20 novembro 2023

Estudo sobre a Confissão de Fé Batista de 1689 - Aula 27: A justiça de Deus





Jorge F. Isah



INTRODUÇÃO:

Não se pode falar do atributo da justiça de Deus sem relacioná-lo com a sua santidade. Tenho que Deus somente pode ser justo por ser absolutamente santo; e a sua justiça é derivada da sua santidade, não como um atributo isolado e independente [apenas para efeito de comparação, visto os atributos divinos se comunicarem plenamente em seu ser], mas como uma necessidade inevitável da sua santidade. É como se a santidade necessitasse de um complemento a fim de ser distinguida, identificada; seria, guardadas as devidas proporções, as impressões digitais que identificam Deus como o ser santo. Ela se afigura como uma consequência natural do ser absolutamente santo de Deus, ou seja, ele tem de ser justo, pois, se assim não fosse, iria contra a sua santidade. A justiça comprova que Deus é santo, e a sua santidade confirma a sua justiça [Sl 145.17]. Sem a justiça, creio que a santidade estaria incompleta; mas isso valeria para qualquer atributo divino, os quais se interligam e se complementam perfeita e maravilhosamente. Com isso não estou dizendo que exista uma ordem de precedência entre elas, que tivessem surgido em momentos diversos, pois, como sabemos, Deus não está sujeito ao tempo visto ser eterno, e o eterno não tem o seu caráter moldado ou privado pelo tempo, estando além dele. Os efeitos temporais não têm nenhum poder sobre Deus, por isso que todos os seus atributos são igualmente eternos como o seu ser é eterno.

Contudo, pode-se dizer que a justiça divina se aplica no tempo; e ainda que ela sempre existisse, deu-se a conhecer a partir da Criação, mais especificamente quando Deus estabeleceu os preceitos pelos quais o homem deveria manter-se obediente e fiel à sua lei, sem a qual não conheceria a santidade nem a justiça divinas. O que reforça o ensino bíblico de que a Criação, antes de tudo, tem por objetivo exaltar e glorificar o Senhor, e é através dela que Deus pode ser conhecido em seu esplendor e perfeição intocáveis.

O que nos leva a reconhecer que qualquer "justiça" fora dos padrões estabelecidos por Deus como justos são injustos. E o que determinará o valor da justiça não pode ser outra coisa além do próprio Deus, visto ser ele santo e não haver nenhum padrão de santidade fora dele. Até mesmo a santidade dos seus filhos adotivos é fruto daquilo que Deus faz neles, e assim podemos dizer convictamente que somos santos porque ele nos fez santos; somos santos porque ele é santo; e, finalmente, somos santos porque ele quis que assim fôssemos para a sua glória. Sendo que muitas vezes o mundo reconhecerá a santidade divina através da nossa santidade, numa glória impossível ao homem se não fosse pela vontade e obra do Santo e Justo. A mais tênue demonstração de justiça dos homens nada mais é do que o reflexo da justiça divina, sem a qual não há a menor chance de existir.

Outro ponto é que não se pode falar em justiça alheio aos preceitos santos estabelecidos na Lei divina. Apenas o Justo poderia elaborar e determinar o que venha a ser justiça; e qualquer tentativa de estabelecê-la à margem da Lei somente implementará a injustiça. Tem-se que no mundo moderno e pós-moderno, dogmas e certezas dão lugar ao ceticismo e à dúvida, num reconhecimento evidente da impossibilidade humana de constituir adequada e ordeiramente um padrão apropriado para se instituir a justiça. Na verdade, extemporaneamente, o homem vive de guerrear contra ela, pelo próprio senso de injustiça que traz em si, decorrente da sua natureza pecaminosa. Como se provou em sua mente que é impossível organizar independentemente um sistema justo, após rejeitar o bom conselho divino, coube à humanidade caminhar célere em prol de um sistema onde a injustiça se normatizasse. E o ponto de partida foi o abandono da Lei, e, por Lei, refiro-me a todos os enunciados feitos por Deus em sua palavra que coíba o pecado e puna o pecador; pois nada há mais injusto do que eles. Quando se afirma que a justiça é algo inteiramente subjetivo e as medidas do justo seriam variáveis de grupo para grupo ou até mesmo de pessoa para pessoa, temos que a medida do justo, dada por Deus, tornou-se ilegítima, e o homem encontra-se perdido em meio ao delírio de uma verdade e realidade meramente particular a conflitar com outras verdades e realidades particulares, que se alteram até mesmo em um único indivíduo; de forma que o que lhe parece justo hoje pode não ser amanhã e nem ter sido ontem. Fazendo-o cada vez mais escravo da sua própria injustiça.

Se reconhecemos que Deus é santo e justo, tem-se que a sua Lei também é santa e justa. Se ele é eterno e a sua vontade é eterna, também a Lei, como parte da sua vontade, é eterna. O mesmo vale para a eleição e redenção dos salvos. Não há contingência em Deus, nem poderia haver, pois se houvesse, Deus não seria Deus. Portanto qualquer afirmação de que um único preceito divino possa não ser justo, torna o seu acusador no mais injusto de todos os homens, pois a justiça, assim como a santidade, é um atributo inerente à sua natureza, sem o qual ele não seria quem é. Assim diz o salmista: "Justo és, ó Senhor, e retos são os teus juízos" [Sl 119.137].

Por outro lado, dizer que a justiça é uma virtude humana [como pensam teólogos humanistas e liberais] é negá-la como virtude divina; é mentir duplamente e ser duplamente injusto. Ainda que o homem tenha "momentos" de justiça, ela provém do Senhor. Por isso é um dos seus atributos comunicáveis, mesmo que o homem o exerça parcial, imperfeita e temporariamente. 


O TRATO JUSTO DE DEUS COM OS HOMENS

Neste ponto, faz-se necessário afirmar o que seja justiça. No Direito, se utiliza a frase de Ulpiano, jurisconsulto romano, para defini-la: "Justiça é a constante e firme vontade de dar a cada um o que é seu" [1]. Parece-me vago e inconcludente essa definição, pois nem mesmo se sabe de quem deve ser a constante e firme vontade de dar, como definir o que é e o que não é do indivíduo. Podemos elencar muitas coisas como sendo o "seu", mas certamente essas coisas variarão tanto de pessoa para pessoa como de cultura para cultura e de tempos em tempos. Logo, é uma formulação subjetiva e inadequada, na incerteza de seu próprio conteúdo. Aristóteles diz que: "Uma vez que o transgressor da lei é injusto, enquanto é justo quem se conforma à lei, é evidente que tudo aquilo que se conforma a lei é de alguma forma justo". Os termos do filósofo grego parecem-me muito mais objetivos e mais próximos do conceito bíblico de justiça; a qual é, em suma, considerar justo quem está em conformidade com a lei, ou seja, aquele que é obediente e zela por ela; e também aplicar a lei quando alguém se rebela contra ela. Como a lei é a manifestação da vontade divina, todos os homens devem andar então em conformidade com a sua lei. 

Novamente frisarei que, para mim, a lei é todo o preceito que Deus estabeleceu e enunciou em sua santa palavra. Não apenas os mandamentos mosaicos na forma da letra, mas aquilo que ele inscreveu em nossos corações, a consciência do pecado que significa toda e qualquer atitude, pensamento ou desejo que vá contra a santidade divina. Paulo diz que "assim a lei é santa, e o mandamento santo, justo e bom" [Rm 7.12]. A lei é santa como reflexo da santidade divina, derivada dela, assim também ela é justa, como o próprio Senhor é justo e diz a Israel:"E que nação há tão grande, que tenha estatutos e juízos tão justos como toda esta lei que hoje ponho perante vós?" [Dt 4.8]. Também é por ela que tomamos o conhecimento do pecado, e de que, ao cometê-lo, estamos em flagrante desobediência a Deus [Rm 3.20].

E é este ponto que nos interessa mais detidamente, a justiça relativa de Deus para com os homens. Por relativa não se quer dizer que é o oposto de absoluto, mas de exprimir uma relação na qual todos os homens se reportam a Deus como a autoridade suprema, e a quem todos estamos subordinados. Como diz o Dr. Heber Campos, "é a justiça que se manifesta no dar a cada um conforme os seus merecimentos" [2].

Antes de prosseguirmos, faz-se necessário alertar que Deus é o Senhor de toda a criação, e de que ele exerce o seu governo sobre bons e maus, justo e injustos, e todos os homens estão debaixo de suas leis. Afirmar a injustiça de Deus em nada ajudará o infrator. Ele é a autoridade máxima, e acima dele não há qualquer outra. Nem mesmo a vontade do homem pode demovê-lo de exercer o seu domínio e poder soberanos. Deus é Deus e, por isso, é quem faz as regras, sempre segundo a sua vontade santa, perfeita e reta, em conformidade com o seu ser absoluto. Quer se queira ou não, quer se esperneie ou não, o homem deve satisfação a Deus, e ele será recompensado e cobrado no devido tempo segundo o que fez.

