07 março 2023

Sermão em Filipenses 4.1-3: "Firmes e em paz!"

Por Jorge F. Isah


PRIMEIRA PARTE: INTRODUÇÃO


Bom dia, irmãos!

O Pastor Luiz Tibúrcio e sua família tiraram alguns dias de férias, descanso que não tinham há alguns anos, então, fui incumbido de pregar hoje, em nosso culto, uma honraria imerecida, mas que pela graça de Deus espero cumpri-la para a sua gloria.

Esta honra se faz ainda maior por ser o primeiro culto do ano e, também, o primeiro sermão. Não por haver algo de excepcional ou encantado nesta data, o primeiro domingo de 2015, mas pelo fato de o Ano-Novo guardar uma expectativa e a promessa de novas realizações, decisões e empreendimentos, levando muitos a acreditarem em algo sobrenatural ou mágico apenas por iniciar-se um novo ciclo. Alguns esperam realizar o que não conseguiram no ano anterior, outros elaboram planos, projetos e metas a cumprir, como uma promessa inicial. Trabalhar ou estudar mais; descansar ou curtir a vida mais; emagrecer ou iniciar a prática de algum esporte; ler um certo número de livros; ficar noivo ou casar; ou seja, há um certo misticismo na virada de ano, uma esperança em realizar sonhos e expectativas. Talvez renovar as esperanças de cumprir o que prometera a si mesmo no penúltimo ano... Um compromisso de fazer o que prometeu e não realizou.

Contudo, não há nada demais além da mudança de páginas no calendário. Este é um dia como outro qualquer, e para os crentes é mais um dia de agradecimento, louvor e glória ao nosso Senhor. O máximo permitido pela minha imaginação é elaborar um resumo de todas as bênçãos e providências divinas, agradecendo-o por tê-las dado. Assim devem ser todos os dias, em todos os anos, durante toda a nossa vida, seja aqui ou na eternidade.

Por isso, nada mais justo do que rendermos a Deus toda a glória devida; observando alguns mandamentos ou ordens deixadas por ele.

Escolhi, então, o trecho mais importante em minha caminhada cristã (senão o mais, um dos mais), e que causou-me um grande impacto ao lê-lo pela primeira vez; e está na Carta de Paulo aos Filipenses, no capítulo 4, verso 1 a 4, e diz:

“Portanto, meus amados e mui queridos irmãos, minha alegria e coroa, estai assim firmes no Senhor, amados. Rogo a Evódia, e rogo a Síntique, que sintam o mesmo no Senhor. E peço-te também a ti, meu verdadeiro companheiro, que ajudes essas mulheres que trabalharam comigo no evangelho, e com Clemente, e com os meus outros cooperadores, cujos nomes estão no livro da vida. Regozijai-vos sempre no Senhor; outra vez digo, regozijai-vos.”


SEGUNDA PARTE: CONTEXTO

Entendamos o contexto em que o Apóstolo escreveu esta carta:

1 – Esta carta é considerada uma das mais belas e amorosas do Novo Testamento. Nela, Paulo abre e derrama o seu coração aos filipenses, como uma igreja das que mais alegria trazia-lhe, pois sempre estiveram juntos do Apóstolo em todas as suas viagens, auxiliando-o de várias maneiras, seja na colaboração efetiva da pregação do Evangelho, seja no sustento material, em orações, ou seja, em muitos momentos, dos mais difíceis, a igreja de Filipos estava pronta, a disposição, para auxiliá-lo em seu trabalho.

2 - Ele estava preso em Roma, acusado injustamente pelos judeus de levar gentios ao templo, o que era proibido.

Lucas relata os motivos pelos quais Paulo foi preso, e os irmãos certamente hão de lembrar pois o Pr. Luiz tem desenvolvido esse estudo expositivo no livro de Atos:

“E quando os sete dias estavam quase a terminar, os judeus da Ásia, vendo-o no templo, alvoroçaram todo o povo e lançaram mão dele, clamando: Homens israelitas, acudi; este é o homem que por todas as partes ensina a todos contra o povo e contra a lei, e contra este lugar; e, demais disto, introduziu também no templo os gregos, e profanou este santo lugar. Porque tinham visto com ele na cidade a Trófimo de Éfeso, o qual pensavam que Paulo introduzira no templo.” [At 21.27-29]

3 – Depois de preso e levado a Roma, Paulo ficou sob os cuidados da guarda pretoriana, a elite do exército romano, os soldados mais bem treinados, e responsáveis pela proteção do imperador.

4 - Os cristãos eram perseguidos, presos e mortos tanto por judeus como por romanos.

5 - Ser cristão era o mesmo que estar condenado à morte, no primeiro século. A acusação básica dos judeus era a idolatria, acreditar que o Pai, o Filho e o Espírito Santo era Deus. A acusação dos romanos era a desobediência cristã em não adorarem os seus deuses, especificamente o César, o Imperador, que era o poder divino instaurado na terra.

Não é difícil perceber, naquele tempo, que as coisas não eram fáceis, pelo contrário, havia todo o tipo de provações e sofrimento para os cristãos. Mas, como o próprio Apóstolo reconheceu, “De maneira que as minhas prisões em Cristo foram manifestas por toda a guarda pretoriana, e por todos os demais lugares; e muitos dos irmãos no Senhor, tomando ânimo com as minhas prisões, ousam falar a palavra mais confiadamente, sem temor” [Fl 1.13-14]. Mesmo diante da limitação de pregar e levar o Evangelho, posto estar confinado a um espaço exíguo, provavelmente algemado a dois soldados, ele levou a Palavra a toda a guarda pretoriana, evangelizando-a, e, por causa desse testemunho, muitos irmãos sentiram-se fortalecidos e, ousadamente, proclamavam a palavra de Deus em todos os lugares, sob todas as condições.

É nesse ambiente hostil, tendo a sua liberdade cerceada, acusado injustamente de um crime que não cometeu, privado de levar pessoalmente o conforto, o ensino, a orientação aos irmãos nas muitas igrejas plantadas por si, e impedido de evangelizar livremente, que Paulo escreveu aos filipenses. Acontece que nada impede os desígnios divinos, e estava decretado que ele haveria de levar Cristo até Roma, para dentro do palácio imperial, para os corredores e salões da elite romana, sob as barbas do tirano e assassino, Nero; ocasionando na conversão de muitos, como atesta ao fim da epistola:

“Todos os santos vos saúdam, mas principalmente os que são da casa de César” [Fp 4:22].
Podemos ver que não há desculpas para não evangelizarmos, pois assim como Paulo, todo lugar, toda condição, toda situação é propícia para levarmos a mensagem de vida, o Evangelho das Boas-Novas, de que Cristo, o Filho de Deus, morreu para ajuntar a si um povo santo.



TERCEIRA PARTE: PRIMEIRAS EXORTAÇÕES

Pois bem, além deste momento, você já parou para pensar na profundidade do que Paulo nos diz, e de termos uma ordem e não uma opção a qual podemos ou não aceitar?

No início do capítulo 4, há ordenanças ou obrigações apontadas por Paulo para a igreja de Filipos. Senão, vejamos:

Verso 1: “Portanto, meus amados e mui queridos irmãos, minha alegria e coroa, estai assim firmes no Senhor, amados.”

Primeiramente, Paulo chama os filipenses de “meus amados e mui queridos irmãos”. Declarando o seu contentamento, alegria e amor sentidos por aquela igreja, capaz de leva-lo a exortá-los com carinho, fraternidade e bondade. Os filipenses são a sua alegria e coroa, como um troféu do seu ministério, uma honraria na qual se deleitava por tê-los como irmãos e auxiliadores; aqueles irmãos que auxiliaram o seu ministério com orações e petições a Deus, mas também materialmente, na Macedônia, em Corinto, em Tessalônica, sendo a única, em vários momentos, a comunicar-se com ele, para o efetivo avanço do seu ministério.

Em seguida, ele exorta-os: “estai assim firmes no Senhor”. Ora, não é um mero pedido, um conselho, ou uma possibilidade dada à igreja, mas uma ordem. O verbo “estai” está na forma imperativa, como uma necessidade, um dever, um compromisso assumido ao qual se deve submeter.

Mas eles deveriam estar firmes em quem ou no quê? No Senhor! Não é em qualquer coisa ou em si mesmos. Não podemos nos firmar em nós mesmos pois somos inconstantes, imperfeitos, falhos, e, caso dependêssemos de nós mesmos não alcançaríamos nada além da justa condenação por nossos pecados e fraquezas, culminando na garantia de um lugar no Inferno.

Se nossa dependência é completa e total de Deus, somente podemos estar firmes se estivermos nele. Como o salmista diz:

“O Senhor é o meu rochedo, e o meu lugar forte, e o meu libertador; o meu Deus, a minha fortaleza, em quem confio; o meu escudo, a força da minha salvação, e o meu alto refúgio” [Sl 18.2]

E, ainda:

“O Senhor é a minha luz e a minha salvação; a quem temerei? O Senhor é a força da minha vida; de quem me recearei? Quando os malvados, meus adversários e meus inimigos, se chegaram contra mim, para comerem as minhas carnes, tropeçaram e caíram. Ainda que um exército me cercasse, o meu coração não temeria; ainda que a guerra se levantasse contra mim, nisto confiaria. Uma coisa pedi ao Senhor, e a buscarei: que possa morar na casa do Senhor todos os dias da minha vida, para contemplar a formosura do Senhor, e inquirir no seu templo. Porque no dia da adversidade me esconderá no seu pavilhão; no oculto do seu tabernáculo me esconderá; pôr-me-á sobre uma rocha” [Sl 27.1-5].

