenho apreciado muito essas traduções e, quando possível, opto por elas.

      Já nas primeiras páginas, Karen fisgou-me. Não conseguia abandonar a leitura. A prosa fluída, às vezes poética, autobiográfica, e sobretudo cativante em toda a sua simplicidade aparente (mas não se engane!), fez-me refém. A história se desenvolve no período 10-30 do século passado, quando a autora viveu no Quênia, próximo de Nairobi, onde, juntamente com o marido (citado pouquíssimas vezes; era um espectro a pairar na minha mente, sem nunca se materializar), adquiriu uma fazenda para cultivo de café.

Dizer que a protagonista é a própria África, não seria exagero. Karen está a compor um canto, elegia, entre sabores e dissabores, do continente ao qual, desde o primeiro contato, tornou-se parte de si e jamais esqueceu. As narrativas, algumas sequenciais e outras de fatos isolados, espalham-se pelas mais de 400 páginas numa mistura equilibrada de elementos a tornar o leitor correligionário de suas aventuras. Perdi a conta das vezes em que me deparei a rir de situações onde a graça sutil estava implícita, como uma pérola oculta na ostra. Era a maneira de presentear os leitores, sem exageros e gargalhadas fáceis. 




      Pertencente à aristocracia dinamarquesa (uma baronesa, casada com Bror Blixen-Finecke), as histórias tratam dos nativos (Kikuys, Masais e Somalis), colonos, imigrantes (indianos, europeus, árabes, etc), que povoaram a região à procura de oportunidades. É nítido o amor e carinho com que Karen se refere ao povo e ao país, ainda que utilize imagens, digamos, nada politicamente corretas, a causar a ojeriza dos “mimizentos” de hoje. As comparações, antes de serem depreciativas, em sua maioria são carinhosas e reais. Evidente haver paralelos negativos, porque sempre, em todo lugar, conviverão pessoas boas,  dignas e seus opostos. Ela não glamouriza ou doura a pílula, como se fossem coitadinhos, merecedores de pena. Não. A interação é zelosa, onde ela e outros “estrangeiros” se integram sem maiores problemas aos indígenas. Não é uma relação de domínio e submissão, mas de aliança. Ela aprende com os colonos que aprendem com ela, respeita sua cultura e eles não parecem se preocupar com a dela. O ambiente é de nítida liberdade, sem imposições e exigências, num clima de cuidado, harmônico e pacífico.

Alguém pode aventar: “Mas a perspectiva é da autora e não dos nativos!”. Tudo bem, é possível, afinal Karen é quem descreve os eventos e mais ninguém daquele círculo se importou em fazê-lo; então, por que duvidar?... Outro detalhe é: qual a possibilidade de, décadas depois, o bairro onde existia a fazenda ter o nome da sua proprietária? E um museu, também? “É pouco, e não quer dizer nada!”, garantiria o alguém. Mas para anos de revoluções, massacres e guerras intermináveis, patrocinadas por movimentos ideológicos, etnias que se odeiam e querem a eliminação dos seus opostos, o nome Blixen ainda ser respeitado no lugar é quase um milagre.




      Os “mimizentos” de plantão se horrorizam com as caçadas (ela, perita caçadora), a injustiça (chamada tantas vezes pelos nativos para julgar conflitos), os jogos de poder (sem entrar em conchavos e sempre visando o melhor para “a sua gente”), mas esquecem-se de o mundo nunca ter sido diferente disso, e de não ser o parque de diversões que os pretensos reconstrutores da terra imaginam; até, por que, mesmo em parques temáticos e recreativos, acidentes e mortes acontecem. E estamos a falar de um ambiente altamente controlado, a fim de se evitar os sinistros... Convenhamos, o fato de Karen ser mulher, independente e capaz de gerir uma fazenda, nos primórdios do século XX, não é pouca coisa. E eles mesmos, os defensores do “feminismo”, se veem a atacar o relato de uma mulher independente, não eivada por discursos vazios e sem sentido, mas que, sem alardes e panfletagem, viveu-o. É por essas e outras que não entendo a mente pós-moderna e sua quase suprema incoerência, ou melhor, as artimanhas arrivistas enquanto posam de morais e éticos. Mas deixemo-los com seus desvios e lapsos.

      As descrições são bucólicas, quase líricas. Pode-se dizer, saudosistas. A África é a sua terra prometida. A sua Canãa. O lugar onde esperava permanecer até a morte e lá ser enterrada; do qual foi exilada e viveu a diáspora na Europa. Mais do que vislumbre e expectação, aquele lugar e, mesmo anos após partir, era onde deveria permanecer. Ela foi peregrina em terras estranhas, em todas e todas, a buscar o Éden. Certamente, as montanhas Ngong foram o lugar mais próximo de alcançá-lo.   

O livro trata do triângulo amoroso, se é que podemos chamar, entre Karen, o marido e o amante, Denys George Finch-Hatton, ex-piloto da RAF (Royal Air Force), na Primeira Grande Guerra. Porém, de forma tão sutil que alguns menos atentos podem sequer perceber. Na verdade, o marido, um mulherengo empedernido que transmitiu sífilis à esposa, se separou dela em 1920, e se divorciou em 1925. Além de ser adúltero, era um péssimo gestor. Karen, ao assumir as rédeas da fazenda, manteve-a em seu poder por 17 anos. Após a separação, o relacionamento com o militar, antes uma amizade, tornou-se amoroso; como disse, é sutilmente descrito na trama. O mais “santarrão” dos leitores pode ficar tranquilo: não existem detalhes, cenas ou descrições inflamadas, sequer são aventadas. São tão rarefeitas como a presença diáfana do esposo.

É um livro de paixões e temores, mas acima de tudo real.

Não cheguei a ler os livros de Hemingway sobre as suas aventuras africanas. Estão na lista, à espera. Na adolescência me deparei com alguns relatos de Livingstone, suas expedições e descobertas no coração da África Meridional. Ele, missionário e pesquisador, empreendeu várias incursões ao coração do continente e tinha um amor genuíno e sincero para com os povos subsaarianos. Então, os relatos de Blixen não têm correlações com outras obras e leituras, nem como as comparar. Rendo-me, tão somente, ao seu talento e ao fato de ser uma exímia contadora de histórias, com uma simplicidade enganadora, já que as camadas do texto vão se revelando durante a narrativa: o seu cristianismo, a sua independência, a sua solidão, e a “maternidade tardia”, algo possível de se ver no relacionamento com muitas das crianças e jovens, o envolvimento afetivo e emocional.

Nesse contexto, é possível notar que o trato era quase familiar e, como tal, carregado de alegrias, decepções, tristezas e solidariedade. Em tempos e cenários tão artificialmente concebidos como os atuais, as histórias descritas de “África Minha” apresentam-se legítimas, intensas, palpáveis e, em muitos sentidos, puras.

Karen Blixen vislumbrou o paraíso, desejou-o, e se viu nele. Mesmo sem a perfeição original, o Éden era possível. E, talvez, ela esteja agora, neste momento, ainda mais maravilhada.

 

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Avaliação: (****)

Título: África Minha

Autora: Karen Blixen

Editora: Clube do Autor

Páginas: 381

Sinopse: “Em 1914 Karen Blixen chegou ao Quénia com o marido para gerir uma plantação de café Imediatamente conquistada pelo mágico local, Karen Blixen passou aí os anos mais felizes da sua vida, até ao colapso da plantação Foi então forçada a regressar à terra natal, a Dinamarca, onde escreveu África Minha. Escrito com uma vivacidade que nos faz sonhar imediatamente com o continente africano, o livro retrata um estilo de vida desaparecido para todo o sempre.”