É notório ao cristão bíblico que todos os homens nascem em pecado, e suas obras são indignas, e jamais nenhum de nós poderá reivindicar justiça com base em seus próprios méritos diante de Deus, visto que as suas obras sempre o condenarão.

Esse ponto é importante pois a definição de justiça relativa [aqui, especificamente, tratamos da sua subdivisão, a justiça remunerativa, aquela através da qual Deus recompensa os seres racionais, homens e anjos, segundo o que fizeram de bom], pode levar ao engano de se imaginar que Deus absolverá alguém ou o considerará inocente por alguma coisa que ele faça, por uma justiça própria e meritória. Não. Por ser pecador e miserável, todos os homens, sem exceção, estão debaixo da Lei e pecaram e serão por ela julgados, de forma que todo mundo é condenável diante de Deus [Rm 3.23,19]. Por isso Deus, em sua graça, misericórdia e providência, determinou que o seu Filho Amado, Jesus Cristo, fosse dado em expiação por muitos, para que fossem justificados diante dele, como prova do seu amor [Rm 5.8]. Não há outro meio ou forma do homem não ser condenado. A única justiça que o Senhor reconhece é a realizada pelo seu filho, na cruz, para todos e sobre todos os que creem [Rm 3.22]. E assim, justificados pela fé no sangue do Senhor Jesus, temos paz com Deus, e somos poupados, somos salvos da sua ira [Rm 5.1, 9], e alcançamos a reconciliação [Rm 5.11].

Temos que Deus somente justifica e absolve o homem através da morte de seu Filho e apenas por ela. Sendo a prova da sua graça e bondade para com aqueles que ele amou eternamente, e pelos quais fez manifestar a sua infinita e gloriosa justiça, estando livres do juízo de morte e justificados para a vida. Pela obediência de um único homem à Lei de Deus, aqueles que também foram amados eternamente serão feitos justos [Rm 5.19]. Mas nada disso, como se vê, pode ser creditado ao homem, nem mesmo os atos bons que ele pratica, nem as boas ofertas que dá. Davi compreendeu como ninguém o que ele e o seu povo eram, e como careciam da bondade e providência divina para fazerem o que era bom aos seus olhos, e de que nem ele ou algum dos seus súditos tinham do que se orgulhar diante de Deus, visto que tudo que lhes era dado retribuir, era fruto daquilo que o próprio Deus dava-lhes: "Porque quem sou eu, e quem é o meu povo, para que pudéssemos oferecer voluntariamente coisas semelhantes? Porque tudo vem de ti, e do que é teu to damos. Porque somos estrangeiros diante de ti, e peregrinos como todos os nossos pais; como a sombra são os nossos dias sobre a terra, e sem ti não há esperança. Senhor, nosso Deus, toda esta abundância, que preparamos, para te edificar uma casa ao teu santo nome, vem da tua mão, e é toda tua" [1Cr 29.14-16].

Apenas pela sua vontade, e como cumpridor das suas promessas, Deus se faz devedor ao homem; não porque recebeu algo de nós, mas porque ele prometeu que nos daria segundo as condições que ele estabeleceu, e que realizou por nós. Temos a impressão de que cumprimos a sua vontade voluntariamente, como se não houvesse em nós nenhuma outra motivação além do desejo de servi-lo e honrá-lo, mas como seríamos capazes de dar algo a Deus que ele primeiro não nos desse? De certa forma, é engraçado que além de recebermos o suficiente para dar a ele, ainda seremos recompensados por isso, sendo que não há mérito algum em nós, e nem mesmo somos dignos de alguma honra. O que se revela é uma grande oportunidade para bendizê-lo, louvá-lo e glorificá-lo por tão grande graça e misericórdia e bondade para conosco, servos inúteis, que fazemos apenas o que devemos fazer e que nos foi ordenado realizar [Lc 17.10].

Mas, e o que acontecerá aos que não foram justificados por Cristo e por ele não foram salvos?


A IRA DE DEUS

A ira divina é a justa e perfeita manifestação de Deus diante do pecado. É a sua resposta necessária ao pecado, sem a qual a sua santidade e perfeição ficariam comprometidas. Veja bem, se Deus não se irasse e revelasse indiferença ao pecado, não seria Deus; ele não pode pactuar com a injustiça, sendo o Justo. A ira é uma das condições essenciais do seu ser e, portanto, é também uma perfeição divina, através da qual ele infligirá castigo aos que violarem a sua palavra e vontade. Para eles, não há misericórdia; ele não pode deixar de puni-los, de lançar sobre eles a sua severidade, tal qual o profeta diz: "O Senhor é Deus zeloso e vingador; o Senhor é vingador e cheio de furor; o Senhor toma vingança contra os seus adversários, e guarda a ira contra os seus inimigos." [Na 1.2]. Com isso, estou a dizer que o caráter divino, o seu ser perfeito, não o seria se em Deus a ira não se manifestasse. Ela é a resposta divina ao fato dele ser santo e justo.

O primeiro ponto é que a ira de Deus se manifesta sobre toda a impiedade e injustiça dos homens, "que detém a verdade em injustiça" [Rm 1.18]. Acontece que a ira e o castigo divinos não fazem parte da pregação atual. Por uma visão distorcida de que os homens são bons em sua natureza e essência, muitos consideram falsos os versos bíblicos que exortam o homem a não se rebelar contra Deus, antes deve obedecê-lo, pois do contrário, a ira do Senhor estará sobre ele. Há um falso evangelho sendo pregado, e que tem levado muitos a manterem-se na impiedade, batendo às portas do inferno. Não é preciso que se cometa algum crime atroz para fazer parte desse grupo. O simples fato de não se sujeitar a um mínimo preceito divino, podendo ser, até mesmo, a mera rejeição da sua justiça, implicará na impiedade e injustiça. Deus tem de ser glorificado pelo que ele é, o Senhor de tudo e todos, a autoridade absoluta e perfeita em todos os seus atributos.

É interessante que as criaturas cada vez mais se consideram aptas a fazerem de Deus réu. Acreditam que estão num patamar tão superior que podem tecer críticas, zombar e escarnecer daquilo que nos foi revelado em sabedoria e retidão. Há um desejo crescente de se criminalizar a Deus, fazendo da sua palavra um simples livro de códigos imorais e desumanos. Mas, ó homem, quem és tu que replicas a Deus?, já dizia Paulo. Quem o fez senhor e juiz? Quem investiu-lhe da autoridade que julga ter? Novamente, temos o pecado se manifestando na mente e lábios dos que se consideram, em sua vaidade e soberba, superiores a Deus. Podem não concordar abertamente com esse rótulo, mas o desejo latente de independência os faz amotinados e rebeldes. Essa tentativa de independência sempre significará a incompatibilidade com o que é santo e justo e a compatibilidade com o pecado e a injustiça, em que ambos se toleram mutuamente, e seus desejos se combinam e permanecem conciliados.

A ira divina é algo presente na Escritura, e o próprio Deus não se envergonha de proclamá-la [Dt 32.39-43; Ex 22.22-24; Rm 1.18]. Por que então temos brios em anunciá-la, ao mesmo tempo em que contemporizamos com o pecado? Penso que a ira divina e a certeza do seu juízo estão presentes em nossa consciência, como algo que Deus nos legou. Sabemos que ela é justa, mas a nossa natureza não se conforma a ela, por isso tenta negá-la ou ocultá-la a fim de não haver barreiras ao pecado, deixando-o agir livremente, sem restrições, e não sermos acossados pela ideia de uma merecida punição. O engano nos faz acreditar que Deus, em algum momento, se arrependerá daquilo que prometeu, e não cumprirá a sua palavra: de que todo o pecado será castigado e os pecadores sofrerão na carne pelo mal que praticaram. Deus é fiel em tudo o que promete, e não abrirá exceção para o derramar a sua ira. É o que o apóstolos diz: "Porque bem conhecemos aquele que disse: Minha é a vingança, eu darei a recompensa, diz o Senhor. E outra vez: O Senhor julgará o seu povo. Horrenda coisa é cair nas mãos do Deus vivo" [Hb 10.30-31].

Contudo, os cristãos podem irar-se?

Há uma ideia de que o crente deve ser "paz e amor". Este lema foi muito utilizado pela contra-cultura nos anos 1960, a era "hippie", em que as pessoas se preocupavam exclusivamente consigo mesmas, com o seu prazer, e em negar toda a cultura ocidental judaico-cristã. O pecado não era o cometido individualmente por cada um deles, seja no uso de drogas, no sexo livre, na ociosidade, na idolatria e culto a deuses pagãos, mas na sociedade e na igreja como mantenedores de uma ordem cristã hipócrita, em que se defendia a moral e a ética e se condenava o pecado, mas que não passava de um discurso, enquanto a maioria se entregava mesmo aos desejos da carne. Eles pensavam que escancarando ao mundo a sua própria impiedade, este mundo deixaria cair a máscara e se mostraria como realmente era. Ao invés de se empenharem na construção de um ideal verdadeiramente justo, tomaram o caminho oposto, como se colocar o dedo na ferida pudesse curá-la. Certamente não havia o menor interesse em cura, mas o empenho de se esfregar limão e pimenta na chaga. Não passando de outra justificativa para o pecar livremente e sem culpas. Em outras palavras, eles se especializaram em agir exatamente naquilo em que condenavam, a hipocrisia, pois com a desculpa de se "desnudarem" apenas serviam ao propósito dissimulado de se apegarem mais e mais ao próprio pecado.