Em nenhum momento o salmista se exaltar ou se vangloriar com a sua própria força, por estar firme em si mesmo, por ser ele o seu libertador, ou em quem confia. Sabendo que foram escritos por Davi, o homem segundo o coração de Deus; que quando ainda um jovem derrotou o temido gigante Golias; que liderou o exército de Israel em dezenas de batalhas vitoriosas contra os seus inimigos; foi Rei, conquistou e erigiu a mais forte nação do Oriente Médio à época; não é interessante ele não fazer nenhuma menção aos seus dons, feitos e habilidades? À sua força, valentia, inteligência e liderança? Pois bem, ele sabe quem é, e sabe-se totalmente dependente e sujeito a Deus, não colocando nenhuma esperança em si mesmo, posto reconhecer-se incapaz sem os favores e bênçãos divinas.

Sabendo disso, Paulo exorta, conclama, ordena, a igreja de Filipos a manter-se firme no Senhor. Este é o primeiro ponto abordado pelos profetas, não confiar em si mesmo, não depositar as esperanças em si mesmo. E qual o segundo?

Se não devemos e podemos confiar em nós mesmos, devemos confiar em outrem; o qual não é outro senão o Senhor da glória, Cristo! Se estamos nele, e ele em nós, precisamos de uma comunhão constante, ininterrupta e arraigada nele. Este segundo ponto fala da perseverança dos santos, de mantermo-nos firmes em Cristo até o fim. É claro que não fazemos isso por nós mesmos, já que é o Senhor quem nos preserva, nos sustenta, e garante a nossa santidade. Mas há um componente humano, transformado e motivado pelo Espírito: queremos e ansiamos permanecer firmes em Cristo, crendo inabalavelmente que nos conservará, impedindo-nos de cair na vida miserável e desgraçada de antes, de voltarmos, como o cão ao próprio vômito e a porca lavada ao espojadouro de lama [2Pe 2:22]. De uma maneira maravilhosa, sabemos ser o Senhor quem nos suporta e ampara nesta caminhada, mas também ansiamos permanecer nela, pelo seu poder, graça e favor.

Então, particular e individualmente (talvez porque elas, mais do que outros, necessitavam deste encorajamento, visto haver uma divergência entre elas ou entre elas e a igreja), roga a Evódia e a Síntique que sintam o mesmo, viver em paz, em unidade, e em harmonia entre si e com a congregação. Muitas vezes, este é um sério problema na igreja; por um desentendimento ou mesmo falta de compreensão, um irmão se aborrece com a igreja e pensa em abandoná-la, ou então permanece destilando a sua insatisfação. É claro que não existe uma igreja perfeita e, penso, não existiu nem existirá uma na terra; e damos vazão à carnalidade e ao pecado quando promovemos dissensões ou disputas dentro dela. Deus deu um dom para cada um dos irmãos, e é a unidade e harmonia desses dons que fará a igreja crescer, podendo crescer numericamente, mas, sobretudo, em maturidade espiritual, na realização da sua obra.

Paulo cita especificamente Evódia e Síntique, duas irmãs, o que seria, nos tempos atuais, um absurdo na igreja. As pessoas vêm-se como independentes, donas dos seus narizes, num estado de autonomia tal que ninguém, nem mesmo a igreja, tem algo a ver com a sua vida. Por isso, há um número cada vez maior de pessoas que se dizem crentes e estão fora da igreja, não congregam, não têm comunhão, não realizam a obra de Deus, nem compartilham do grande ministério de ajudarem-se mutuamente, consolando, exortando, orando, instruindo e sendo instruído. Já imaginou se o pr. Luiz Carlos, por exemplo, exortasse irmãos nominal e publicamente a apaziguarem os seus corações e viverem em unidade com os demais?

Imagino a resposta: “Mas o que o pastor tem com isso? Não é problema seu, mas meu!”; “A igreja cuida da vida dela e eu cuido da minha”, ou alguma desculpa similar.

Há uma geração inteira de “crentes” que acreditam piamente na falácia de haver uma distinção entre as suas vidas e a vida cristã, de maneira que apenas algumas horas por semana são devotadas à última, e, quanto ao restante do tempo, a face não-eclesiástica, ninguém, muito menos a igreja tem algo com isso. O crente autônomo está em conformidade com o pensamento mundano e deste século, no qual ele está sujeito a praticamente tudo, às normas e regras do Estado, do seu empregador, do mercado (caso seja o empregador), do seu condomínio, no trânsito, na escola, no hotel, ou seja, onde estiver ele deve se submeter a regras e, caso não o faça, arcará com as consequências pecuniárias, de espaço (sendo impedido de entrar nos locais onde é um indesejado ou é-lhe vedado), e até mesmo com a privação física (a prisão ao descumprir uma lei capital). Mas, quanto a se sujeitar à igreja, a qual foi constituída por Cristo como o seu Corpo, ah, isso jamais!

Em 1 Co 5:11-13, Paulo ordena à igreja para tirar o iníquo de dentro dela. Por que? Para que seja julgado por Deus, pois é ele quem julga os que estão fora da igreja (v.13); mas, na igreja, o Corpo é que tem a prerrogativa e autoridade para fazê-lo, não se deixando eximir da responsabilidade dada (v.12).

Ao se retirar um ímpio da igreja, ele perde a proteção eclesiástica e, portanto, será julgado por Deus; pois a igreja não será julgada, posto Cristo ter morrido por ela, e limpado-a de todos os seus pecados.

Então, a conclusão não é outra senão a seguinte: os “crentes” que insistem em permanecer fora da igreja, por estarem em desobediência, ao terminarem suas vidas assim, serão julgados por Deus, pois é ele quem julga os de fora, o que não é uma coisa boa, estar passível e sujeito ao julgamento divino. O estado desses “crentes” é o mesmo de um não-crente, um ímpio, e por isso, mesmo achando que são melhores (e o fato de não haver uma igreja boa o suficiente para eles demonstra um grau exacerbado de superioridade e orgulho pessoal), estão se colocando entre os piores, entre aqueles que serão julgados por Deus. Cristo diz:

“Quem não é comigo é contra mim; e quem comigo não ajunta, espalha” [Mt 12.30]; uma clara alusão à posição do homem diante da neutralidade, ou seja, nenhuma. Ninguém é neutro diante de Cristo. Ou se está com ele ou não se está; ou se trabalha com ele ou não.

Alguns apontarão que Paulo está a falar de uma igreja universal e invisível, mas ao destinar a sua carta a igreja de Corinto, de citar pecados e omissões dos irmãos de Corinto, e de ordenar que coloquem para fora o ímpio da igreja de Corinto, não há como se pensar em igreja universal e invisível, mas em corpo local, congregacional e visível (por isso a redundância intencional em repetir a qual igreja ele destinava a sua ordem). E os dentro da igreja serão julgados por ela, como irmãos salvos e remidos pelo sangue de Cristo (convenhamos, um julgamento muito mais brando do que o divino), a corrigirem o seu caminho, a voltarem à verdade, arrependerem-se dos seus pecados, serem perdoados pela igreja, o corpo, e pela cabeça, Cristo.

Voltando ao texto de Filipenses, no verso 3, o apóstolo exorta um companheiro na fé a ajuda-las, Evódia e Síntique, na reconciliação, no trabalho e harmonia dentro da igreja dos filipenses. Há um componente interesse no relato do Apóstolo: essas duas mulheres haviam trabalhado com ele, na propagação, na difusão do Evangelho em Filipos, juntamente com Clemente e outros colaboradores, como puderam então se distanciarem, ao ponto de uma não mais cooperar com a outra na igreja?

Infelizmente, algumas vezes, damos vazão aos dardos inflados de Satanás, deixando o nosso orgulho e vaidade se sobreporem ao amor, à piedade, à unidade laboral. Como já disse, cada um de nós recebeu um dom do Senhor, e a união desses dons é que fazem a igreja progredir e crescer no conhecimento de Deus e da sua vontade. Evódia e Síntique, duas irmãs empenhadas no auxílio ao ministério de Paulo, trabalharam em outros tempos juntas, em comunhão, visando um único bem, levar o nome de Cristo ao conhecimento dos filipenses. Provavelmente, elas passaram por muitas lutas, obstáculos e provações, e, agora, a igreja estava plantada mas elas não se entendiam. Não sabemos os motivos pelos quais antipatizaram-se mutuamente, mas creio que o motivo foi, pois via de regra é, a falta de perdão, motivada pelo orgulho. Há um ditado mineiro que diz: quando um não quer, dois não brigam. E pode ser aplicado na vida por qualquer pessoa, mas, especialmente os cristãos devem estar imbuídos do espírito de não contenda, de inimizade.

Em Gálatas 5:20, Paulo relaciona a inimizade como fruto ou obra da carne, algo a ser combatido pelas igrejas. Porém, o problema parece muito mais frequente, ao ponto de haver sectarismo, desde os primórdios do Cristianismo. Aconteceu até mesmo no grupo seleto do Senhor Jesus. Em Mateus 20.20, a mãe de Tiago e João, juntamente com os filhos, aproximaram-se de Jesus para adorá-lo e fazer um pedido. E qual era o pedido? Que os seus dois filhos assentassem, um à direita e outra esquerda do Senhor (v.21). Cristo respondendo-a, disse: “Não sabeis o que pedis. Podeis vós beber o cálice que eu hei de beber, e ser batizados com o batismo com que eu sou batizado?” (v.22). Eles disseram que sim, podiam. Jesus confirmou, afirmando que eles beberiam do seu cálice e seriam batizados como mesmo batismo com que ele era batizado, “mas o assentar-se à minha direita ou à minha esquerda não me pertence dá-lo, mas é para aqueles para quem meu Pai o tem preparado” (v.23).