Então é que entra a questão da ira, a qual é demonizada pela maioria dos cristãos. Quando muito, consideram-na uma prerrogativa apenas de Deus, estando vedado aos homens. Mas, é realmente isso? Paulo nos exorta a irar e não pecar [Ef. 4.26], indicando que não é todo o tipo de ira que se transforma em pecado. Um exemplo de ira santa nos foi dado pelo Senhor Jesus ao expulsar os cambistas e vendilhões do templo [Jo 2.13-17]. Mas, e para nós, quando é justo irar-se e não? Penso que há uma linha tênue que delimita a ira santa e a ira pecaminosa. Como estamos mais sujeitos a adentrar do outro lado da linha, não é prudente o estímulo ao irar-se. Facilmente nos iramos quando vemos uma injustiça. Quando vemos o pecado campear livremente. Quando a palavra de Deus é desprezada. Quando Deus é escarnecido e insultado pelos tolos. A Bíblia diz que todos eles, se não se arrependerem dos seus pecados, serão condenados e afligidos eternamente pela ira divina. E podemos deixar a vingança para o Senhor, como ele mesmo nos orienta, a descansar e confiar nele. Mas normalmente não nos iramos quando somos nós a cometer o pecado e a injustiça, antes nos tornamos condizentes com o nosso erro, com o de familiares e amigos. Contemporizamos, nos fazemos de vítimas, e encontramos as explicações mais espúrias para justificar o injustificável, e nos enganos em nosso próprio senso de [in]justiça. Ao invés de nos irar contra o próximo, contra o pecado alheio, por que não experimentamos primeiramente irar-nos contra o nosso próprio pecado e contra nós?

Entendo que o "irar-se" é menos uma ordem e mais uma concessão divina, enquanto o "não pequeis" é um imperativo. Na maioria das vezes, os motivos da nossa ira são ofensas e injustiças cometidas contra nós mesmos. Há uma nítida intenção de retribuir a afronta, de restaurar a honra. E não há como proceder assim sem ser levado a pecar, basta lembrarmo-nos das reações, imprecações e insultos que realizamos em nome de uma pretensa justiça. Pois nos ressentimos facilmente diante de uma provocação.

Portanto, entendo que o cristão não pode ser "paz e amor" em relação ao pecado, especialmente ao pecado pessoal, às tentações que se nos apresentam diariamente e que consentimos em presenciá-las, consumando o pecado. Essa é a nossa guerra, a nossa luta diuturna, na qual não podemos dar trégua, antes irar-nos e atacá-la francamente, pois ela é ofensa à santidade de Deus. Devemos deixar a justiça para o Senhor, e aqueles que ele estabeleceu como seus ministros, as autoridades que são seus instrumentos para castigar o que faz o mal [Rm 13.4].

Iremos pois, e não pequemos; é a ordem do Senhor.


Nota: 1- Em conversa com o pr. Luiz Tibúrcio, ele entendeu que Cristo, de certa forma, validou essa frase de Ulpiano, ao dizer aos fariseus: "Daí a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus", de forma que, ao se fazer isso, aplica-se a máxima de justiça do jurisconsulto romano.
2- "O Ser de Deus e seus atributos", Dr. Heber Carlos de Campos, pg 341, Editora Cultura Cristã;
3- Aula realizada na EBD do Tabernáculo Batista Bíblico ;
4- Textos analisados durante a exposição da aula em áudio: Gênesis 6 e 7 e 1Crônicas 29: 14-16;
5 - A foto ao alto, remetendo-nos à crucificação do Senhor, e vem de encontro à afirmação do apóstolo Paulo de que Cristo "para nós foi feito por Deus sabedoria, e justiça, e santificação, e redenção" [1Co 1.30];
_________________________________ 

ÁUDIO DA AULA 27:

13 novembro 2023

Estudo sobre a Confissão de Fé Batista de 1689 - Aula 26: A santidade de Deus





Jorge F. Isah
________________________________


CAPÍTULO 2: DEUS E A SANTÍSSIMA TRINDADE

1. O Senhor nosso Deus é somente um, o Deus vivo e verdadeiro, [1] cuja subsistência está em si mesmo e provém de si mesmo; [2] infinito em seu ser e perfeição, cuja essência por ninguém pode ser compreendida, senão por Ele mesmo. [3] Ele é um espírito puríssimo, [4] invisível, sem corpo, membros ou paixões; o único que possui imortalidade, habitando em luz inacessível, a qual nenhum homem é capaz de ver; [5] imutável, 6 imenso, 7 eterno, [8] incompreensível, todo-poderoso; [9] em tudo infinito, santíssimo, 10 sapientíssimo; completamente livre e absoluto, operando todas as coisas segundo o conselho da sua própria vontade, 11 que é justíssima e imutável, e para a sua própria glória; 12 amantíssimo, gracioso, misericordioso, longânimo; abundante em verdade e benignidade, perdoando a iniquidade, a transgressão e o pecado; o recompensador daqueles que o buscam diligentemente; 13 contudo justíssimo e terrível em seus julgamentos, 14 odiando todo pecado, 15 e que de modo nenhum inocentará o culpado. 16 Deus tem em si mesmo e de si mesmo toda a vida, 17 glória, 18 bondade 19 e bem-aventurança. Somente ele é auto-suficiente, em si e para si mesmo; e não precisa de nenhuma das criaturas que fez, nem delas deriva glória alguma; 20 mas somente manifesta, nelas, por elas, para elas e sobre elas a sua própria glória. Ele, somente, é a fonte de toda existência: de quem, através de quem e para quem são todas as coisas, 21 tendo o mais soberano domínio sobre todas as criaturas, para fazer por meio delas, para elas e sobre elas tudo quanto lhe agrade. 22 Todas as coisas estão abertas e manifestas perante Ele; 23 o seu conhecimento é infinito, infalível e independe da criatura, de maneira que para Ele nada é contingente ou incerto. 24 Ele é santíssimo em todos os seus pensamentos, em todas as suas obras, 25 e em todos os seus mandamentos. A Ele são devidos, da parte de anjos e de homens, toda adoração, 26 todo serviço, e toda obediência que, como criaturas, eles devem a criador; e tudo mais que Ele se agrade em requerer de suas criaturas. Neste ser divino e infinito há três pessoas: o Pai, a Palavra (ou Filho) e o Espirito Santo; 27 de uma mesma substância, igual poder e eternidade, possuindo cada uma inteira essência divina, que é indivisível. 28 O Pai, de ninguém é gerado ou procedente; o Filho é gerado eternamente do Pai; 29 o Espirito Santo procede do Pai e do Filho, eternamente; 30 todos infinitos e sem princípio de existência. Portanto, um só Deus; que não deve ser divido em seu ser ou natureza, mas, sim, distinguido pelas diversas propriedades peculiares e relativas, e relações pessoais. Essa doutrina da Trindade é o fundamento de toda a nossa comunhão com Deus e confortável dependência dEle.
________________________________


INTRODUÇÃO

Muito mais do que ser interpretada como apenas uma qualidade moral ou ética de Deus, a sua santidade é outro atributo que o caracteriza como Deus. Sem ela, ele não seria o que é, pois, assim como o Pai é santo [Is 57.15, 1Pe 1.15-16], Cristo também é o Santo e Justo [Is 41.14, At 3.14], e Deus Espírito é chamado de o Espírito Santo de Deus [Ef 4.30]. Temos que a santidade é um atributo sem o qual Deus não seria Deus, e que também é compartilhado necessária e essencialmente pelas pessoas da Triunidade; de forma que é considerado o mais nobre, enfático e exaltado atributo, revelando a majestade e distinção da sua natureza e caráter. É-se necessário dizer que esta distinção tem uma conotação muito mais pedagógica, tanto na Bíblia como na Teologia Cristã, pois sabemos que em Deus não há distinção entre os seus atributos; mas conhecendo-nos como ele nos conhece, foi assim que se revelou, para que pudéssemos conhecê-lo mais adequadamente, e pelo qual ele seria mais excelentemente glorificado. Também, porque, certamente, esse é o atributo que mais nos aproxima do ser divino, e a sua ausência nos afasta; para que pudéssemos dar, ainda que não absolutamente, a devida relevância à santidade, e reconhecer a necessidade de tê-la para que fôssemos novamente ligados a Deus, pela obra sacrificial e redentora de Cristo. Ao mesmo tempo, em que ele se revela como é, e quem é, ordena-nos a ser como ele: santo! Como o Senhor disse a Israel: "E ser-me-eis santos, porque eu, o Senhor, sou santo, e vos separei dos povos, para serdes meus" [Lv 20.26]; no que foi repetido pelo apóstolo: "Porquanto está escrito: Sede santos, porque eu sou santo" [1Pe 1.16].

A santidade, como atributo divino comunicável aos homens, em face da nossa natureza pecaminosa, é um processo laborado pelo Espírito Santo, não podendo, jamais, ser considerada em seu caráter absoluto. Para que o homem se aproxime de Deus é necessário que não haja mancha ou pecado, o que nunca acontecerá por nossos esforços. Ainda que desejamos a santidade, busquemo-la, e sintamos os seus efeitos na alegria de resistir ao pecado e ter comunhão com Deus, estamos constantemente suscetíveis a cair em afronta contra ele. É um sobe e desce em nossas vidas, e como as decidas são mais fáceis, e as subidas requerem esforço, temos sempre a impressão de que nunca chegaremos ao topo. Mas o fato é que estamos lá, e essa é uma gloriosa vitória, ainda que não tenhamos mérito algum nela; pois ela é completamente realizada por Deus, e somente possível pela obra redentora do nosso Senhor Jesus Cristo na cruz. 

Com isso, estou a dizer que uma santidade "relativa", em que ora estamos no estado de santidade [e esse estado de santidade é discutível, pois em nossa imperfeição, muitas vezes estamos diante do pecado sem reconhecê-lo; e pecamos sem a noção do pecado], ora estamos no estado de impiedade, não é capaz de nos aproximar de Deus, muito menos de nos relacionarmos com ele. Até mesmo o arrependimento seria impossível, se Cristo não nos intermediasse e intercedesse. Acontece que a intermediação e intercessão de Cristo por nós é eterna, portanto, a sua interposição entre Deus e nós é absoluta, e somente por ela é possível que nos relacionemos e nos acheguemos a Deus. Do ponto de vista divino, sempre fomos e seremos absolutamente santos, pois a obra redentora do seu Filho Amado, ainda que realizada no tempo, tem o seu caráter imutável e eterno; e o seu cumprimento absoluto resultou no perdão irrevogável, e na comunhão ininterrupta que temos com o Criador. Mas por conta do pecado, ela nos parecerá temporariamente cortada, como se estivesse desligada, e somente retomará o seu curso após o arrependimento para o perdão. Na perspectiva humana, a nossa santidade estará sempre condicionada a ele, posto sermos pecadores miseráveis, necessitados do favor divino: a sua graça infinita e eterna. Para Deus, como o salmista disse, fomos feitos eternamente mais brancos do que a neve, pois lavados e purificados pelo sangue do Cordeiro [Sl 51.7]. É o que Paulo afirma, ao falar da nossa predestinação e adoção por Jesus Cristo, pelo qual somos agradáveis a Deus, santos e irrepreensíveis, eleitos antes da fundação do mundo, segundo o beneplácito da vontade divina [Ef 1.4-6]. 

Com isso quero dizer que não é necessário fazer nada em favor da nossa santidade? Claro que não! O apóstolo nos adverte: "Segui a paz com todos, e a santificação, sem a qual ninguém verá o Senhor" [Hb 12.14]. A ordem é para sermos santos, não a negligenciando, antes batalhando por ela. De uma forma misteriosa, Deus opera em nós tanto o querer como o efetuar, mas temos de querer e fazer, e seguir querendo e fazendo, e assim sentindo, cada vez mais, que somos transformados de glória em glória na sua imagem, refletindo como um espelho a glória do Senhor [2Co 3.18]; que somente acontecerá quando ocupar-nos em conhecer e entender o Deus santo, levando-nos a reconhecer a nossa miséria e imundície, e a ansiar chegar à perfeição do Santo.


A TEOLOGIA DO PECADO

Infelizmente, o mundo nunca valorizou a santidade, e para escândalo do nome de Cristo, muitos dos que se dizem seus discípulos também desprezam-na, apelando para uma "graça barata", em que o pecado, seja qual for o seu grau de malignidade, apenas acentuará a obra redentora. De forma que, ao ver deles, deve-se realizar um esforço sobre-humano para se pecar mais e mais, buscando-se uma overdose de iniquidade, e assim Cristo será exaltado e sua graça louvada pelo muito pecado cometido. Essa distorção apenas revela que tais proponentes da "teologia do pecado" não passam de inimigos da cruz, zombadores, querendo justificar sua rebeldia e transgressão com o mais absurdo dos argumentos, como se o Evangelho fosse bom apenas para  adequarmos a nossa vida, e não o suficiente para transformá-la, e nos tornar em novas criaturas, que tenham a mente de Cristo. 

Torna-se urgente a retomada da sã doutrina e volta ao Evangelho, para o homem ser livre das amarras do pecado; e Deus glorificado por sermos seus imitadores. 


A SANTIDADE, LEI E OBEDIÊNCIA

No mundo de hoje disseminou-se a ideia de que qualquer coisa pode agradar a Deus. Desde que o homem a realize sinceramente [e veremos que muitos erros são cometidos sinceramente e por convicção; e de que, mesmo o pecado também é cometido sincera e convictamente], não importa o quão distante ele esteja dos preceitos divinos, Deus se agradará não pela obediência, mas pelo desejo do homem em agradá-lo. Essa perversão tem o objetivo de "liberar" o homem da submissão e da necessidade de se cumprir a vontade divina, dando vazão à sua independência de Deus que, em sua condição menos danosa [se é que se pode chamá-la assim], permite ao homem conduzir o seu culto a Deus ao invés de ser conduzido por Deus a cultuá-lo corretamente. O que se vê hoje são formas de adoração alheias e em oposição ao ensino bíblico, onde Deus não é glorificado, mas o homem que pode se expressar e extravasar-se livremente num culto cujo padrão é a autoadoração. 

Por isso, Deus nos deu exemplos de que a adoração verdadeiramente santa é a realizada em espírito e em verdade [Jo 4.23-24]. Veja que não se adora apenas em espírito, mas também em verdade. Há uma ênfase muito grande na adoração como manifestação subjetiva do homem, em que as suas sensações terão um lugar primordial. Arrepios, êxtase, catarse, emoções extravagantes são sinônimos de adoração. Não importam os motivos que levaram a isso. Nem que o resultado seja apenas uma "evacuação" da alma, como tirar um "peso" interior. Mas Cristo nos diz que espírito e verdade são fundamentais para a adoração. Um não subsiste sem o outro; de maneira que a adoração morre no altar de Deus se não atuar o Espírito, o qual é a verdade, e o espírito do homem está morto sem ela, pois a verdade é o próprio Deus. 

A fim de que o homem soubesse qual o padrão moral e ético divinos, Deus nos deu a sua lei. Especificamente ela foi dada à nação de Israel, o povo separado por Deus para ser seu, em meio ao mundo pagão e idólatra da época. Ali temos preceitos e normas que distinguiriam os judeus dos demais povos, revelando que eles adoravam ao Deus vivo e verdadeiro, e não aos falsos deuses. Todo aquele código tinha por objetivo revelar que ali encontrava-se um povo separado para e ao serviço do Senhor. E era exortado continuamente a ser santo como Deus era santo; a afastar-se de toda a iniquidade. No sentido moral, significava que Israel deveria manter-se distante, afastado de toda a prática que infringisse os preceitos divinos, de todo o pecado, o qual era, e ainda é, abominação a Deus. Quem desobedecesse estaria sujeito às sanções e punições que o infrator sofreria. Deus se revelava misericordioso e gracioso ao escolher um povo, mas esse povo deveria ser santo, do contrário, a ira e a justiça santas de Deus estaria sobre ele. Na lei estava revelada, ainda que resumidamente, qual era o padrão da santidade divina, e o que os homens deveriam fazer para imitá-lo. É sabido que, em nossa imperfeição e mutabilidade, é impossível cumpri-lo. Coube a Cristo fazê-lo por nós, o justo morrendo pelos injustos, para conduzir-nos a Deus [1Pe 3.18]. 

Vejamos o caso de Uzá [2Sm 6.1-11]. A arca da aliança havia sido tomada pelos filisteus como humilhação máxima, após derrotá-los e matar mais de 30 mil judeus. Então Davi, após derrotar os filisteus, buscou a arca da aliança a fim de levá-la para a sua cidade [1]. A arca foi colocada num carro puxado por uma junta de bois, o que era proibido pela lei, já que a arca só poderia ser transportada pelos levitas que a conduziriam por varais de acácia revestidos por ouro e enfiados nas quatro argolas de ouro colocadas nos seus lados [Ex 25.10-16]. Aqui temos o primeiro erro, ou desobediência. Então, quando os bois tropeçaram, a arca pendeu, como se fosse cair, e Uzá tocou-a, tentando evitar que fosse ao chão. Naquele mesmo instante, a ira de Deus se acendeu contra Uzá, "e Deus o feriu ali por sua imprudência; e morreu ali junto à arca de Deus" [v. 7]. Sempre que lia essa passagem me vinha à mente que Deus não deveria ter agido assim. Afinal, Uzá teve boas intenções; não querendo que a arca caísse. Porém, quando se começa a compreender o real significado do que é a santidade divina, compreendemos que qualquer desobediência é um ataque direto a Deus. Por menor que seja, por mais irrelevante que pareça, Deus, em sua santidade, não pode ser ofendido, nem mesmo através dos objetos que ele estabeleceu como símbolos da sua presença. De nada adiantaram as boas intenções de Uzá, ele havia desobedecido um preceito divino e, mais do que isso, ele foi imprudente; faltou-lhe tino, juízo, cautela, saber avaliar corretamente a situação a fim de não infringir a lei. Em suma, Uzá foi descuidado, relapso, desobediente, ainda que estivesse imbuído do melhor dos propósitos. Acontece que essa "boa-fé" somente pode ser percebida pelos nossos olhos frágeis e enganosos. Aos olhos de Deus, ele cometeu irreverência, violando a sua santa lei [Rm 7.12]. 