Após ouvirem o diálogo, como se comportaram os outros dez apóstolos? Se indignaram contra os Tiago e João (v.24). Nesse momento, temos uma disputa entre eles; de um lado os filhos de Zebedeu, do outro, os demais apóstolos. E qual o motivo da disputa? Um lugar especial ao lado do Senhor. Ora, mas todos queremos um lugar mais próximo de Cristo, não é? Porém, esse lugar não pode ser exigido, pois, se o for, demonstrará haver um mérito pessoal, um destaque especial, para se alcançar o posto. E, felizmente, essa prerrogativa não é do homem mas de Deus. O erro, em algum momento, foi Tiago e João considerarem-se merecedores daquela posição, de estarem sentados lado a lado do Senhor. Houve um pouco de tudo, arrogância, ambição, e desprezo aos demais apóstolos. De alguma maneira, eles se consideravam mais merecedores daquela posição do que os demais, uma honra destinada apenas a eles, ao ponto de, alertados pelo Senhor quanto ao absurdo do pedido, algo impróprio e inadequado (“Não sabeis o que pedis”), eles não titubearam, mesmo quando Jesus acrescentou: Podeis beber do cálice que ei de beber e ser batizados com o batismo com que eu era batizado?, e disseram: Sim, Senhor, podemos! Será que por algum momento eles tiveram a noção exata do que viria a ser o cálice bebido por Cristo e o batismo no qual ele estava batizado? Será que no afã de terem os seus lugares ao lado do Senhor, uma honra e uma glória pessoal, responderam sem meditar nas consequências, sem saber o que representavam verdadeiramente, e de uma maneira autômata estavam dispostos a tudo, mesmo o que não sabiam ao certo, para ocuparem aqueles lugares de destaque?

Fato é o Senhor ter-lhes respondido que beberiam o seu cálice e seriam batizados com o mesmo batismo. Mas, o que isto representa? Cristo estava a falar do seu sofrimento, da sua agonia, culminando com a morte na cruz. O cálice bebido era amargo, triste, doloroso, e, mesmo inconscientemente, João e Tiago aceitavam um sacrifício desconhecido, ou seja, como não sabiam o que pediam, também não sabiam o que respondiam ao Senhor, pois não tinham ideia do significado daquelas palavras, nem conheciam o destino que lhes estava reservado; se a pergunta foi tola, a resposta foi ainda maior, tudo para obterem um lugar de destaque no Reino. E não sei até que ponto surpreenderam-se com a resposta de Jesus, de que beberiam do mesmo cálice e seriam batizados com o mesmo batismo; mas acredito que o orgulho deles aumentou, e a consciência de merecerem o lugar de destaque aumentou, já que a prova apresentada seria realizada, mesmo sendo-lhes, naquele momento, algo obscuro, um enigma. Cristo, porém, encarrega-se de dar-lhes um banho de água fria, ao proferir que a incumbência de escolher quem estará à sua direita e à sua esquerda não é ele, mas o Pai o destinará a quem tem preparado tal honraria.

Em seguida, os outros discípulos, observando o desenrolar da conversa, indignam-se com João e Tiago. Eles sentiram-se inferiorizados, menosprezados, humilhados pelo pedido dos “filhos do trovão” (Lc 9:51-56). De alguma maneira, eles se colocaram como vítimas da ofensa dos irmãos, mas, não agiriam eles igualmente? Em Lucas 9:46-48, o texto fala-nos de uma discussão, entre todos os apóstolos, para se saber qual era o maior entre eles. Esse não era um sentimento apenas dos filhos de Zebedeu, mas havia uma disputa interna, na qual o Senhor sempre os repreendia, a fim de entenderem a verdadeira mensagem de que, assim como ele, sendo Deus fez-se homem para ajuntar para si um povo, humilhando-se na cruz, o maior seria o menor e o menor seria o maior. Diferentemente da forma como as coisas se conduzem no mundo, um mundo caído, contaminado e dominado pelo pecado, onde os grandes e poderosos exercem autoridade sobre os pequenos e fracos, entre os seus discípulos não seria assim; aquele que quiser fazer-se grande ou o primeiro seja o que serve. E explica porquê: “o Filho do homem não veio para ser servido, mas para servir, e para dar a sua vida em resgate de muitos” (v.28).

Ora, se Cristo, sendo o Filho unigênito de Deus, aquele no qual está toda a glória e poder e honra e perfeição, veio ao mundo para servir, por que os homens cogitariam algum privilégio que não fosse o servir, também? Se o Mestre estava a serviço de muitos, o que dizer dos discípulos, cuja missão era somente aprender e praticar o ensino ministrado? Desta forma, Jesus ensina-lhes o caminho da humildade e da servidão, antagonicamente oposto ao caminho trilhado pelo homem natural, onde o poder, a soberba e o status de ser servido é o senso comum, um reflexo da condição pecaminosa da humanidade de se exaltar e fazer de si mesmo um ídolo efêmero, cujos tropeços espelham o estado de queda espiritual no qual subsiste.

Outro exemplo de disputas dentro da igreja foi relatado por Paulo em 1 Coríntios 3:3-7. Aquela igreja vivia divisões insanas, formando grupos distintos e rivais, usando-se da figura de Cristo, Paulo e Apolo para criar uma competição onde havia unidade. Paulo e Apolo não eram rivais, mas estavam unidos em um só propósito, em uma única missão, levar o conhecimento, a palavra e a fé em Cristo para os incrédulos. Cada um tem a sua missão, segundo o dom dado por Deus, e não há motivos também de vangloria, mas de humilhação, pois nem quem planta ou rega é alguma coisa, mas Deus quem dá o crescimento. Uma semente pode ser jogada no solo, regada e não brotar. De nada adiantará o trabalho da semeadura e de molhar a terra, se ela não germinar, crescer e der frutos. Deus utiliza-se da instrumentalização humana para realizar a sua obra, mas a obra é dele, não dos instrumentos. Como já disse algumas vezes, somos como um bisturi nas mãos de um cirurgião, que pode usar o laser ou outro artefato para realizar a operação, enquanto o bisturi, por si mesmo, não pode fazer nada. Paulo e Apolo eram instrumentos, assim como João, Pedro e tantos outros irmãos foram nas mãos providentes de Deus, e é ele quem opera, usando os seus servos. Seremos glorificados? Sim. Por nossos méritos? Não. Mas pela graça infinita de Deus, porque ele quer partilhar a sua glória conosco, e isso o alegra e o apraz.

CONCLUSÃO:

Pois bem, Paulo, seguindo os passos de Cristo, distribui a honra do seu ministério com todos os seus colaboradores, homens e mulheres, cada um com o seu dom e missão dentro da igreja; cada um como instrumento de Deus na realização da sua obra; cada um cumprindo o propósito estabelecido por ele antes da fundação do mundo; logo, qualquer orgulho, vaidade e, não nos esqueçamos da inveja, são pecados plantados pelo diabo para trazer transtorno, para atrapalhar a missão à qual a igreja foi constituída, para embaralhar os irmãos, fazendo-os tropeçarem em seus próprios pés e caírem.

A igreja é unidade de propósitos, de ações, visando exclusivamente a glória de Deus e a expansão do reino de Cristo. Qualquer outro motivo, não importando qual, levando a igreja a divisões, dissensões, disputas e rivalidade em seu Corpo, traz em si mesmo a marca do inimigo, da carnalidade, do distanciamento e rebeldia a Deus. Há de se ter cuidado, e zelar pela unidade do Corpo, pois Cristo, nosso Senhor, morreu e derramou o seu sangue por ele. 

SAUDAÇÃO FINAL:

"A graça do Senhor Jesus Cristo, e o amor de Deus, e a comunhão do Espírito Santo seja com todos vós. Amém"! 

Notas: 1 - Não fiz uma revisão do texto, portanto, desculpem se houver algum erro ortográfico, de concordância ou de digitação.

2 - Há partes tocadas no texto que não puderam ser tocadas na pregação e vice-versa. Portanto, sugiro tanto a leitura como a audição do sermão. 
3 - Sermão pregado no Tabernáculo Batista Bíblico

20 fevereiro 2023

Estudo sobre a Confissão de Fé Batista de 1689 - Aula 2: O Cânon





















 

Jorge F. Isah


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"2- Sob o nome de Sagradas Escrituras ou Palavra de Deus escrita, incluem-se agora todos os livros do Velho Testamento e Novo Testamento, que são os seguintes:

O VELHO TESTAMENTO

Gênesis
1 Reis
Eclesiastes
Obadias
Êxodo
2 Reis
Cantares
Jonas
Levítico
1 Crônicas

Isaías

Miquéias
Números
2 Crônicas
Jeremias
Naum
Deuteronômio
Esdras
Lamentações
Habacuque
Josué
Neemias
Ezequiel
Sofonias
Juizes
Ester
Daniel
Ageu
Rute
Oséias
Zacarias
1 Samuel
Salmos
Joel
Malaquias
2 Samuel
Provérbios
Amós


O NOVO TESTAMENTO

Mateus
Efésios
Hebreus
Marcos

 Filipenses

Tiago
Lucas
Colossenses
1 Pedro
João
1 Tessalonissenses
2 Pedro
Atos
2 Tessalonissenses
1 João
Romanos
1 Timóteo
2 João
1 Coríntios
2 Timóteo
3 João
2 Coríntios
Tito
Judas
Gálatas
Filemom
Apocalipse

Todos os quais foram dados por inspiração de Deus, para serem a regra de fé e vida prática.
[2Tm 3.16; Ef 2.20; Ap 22.18-19; Mt 11.27]

Os 39 livros do AT e os 27 livros do NT são a expressa e verdadeira revelação de Deus ao homem, os quais compõem a Bíblia Sagrada, ou a Palavra de Deus, ou Escritura Sagrada. A Igreja reconhece-a como o registro divinamente inspirado daquilo que Deus quis revelar ao homem."