Atualmente, onde praticamente tudo é considerado "agradável" a Deus, o exemplo de Uzá é um alerta para que não se negligencie a obediência; sabendo que a lei de Deus é eterna e o padrão através do qual Deus estabeleceu como poderíamos imitá-lo, e assim, pelo poder do Espírito, sermos transformados dia após dia na imagem do seu Filho Amado. 

Resumindo, quero dizer que a obediência é o sinal de santidade. Não que sejamos sempre obedientes, porém, quanto mais nos aproximarmos da obediência de Cristo, mais glorificaremos a Deus no processo de nos tornarmos como ele; uma obra que culminará com a nossa transformação na imagem e semelhança do nosso Senhor. Ainda que não compreendamos certas ordens, como soldados é-nos exigido cumpri-las. A parábola dos dois filhos [Mt 21.28-32], parece-me elucidativa do que digo. Como também já falei, o arrependimento nos leva à santidade através do perdão, com o qual temos comunhão com Deus, mas o arrependimento também nos leva à obediência [v. 29]. Mas tanto o arrependimento como a obediência são reflexos da santidade, de forma que há uma relação intrínseca entre eles de precedência e consequência; atrelados de maneira que se torna difícil distinguir o que é causa do que é resultado. O fato é que santidade, arrependimento e obediência são indissociáveis; e Deus nos exorta a tê-los como prova do caráter de Cristo formando-se em nós. 


A SANTIDADE DE DEUS

Deus é santo. Mas o que significa ser santo? A palavra hebraica que define o "ser santo" é "qadash", derivada da raiz "qad", denotando separar ou cortar. Logo, santo, quer dizer aquele que é separado ou foi cortado de algum lugar. A santidade humana refere-se ao homem que foi "separado" para Deus, e, também, de que ele foi separado do pecado; uma coisa implicando na outra. Parece contraditório em que sejamos chamados de santos por Deus, e vivamos uma vida no pecado [ainda que não integralmente ou mesmo eventualmente]. Como sempre, há de se distinguir o que é eterno e imutável do que é temporal e mutável; do ser perfeito e infinito de Deus e da nossa imperfeição e finitude. Certo é que Deus separou para si um povo santo, que para ele já é e sempre foi santo, porque a sua vontade assim determinou. 

A nossa santidade é derivada e adquirida de Deus, e é ele mesmo que a opera em nós, de forma que a boa obra iniciada se aperfeiçoará até o dia do nosso Senhor Jesus Cristo [Fp 1.6]. O alvo da vida cristã é a santidade, certamente o atributo mais importante, e que nos liga maravilhosamente a Deus. 

Interessante que a Bíblia relata uma série de objetos que eram considerados santos, posto que separados, quer dizer, tirados do seu uso comum como objetivo exclusivo de serem utilizados no serviço de Deus. Temos que as vestes dos sacerdotes eram santas [Ex 28.2]; o lugar do sacrifício era santo [Ex 29.31], os vasos utilizados no templo eram santos [ 1Rs 8.4], e aí por diante. Nesse sentido, tudo o que é separado por e para Deus é santo. Acontece que todas as coisas santas, mesmo o homem, não o são por suas naturezas, mas porque a vontade soberana de Deus estabeleceu que assim seriam. É a sua vontade santa que definirá o que é e o que não é santo, sem que nenhum outro padrão possa ser usado para estabelecer o critério de santidade. E isso somente é possível porque Deus é santo, em seu ser, sua natureza nos revela que ele é absolutamente distinto de toda a Criação. Todos os seus predicados denotam a sua santidade, revelando-nos a singularidade do seu ser, e forma como ele transcende todas as criaturas, não se confundindo com nenhuma delas, estando acima delas, sendo exaltado e glorificado como Senhor supremo, majestoso e excelso, ao qual todos devem exaltar, glorificar e honrar. Deus, portanto, é santo em sua unidade, na relação entre as três pessoas, e pelo fato de que tudo o mais foi criado pela sua vontade e poder, estando sujeito a ele. Nesse sentido, nenhum de nós pode ser santo, pois apenas Deus é. 

Pode-se falar também de um aspecto específico da santidade divina, o caráter ético e moral que nos é revelado pela Escritura. Nesse sentido derivado, temos que Deus é santo porque estabeleceu leis santas para as suas criaturas, segundo a sua própria santidade. A Lei de Deus é santa porque ele é santo, e por ser santo, tudo o que ele faz e ordena também é. De forma que Deus também está separado de todo o pecado, e na plenitude do seu ser absolutamente santo não pode ter comunhão com ele [o que se pode chamar de santidade negativa], porque ele é a perfeição e a pureza majestosa ética [sentido positivo]. Como Berkhof define, a santidade ética de Deus é virtude da qual ele eternamente quer manter e mantém a sua excelência moral, aborrece o pecado, e exige pureza moral em suas criaturas" [2]. 

Deus é luz, e dissipa todas as trevas, para que, como os serafins [3], com o rosto e os pés cobertos clamemos: "Santo, Santo, Santo é o Senhor dos Exércitos; toda a terra está cheia da sua glória" [Is 6.3]. 

____________________ 

Notas: [1] A Cidade de Davi é considerada a parte mais antiga de Jerusalém. Ela está situada sobre uma formação montanhosa na parte sudeste à atual cidade velha de Jerusalém nos dias de hoje;
[2] Teologia Sistemática, Editora Cultura Cristã, pg. 67;
[3] Interessante que os anjos eleitos, mais do que os homens eleitos, se escondem envergonhados diante do trono de Deus, cobrindo rosto e pés em sinal de submissão e reverência. E eles não são pecadores, mas puros como Deus os concebeu. Por que é tão difícil para nós, miseráveis e homens de lábios impuros e que habita no meio de um povo de lábios impuros, como diz o profeta, não nos sentimos envergonhados diante daquele que tudo vê? E reconheçamos a nossa pequenez e insignificância diante do esplendor da santidade de Deus?
[4] Textos analisados durante a aula em áudio: 2 Samuel 6.1-11 e Isaías 6.1-7;
[5] Aula realizada na E.B.D. do Tabernáculo Batista Bíblico .

ÁUDIO DA AULA 26:

06 novembro 2023

Estudo sobre a Confissão de Fé Batista de 1689 - Aula 25: A verdade e fidelidade em Deus






 Jorge F. Isah



INTRODUÇÃO

Ouvimos falar de verdade constantemente, de que fulano falou a verdade, de que determinada frase é verdadeira, de aquela história é verdade, mas também da sua negação: de que isso é mentira, de que fulano é mentiroso, aquela história é falsa. Acontece que está em voga um conceito que se pressupõe verdadeiro quando afirma que não há verdade. A ironia é de que ele despreza e condenada qualquer conceito de verdade, a exceção é a própria afirmação, a sua base interna, de que não há verdade como verdade. Seria risível se não fosse trágico. Muitas pessoas declaram e repetem esse argumento como uma filosofia de vida, mas sua premissa é contraditória e falaciosa. Quando dizem não haver verdade alguma ou de que ela é algo completamente subjetivo, cabendo a cada um, segundo o seu bel-prazer, estabelecê-la e creditá-la, no sentido de que haverá apenas uma verdade pessoal e jamais universal ou objetiva, erram, contudo, ao validarem o seu próprio enunciado como verdadeiro, universal e objetivo. É o que se pode chamar de "samba-do-crioulo-doido", e um exclusivismo que são incapazes de reconhecer em "outras" verdades. Em linhas gerais, o que dizem é não haver verdade absoluta, quando querem que a sua afirmação seja, ela mesma e unicamente, uma verdade absoluta. Isso é o que se denominou chamar de pós-modernidade ou relativismo, onde as verdades podem ser adquiridas como frutas em feiras e descartadas do mesmo modo. Assim como um comprador gosta de maças vermelhas e grandes, outro comprador passará por elas sem qualquer desejo de comprá-las, preferindo frutas menos vistosas como a jaca, por exemplo. Ou seja, a verdade, assim como a fruta, se estabelecerá no indivíduo meramente pelo seu gosto ou predileção [como uma visão individual, onde só existe o "eu" presente], da mesma forma que poderá ser desprezada.

Do mesmo modo, afirmam não haver certo e errado, mas apenas uma verdade situacional, na qual determinado ato ou pensamento parecerá certo em dado momento e, por isso, será certo. O que buscam, ainda que inconscientemente é o caos social e moral, e muitos deles alcançam seus objetivos angariando a simpatia e concordância de outros, e, estilos de vida nitidamente destrutivos para a humanidade se estabelecem ou podem se estabelecer como verdadeiros simplesmente pela presunção ou estímulo de que sejam verdadeiros. O feminismo e o homossexualismo como fenômenos sociológicos, e o marxismo com político, se enquadram nesse sistema destrutivo de práticas anti-humanas [por humanidade, defino o homem como criado à imagem de Deus], onde as colunas-mestras são demolidas e em seu lugar colocadas varetas de mamonas incapazes de sustentar adequada e ordeiramente a sociedade. Não vou entrar na questão religiosa, como esse sistema sendo pecaminoso e a transgressão dos preceitos divinos. Basta verificar que a ausência de absolutos impossibilitaria a própria existência humana, e alegar a relatividade dos valores resulta apenas e simplesmente na baderna e caos, tanto moral como ético, levando a sociedade à destruição ou a sujeição ao totalitarismo.


Assistindo aos Três Patetas [The Three Stooges], em dado momento, Moe e Larry conversam à mesa:

Moe: Só imbecis têm certeza absoluta!

Larry, curioso: Tem certeza?

Moe respondeu, convicto: Claro!


Este trecho foi publicado na postagem "Mistério, Paradoxos e contradições aparentes - Parte 2", e recebi o seguinte comentário de um irmão, o Natan de Oliveira: "Até os Três Patetas sabem refutar o ceticismo...". Entendo que ele quis dizer "relativismo" ao invés de "ceticismo", mas o termo é também apropriado, já que a descrença na verdade absoluta é uma forma de ceticismo.

Mas o que vem a ser a verdade?

Segundo o Michaelis, é 1 Aquilo que é ou existe iniludivelmente. 2 Conformidade das coisas com o conceito que a mente forma delas. 3 Concepção clara de uma realidade. 4 Realidade, exatidão. 5 Sinceridade, boa-fé. 6 Princípio certo e verdadeiro; axioma. 7 Juízo ou proposição que não se pode negar racionalmente. 8 Conformidade do que se diz com o que se sente ou se pensa. 9 Máxima, sentença.

Para Platão, "Verdadeiro é o discurso que diz as coisas como são; falso é aquele que as diz como não são".

Já Aristóteles dizia: "Negar aquilo que é e afirmar aquilo que não é, é falso, enquanto afirmar o que é e negar o que não é, é a verdade".

Temos aqui uma relação entre o pensamento, a linguagem e o objeto como concepção de verdade, de forma que o objeto ou o ser é a medida ou a validação do pensamento ou discurso. Por exemplo, determinado objeto não é branco porque se afirma que ele seja, mas afirma-se como verdade que ele é branco porque é. O cão, por exemplo, tem características diferentes das de um gato, e que o fazem cão e o gato, gato. Não seria a minha afirmação de que um gato é um cão que o tornaria em cão, o que seria falso. Porém, o fato de eu apontar um cão e afirmá-lo como tal é que faz o que digo ser verdade. Em relação aos objetos visíveis, perceptíveis e sentidos essas distinções são fáceis de se verificar. É impossível que o mar seja um rio e vice-versa. Que uma árvore seja uma rocha, e assim por diante. O fato de alguns seres como peixes, aves e repteis se camuflarem e aparentarem ser outra coisa, não os torna nelas. Eles permanecem sendo o que são, a despeito da ilusão visual que provocam. Mas nas questões metafísicas há uma dificuldade maior em se estabelecer o que seja verdade ou não. Não que elas sejam menos reais do que os objetos visíveis, mas é que, dado a nossa limitação, temporalidade e finitude, elas têm menos sentido ontológico para nós.

Quando os proponentes do pós-modernismo ou relativismo dizem que não há verdade objetiva, eles estão a dizer que o mundo e a realidade e, porque não, eles mesmos, não passam de um delírio ou ilusão. Mas acredito que se perguntados sobre a existência de si mesmos, não a negariam. Se o fizerem, o melhor é dar-lhes as costas e não perder tempo em demovê-los da sua loucura.

HÁ UMA VERDADE?

Sim. Não a minha verdade, pessoal e intransferível, ou as verdades de cada um de nós, se contrapondo umas às outras de forma que, no final, não haja verdade alguma mas um amontoado de opiniões, sentimentos e provocações, muitas delas sem qualquer controle ou cabimento. A Bíblia afirma que o homem, no Éden, decaiu, estando sob o efeito devastador do pecado, de forma que a sua natureza agirá motivada por ele. O pecado é o que conduz o homem a negar a Deus, seus preceitos ou Lei e palavra, resultando na negação da verdade. Ficando mais fácil, dessa forma, ele dar vazão à iniquidade, intentando sentir-se à margem da verdade. O que o levará a lutar obstinadamente pela sua demolição, a fim de erigir um altar à mentira, o engano, à imoralidade e corrupção. Destruindo-se a verdade, destrói-se a moral, e está-se mais próximo de si mesmo, do ser decaído, podendo-se negar vergonhosamente como imagem daquele que o formou e, então, negar o próprio Deus. É um esquema maligno e perverso em que o homem busca uma liberdade em si mesmo, a qual é impossível de se obter, visto estar ele preso em sua própria mentira, assim como um pássaro está livre em uma gaiola. De certa forma, há uma liberdade, mas não seria a liberdade absoluta que ele supõe ter, e que somente é possível em Deus.

Este também é o motivo pelo qual se nega que a Bíblia seja a verdade. Negando a sua veracidade, nega-se o seu conteúdo, e a necessidade de aplicá-lo. Então, para eles, o pressuposto é de que não há o Deus bíblico, e, por conseguinte, não há a palavra infalível do Deus bíblico. Ao contrário, para nós, existe o pressuposto de que há apenas um Deus, o Deus bíblico, e de que sua palavra é a verdade. Mais do que nos ater ao conceito filosófico da verdade, resta-nos reconhecer pelo intelecto e pela fé que Deus é sempre verdadeiro e fiel. É o que Paulo diz: "Sempre seja Deus verdadeiro e todo o homem mentiroso" [Rm 3.4].


A VERACIDADE EM DEUS

Ora, se Deus é verdadeiro, há verdade em Deus, pois ele é toda a verdade, e a verdade somente pode proceder dele. Novamente o apóstolo diz que o homem é quem transforma a verdade de Deus em mentira, de tal forma que o seu coração possa estar cheio de imundície; não buscando o conhecimento de Deus, mas antes entregando-se a um sentimento perverso, para fazer coisas que não convém [Rm 1.25, 28]. No verso 29 em diante, ele descreve algumas dessas coisas, as quais ofendem a santidade divina e, por isso, quem as pratica está debaixo do seu juízo. Os homens conhecem o juízo divino, mas para manterem-se presos ao pecado, desejaram e optaram em negar a verdade, e, assim, negar o Deus vivo e verdadeiro; de forma que nem ele, nem o seu conhecimento, nem sua palavra sirvam de padrão máximo para o homem; e ele não repita o que está escrito: "Mas o Senhor Deus é a verdade; ele mesmo é o Deus vivo e o Rei eterno" [Jr 10.10]. Ora, ainda que o homem fale a verdade, e ele a falará, Deus é verdadeiro em seu ser, não havendo mentira nele. A verdade é essencial em Deus, de tal forma que se ele não fizer tudo conforme a verdade, nega-se a si mesmo, e não é Deus. Sem a verdade, Deus não seria Deus. E ele é Deus por ser a verdade.
________________________________

Notas: 1-Aula realizada na E.B.D. do Tabernáculo Batista Bíblic
2- No áudio deste estudo, faço uma análise dos seguintes textos bíblicos, complementando este texto: Jo 14.6, Gn 3.1-6 e Rm 1.22-32 
________________________________ 

ÁUDIO DA AULA 25:


04 novembro 2023

Idiossincrasias Brasileiras

 




Jorge F. Isah



O brasileiro é um tipo engraçado... Ao mesmo tempo em que tem complexo de vira-latas, no dizer de Nelson Rodrigues, se considera digno de ser estudado pela Nasa. Talvez não somente pela natureza caótica, mas, porque, há quem diga, somos descendentes de uma finada civilização alienígena capaz de criar o funk carioca, o PCC, o jogo de bicho e o vatapá sem que essas coisas se misturem; porém, se misturadas fariam a “alegria” dos “Orcs” na Terra Média... Vai ver, por isso, os Ets se extinguiram...

****

Brasileiro gosta e precisa de ídolos. Se nas demais culturas as coisas acontecem naturalmente e o tempo se encarregará de mostrar quem é ou não gênio e merecedor dos louros, por aqui a ideia é produzir um a qualquer custo. Tanto que, anualmente, se espera o fim do programa “Big Brother” para saber quem será o novo fetiche nacional. Não dura muito, mas preenche o orgulho pátrio até a próxima edição do reality show.