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A palavra Bíblia, feminino singular, tem origem no latim, e é derivada do grego Biblos, que quer dizer "livro".

Outro termo aplicado à Bíblia é a palavra Cânon, que é a transliteração da palavra grega kanón, que é derivada do termo hebraico kaneh que significa régua ou vara reta de medir, dando-nos a ideia de regra, norma, pela qual se mede outras coisas. Para nós o sentido é mais do que claro, a Bíblia é o livro ou conjunto de livros escritos por homens inspirados por Deus, e, como tal, ela tem a mesma autoridade de Deus, pois Deus lhe conferiu essa autoridade sagrada.

Os livros do AT foram escritos originalmente em hebraico, com exceção de alguns trechos escritos em aramaico. Por volta do ano de 250 e 150 A.C. os textos em hebraico foram traduzidos para o grego por 70 tradutores, por isso essa tradução é chamada de Septuaginta ou LXX.

Os livros do NT foram escritos na linguagem vernacular comum do primeiro século, o grego Koiné.

Há de se entender que Deus não somente inspirou homens santos a registrarem a sua revelação de forma infalível e inerrante, mas também, pelo poder do Espírito Santo, Deus preservou sua santa palavra da corrupção e perversão dos homens, de forma que, hoje, temos acesso a toda a verdade revelada por Deus [Dt 4.2; Jr 1.12; Sl 119.160; Mt 24.35; 1Pe 1.23-25]. Portanto, é-nos assegurada a fidelidade e incorruptibilidade da palavra uma vez dada aos santos.

Uma pergunta: ouve-se muito falar de contextualização, hoje em dia, especialmente entre os cristãos. Os irmãos acreditam que a mensagem da Bíblia permanece a mesma para todos os tempos, ou ela deve se ater à cultura e lugar onde foi escrita?

Minha opinião é de que este é outro engano que muitos acabam por não perceber no estudo da Escritura. Quando se diz que a Bíblia deve ser contextualizada, o que se está dizendo é que ela é válida para a época e cultura em que foi escrita, e de que pode não valer para os tempos atuais ou futuros. Com isso, está-se afirmando a sua temporalidade, limitação e até mesmo irrelevância para o atual e os futuros séculos. O fato de a sociedade estar cada vez mais distante dos princípios bíblicos ordenados por Deus não é argumento suficiente para estes princípios tornarem-se em meras referências morais ultrapassadas, perdidas no tempo. O fato de a sociedade estar cada vez mais rebelde, cada vez mais insubmissa em relação aos preceitos bíblicos, apenas nos mostra o profundo abismo em que estamos nos lançando, e, em muitos casos, já se vê o fundo. Os graves problemas sociais: vícios, imoralidade, destruição da família, da autoridade, etc, são provas de que a desobediência e os métodos humanos de interpretação do texto bíblico são falsos, resultam na inadequação da mensagem [sua corrupção] e estimula o homem a permanecer moldado segundo a sua própria natureza iníqua e pecaminosa. Criou-se um sistema de ideias em que o homem tem de se assumir como homem e de aceitar-se como é, mesmo que seja cultivando o mal como a única forma de se permanecer fiel e íntegro a si mesmo.

De certa forma, é como se Deus nos desse a sua palavra, mas essa palavra seria de maneira diferente e dispare para homens em épocas diferentes; como se a mensagem divino pudesse se adequar ou simplesmente ser anulada por novos hábitos e normas estabelecidas socialmente. Por exemplo, a leitura de determinada parte da Escritura teria uma relevância para o homem do séc. V a.C., outra para o homem do séc. IV d.c, outra para o homem do séc. XV, e assim por diante, até chegar a nós. Agora, pensem comigo: a mensagem de Deus é mutável? Ela muda conforme o homem vai transformando os seus hábitos e regras sociais e morais? Se a Escritura é mutável, Deus também o é. Mas sabemos que Deus não muda, pois é o que a sua palavra afirma [Sl 102.27; Ml 3.6; Hb 1.12, 13.8; Tg 1.17]. Logo, sua palavra também é imutável [Sl 119.89, 160; Is 40.8; Mt 24.35; Jô 10.35; 1Pe 1.25]. Ou seja, a Escritura, como afirma a C.F.B. 1689, não pode ser medida pelas ciências sociais, seus métodos e teorias, como se houvesse uma transição entre a mensagem divina e o homem de tal forma que elementos culturais e históricos específicos é que determinam o teor e o sentido da mensagem.

Para nós, cristãos bíblicos, a Escritura é perene, sua mensagem é a própria voz de Deus para todos os tempos e para todos os homens, ainda que apenas aqueles que sejam guiados pelo Espírito Santo possam entendê-la, respeitá-la, e deixar-se guiar por ela. Por quê? Porque não há nenhuma autoridade superior à Bíblia, além do próprio Deus que lhe conferiu autoridade; de forma que qualquer tentativa humana de restringir, limitar, conter, ou simplesmente impedir que a voz de Deus seja ouvida em alto e bom som através do texto bíblico é uma afronta e blasfêmia contra Deus, o seu autor.

3. Os livros comumente chamados Apócrifos, não sendo de inspiração divina, não fazem parte do cânon ou compêndio das Escrituras. Portanto, nenhuma autoridade têm para a Igreja de Deus, e nem podem ser de modo algum aprovados ou utilizados, senão como quaisquer outros escritos humanos.
[Lucas 24:27,44; Romanos 3:2]

Devemos entender que o cânon do A.T. foi definitivamente concluído no Concílio de Jamnia em 90 a.c. e é exatamente igual ao cânon protestante, constando de 39 livros. A diferença está apenas na ordem dos livros que entre os hebreus é a seguinte:

O Pentateuco ou Tora: Gênesis, Êxodo, Levítico, Números, Deuteronômio.
Os Profetas [Neviim]: Anteriores: Josué, Juízes, 1 e 2 Samuel, 1 e 2 Reis. Posteriores: Isaías, Jeremias, Ezequiel e Profetas menores.
Os Escritos [Kêtuvim]: Poesia e Sabedoria: Salmos, Provérbios e Jó. Rolos ou Megilloth [lidos no ano litúrgico]: Cantares [na páscoa], Rute [no pentecostes], Lamentações [no quinto mês], Eclesiastes [na festa dos tabernáculos] e Ester [na festa de purim].
Históricos: Daniel, Esdras, Neemias e 1 e 2 Crônicas.

Portanto, não há nenhuma referência aos livros apócrifos [Apócrifo vem do grego apokrypha cujo significado quer dizer oculto, misterioso, escondido], que foram incluídos na Septuaginta e na Vulgata de Jerônimo [que não considerava os apócrifos como livros canônicos, livros inspirados, e que foram canonizados em 1546 pelo Concílio de Trento], o qual originou a Bíblia Católica.

Os livros apócrifos foram aqueles que os tradutores gregos, da Biblioteca de Alexandria, incluíram como escritos judaicos, provavelmente redigidos no período de 400 anos em que Deus silenciou-se a Israel, conhecido com período Interbíblico. Eles também são chamados de pseudo-canônicos e, pelo católicos, designados como deuterocanônicos. São eles: os livros de 1 e 2 Macabeus, Judite, Baruque, Eclesiástico ou Sirácida, Tobias, Sabedoria e as adições aos livros de Ester e Daniel. Há, contudo, uma dezena ou mais de livros apócrifos escritos em hebraico além dos pertencentes ao cânon Católico.

O Novo Testamento protestante e católico é o mesmo, não havendo nenhum acréscimo. Há, porém, um grande número de escritos como o Evangelho de Judas e Madalena, por exemplo, que, em sua maioria, foram escritos por autores gnósticos [gnóstico vem do grego gnosis, que quer dizer, conhecimento. Foi um movimento religioso-filosófico que surgiu nos séc. I e II, cujos apóstolos e pais da Igreja combateram veementemente como hereges, e, suas doutrinas, heréticas] nos primórdios da Igreja Primitiva, mas que não têm nenhuma canonicidade, pelo contrário, estão repletos de elementos que conflitam com a verdade, com o texto bíblico.

O exemplo de um texto bíblico que combate o gnosticismo encontra-se na Carta do Apóstolo João: “Amados, não creiais a todo o espírito, mas provai se os espíritos são de Deus, porque já muitos falsos profetas se têm levantado no mundo. Nisto conhecereis o Espírito de Deus: Todo o espírito que confessa que Jesus Cristo veio em carne é de Deus; E todo o espírito que não confessa que Jesus Cristo veio em carne não é de Deus; mas este é o espírito do anticristo, do qual já ouvistes que há de vir, e eis que já agora está no mundo” [1Jo 4.1-3].

Os gnósticos eram dualistas, acreditavam em dois deuses, duas divindades antagônicas, que se digladiavam pelo poder no universo. Para eles, a matéria era má, a carne era má, pois criada pelo “Deus mal” do Antigo Testamento, o Demiurgo. Portanto, Cristo sendo bom, não poderia ter matéria. O que o Senhor fazia crer é que tinha um corpo, quando na verdade esse corpo não passava de uma “miragem”, uma ilusão, uma imagem criada com o intuito de enganar as pessoas fazendo-as crer que ele possuía carne e ossos. Isto é um erro gravíssimo, pois depõe contra muitas afirmações presentes no texto sagrado, o qual nega-as peremptoriamente. Por exemplo, a de que o Verbo encarnou e habitou entre nós [Jo 1.1,14]; de que o Cristo nasceria de uma mulher, uma virgem [Gn 3.15, Mt 1.18-23, Gl 4.4, Hb 2.14].

Temos nesse esquema, ao qual João combateu veementemente, sérios problemas soteriológicos, de forma que, se Cristo não é o Deus-homem, a salvação dos eleitos estaria irremediavelmente comprometida, ou melhor, perdida. Para que o povo de Deus fosse salvo era necessário que o Messias não apenas representasse a raça humana, no sentido de ser parecido mas não ser verdadeiro; era necessário que ele fosse igual a nós, contudo, sem pecado. Então, João diz:

a) “Não creiais a todo o espírito”, remetendo-nos a várias passagens na Escritura que alerta e exorta a provarmos se determinado ensino provém da palavra de Deus, ou não passa de outra artimanha maligna de levar incautos ao engano, à mentira, e à perdição da alma.

b) “Porque já muitos falsos profetas se têm levantando no mundo”, igualmente, os profetas, Cristo e os apóstolos revelam que, desde sempre houve aqueles servos de satanás operando entre o povo de Deus, de maneira que assim pudessem dispersar o rebanho do Senhor; as quais ficariam sem pastor. E sabemos que ovelhas sem pastor são presas fáceis nas mãos do inimigo.

c) João alerta para a maneira como se conhecerá se o Espírito é de Deus: confessar que Jesus Cristo veio em carne.

d) O que não confessa que Cristo veio em carne é o espírito do anticristo, da mentira, do engano, o qual já estava no mundo, e ainda está operando.

Com isso, o apóstolo intentou derrubar, e derrubou o falso argumento gnóstico, provando que a carne pode ser boa, pois Cristo veio em carne e era bom; assim como, no glorioso dia do Senhor, quando da ressurreição, também teremos corpos [matéria], e não mais haverá o pecado nem o mal em nossa carne, pois seremos como o nosso Senhor é, santos.

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Notas:
1- Este é o resumo da aula que ocorreu em 02.10.2011 na E.B.D. do Tabernáculo Batista Bíblico



13 fevereiro 2023

Estudo sobre a Confissão de Fé Batista de 1689 - Aula 1: A Bíblia: Única Verdade Insofismável!























Jorge F. Isah


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A) INTRODUÇÃO:


Meus irmãos, boa noite!

Antes de entrar propriamente nas questões doutrinárias da Confissão de Fé Batista de 1689, farei uma pequena introdução desse evento histórico, mas adianto que não encontrei muitas informações em minhas consultas, porém, no que foi possível encontrar, creio que servirão para que os irmãos tenham uma ideia daquilo que estaremos estudando, a partir de hoje, com mais detalhes:

1) Houve uma 1a. Confissão de Fé Batista de Londres em 1644, que foi a predecessora da que iremos estudar. Essa confissão antecedeu mesmo a famosa CFW – Confissão de Fé de Westminster, concluída em 1646 pelos presbiterianos.

2) Ambas as Confissões de Fé Batistas de Londres são reformadas e calvinistas, ou seja, defendem os princípios do livre exame da Bíblia [devemos entender que há uma grande diferença entre livre exame e livre interpretação. Durante séculos, a Igreja Católica proibiu a leitura da Escritura por leigos, de forma que apenas o clero tinha acesso a ela. Até mesmo ter uma Bíblia era pecado. Com a reforma protestante, através de Lutero, defendeu-se o livre exame da Bíblia; qualquer pessoa poderia ter acesso direto ao texto sagrado sem a dependência de um clérico fazê-lo em seu lugar (antes de Lutero, que traduziu a Bíblia para o alemão, algo quase impossível em seu tempo, tendo-se em vista a obrigatoriedade da Bíblia ser impressa e lida em latim; houve quem chegou a traduzir a Bíblia para as suas línguas pátrias, como John Wycliffe, um reformador inglês anterior à própria Reforma Protestante). Contudo, isso não quer dizer que qualquer um pode interpretá-la ao seu bel-prazer, distorcendo-a, desprezando a sua autointerpretação, pois a Escritura é autointerpretativa, e os vários séculos em que homens santos debateram e definiram pontos que estão presentes no texto mas que são difíceis de compreender (2Pe 3.16). Então todos temos acesso hoje à Sagrada Escritura, mas tendo-se o cuidado de não tirar ou colocar nela aquilo que ela não diz, o que normalmente acontece na forma de erro doutrinário ou heresia]; a defesa da salvação somente pela graça de Deus, e o batismo por imersão somente aos fiéis adultos, dentre outros pontos.

3) As Confissões de Fé de Londres de 1644 e 1689 surgiram pela necessidade de se distinguir os Batistas Particulares ou Especiais dos Batistas Gerais. Aqueles creem na salvação como dom exclusivo de Deus, e que através da sua escolha soberana derramará sobre o eleito a sua graça e misericórdia. Por isso se crê que a expiação de Cristo na cruz não foi por todos os homens, mas somente por aqueles que o Pai lhe deu; enquanto os Batistas Gerais acreditavam na expiação vicária de Cristo por todos os homens, e de que os homens colaboravam, de alguma forma, com a sua salvação.
Este ponto, da expiação vicária de Cristo, será apresentado mais à frente. Aqui interessa-nos apenas delinear os motivos pelos quais urgiu-se a elaboração das duas confissões de fé.


ALGUMAS QUESTÕES SOBRE AS CONFISSÕES DE FÉ:

1) Elas não são infalíveis e inerrantes, ainda que os pontos abordados por elas tenham como fonte direta a Escritura Sagrada, mas somente esta é a infalível, inerrante e inspirada palavra de Deus.

2) Elas têm o objetivo de declarar publicamente aquilo que os batistas creem, pregam e ensinam.

3) Elas foram redigidas pelos puritanos.

4) Têm por objetivo orientar e definir princípios claramente delineados nas Escrituras a fim de se evitar os erros e heresias que o inimigo persistentemente insiste em implantar na Igreja, através de seus servos, os quais Paulo chamou de lobos cruéis [At 20.29].


POR QUE ESTUDAR ESTA CONFISSÃO DE FÉ E NÃO OUTRA?

A resposta é simples: esta é a melhor e a mais detalhada confissão de fé batista já produzida, e dela derivaram todas as demais confissões de fé batistas [Filadélfia e New Hampshire, p. ex] . Ela se torna ainda mais importante por nos apresentar o estudo de questões caras, fundamentais e imprescindíveis à vida de qualquer cristão: o conhecimento de Deus e da sua vontade. Nela encontraremos capítulos que expõem a doutrina das Escrituras, o Deus Tri-uno, a Criação, a Igreja, a Salvação, o Matrimônio... ou seja, tudo o que Deus nos revelou através da sua palavra como sendo a sua vontade, e que para nós é a regra de fé e vida.
Então, sem mais delongas, vamos direto ao nosso estudo.


B) CAPÍTULO 1: AS SAGRADAS ESCRITURAS

[O texto abaixo, em itálico, é a transcrição direta da C.F.B. de 1689]
1. A Sagrada Escritura é a única regra suficiente, certa e infalível de conhecimento para a salvação, de fé e de obediência. A luz da natureza, e as obras da criação e da providência, manifestam a bondade, a sabedoria e o poder de Deus, de tal modo que os homens ficam inescusáveis; contudo não são suficientes para dar conhecimento de Deus e de sua vontade que é necessário para a salvação.
Por isso, em diversos tempos e por diferentes modos, o Senhor foi servido revelar-se a si mesmo e declarar sua vontade à sua igreja. E para a melhor preservação e propagação da verdade, e o mais seguro estabelecimento e conforto da Igreja, contra a corrupção da carne e a malícia de Satanás e do mundo, foi igualmente servido fazer escrever por completo todo esse conhecimento de Deus e revelação de sua vontade necessários à salvação; o que torna a Escritura indispensável, tendo cessado aqueles antigos modos em que Deus revelava sua vontade a seu povo.
[2Tm 3.15-17; Is 8.20; Lc 16.29-31; Ef 2.20; Rm 1.19-21, 2.14-15; Sl 19.1-3; Hb 1.1-2; Pv 22.19-21; Rm 15.4; 2Pe 1.19-20]


RESUMO:

1- O primeiro ponto apontado pela CFB é de que a Bíblia é a nossa única, infalível e suficiente regra de fé e vida. Todos os crentes, de uma forma geral, afirmam esta verdade. Porém o que vemos não é bem isso. Cada vez mais os cristãos têm se distanciado da verdade para aderirem a conceitos temporais e falíveis, como as ciências humanas. Há uma substituição progressiva do ensino bíblico, o conhecimento do que Deus nos revelou, pelo conhecimento elaborado pelo homem. Com isso, conceitos antropológicos, psicológicos e sociológicos têm tomado o lugar da verdade e transformado princípios absolutos em relativos e efêmeros. Para se ter a Bíblia como regra de fé e vida é necessário a sua leitura, exame e estudo, e reconhecê-la como a fiel, santa e perfeita palavra de Deus. Sem o seu conhecimento ninguém pode afirmar que ela dirige e guia a sua vida, pois será impossível alguém guiar-se e dirigir-se sem saber aonde ir e como ir. A Escritura é o “mapa” que nos levará seguramente ao encontro da vontade perfeita de Deus.