****

Há quem duvide que o “menino Ney”, o Neymar Jr., seja brasileiro. Não existe suposição mais esdrúxula que essa, pois nenhum outro pais chamaria alguém, com mais de 30 anos, de guri, sem se perceber o ridículo da situação. Se há um brasileiro, ele é ninguém mais, ninguém menos, que o “menino Ney”.

****

Brasileiro odeia filas, mas não pode ver uma. Se tem fila, tem coisa boa do outro lado, dizem. Por isso, muitos sem saber se aventuram a gastar horas e horas para comprar um eletrodoméstico que não precisa ou a pomada para o prurido que ainda não tem.

****

Brasileiro é supersticioso o suficiente para não passar debaixo da escada, não cruzar com o gato preto na noite de sexta-feira, ou bater 3 vezes na madeira para prevenir o mal-dito. Mas nada se compara ao dia das eleições, quando jura mudar o mundo, enquanto permanece o mesmo.

****

Há coisas típicas que acontecem apenas aqui, no nosso “varonil” pais: se alguém quer entrar em um lugar, mas a saída estiver mais perto, nada melhor do que economizar tempo e esforço, não é!

****

Brasileiro odeia esperar. Tomar “bolo” então... Mas, se dependesse dele, os relógios marcariam dois horários: a hora exata e a provável, e esta seria cada vez mais improvável.

****

Muito se fala em corrupção, propina, e estas coisas milenares pertencentes à nossa cultura desde quando os índios ainda eram índios. Outros tantos se indignam, esperneiam, ameaçam quem é useiro e vezeiro em trapaças. Mas nada melhor, para se acalmar os ânimos e os nervos do que distribuir “bolas”; e não estou pensando em esportes...

****

Outra característica é o pouco caso com as leis. Se lemos: “Proibido jogar lixo”, imediatamente surge o comichão irrefreável de atirar qualquer coisa, nem que sejam as havaianas, e voltar descalço para casa.

****

O Brasil não é lugar para amadores, mas poucos são profissionais. E o que isso quer dizer?... Bem, somos o ponto fora da curva e, misteriosamente, não há explicação.

 _____________________________________ 

Nota: Texto publicado na Revista Bulunga


31 outubro 2023

Estudo sobre a Confissão de Fé Batista de 1689 - Aula 24: A Sabedoria de Deus




 Jorge F. Isah
________________________________


CAPÍTULO 2: DEUS E A SANTÍSSIMA TRINDADE

1. O Senhor nosso Deus é somente um, o Deus vivo e verdadeiro, [1] cuja subsistência está em si mesmo e provém de si mesmo; [2] infinito em seu ser e perfeição, cuja essência por ninguém pode ser compreendida, senão por Ele mesmo. [3] Ele é um espírito puríssimo, [4] invisível, sem corpo, membros ou paixões; o único que possui imortalidade, habitando em luz inacessível, a qual nenhum homem é capaz de ver; [5] imutável, 6 imenso, 7 eterno, [8] incompreensível, todo-poderoso; [9] em tudo infinito, santíssimo, 10 sapientíssimo; completamente livre e absoluto, operando todas as coisas segundo o conselho da sua própria vontade, 11 que é justíssima e imutável, e para a sua própria glória; 12 amantíssimo, gracioso, misericordioso, longânimo; abundante em verdade e benignidade, perdoando a iniquidade, a transgressão e o pecado; o recompensador daqueles que o buscam diligentemente; 13 contudo justíssimo e terrível em seus julgamentos, 14 odiando todo pecado, 15 e que de modo nenhum inocentará o culpado. 16 Deus tem em si mesmo e de si mesmo toda a vida, 17 glória, 18 bondade 19 e bem-aventurança. Somente ele é auto-suficiente, em si e para si mesmo; e não precisa de nenhuma das criaturas que fez, nem delas deriva glória alguma; 20 mas somente manifesta, nelas, por elas, para elas e sobre elas a sua própria glória. Ele, somente, é a fonte de toda existência: de quem, através de quem e para quem são todas as coisas, 21 tendo o mais soberano domínio sobre todas as criaturas, para fazer por meio delas, para elas e sobre elas tudo quanto lhe agrade. 22 Todas as coisas estão abertas e manifestas perante Ele; 23 o seu conhecimento é infinito, infalível e independe da criatura, de maneira que para Ele nada é contingente ou incerto. 24 Ele é santíssimo em todos os seus pensamentos, em todas as suas obras, 25 e em todos os seus mandamentos. A Ele são devidos, da parte de anjos e de homens, toda adoração, 26 todo serviço, e toda obediência que, como criaturas, eles devem a criador; e tudo mais que Ele se agrade em requerer de suas criaturas. Neste ser divino e infinito há três pessoas: o Pai, a Palavra (ou Filho) e o Espirito Santo; 27 de uma mesma substância, igual poder e eternidade, possuindo cada uma inteira essência divina, que é indivisível. 28 O Pai, de ninguém é gerado ou procedente; o Filho é gerado eternamente do Pai; 29 o Espirito Santo procede do Pai e do Filho, eternamente; 30 todos infinitos e sem princípio de existência. Portanto, um só Deus; que não deve ser divido em seu ser ou natureza, mas, sim, distinguido pelas diversas propriedades peculiares e relativas, e relações pessoais. Essa doutrina da Trindade é o fundamento de toda a nossa comunhão com Deus e confortável dependência dEle.
________________________________


INTRODUÇÃO

A sabedoria de Deus é outro dos seus atributo intelectuais [Jó 12.13], o qual também nos foi comunicado; de forma que o homem pode, ainda que não perfeitamente, como Deus, apresentar-se sábio em muitos momentos. Normalmente temos a impressão de que conhecimento e sabedoria são sinônimos, quando, ainda que estejam relacionados, os seus conceitos e aplicações são diferentes. Por exemplo, um homem inculto pode ter grande sabedoria, enquanto um erudito pode não passar de um tolo. O conhecimento é proveniente dos estudos, logo, teórico, enquanto a sabedoria é a capacidade intuitiva de se conhecer as coisas, logo, prática. Pode-se concluir que o conhecimento não depende da sabedoria, um homem pode tê-lo sem que seja necessário usá-lo, enquanto a sabedoria dependerá sempre de algum conhecimento anterior à aplicação.

Mas, o que significa mesmo a palavra sabedoria?

A sabedoria está sempre ligada ao conhecimento, ainda que se discuta a aplicação de um termo melhor, sapiência. Do ponto de vista filosófico, sabedoria refere-se tradicionalmente à conduta racional nas atividades humanas, a possibilidade de dirigi-las da melhor maneira possível. Platão a identifica com sapiência, de forma que não há distinção entre elas, definindo-a como "a mais elevada e, sem a menor dúvida, a mais bela, pois trata da organização política e doméstica, à qual se dá o nome de prudência e justiça" [O Banquete, pg 209]. Aristóteles distingui-a de sapiência, considerando-a o "habito prático e racional que diz respeito ao que é bom ou mau para o homem" [Ética, VI, 5, 1140 b 4]. Como o homem é mutável, por conseguinte, a sua sabedoria também, Aristóteles distingue-a da sabedoria que está acima de tudo, a qual é elevada e divina, portanto, imutável, sendo sempre a mesma. Parece-me que tanto Platão como Aristóteles definem sabedoria como a capacidade do homem viver uma vida virtuosa, prudente, e capaz de discernir entre o bem e o mal, entre o certo e o errado, entre o verdadeiro e o falso. Isso está em acordo com o que a Bíblia nos revela àcerca da sabedoria.

No A.T. a sabedoria se aplica comumente aos homens, como a capacidade dada por Deus para que eles coloquem-no, em suas vidas, no lugar correto e apropriado. A começar pelo temor do Senhor [Jó 28.28, Pv 9.10]. E assim, aqueles que conhecem a Deus refletirão nas questões práticas da vida o seu caráter pessoal, santo e justo, ou seja, o homem aplicará, no seu cotidiano, o ensino revelado por Deus; implicando, primeiramente, no conhecimento da sua vontade, expressa na Escritura, sem a qual não é possível o discernimento, a análise e o emprego dos princípios de certo e errado, que o levará ao juízo correto e a uma vida reta diante de Deus e do próximo.

O termo normalmente utilizado para se referir à sabedoria no hebraico é "hokmâ", e para sábio, "hãkãm", cobrindo toda uma gama de experiências humanas, tanto na aptidão de exercer uma atividade [Ex 31.3,6; Is 10.13; Dt 34.9], como na sagacidade, que é a capacidade de compreensão da realidade, ainda que oculta [2Sm 20.22], como na prudência, a virtude que nos faz prever e evitar as faltas e os perigos e que nos leva a conhecer e praticar o que nos convém [Sl 37.30; Pv 10.31, Sl 90.12]. No caso do cristão, representa ser obediente aos princípios morais e éticos bíblicos, e a evitar as práticas que ferem esses mesmos princípios, revelando que a sabedoria nas questões práticas da vida é derivada, originada, da revelação divina [Is 33.5-6; Pv 2.6]. 