2- A Bíblia foi escrita no decorrer de aproximadamente 1.500 a 2.000 anos, por 40 autores diferentes, mas não encontramos um livro confuso, disforme e contraditório, como muitos querem fazer parecer. Ela tem uma unidade perfeita, somente possível porque Deus é o seu autor. Pelo poder do Espírito Santo, homens inspirados redigiram o santo conselho de Deus para a humanidade, de forma que nela não há erros, falhas, discrepâncias, incongruências, paradoxos ou conflitos que indiquem falibilidade e errância, comprometendo a sua autoria sobrenatural.

3- A natureza nos revela que há um ser criador, mas não é capaz de nos revelar o Deus pessoal, Senhor e salvador. Em certo aspecto, a revelação natural ou geral pode nos indicar que o Criador é Todo-Poderoso; ou seja, ela pode revelar a existência do Criador e de que esse Criador tem todo o poder, pelo qual a Criação é sustentada.

4- O homem se tornou inescusável ou indesculpável diante de Deus pois o Senhor deu a todos os homens o "senso divino", a ideia inata de si mesmo, de revelar-se a todos os homens; e isso se deu porque todos os homens são criados à imagem de Deus.
[Certa vez, em uma discussão com um ateu, eu disse que todos os homens nasciam teístas, que todos criam em Deus, mas que com o passar do tempo, a rebeldia se instalava de tal forma no coração do homem que ele negava completamente a Deus, tornando-se um ateu. Portanto, o ateísmo é uma degeneração, uma subversão e corrupção do "senso divino" que todo homem possuí, de tal forma que ele tenta anulá-lo com a sua descrença].

5- Porém, a revelação natural é insuficiente para que o homem tenha o exato conhecimento de Deus e de sua vontade necessária para a salvação. O que torna indispensável e fundamental a revelação especial, a Palavra de Deus. Pois Deus somente será revelado proposicionalmente, como realmente é, por intermédio de sua palavra. Com isso, temos que apenas as pessoas que têm acesso à Sagrada Escritura podem realmente conhecer a Deus. Fora dela, há "deuses", não o Deus verdadeiro e vivo.

6- Assim, tanto a sua natureza, como caráter, obra e vontade são comunicadas exclusivamente aos homens pela revelação escriturística, tanto no Antigo como no Novo Testamento.

7- Deus determinou que a revelação oral fosse registrada aos homens de maneira escrita para que servisse de instrução, orientação e edificação do seu povo; de maneira que o próprio Deus é o seu autor e aquele que preserva a sua palavra da corrupção, da maldade e da destruição por Satanás e seus servos. De maneira maravilhosa, Deus conservou e conservará a sua Palavra inerrante e infalível para que o seu povo seja por ela guiado, e assim, todos nós, possamos conhecê-lo e servi-lo segundo a sua sabedoria e vontade santas e eternas.

8- A salvação somente é revelada ao homem através da revelação especial, e por ela todos os eleitos serão salvos [Rm 10].


UM PONTO IMPORTANTE A SE ABORDAR: a Bíblia é a verdade ou ela contém a verdade? O que pensam os irmãos sobre isso?

Para explicar a primeira ideia, farei duas figuras no quadro negro que, na verdade, é um quadro branco: Na primeira figura temos um círculo de 20 cm de diâmetro; vamos chamá-lo de Bíblia. O segundo círculo tem também o diâmetro de 20 cm; vamos chamá-lo de verdade. Para nós, cristãos bíblicos, o círculo "Bíblia" e o circulo "Verdade" são sinônimos; tanto a Bíblia é a verdade, como a verdade é a Bíblia. Podemos então colocar entre os círculos o sinal de igualdade [=], de forma que a Bíblia é igual à verdade, e vice-versa [Bíblia=Verdade, ou seja, utilizamos nomes diferentes para dizer a mesma coisa].

Na segunda ideia temos o seguinte: farei um círculo de 10cm de diâmetro e nele colocarei o nome "Verdade", farei um círculo de 20cm de diâmetro e colocarei nele o nome "Bíblia". O que se quer dizer com a Bíblia contém a verdade é que uma parte dela, esse círculo menor, é que se pode considerar como verdadeiro. Justapondo-se um círculo ao outro, teremos uma boa parte da Bíblia como não verdadeira, ao ver de quem defende esse esquema maligno. Assim, como resumo, teremos o seguinte: a Bíblia é verdadeira apenas em alguns aspectos, como os necessários e suficientes para a salvação. Podemos resumir o esquema: V ∈ B, a verdade é elemento da Bíblia, está em B, pertence a B, mas B não é completamente V [o símbolo E é utilizado nos estudos matemáticos de conjuntos. Indica que determinado elemento pertence a um conjunto. Aqui a verdade é um elemento e a Bíblia é o conjunto de elementos, onde a verdade é um deles e a mentira o outro].

Vejam bem o perigo dessa afirmação. Quando se diz que a palavra de Deus contém a verdade, duvidamos de que ela seja a verdade, portanto como é possível dizer o que seja ou não verdadeiro na palavra? Se nem tudo o que está descrito nela é verdadeiro, como pode-se saber o que é falso ou não? O fato é que esse espírito que paira sorrateiro pelas igrejas é o espírito maligno que está à caça dos incautos e tolos para os manterem na incredulidade e ignorância. Não é possível que a Palavra de Deus seja verdade e mentira ao mesmo tempo. Ou que seja meia-verdade, e contenha enganos. Não é possível que Deus tenha também negligenciado a preservação da sua revelação. Quem assim crê labora para o erro e a mentira.

E, nesse caso, o que temos é nada além de soberba, arrogância e superioridade travestidos de intelectualidade. Quando o homem se coloca na condição de apto a “julgar” a Escritura, faz-se superior a Deus. Cristo disse que devemos julgar não pela aparência, mas pela reta justiça [Jo 7.24]. Acontece que apenas Deus é justo e reto, logo, o único capaz de um julgamento infalível. Nós, pelo poder de Deus, podemos ter alguns julgamentos retos e justos, mas, na maioria das vezes eles são como nós, imperfeitos e injustos. Portanto, apenas Deus é aquele que pode julgar todas as coisas de maneira santa e perfeita. Mas os homens se consideram capazes do mesmo; e, pior, se consideram capazes de julgar algo que está muito acima da capacidade máxima de julgamento humano: a palavra de Deus. E ao fazê-lo, julgam o próprio Deus, como loucos que são; dando vazão somente aos seus intentos carnais, ao orgulho e prepotência. Por isso investem-se de uma autoridade que não têm e rejeitam a autoridade divina a qual deveriam se submeter, mas, em estado de rebeldia, colocam-se no lugar que não lhes pertencem, tornando-se ídolos de si mesmos, para a sua própria condenação.

Há ainda aqueles que afirmam que apenas Deus é a verdade e que, por isso, a Bíblia não pode ser a verdade, pois não é Deus. Digo que a primeira afirmação é verdadeira, Deus é a verdade. O Senhor Jesus nos disse: Eu sou o caminho, a verdade e a vida [Jo 14.6]. Mas como se pode saber isso? Se não se conheceu pessoalmente o Senhor Jesus? Quero dizer, se não o viu, nem o tocou... Crer que Deus é a verdade somente é possível pela Escritura, a qual afirma ser Deus verdadeiro. Agora, se creio que ela não é a completa verdade, como crer que Deus é a verdade? Qual o critério de seleção para determinar o que seja verdade ou não? Se a equação Bíblia = Verdade não se fizer, não é possível se afirmar nada quanto a Deus e a verdade, pois apenas a Escritura é capaz de revelar tanto Deus como a verdade, de forma que Deus é a verdade. Foi o pedido de Cristo ao Pai, por suas ovelhas: "Santifica-os na tua verdade; a tua palavra é a verdade" [Jo 17.17].

O cristão bíblico [e nós, batistas, cremos na Bíblia como toda a verdade, como a fidedigna palavra de Deus, como todo o conselho divino para o homem, desde a primeira letra em Gênesis até a última letra em Apocalipse], jamais podemos nos enganar com as declarações aparentemente intelectuais, aparentemente sábias, mas que escondem apenas o engano e a fraude, e um caminho de trevas. Se é possível não crer em toda a sua inteireza, pureza e unidade [que revelam o pensamento santo e perfeito da mente santa e perfeita de Deus], não há como crer em algo e descrer em outra coisa, sem que se seja possível desconfiar de toda a estrutura da Escritura. Como será possível avaliar se o que o Senhor Jesus disse é verdadeiro ou falso? Por critérios humanos? Falíveis, imperfeitos e muitas vezes perversos?

Deus somente pode ser conhecido por sua palavra revelada, escrita e entregue à Igreja em todos os tempos através da Escritura Sagrada. E a Bíblia é verdadeira porque procede da mente do Deus verdadeiro.

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Notas:
1- Este é o resumo da aula que ocorreu em 25.09.2011 na E.B.D. do Tabernáculo Batista Bíblico

2- Agradeço ao pr Luiz Carlos Tibúrcio e aos demais irmãos do T.B.B. pela honra e alegria com que estamos estudando esta importante confissão de fé; e o privilégio de estar incumbido de levá-la aos demais irmãos. Deus nos abençoe, edifique e instrua através deste estudo, para a honra e glória do seu santo nome.





07 fevereiro 2023

"Regozijai-vos no Senhor!": Sermão em Filipenses 4.4






Por Jorge F. Isah




ESBOÇO DA PREGAÇÃO FILIPENSES 4.4

Todos de pé para a leitura da palavra de Deus, por favor, em Filipenses 4.1-4:

"Portanto, meus amados e mui queridos irmãos, minha alegria e coroa, estai firmes no Senhor, amados. rogo a Evódia, e rogo a Síntique, que sintam o mesmo no Senhor. E peço-te também a ti, meu verdadeiro companheiro, que ajudes essas mulheres que trabalharam comigo no evangelho, e com Clemente, e com os meus outros cooperadores, cujos nomes estão no livro da vida. Regozijai-vos sempre no Senhor; outra vez digo, regozijai-vos"

RESUMO DA PREGAÇÃO ANTERIOR:

Farei um resumo do visto na semana passada, pois este sermão é continuação daquele:

1) Meditamos sobre os versos 1 a 3, do capítulo 4 de Filipenses.

2) Vimos que a igreja estava sendo perseguida por judeus e romanos; muitos cristãos eram presos e destes, vários eram condenados à morte; a igreja encontrava-se em angústia e aflição, talvez até mesmo desanimada.

3) Paulo estava preso em Roma, sob rigorosa vigilância da guarda pretoriana, mas, mesmo assim, as cadeias não o impediram de evangelizar e levar muitos da “casa de César” à conversão, a reconhecerem Cristo como Senhor e Salvador.

4) A prisão de Paulo e os frutos do seu ministério mesmo impossibilitado de se deslocar, levou muitos irmãos ao ânimo, a pregarem Cristo sem temor.

5) Ele ordena-nos a estarmos firmes em Cristo (não como um pedido, conselho ou possibilidade, mas como uma obrigação).

6) O apóstolo exorta Evódia e Síntique a voltarem à unidade, à harmonia e a abandonarem a inimizade e disputa entre elas; voltando-se a um mesmo pensamento, um mesmo propósito, colaborando-se mutuamente e com os outros irmãos.

Agora, ele nos ordena, nos exorta, insufla, a alegria, ao gozo. Portanto, nos coloquemos de pé e leiamos, todos, o verso 4.4, de Filipenses:

“Regozijai-vos sempre no Senhor; outra vez digo, regozijai-vos.”

A palavra regozijar significa alegria, contentamento, satisfação, júbilo. Pare um pouco e pense; darei alguns segundos para responder: Eu me regozijo no Senhor? Eu me alegro em Cristo? A minha vida é plena de satisfação nele ou não?


INTRODUÇÃO:

- Complexidade do tema “Alegria sempre”;

- Assunto amplo, abrangendo desde a questão do sofrimento, pelo da perseverança ou preservação dos santos, testemunho diante dos homens e na obra de evangelização. O regozijo no Senhor está ligado diretamente a estes assuntos;

- Mas tratarei inicialmente de quando a alegria acontece em meio às tribulações, sofrimentos e dores.

- O senso comum diz que o sofrimento é por alguma culpa ou coisa de ruim que fizemos (os judeus atribuíam o sofrimento ao pecado cometido).

- Teologia positivista ou da prosperidade que afirma a vitória do crente ou seja, de que ele não pode e não deve sofrer e, se acontece, é por falta de fé.

- Mas, o que a Escritura nos diz?

. 2 Co 7.4: Paulo afirma conseguir alegrar-se nas suas tribulações dos demais irmãos;

. Rm 12.12: Alerta-nos a ter paciência nas tribulações;

. Mt 5.11-12, Jesus disse que seriamos bem-aventurados se exultássemos e alegrássemos nas injúrias, perseguições e todo o mal que fizessem contra nós.

.1 Pe 4.13, Pedro exorta-nos a alegrar-nos em participar das aflições de Cristo.

Este é um tema a suscitar muitas pregações e estudos, pois se há algo que o crente pode ter certeza é de não somente crer em Cristo, mas de também padecer por ele (Fp 1.29).

Provavelmente não chegaremos à unanimidade quanto a alguns pontos, mas podemos chegar à unidade de clamar a Deus para ele nos fazer alegres sempre.

QUAL É A ALEGRIA?

Há aquele hino no Cantor Cristão, “Sou Feliz”, No. 398, e em sua primeira estrofe diz:

“Se paz a mais doce me deres gozar
Se dor a mais forte sofrer, oh! Seja o que for,
Tu me fazes saber que feliz com Jesus sempre sou!”

- Os autores dizem que em qualquer situação, benéfica ou desfavorável, somos felizes com Jesus.

- Mais do que isto, Cristo é a causa da nossa alegria, o único motivo pelo qual podemos ser verdadeiramente alegres.

- Podemos dizer, convictos, o mesmo que Paulo nos ordena, “Regozijai-vos sempre” (1 Ts 5.16)?

- Paulo está ordenando, exortando-nos ao regozijo, já que o verbo está no imperativo, como uma obrigação, um dever, mas também como um privilégio, uma honra.

- Na Carta aos Filipenses, o Apóstolo faz referência a gozo, a alegria, 14 vezes, em um momento dramático para a igreja e para si mesmo.

- “E, ainda que seja oferecido por libação sobre o sacrifício e serviço da vossa fé, folgo e me regozijo com todos vós. E vós também regozijai-vos e alegrai-vos comigo por isto mesmo” (2.17-18).

- Sacrifício = derramamento de vinho ou licores em honra aos deuses. No Brasil, os bebuns têm o hábito de derramar a aguardente no chão em honra ao “santo”. Paulo está-nos dando a ideia de deixar a sua vida esvair-se, gastá-la, em honra dos irmãos.

- É possível o regozijo em meio à dor e o sofrimento?

- O fato da alegria do crente ser diferente da alegria do homem natural.

- A alegria no homem natural se deve, em sua maioria, a fatores externos: conforto, dinheiro, saúde, morar em um duplex com uma bela vista, estar junto das pessoas que amamos, comprando, bebendo, acumulando bens, etc.

- A alegria do incrédulo é dependente de coisas condicionais, tendo-as se satisfaz, não tendo-as entristece-se.

- O homem natural não se alegrará jamais em meio à tristeza, pois falta-lhe os “meios” para alcançar o estado de alegria.

- O mundo exterior não traz segurança, e as coisas que nos trazem alegria podem mudar de uma hora para outra: perde-se a saúde, o dinheiro, a juventude, a paz, pessoas amadas, etc, e, acontecendo a tristeza e o desânimo tomam o seu lugar.

- Há pessoas detentoras de todos esses “meios” e muitos mais, como beleza, eloquência, inteligência, poder, influência, etc, e, ainda assim, não se regozija com o que tem.

- Satanás veio para roubar, matar e destruir.

- No caso do crente, ele tem de se alegrar mesmo nos momentos mais dolorosos e sofridos. A nossa alegria não depende dos “meios” externos para subsistir. Por que? Porque é a comunhão, o relacionamento, a intimidade com Deus, que permite-nos estar e ser alegres todo o tempo.

- E isto se dá independente dos acontecimentos e fatos exteriores.

- O crente é como o mar, na superfície, ele é sacudido pelos ventos, provocando uma inconstância, uma instabilidade, enquanto nas profundezas do mar há um estado permanente de segurança, onde as intempéries da superfície não podem alcançá-la, nem alterá-la.

- Fp 3.1: “Resta, irmãos meus, que vos regozijeis no Senhor”.

- Qual o significado de “resta”? Seria a busca em mundo caído de alegria e, não encontrando-a, resta apelar para Cristo com última esperança? Ou ele está demonstrando que, em todo o universo, não há alegria perene a não ser em Cristo, ou seja, somente nele é possível encontrar-se a alegria verdadeira?

- A única fonte segura de regozijo é o Senhor.


COMO BUSCAR A ALEGRIA?
 

1) Deus ser o centro da nossa vida;
Em 1 Coríntios 29-31, lemos a respeito do cristão: “Para que nenhuma carne se glorie perante ele. Mas vós sois dele, em Jesus Cristo, o qual para nós foi feito por Deus sabedoria, e justiça, e santificação, e redenção; para que, como está escrito: Aquele que se glória glorie-se no Senhor”.

2) Reconhecer a nossa total dependência de Deus.
É o que o profeta diz:
“Regozijar-me-ei muito no Senhor, a minha alma se alegrará no meu Deus; porque me vestiu de roupas de salvação, cobriu-me com o manto de justiça, como um noivo se adorna com turbante sacerdotal, e como a noiva que se enfeita com as suas jóias”. (Is 61.10)

3) Cristo é a própria alegria:
“O que era desde o princípio, o que ouvimos, o que vimos com os nossos olhos, o que temos contemplado, e as nossas mãos tocaram da Palavra da vida (Porque a vida foi manifestada, e nós a vimos, e testificamos dela, e vos anunciamos a vida eterna, que estava com o Pai, e nos foi manifestada); O que vimos e ouvimos, isso vos anunciamos, para que também tenhais comunhão conosco; e a nossa comunhão é com o Pai, e com seu Filho Jesus Cristo. Estas coisas vos escrevemos, para que o vosso gozo se cumpra.” (1 Jo 1.1-4).

4) Entender que a alegria é um dom divino:
“Se guardardes os meus mandamentos, permanecereis no meu amor; do mesmo modo que eu tenho guardado os mandamentos de meu Pai, e permaneço no seu amor. Tenho-vos dito isto, para que o meu gozo permaneça em vós, e o vosso gozo seja completo" (Jo.15.11).

5) E de que Deus é aquele que nos enche de alegria e gozo:
“Ora o Deus de esperança vos encha de todo gozo e paz em crença, para que abundeis em esperança pela virtude do Espírito Santo” (Rm 15.13).



O PECADO TIRA-NOS A ALEGRIA

- Porque ele nos afasta do Senhor.

- Arrependimento.

- "Se confessarmos os nossos pecados, ele é fiel e justo para nos perdoar os pecados e nos purificar de toda a injustiça” (1Jo 1.9).

- Fugir do pecado.


O ÓDIO E O RANCOR TIRA-NOS A ALEGRIA

- Porque ele tira-nos o amor, e, se não amamos ao próximo que vemos como poderemos amar a Deus que não vemos? Novamente, João escreve:

“Nós o amamos a ele porque ele nos amou primeiro. Se alguém diz: Eu amo a Deus, e odeia a seu irmão, é mentiroso. Pois quem não ama a seu irmão, ao qual viu, como pode amar a Deus, a quem não viu? E dele temos este mandamento: que quem ama a Deus, ame também a seu irmão”. (1 Jo 4.19-21)

- O Senhor disse no Sermão do Monte:

“Eu, porém, vos digo: Amai a vossos inimigos, bendizei os que vos maldizem, fazei bem aos que vos odeiam, e orai pelos que vos maltratam e vos perseguem; para que sejais filhos do vosso Pai que está nos céus” (Mt 5.44); 



e, ainda, na oração do Pai Nosso:
 
“E perdoa-nos as nossas dívidas, assim como nós perdoamos aos nossos devedores... Porque se perdoardes aos homens as suas ofensas, também vosso Pai celestial vos perdoará a vós; se, porém, não perdoardes aos homens a suas ofensas, também vosso Pai vos não perdoará as vossas ofensas” (Mt 6. 12, 14-15).

- Porque o que seria o “não perdão” senão uma forma de se vingar do ofensor? Acontece que o nosso coração fica aprisionado nessa armadilha, cujo objetivo principal é impedir-nos de ter o essencial, de estar em conformidade, em união, com o Espírito do Senhor.


CONCLUSÃO:

Como já disse, a alegria é a estreita, profunda e intrínseca relação com o Senhor. Ele é a nossa alegria, e fora dela não há alegria verdadeira. Devemos ter o entendimento correto de o regozijar-se é uma dádiva, um dom divino, e privilégio concedido a nós. É algo essencial e da natureza do cristão bíblico, portanto, devemos clamar a Deus para nos fazer cada dia mais alegres, cada dia ele se torne mais suficiente em nossas vidas, cada dia queiramos mais e mais a sua presença, ao ponto de nos entristecermos quando isto não acontece. Pois somente assim poderemos, nas benesses e desfavores do dia-a-dia, estarmos alegres, em júbilo, regozijando-nos em Cristo. 



Notas: 1 - Pregação realizada no culto dominical do Tabernáculo Batista Bíblico;
2 -  Seria ideal a leitura deste resumo e a audição da pregação, disponível acima. 

04 fevereiro 2023

Desilução e Morte em "Neve de Primavera", de Yukio Mishima

 



Jorge F. Isah



Neve de Primavera é um livro belo, melancólico, intimista e apaixonante. Terminei a leitura há mais de um mês e somente agora me dispus a escrever algo sobre ele. Primeiro, ressalto o estilo refinado, elegante (diria clássico) na escrita de Mishima. Segundo, como outros autores japoneses contemporâneos, está em luta constante entre o Japão tradicional, anterior às Guerras Mundiais, e o país moderno e ocidentalizado após a derrocada no último conflito. Terceiro, a desilusão com a vida (muito distante do pedantismo e niilismo modernos, diga-se), a precariedade das relações onde as influências exteriores decretam o destino da vida à revelia dos desejos e vontades pessoais; em outras palavras, não existe autonomismo, e por mais que no Ocidente o discurso de independência seja propalado e difundido, não é real e está muito além da capacidade individual de se garantir o futuro almejado ou a felicidade... Esta consiste de momentos fortuitos, quase arrancados a fórceps, entretanto cingidos pelos temores, perigos, vicissitudes íntimas ou públicas, a proclamar a todo tempo: alegre-se, enquanto é tempo! Quarto, a morte não alivia o sofrimento, mas se torna em passagem para o mundo metafísico (transmigração da alma ou reencarnação é um dos pilares do antigo espírito japonês) onde a carne, ao menos, é libertada.

Posto isso, escrever sobre o livro não é tarefa fácil, sem deixar algum spoiler. Esforçar-me-ei ao máximo para não fazê-lo... A história gira em torno da amizade de Kiyo e Satoko, criados juntos desde a infância e pertencentes às famílias de nobres nipônicos: Matsugae e Ayakura; aquela próspera financeiramente e em ascensão na aristocracia, enquanto a segunda desfrutava dos favores imperiais, mas estava em franca decadência.

Satoko é apaixonada por Kiyo que, apesar de reconhecer a sua beleza incomum e notável, não acolhe as suas investidas. Por terem-se criados juntos, talvez a veja como uma prima, uma jovem mimada e sempre disposta a colocá-lo em embaraços. E isso agrava-se pela têmpera introspectiva, quase sombria, de Kiyoaki. De poucos amigos, conecta-se apenas com Honda, colega de escola, estudioso, inteligente e compassivo, que praticamente “mendiga” o afeto de Kiyo, que, entretanto, não retribui similarmente, nem reconhece os esforços daquele, e mantem-se envolto em suas inquietações cotidianas; e, ainda, dois príncipes recém-chegados de Sião, a complementar seus estudos (na mesma escola de Kiyo e Honda), com os quais comunica-se apenas em inglês, já que não dominam fluentemente o japonês.

Os elementos de uma tragédia clássica estão instalados, entre os sentimentos e a razão, entre sonhos e realidade, o impossível e o tangível, o sal e o doce, culminam em frustrações e dores pelas próprias escolhas ou por deixar-se arrastar na avalanche de desejos incontroláveis. E, neste aspecto, o menosprezo e o orgulho aliados à intransigência e pirraça acabam por “desencavar” o amor imersivo e torná-lo em obsessão, no desejo intenso, na excitação incomum, a perigar as próprias vidas, as famílias e até mesmo a estabilidade e a honra imperiais... Se por um lado Kiyo encontrava-se recluso em seu mundo, preocupado em não se expor ou fazer-se notado (a intimidade, partilha apenas com o tutor; ainda assim em raros momentos), num estado de letargia e desinteresse, o aflorar do amor torna-o impulsivo, descomedido, uma ameaça para si e todos ao seu redor. Nem a compaixão de Honda subsiste incólume, benéfica, ao satisfazer o pedido do amigo, a causar-lhe remorso e compunção pela falta de juízo, de avaliar corretamente a gravidade e consequências do seu ato solidário mas fatal.

Os conflitos e interesses estão todos lá, explícitos ou subentendidos, alçados pelo lirismo ou sensibilidade, pelo ímpeto ou hesitação, a simplificação e complexidade, ânimo e desespero, ou quantos mais substantivos se escreva, e ainda assim rasparão sutilmente a superfície da complexa e entrelaçada teia onde a humanidade é esmiuçada em seu exotismo e capricho.

Não é um livro pesado, a se carregar um fardo, muito menos enigmático, pois Mishima diz o que tem a dizer, e o diz tão harmônico e requintado que não se torna penoso ou suportável mas irresistível...

Yukio foi chamado de o “Thomas Mann nipônico”... Não sou crítico literário, apenas leitor compulsivo e cauteloso com o passar do tempo, mas havendo peculiaridades entre eles, não o consideraria semelhante ao grande autor alemão. Ele é Yukio Mishima, ou melhor, Kimitake Hiraoka, seu verdadeiro nome, e para mim isso basta! Compará-lo, seja com quem for, é tirar um pouco do seu gênio e qualidade, ainda que eu saiba ser impossível, a qualquer escritor, não se apoiar nos ombros de autores do passado (Mann e Mishima foram, pode-se dizer, contemporâneos), reservando a cada um suas próprias idiossincrasias.

O Japão mudaria, se modernizaria, se ocidentalizaria, para o desgosto e aborrecimento do jovem tradicional, ao vê-lo fugir das próprias raízes e entregar-se ao materialismo hespérico. O livro versa também sobre isto, a sutil invasão de elementos alheios e desfigurantes da índole e caráter nipães.

E talvez, apenas talvez, a morte não seja a verdadeira derrota.


Nota: Texto publicado originalmente na Revista Bulunga No. 13
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Avaliação: (****) 

Título: Neve de Primavera 

Autor: Yukio Mishima 

Páginas: 374


Sinopse: "Tóquio, 1912. O mundo hermético da antiga aristocracia da era Meiji está sendo invadido por ricas famílias das províncias sem o peso da tradição e com costumes e aspirações que imitam o modelo europeu da Belle Époque. Dessa elite emergente faz parte o ambicioso marquês de Matsugae, cujo filho Kiyoaki é enviado para a elegante família do conde Ayakura, membro da nobreza em declínio, para ser preparado a assumir seu lugar na corte quando atingir a maioridade."