No NT ela é expressa pela palavra grega "sophos" e, normalmente, se relaciona à capacidade de um homem abordar a vida, decorrente da aliança com Deus, logo, é considerada uma dádiva de Deus.


UM EXEMPLO DE SABEDORIA

O exemplo de um homem sábio é o do rei Salomão, filho de Davi. No início do seu reinado, Deus apareceu-lhe em sonho, e disse-lhe: "Pede o que queres que eu te dê" [1Rs 3.5]. Salomão pediu: "A teu servo, pois, dá um coração entendido para julgar a teu povo, para que prudentemente discirna entre o bem e o mal; porque quem poderá julgar a este teu tão grande povo?" [v.9]. Deus assegura então a Salomão que, não somente o faria sábio, mas que nem antes nem depois dele jamais apareceria homem mais sábio do que ele: "Eis que fiz segundo as tuas palavras; eis que te dei um coração tão sábio e entendido, que antes de ti igual não houve, e depois de ti igual não se levantará" [v.12]. A primeira pergunta que vem a mente é: Salomão foi mais sábio que Jesus [comparação que os detratores do Cristianismo fazem com Mt 12.42]? A Bíblia não afirma isso, e o trecho lido não faz alusão a Cristo. Sabemos que Cristo era Deus-homem, o Verbo encarnado, e de que, portanto, não era um homem comum. Sua sabedoria era divina, eterna, infinita, imutável e perfeita. Em Cristo não havia duas pessoas, mas apenas uma, a do Verbo. Duas naturezas, a divina e a humana, mas uma única pessoa. Não há dualismo em Cristo. Pois, sendo Deus, nada relativo à sua natureza humana afetaria a sua natureza divina; temos em Cristo o Deus-homem, não o Cristo Deus e o Cristo homem, como se fossem duas pessoas distintas subsistindo em uma. Muitos afirmam contradição onde não há. O fato é que eles partem do falso pressuposto de que Cristo é apenas um homem e, logo, como poderia a Bíblia afirmar que um homem não encontra igual entre os homens, e, mais à frente, afirma que há um homem maior do que aquele? Contudo, se eles não lessem a Escritura apenas à procura de contradições, se a lessem como o livro inspirado e a palavra do próprio Deus, perceberiam que Cristo não é apenas um homem, mas o Verbo encarnado. Como a premissa deles é falsa, todo o argumento é falacioso e, pior, em sua soberba, falam do que não conhecem e nem querem conhecer. São os ignorantes que não querem abandonar a ignorância, antes querem perpetuá-la, aliciando incautos e fazendo-os repetir seus delírios.

Quando Deus distingue a sabedoria de Salomão da de todos os homens, fala dos seres criados; poderíamos dizer, dos homens comuns, aqueles que estão no mesmo nível do filho de Davi, que carecem e necessitam desesperadamente de Deus. A sua afirmativa está presa ao fato de que Salomão foi um homem cujas decisões seriam tomadas mediante o conhecimento claro, direto, imediato e espontâneo da verdade. Ele teria uma percepção, pressentimento, ou melhor, a intuição do que fazer, e assim decidir com justiça. O relato da disputa de duas mulheres por uma criança, em que ambas se diziam a mãe do bebê, revela-nos o grau de sabedoria ao qual Deus está se referindo [1Rs 3.16-28]. Não o conhecimento e o discernimento infinitos, perfeitos e eternos que o Senhor Jesus tem, mas, simplificadamente, a capacidade que Deus deu ao rei de julgar corretamente. Parece-me mais a capacidade de avaliar e decidir pela verdade, o que não quer dizer que ele detenha a verdade, nem a conheça exaustivamente. Como se dirigiu a Deus, o seu pedido foi limitado ao julgamento das coisas terrenas, das disputas humanas, e a sentenciar retamente, diante de um povo tão grande. Ainda que as decisões fossem complexas, como o exemplo citado das mães e do bebê. A sabedoria de Salomão era divina [v.28], no que se referia à justiça em Israel, mas de forma alguma quer dizer que Salomão fosse sobrenaturalmente sábio, infalível e perfeito como Cristo. O fato dele decidir mal em relação à própria vida pessoal, ao cuidado da sua casa, e quanto ao permitir que se erguessem altares de deuses pagãos em Israel, os quais eram adorados livremente, demonstra que essa sabedoria não era exaustiva, nem abrangente, nem perfeita em unidade. 


A SABEDORIA EM DEUS

Sendo Deus sábio, a sabedoria é necessária e essencial em seu ser, de forma que ele não poderia ser o que é sem ela. Como já foi dito, a sabedoria divina é perfeita, eterna, infalível e imutável; de forma que encontram-se escondidas, em Deus e em Cristo, todos os tesouros da sabedoria e da ciência [Cl 2.3]. Ela é originária em Deus, e somente ele a detém. Ainda que os homens possam ser considerados sábios em vários momentos, somente Deus é sábio eternamente. O homem pode ter momentos de sabedoria, mas a sabedoria não se confunde com o ser humano, e torna-se inadequado afirmar que o homem seja sábio. Temos "flaches" de sabedoria, em que nossas decisões e ações refletem o conselho divino, mas, na maioria das vezes, estamos distantes, e acabamos produzindo a insensatez e o desatino. Ela também se desenvolve no homem, é progressiva, adquire-se com o passar dos anos. Em Deus, ele é a sabedoria, e somente ele pode ser chamado de sábio, em seu sentido absoluto, como uma propriedade ou qualidade singular, própria e exclusiva dele. Diferente do homem, Deus não aprende nem exercita a sua experiência. Deus sabe e é eternamente. A sabedoria é inerente a ele, não podendo ser acrescentada nem diminuída, como se houvessem graus de sabedoria em Deus. Deus tem toda a sabedoria, que em sua perfeição e eternidade é imutável e infinita. Muitas vezes a infinitude nos dá uma ideia de desenvolvimento, de progressão, um conquistar no tempo e no espaço, porém, tudo que progride é finito, e o finito jamais será infinito. Deus é infinito, e somente ele conhece a sua infinidade. Assim como somente ele conhece a sua sabedoria, que para nós é incompreensível em sua totalidade. Como está escrito: "Grande é o nosso Senhor, e de grande poder; o seu entendimento é infinito" [Sl 147.5]. E, como poderia o homem medir a sabedoria divina? De maneira alguma, porque quão profundas são as riquezas, tanto da sabedoria, como do conhecimento de Deus! Quão insondáveis são os seus juízos e quão inescrutáveis os seus caminhos [Rm 11.33]. Resta-nos quedar admirados e fascinados com tão grandiosa revelação, sabendo que, se queremos ser homens sábios, devemos buscá-la em Deus, que é o único que a tem. Tiago nos diz para pedi-la, pois Deus a dá liberalmente. Mas, primeiro, devemos reconhecer que a temos em falta; e nos humilhar diante daquele que a tem em abundância, e a dará certamente.

Sábio também é aquele que, ao invés de confiar na própria sabedoria [o que em si, já é sinal de sabedoria], e enganar-se a si mesmo, deposita a sua confiança em Deus, sabendo que a sabedoria do mundo é loucura diante de Deus, para que nenhuma carne se glorie perante ele [1Co 3.18-21; 1.29]. Por isso, ninguém é chamado de filho por ser sábio, no sentido em que o mundo conhece, porque ele não pode conhecer a Deus por sua sabedoria. Muitos dos que foram chamados, a maioria de nós, não o foram por serem sábios, poderosos ou nobres na carne; porque, como está escrito, aprouve a Deus escolher as coisas loucas deste mundo para confundir as sábias, e as que não são, para aniquilar as que são [1Co 1.26-27]. Se buscamos saber aos moldes do mundo, nosso esforço será infrutífero. Mas se empenharmo-nos em aprender de Deus, através da sua santa palavra, quão sábio seremos, pois cumpriremos a sua vontade de viver neste mundo em santidade, separados para ele. Se é do Senhor que vem o conhecimento e o entendimento [Pv 2.6], busquemo-lo, e ele se revelará a nós, dando-nos gratuitamente o que granjeamos: que Cristo faça abundar para conosco em toda a sabedoria e prudência, descobrindo-nos o mistério da sua vontade [Ef 1.8-9], e, repetindo, em quem estão escondidos todos os tesouros da sabedoria e da ciência.

____________________________ 

Notas: 1-Aula realizada na E.B.D. do Tabernáculo Batista Bíblico;
2-A sabedoria de Deus está presente em tudo, e não há nada que ele faça mais ou menos sábio, pois ele é a própria sabedoria. Ela tanto está presente na Criação, na Escritura, como na redenção através da obra do nosso Senhor Jesus Cristo. Por isso, optei em postar uma foto que simbolizasse um entre todos os atos sábios divinos, a crucificação e morte na cruz do nosso Redentor. 
____________________________ 

ÁUDIO DA AULA 24: