23 junho 2020

Um jardim quase real em "Flores Artificiais"






Jorge F. Isah



Este é o primeiro livro de Luis Ruffato que li. Se considerar que “Eram muitos Cavalos” passou por duas tentativas, mas foi impossível conclui-la, “Flores Artificiais” é o meu livro de estreia no universo “Ruffatoniano”. Aquele era um livro por demais experimental, na pior concepção do termo (travado, caótico, impermeável), e que não consegui prosseguir. Ainda penso em uma terceira investida, mas não sei quando se dará ou se dar-se-á.

Em “Flores Artificiais”, o texto flui, porque existe uma história, ainda que a narrativa não seja convencional. Nada de novo debaixo do céu, mas sem invencionices estilísticas e herméticas que mais afastam do que aproximam o leitor, existe uma sobreposição de relatos. Alguém pode considerar que a minha experiência é a de um leitor comum, mas comum ou incomum (não sei a que os termos se referem), certos livros são chatos, demasiadamente chatos, pretenciosos, e não contam uma boa história, se é que contam.

Ruffato parece se preocupar com a linguagem e o estilo mais do que a narrativa, ao menos foi uma das primeiras impressões que tive com essas duas obras. Não há nada de mal, mas muitas vezes compromete o relato. Ainda sou daqueles que apreciam uma boa história e bem contada, aos moldes de Dickens, Machado, Dostoievski, Faulkner e Mann, para citar alguns. Quando o estilo ou a forma prevalecem sobre o relato, é sinal de uma história ruim embalada em uma prosápia.

O livro é basicamente composto de histórias dentro de uma história. O personagem principal, Dório, é um funcionário do Banco Mundial, sem residência fixa, um “homem do mundo”, sem identidade, sem pátria, sem um porto seguro. Vive de trabalhar em vários continentes (nunca sabemos ao certo o que faz), e acaba por descrever a vida das figuras que o cercam. Seria um “voyeur”, a viver a vida através das vidas alheias. Ao menos, quanto ao objetivo de narrá-las, ou um “resumo” de vida.

Tudo começou quando, por conselho da sua psiquiatra, decidiu escrever suas “memórias”, a fim de colaborar no tratamento da solidão ou isolamento. Na meia-idade, solteiro, sem amigos ou parentes, encontrava-se em estado de letargia; então a resolução em compilar muitas das histórias que presenciou, e faziam parte da sua própria história. Por isso, disse, que este era um livro de histórias dentro da história. Na verdade, pouco se sabe sobre o personagem em si, porque a narrativa se atém mais ao que ele vê, e interage, do que propriamente seus sentimentos e pensamentos.

Com o material em mãos, envia-o ao autor (Ruffato?) para aprimorá-las e dá-las um toque final, romanesco; ciente da incompetência em escrevê-las, do ponto de vista literário. Prova é que, na introdução, o autor diz não ter aproveitado nem metade do material enviado.

Não o classificaria como um romance, ainda que o façam. Se aproximaria mais de um livro de contos, já que as narrativas não têm conexão, a não ser na figura do intérprete ou narrador.

Quanto a Dório, ainda que o autor tente convencer o leitor da sua existência, como um personagem real e não fictício, não há como não entender a sua presença longe do escopo virtual. Dório é criação de Ruffato, fruto da sua imaginação, ainda que jure não ser.

E o livro, como ficção, é bom, mas nada além do comum, porque Ruffato quer comunicar o comum, a vida comum, pessoas comuns, mesmo com algum malabarismo estilístico e formal. E consegue, as vezes, manter o equilíbrio entre elas. Criando um jardim quase real de flores artificiais. 



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Avaliação: (***)

Título: Flores Artificiais

Autor: Luiz Ruffato

Editora: Cia das Letras

No. Páginas: 152

Sinopse: 

"O escritor Luiz Ruffato recebe em sua casa a correspondência de um desconhecido. Trata-se de um manuscrito, uma compilação de memórias que Dório Finetto, funcionário graduado do Banco Mundial, redigiu a partir de suas muitas viagens de trabalho. Como consultor de projetos na área de infraestrutura, Finetto percorreu meio mundo numa sucessão de simpósios, reuniões e congressos. A mente de engenheiro, no entanto, esconde um observador arguto e sensível, uma dessas pessoas capazes de se misturar com naturalidade num grupo de desconhecidos. De Beirute a Havana, passando por Hamburgo, Timor Leste, Buenos Aires e incontáveis lugares mundo afora, Finetto colecionou grandes histórias e pequenos acontecimentos. Foi tão capaz de se misturar à vida local quanto de saber a hora exata em que o prudente é tomar distância e não se envolver. Por alguns momentos, fez parte da vida dessas pessoas. Em outros, foi protagonista involuntário do drama alheio. Às vezes, assistiu a essas realidades quase como de um periscópio. Foi a partir dessas observações que Finetto compôs seu Viagens à terra alheia, o manuscrito que mandou ao conterrâneo Luiz Ruffato. E é este livro dentro do livro que Ruffato irá transformar no romance Flores artificiais. Partindo de um esqueleto ficcional, Ruffato - o autor, e não o personagem do próprio livro - irá embaralhar as fronteiras entre ficção e realidade, sem jamais perder de vista a força literária que é a grande marca de sua obra."





04 junho 2020

Os loucos não reconhecem a própria loucura!







Jorge F. Isah
 


Em matéria de Cristianismo, os chamados "cristãos-marxistas" não entendem nada do que seja o Evangelho, desconhecendo o seu real significado e objetivo que é não tornar o homem perfeito na terra, nem criar o homem ideal, mas que os cristãos sejam exatamente aquilo para o que foram chamados: imitadores de Cristo. 

Em qual mundo é possível se defender uma ideologia que, em sua história, massacrou e ainda massacra milhões de irmãos? Cuja única culpa é amarem o Senhor de suas vidas? Culpados por professarem a fé indestrutível? Culpados por não se sujeitarem a "rezar" na cartilha esquerdista? Ou de qualquer governo, ou ideologia, ou movimento, a torná-los idólatras? E não adorarem o deus-estado? E não crerem num falso-salvador?

Seria o mesmo que cristãos primitivos defendessem a prisão e execução dos irmãos pelo governo romano, ou, ainda defendessem a crucificação de Cristo. Alguém pode dizer que devemos amar os nossos inimigos, mas não estou falando de amá-los, porque o amor pressupõe o desejo de levá-los à compreensão do "bem supremo. Pregando-lhes Cristo como Senhor e Salvador, mas também aquele que mudará a natureza do pecador, tornando-o santo e conformando-o à sua imagem. Quando evangelizamos um criminoso queremos que ele, conhecendo a Cristo, liberte-se dos crimes e faça o bem. 

Amar o próximo e amar o mal que ele produz não é amor ao próximo, mas amor ao que ele faz. Para amá-lo verdadeiramente desejamos a sua transformação, a sua conversão, e de que ele tenha a mente de Cristo, abandonando o mal para apegar-se ao bem. 

Ao defendermos governos e pessoas malignas, no mal que praticam, negamos qualquer efeito do Evangelho sobre elas. De que adiantaria proclamar a verdade se apoiamos as suas mentiras?

Somente neste mundo caído, e miserável, e cego, e nu, no qual vivemos, essa incoerência é possível. Em que vale mais dizer o que se quer ser, como uma possibilidade ainda que irreal, do que viver o que se diz ser... ou deveria ser. 

Utopia regada a sangue inocente e fundamentada no mal que dizem combater. Terminando por solapar e destruir também inúmeras almas. 

Como diz o Senhor Jesus: 

"Por que não entendeis a minha linguagem? Por não poderdes ouvir a minha palavra. Vós tendes por pai ao diabo, e quereis satisfazer os desejos de vosso pai. Ele foi homicida desde o princípio, e não se firmou na verdade, porque não há verdade nele. Quando ele profere mentira, fala do que lhe é próprio, porque é mentiroso, e pai da mentira" (João 8.43-44)

Os loucos nunca reconhecem a própria loucura!



19 maio 2020

Prefácio de Fábio Ribas ao livro "Esconderijo de Dias Intangíveis"





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“O mistério é assimilar,

por que Deus se fez homem,

viveu e se ofereceu

aos inimigos?”

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Todo livro é um encontro. Um encontro não meramente com seu autor, mas com todas as vozes, lugares e tempos proporcionados pela narrativa que lemos. E a poesia de Jorge Isah me trouxe ao encontro de inúmeros personagens, sujeitos dispersos, que, senti eu, o autor arrancava de dentro de si. Como se percorrêssemos 20.000 léguas para dentro do mar sem fim desse universo criado pelo autor, mas o capitão tem mão segura e, assim, verso a verso, leva-nos numa cadência existencial que nos coloca diante de nós mesmos.

Encontrei-me com um poeta que, além das narrativas, amadurece e domina a métrica, o ritmo e a rima de forma cada vez mais precisa. Um poeta que desapossa de si sua poesia e nos oferece um encontro conosco também, porque é de nossos vãos e recônditos, da nossa carne e da nossa espera por intervenção divina que nos deparamos com a nossa humanidade. As lutas, os devaneios, as indagações e o desespero dos personagens de Jorge Isah são os mesmos de todos nós. Estamos sempre nos esbarrando com estes sujeitos múltiplos - este vaso que caiu das mãos da criada descuidada e se fez em mil pedaços - e nos surpreendemos ouvindo tantas vozes. Eu me assombrei quando li a voz que também sempre ouço: “Calma, ninguém nunca quer”! 

A poesia anseia um dia ver o perfeito face a face e a obra de Isah é uma obra de santidade, pois relembra que a divindade ou, melhor dizendo, o Espírito Santo, é quem reunirá os sujeitos dispersos e nos dará, um dia plenamente, mas, aqui neste front de guerra, a cada dia e todo dia, o ajuntamento necessário e preciso dos nossos cacos, dos nossos pedaços, até que nos olhemos no espelho e possamos ver, em nós, Jesus, o Cristo, completo.

Todavia, ainda seguimos tateando o velho arcano. E os versos são os campos de batalha, porque todo poeta também necessita ser santo. Fugindo da religiosidade, embora se deparando com ela todo dia, o poeta força a palavra como quem força a vida no intuito de recriar a criação. E o que seria do ourives sem sua prata e seu ouro? E o que seria do poeta sem suas palavras? A árdua disputa do poeta contra seu verso se faz necessária, porque fomos chamados para dominar a natureza dos signos e o universo dos significados. É um embate, é mesmo uma guerra de conquista, por isso o verdadeiro poeta sabe que o texto - fruto desse esforço espiritual e físico - é símbolo de sua terra definitiva. Finalizado e dominado no espaço exato da forma, todo poema é para seu autor sua terra prometida: nossa escritura é nossa pátria! 

Eu quero convidar você a ler estas páginas com a reverência necessária - o respeito pelo sagrado - que nossa geração perdeu, mas que tanto carece, ainda que não consiga discernir isso na confusão da nossa decadente modernidade.  

 

Fábio Ribas

 

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Livro: Esconderijo de Dias Intangíveis

Autor: Jorge F. Isah

Editora: Kálamos

No. Páginas: 162

Sinopse: "Este livro promove um encontro não meramente com seu autor, mas com todas as vozes, lugares e tempos proporcionados pela narrativa. Os poemas apresentam inúmeros personagens, sujeitos dispersos, que o autor parece arrancar de dentro de si. No mar deste universo criado pelo autor, o capitão tem mão segura, verso a verso conduzindo a uma cadência existencial que coloca o leitor diante de si mesmo."



09 março 2020

Sermão em Efésios 2.8-10: A graça com que fomos amados









Jorge F. Isah



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Efésios 2:8. Porque pela graça sois salvos, por meio da fé; e isto não vem de vós, é dom de Deus. 9. Não vem das obras, para que ninguém se glorie; 10. Porque somos feitura sua, criados em Cristo Jesus para as boas obras, as quais Deus preparou para que andássemos nelas.
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INTRODUÇÃO¹

- Em 2.1-3, fala de nós, pecadores. Somos informados de que Deus vivificou os efésios, quando eles estavam mortos em ofensas e pecados.

- Paulo mostra a condição de que éramos inimigos de Deus, e estávamos afastados de sua comunhão.

- Em 2.4-7, fala de Deus, que, por ser rico em misericórdia e amor, mesmo estando mortos em ofensas e pecados, nos vivificou, ressuscitou e nos fez assentar nos lugares celestiais, por Cristo nosso Senhor.

- Agora, nos deparamos com as conclusões de Paulo sobre o assunto. Somos levados a um nível de maior entendimento da obra de redenção, e do quão inútil é o nosso esforço em alcançá-la.



SALVOS PELA GRAÇA

1) Pela graça sois salvos:

- O homem está irremediavelmente condenado: “17. Porque Deus enviou o seu Filho ao mundo, não para que condenasse o mundo, mas para que o mundo fosse salvo por ele. 18. Quem crê nele não é condenado; mas quem não crê já está condenado, porquanto não crê no nome do unigênito Filho de Deus.” (Jo.3.17-18).

- Analogia do naufrago que não pode colaborar com o seu salvamento.

- Apenas a graça salva.

2) Por meio da fé

- As pessoas se enganam achando que a fé é quantitativa, quando ela é objetiva.

- Cristo é o objeto da nossa fé.

- Ter muita fé em objetos errados (deuses, o esforço próprio, duendes, ets, etc) ainda que seja uma fé grandíssima não pode salvar, pois estão no objeto errado. Pode ser uma fé suficiente para mover os montes (lembre-se de que satanás pode aparecer como anjo de luz e fazer muitos prodígios [2Co 11.14]), mas não será para salvar quem crê nessas distrações ou armadilhas.

- A fé tem de ser em Cristo e somente nele. É o que Pedro diz em Atos 4.12: 
“E em nenhum outro há salvação, porque também debaixo do céu nenhum outro nome há, dado entre os homens, pelo qual devamos ser salvos.”

- Justiça apenas em Cristo: 
“Sendo justificados gratuitamente pela sua graça, pela redenção que há em Cristo Jesus. 25. Ao qual Deus propôs para propiciação pela fé no seu sangue, para demonstrar a sua justiça pela remissão dos pecados dantes cometidos, sob a paciência de Deus; 26. Para demonstração da sua justiça neste tempo presente, para que ele seja justo e justificador daquele que tem fé em Jesus” (Rm 3.24-26)


3) Não vem vós e das obras

- As obras não justificam:
“1. QUE diremos, pois, ter alcançado Abraão, nosso pai segundo a carne? 2. Porque, se Abraão foi justificado pelas obras, tem de que se gloriar, mas não diante de Deus. 3. Pois, que diz a Escritura? Creu Abraão em Deus, e isso lhe foi imputado como justiça. 4. Ora, àquele que faz qualquer obra não lhe é imputado o galardão segundo a graça, mas segundo a dívida. 5. Mas, àquele que não pratica, mas crê naquele que justifica o ímpio, a sua fé lhe é imputada como justiça." (Rm 4.1-5)

- A glória é somente de Deus, não do homem: 
“28. E Deus escolheu as coisas vis deste mundo, e as desprezíveis, e as que não são, para aniquilar as que são; 29. Para que nenhuma carne se glorie perante ele. 30. Mas vós sois dele, em Jesus Cristo, o qual para nós foi feito por Deus sabedoria, e justiça, e santificação, e redenção; 31. Para que, como está escrito: Aquele que se gloria glorie-se no Senhor."  (1Co 1.30-31)

- Gálatas 2.16: “Sabendo que o homem não é justificado pelas obras da lei, mas pela fé em Jesus Cristo, temos também crido em Cristo Jesus, para sermos justificados pela fé em Cristo, e não pelas obras da lei; porquanto pelas obras da lei nenhuma carne será justificada” (Pelas obras da lei nenhuma carne será justificada).


4) Dom de Deus

- Tanto a graça como a fé são dons de Deus derramados sobre os pecadores. Mas antes é necessário que Deus leve o pecador aos pés de Cristo: 
“44. Ninguém pode vir a mim, se o Pai que me enviou o não trouxer; e eu o ressuscitarei no último dia... 65. E dizia: Por isso eu vos disse que ninguém pode vir a mim, se por meu Pai não lhe for concedido." (João 6.44, 65).

- Pode parecer que é uma iniciativa humana, mas não é. Antes é o Pai quem leva-nos aos pés do Filho, tirando-nos a venda, abrindo-nos os olhos, renovando o nosso espírito para então, somente então, crermos que ele é o único Senhor e Salvador.

- A relação do Pai e do Filho quanto à salvação: (João 12.44-46).

- Conhecer a Cristo não é um conhecimento apenas histórico, bibliográfico, mas um relacionamento, comunhão, intimidade. Algo que Paulo sentiu e também podemos sentir, como ele descreve em Gálatas 2.20: 
“20. Já estou crucificado com Cristo; e vivo, não mais eu, mas Cristo vive em mim; e a vida que agora vivo na carne, vivo-a pela fé do Filho de Deus, o qual me amou, e se entregou a si mesmo por mim”.



CRIADOS EM CRISTO

- Nascidos em Adão, para uma vida afastada de Deus, fomos “recriados” em Cristo, para uma vida de comunhão e união e serviço a Deus.
- Qual o fim de tudo isso? As obras.
- Elas não são a causa da salvação, mas a consequência da salvação.
- Porque somos salvos, somos capazes de produzir boas obras.
- E isso é possível porque fomos criados em Cristo para as boas obras.
- É algo possível apenas depois da regeneração e novo nascimento.
- Tiago 2.14-26 (ler o texto e comentar).

Que a graça e o amor de Deus estejam em nós, e sobre nós, para sempre!


Notas: 1- Para ouvir a pregação, clique em Tabernáculo Batista Bíblico




26 fevereiro 2020

O Filósofo e a Teologia - Étienne Gilson










Jorge F. Isah



O livro escrito por Étienne é uma delícia de se ler, mesmo para um não iniciado em filosofia como eu. É quase uma confissão, por isso, a obra tem um caráter autobiográfico, de depoimento, de esclarecimento, de explicação.

É daqueles livros difícil de se largar. Dá até vontade de abandonar os outros afazeres até terminá-lo. Não somente pela fluência narrativa, mas porque tem de ares de confessionalidade, íntimo e generoso compartilhar experiências, emoções e descobertas. 

Deixemos, portanto, que o autor esclareça o significado da sua obra: "O assunto próprio do livro é a aventura de um jovem francês que, educado na religião católica, deve toda sua educação à Igreja e toda sua formação filosófica à Universidade" (pg 13).

Desta forma, tem-se o desenrolar, segundo o autor, do fio que o conduziu à filosofia e a se tornar filósofo, por meio da teologia. Como testifica, ele próprio, ao afirmar que uma vez cristão, todos os outros campos científicos têm de se curvar à fé cristã: "Ela é teologia, uma vez que se fundamenta em nossa fé naquilo que Deus pessoalmente nos diz acerca de sua natureza, de nossos deveres em relação a ele e de nosso futuro. Se a filosofia deve intervir, ela só falará quando chegar a sua vez, mais tarde, e como jamais, em nenhum caso, ela terá o poder de nada acrescentar aos artigos de fé, nem de retirar qualquer elemento que seja, pode-se dizer que, na ordem do conhecimento para nossa salvação, a filosofia virá não somente mais tarde, mas muito tarde" (Pg 19).

O que se pode ser acrescentado? 

Capítulo interessantíssimo é o que trata da "Desordem" (cap III). 

Entre outras coisas ele analisa o kantianismo e sua tentativa de anular o tomismo, e a flagrante derrota daquele. 

Étienne se declara claramente escolástico; e faz uma defesa de Tomás de Aquino diante da impossibilidade de compreensão por alguns de seus detratores. 

Mas o que mais me chamou a atenção foi uma crítica de certo padre a Tomás de Aquino, acusando-o de afirmar que "Deus é desconhecido", e mais, de que ele disse ser Deus "um sei lá o que:'Deus est ignotum'"

Naquele instante, veio-me à mente a pessoa de Cristo, e pude perceber o quanto é ridícula tal afirmação. Não me importa se está metafisicamente correta, se está epistemologicamente correta, ou em algum ponto do conhecimento humano pode estar correta. O certo é que, biblicamente, ela é falaciosa, e tem de ser rejeitada prontamente. Porque Cristo é a imagem e a plenitude de Deus. Somente por ele podemos conhecer a Deus verdadeiramente, sendo o Evangelho a sua palavra. Portanto, é possível ao homem conhecer Deus por intermédio de Cristo. Foi o que Paulo nos disse: "O qual, sendo o resplendor da sua glória e a expressa imagem da sua pessoa, e sustentando todas as coisas pela palavra do seu poder" (Hb 1.3). 

Ah! que alegria ao poder olhar para o meu Senhor e Salvador reconhecendo nele o próprio Deus, não apenas uma imagem disforme, um espectro, mas a essência de tudo o que Deus é! 

Meus olhos encheram-se de lágrimas, e meu coração de viva esperança, por saber que o verei face a face, um dia, e de que honrá-lo pelo tempo que me resta neste mundo, tem de ser o meu dever e prazer. 

Não sei se o conceito de incognoscibilidade divina de Aquino chegou ao ponto em que é acusado de chegar ao "Deus est ignotus", mas o certo é que se o fez, o fez erroneamente, pois Deus é conhecido por seus filhos, na pessoa de Jesus Cristo. 

Mas entendo que há "entremeios" entre os meios filosóficos que justifiquem essa suposta afirmação, por isso, concordo com Gilson: a fé cristã virá sempre primeiro, e a filosofia depois, bem depois, é verdade. 

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A partir do ensino do catecismo católico, no transcorrer de 100 anos, aproximadamente, Étienne nos revela as influências que determinaram uma queda sensível na forma de ensinar.

Ele argumenta que "a doutrina permaneceu a mesma, a ordem ficou diferente" (pg 75). O que entendi, foi uma mudança nos pressupostos, antes firmados na razão escriturística, pela revelação do próprio Deus em se autodenominar o único Deus. Depois de algumas décadas, numa lógica evidencialista, em que se busca a razão ou razões para se crer à margem da revelação; ou seja, simplesmente, se basear a revelação nas evidências cientificas, como se essas fossem, inexoravelmente, infalíveis, inerrante e ocupassem o lugar de primazia ante a revelação divina. 

Étienne censura abertamente essa mudança no enfoque do ensino:"Cedendo nesse ponto, como em tantos outros, à ilusão de que o espírito democrático consiste em tratar os cidadãos como se eles fossem, em princípio, uns débeis mentais, decidiu-se por rebaixá-la (a teologia) ao nível das massas, ao invés de elevá-las ao nível dela" (pg 72).

É mais ou menos o mesmo processo que aconteceu e está em cristalização entre os evangélicos: a ignorância teológica quase absoluta; mas mais do que isso, o desprezo e a insignificância com que a tratam. 

A afirmação do catecismo, que o autor usa como exemplo e endossá-a (Eu creio que há um Deus porque ele mesmo nos revelou sua existência), parece-me prova do pressuposicionalismo de Étienne. Não sei se é possível um católico, escolástico, ser pressuposicionalista, já que não entendo lhufas de Escolástica; porém, suas afirmações e a defesa da revelação especial até mesmo em relação a revelação natural (aceita no seio católico como superior à Escritura) parecem garanti-lo como pressuposicionalista. Não é uma certeza, nem o autor o faz claramente, mas há indícios mínimos, diga-se, a indicar a questão. Certamente, precisaria estudar mais outros livros de Étienne para certificar-me dessa condição. 

Em suma, o autor defende a superioridade da fé sobre a filosofia, e de que a filosofia, mal aplicada e calcada em falsos fundamentos, deteriora e corrompe a teologia e, por conseguinte, a fé: "Custe o que custar, a fé possui antecipadamente toda a substância daquilo que o filósofo jamais conhecerá a respeito de Deus e algo mais... o intelecto não sabe e não crê na mesma coisa, sob o mesmo ponto de vista [filosófico e teologal], pois a filosofia nada sabe da existência do Deus da Sagrada Escritura. A filosofia sabe que existe um deus, mas nenhuma filosofia pode sugerir a existência daquele Deus específico" (pg 87-88). 

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Étienne assevera que é necessária a revelação cristã (provavelmente ele inclui aqui a autoridade da ICAR e a tradição juntamente com a Bíblia) para que se possa crer no Deus cristão, assim como é impossível e sem sentido imaginar que se possa conhecer esse mesmo Deus de outro modo que não pela fé em sua própria revelação. 

Ele baseia a fé no sacramento do batismo, e em momento algum fala sobre novo-nascimento ou regeneração, no que discordo potencialmente da sua definição de fé, contudo, no atacado, ele está correto, e desmascara os vários movimentos infiltrados na igreja e que acreditam ser possível um "cristão", que não crê na revelação cristã, ou um "cristão" sem qualquer traço de Cristianismo ortodoxo. Existem cada vez mais pessoas se autointitulando cristã sem se convencer ou defender os princípios cristãos estabelecidos nos últimos dois milênios, que vão desde a rejeição à doutrina da Trindade até as várias formas modernas de arianismo (algumas explícitas, outras nem tanto; mas todas com a mesma origem em Ario). Chega-se ao cúmulo de se desprezar ou ignorar os relatos dos evangelhos como fontes falsas ou insuficientes para se conhecer Cristo. 

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Outra afirmação interessante, e que demonstra o criticismo do autor à nova forma de catolicismo, é o fato dele dar razão a um pastor calvinista que afirmou ser a metafísica (revelação natural) "incapaz de fundar o conhecimento religioso" (pg 84). Entendo que a metafísica não cuida especificamente da revelação natural, mas da sua relação com as questões últimas da vida e do mundo, em geral. 

Étienne argumenta que se os calvinistas pensam que o catolicismo defende um deus genérico e geral, e não o Deus pessoal e bíblico, é porque, em algum momento, deixou de ser fundamental o conhecimento propriamente religioso: "Se há calvinistas acreditando que a doutrina da Igreja católica lhes proíbe reconhecer essa verdade (de que apenas pela revelação especial se conhece o Deus bíblico), ou que ela a ignora, alguns professores mal informados podem ser responsabilizados pela ilusão deles" (pg 85).

O pensamento de Gilson, quanto ao assunto, pode ser definido assim, em suas próprias palavras: "A metafísica pode apresentar à fé certos preâmbulos, mas somente a palavra de Deus pode fundamentá-los" (pg 84).

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Étienne faz uma defesa de Tomás de Aquino e da sua escolástica, apaixonadamente, o que não quer dizer de maneira desarrazoada, tola. 

Interessante que se utiliza de um filósofo, Henri Bergson, que não era cristão nem religioso (de origem judaíca) para uma defesa de Aquino a partir da defesa de Bergson.

Gilson diz que entre os filósofos gregos e os filósofos modernos houve apenas um padrão de filosofia: a escolástica ou cristã (ele, como tomista, equipara o escolasticismo com o Cristianismo). 

Porém, a filosofia cristã não produziu o Cristianismo, nem mesmo a alegação de filósofos não-cristãos de que Aristóteles é quem determinou as bases do Cristianismo, especialmente o medieval. Ele afirma que a teologia cristã precede a qualquer filosofia, inclusive a escolástica, a qual se apresenta muito mais como teologia, assim como a filosofia de Aquino está a serviço da sua teologia, e procede dela. 

Um trecho que confirma essa ideia é: "Foi de tanto tratar São Tomás como filósofo que eu pude finalmente reconhecer que ele não filosofava como os outros... Não se pode interpretar uma teologia como se fosse uma filosofia, mas a maneira de estudar em um teólogo o que ele chama de teologia é igual à maneira de estudar como um filósofo concebe a filosofia... É comum pensar, ou pelo menos dizer, que toda conclusão cujas premissas são conhecidas pela única luz da razão é necessariamente filosófica. E isso é verdade, mas logo se acrescenta que, uma vez que esse tipo de raciocínio é filosófico, ele não poderia encontrar espaço na teologia. Uma outra maneira de expressar a mesma ideia é dizer que toda conclusão teológica é tirada de um silogismo no qual pelo menos uma das premissas é amparada pela fé. 

Essa maneira de entender a teologia é verdadeira naquilo que ela afirma, mas insuficiente naquilo que ela nega. É certo que a matéria da teologia sobrenatural seja o revelado propriamente dito, ou seja, aquilo cujo conhecimento não é acessível ao homem senão pela via da revelação. Ora, o revelado como tal só pode ser recebido pela fé... Mas a questão não é só isso, pois o fato de uma conclusão de fé não poder pertencer à filosofia não implica que uma conclusão puramente racional não possa pertencer à teologia... é da essência mesma da teologia de tipo escolástica apelar com frequência e liberdade para o raciocínio filosófico. É pelo fato de recorrer à fé que ela é uma teologia escolástica, mas é pelo uso característico que faz da filosofia que ela é uma teologia escolástica" (pg 103-104). 


Ao meu ver, é clara a noção de preeminência da teologia frente à filosofia. Em muitas partes do livro (o autor gasta dois ou três capítulos nesta questão), há a certeza de que a fé cristã somente ser possível, verdadeiramente, a partir da revelação, e de que nenhuma filosofia, por melhor que seja, pode defini-la ou delineá-la. É possível que ela a interprete e explique, mas jamais seja a causa ou origem da fé. Somente a Escritura é capaz de ser essa origem, ainda que Étienne defenda a infalibilidade da ICAR e da tradição. 

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Ao defender Tomás de Aquino e a filosofia escolástica, Étienne está a rejeitar a afirmação "moderna" de que, dos gregos até Descartes, não havia filosofia, mas uma filosofia atrelada à teologia, de tal forma que a filosofia estava aprisionada na teologia cristã e se desfigurava como tal; e de que qualquer volta aos princípios cristãos de filosafar representaria uma nova escravidão intelectual. 

O que os filósofos modernos querem reivindicam é o renascimento da filosofia, por suas mãos: mas seria possível desprezar os muitos séculos em que a filosofia foi sustentada e impregnada pelo pensamento cristão? Há uma "nova" filosofia sem nenhum resquício do pensamento cristão? Completamente original e a parte dele? Ou os "novos" filósofos se apropriaram de muito da filosofia cristã e, injustamente, não lhe deram o devido crédito? Antes a desprezaram por puro preconceito? 

E, por que o pensamento moderno pode se utilizar de várias bases do pensamento humano (inclusive do pensamento cristão), e a filosofia cristã não o pode? 

O que temos é o nítido caráter de desqualificar qualquer forma de pensamento a partir da Escritura, da fé cristã, e assim criar um ineditismo que não existe, mas engana a muitos.

É o que o autor nos diz: "É evidente que inutilmente se buscariam nela (fé cristã) instruções relativas à maneira de filosofar própria a mentes estranhas à fé numa revelação sobrenatural. Que estas tirem suas conclusões, o que é legítimo, mas nada justifica sua recusa em levar em consideração as doutrinas concebidas num espírito cristão... A origem do pensamento não diminui em nada o seu valor" (pg 186).

Bem, quanto a isso, tenho sérias dúvidas, pois, ao meu ver, o pensamento cristão se baseia sobretudo na revelação divina, o que o torna superior a qualquer pensamento humano, logo, nenhum pensamento em bases não-cristãs pode ter um valor em si mesmo, a não ser o de revelar-se como engano e falácia diante da verdade, da revelação especial divina: a sua palavra.

É evidente que estou a falar como cristão, e não rejeito o fato de haver alguma verdade nos pensamentos não-cristãos, mas, de maneira alguma, acredito que essas verdades estejam alheias ou, em seus princípios e fundamentos, surjam fora do escopo cristão. Deixando mais claro, a própria ideia de um não-cristão, seja filosófica ou teologicamente, construir um pensamento ou conceito verdadeiro indica a sua origem na essência do cristianismo: a revelação do Deus bíblico. Seja por assimilação, seja por usurpação, seja porque todos os homens, em menor ou maior grau, têm fragmentos do Imago Dei. São, via de regra, os efeitos noéticos do pecado na alma humana a impedi-lo de reconhecer toda a verdade, mas não de reconhecer alguma verdade. 

Mas vale a afirmação de Gilson como uma maneira de mostrar o quanto qualquer pensamento ligado à fé cristã tem um tratamento discriminatório e injusto por parte dos não-cristãos, que sequer o reconhecem como pensamento legítimo em si mesmo, numa forma fraudulenta de autoexaltação.

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O que mais ficou evidente no livro foi a defesa que Gilson faz da supremacia da fé cristã, da revelação proposicional e especial, sobre qualquer forma de filosofia e ciência, nos seus próprios dizeres: "Por mais úteis que a ciência e a filosofia possam ser à filosofia cristã, ajudando-a a constituir-se a si mesma como ciência, nem uma nem outra jamais acrescentarão nada à verdade da fé, que as coloca a seu serviço. As partes caducas de uma teologia são precisamente aquelas que ela teve de tomar emprestadas da ciência de seu tempo. A mesma observação se aplica às filosofias" (pg 234). 

Alguém poderá dizer que ele está a falar de filosofia, não de teologia. Mas há de se entender que Étienne não considera dissociadas e conflitantes a teologia e filosofias cristãs, antes estão intrínsecas no mesmo corpo. O que ele estabelece é uma hierarquia, onde a segunda está em direta dependência da primeira, e esta da revelação divina. Senão, vejamos: "A filosofia cristã é uma historia que se desenvolve a partir de um termo imutável, situado fora do tempo e, por isso, sem história. A filosofia cristã é o desenvolvimento de um progresso a partir de uma verdade que não está, ela própria, sujeita ao progresso. Essa verdade procede da natureza de Deus, que não muda, mas o mundo por ela iluminado não pára de mudar;o mundo da invenção científica, o mundo da invenção moral, social, econômica e política, da invenção artística, enfim, tantas contribuições sem cessar renovadas e às quais a sabedoria cristã deve prestar a mais afetuosa atenção, para purificá-las e delas extrair o sentido verdadeiro, benfazejo e até mesmo, uma vez purificado, salvador" (pg. 235). 

O entendimento da fé cristã como o instrumento transformador e regenerador não somente do indivíduo, mas da própria sociedade, é algo com o qual acredito, nós, cristãos, devêssemos dar um grau de maior importância. E Gilson se dispõe a explicar detalhadamente esse pensamento, sendo, portanto, revelador, e extraindo do Evangelho sua principal mensagem: a de ser ele o único meio pelo qual Deus operará por seu Espírito na alma/mente do homem natural, trazendo-o cativo a Cristo. 

Bem, por vários aspectos, a leitura deste livro me foi surpreendente.

Primeiro, por perceber como um católico pode se aproximar tanto da verdade bíblica, ainda que, provavelmente, ela não lhe seja de valia do ponto de vista prático, no que posso estar errado; e não é um julgamento mas uma suposição. 

Segundo, o fato de um filósofo se ver tão atrelado à fé bíblica, à revelação escriturística, de tal forma que mesmo a sua filosofia está sempre em sujeição a ela. 

Terceiro, não imaginava que Tomás de Aquino tinha tamanha importância no pensamento cristão, e de que, segundo o autor, o tomismo fosse a prova de que a filosofia não é verdadeira em si mesma, mas depende da verdade revelacional para se constituir como tal. Assim, estará sempre em subserviência à teologia, do contrário, não encontrará em si mesma as respostas às perguntas que faz. 

Quarto, Étienne é como um maestro a reger a nossa leitura. Ele pontua os textos com exemplos e analogias que nos faz entender o que é complexo; sua escrita é fluente, cativante, e nos faz saborear cada palavra. 

Com isso não estou dizendo que concordo com todas as suas proposições, não é isso! Como católico, ele tem algumas posições com as quais não concordo, mas de forma alguma tiram o brilho do seu texto. Digamos que eu fosse capaz de escrever como Étienne, e ele me lesse, perceberia diferenças, por causa do meu protestantismo, mas certamente concordaria com a maioria do meu pensamento. 

A reclamar o acabamento pobre e barato do livro. Papel de baixa qualidade, capa simples, sem orelhas, poucos erros de digitação; mas, para um livro nada barato, é um descuido e tanto!

Felizmente, o texto de Étienne Gilson supera todas as deficiências da edição, e com muita, mas muita folga. 

Se você ainda não leu, leia "O Filósofo e a Teologia"; caso não leia, arrependa-se! (rsrs)

Uma última transcrição para finalizar: "Bem longe de achar irracional minha confiança absoluta na verdade dessa metafísica cristã, o estudo que continuo a fazer dela me confirma sempre mais na certeza de sua perenidade.

Como se poderia acreditar que esse belo cargueiro, que há tantos séculos percorreu tantos caminhos sem nunca mudar de rota, esteja hoje prestes a trocar de direção ou chegar ao fim da linha? Nem a energia lhe falta para continuar sua viagem, nem a assistência daquele que prometeu estar conosco até a consumação dos séculos" (pg. 239).

À bientôt!


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Avaliação: (****)

Título: O Filósofo e a Teologia

Autor: Étienne Gilson

Páginas: 245


Sinopse: "Étienne Gilson (1884-1978), nascido em Paris, professor renomado da Sorbonne, Strassburg, Toronto Harvard e Louvain, é por muitos corretamente chamado de o grande medievalista do século XX. Durante sua longa trajetória publicou algumas das mais influentes obras do pensamento cristão contemporâneo, especialmente na sólida retomada do legado do Tomás de Aquino Quem se interessou e ainda se interessa pelos estudos de história de filosofia e das suas interfaces com a Teologia, não deixou nunca de recorrer aos livros deste cristão (com orientação católica) e que teve uma recorrente preocupação: há uma crise de Metafísica nos nossos tempos e isso deve à equivocada secundarização das concepções tomistas."




01 fevereiro 2020

O fracasso humano em "Um Homem Bom é Difícil de Encontrar"






Jorge F. Isah


O que dizer de Flannery O'Connor?

Fui levado à leitura pelos comentários entusiastas do Prof. Rodrigo Gurgel e do meu amigo, ainda que um amigo intermitente, Leonardo Galdino. Comprei-o, e amargou a estante e o envoltório por três longos anos. Antes deles, nunca ouvira falar da autora, e devo-lhes a gratidão de tê-la me apresentado. 

Quando, enfim, no final de 2019, tomei-o em mãos, arranquei-lhe o plástico, e comecei a leitura, vi-me diante de uma obra impactante, brutal, macabra, em alguns momentos até mesmo fantástica, mas suficientemente bela, lírica e, não se assuste, espiritual. Sim, Flannery descreve a incapacidade humana de alcançar a paz interior, e entre os seus semelhantes, mesmo que a busque com ânsia e persistência. Via de regra, o homem é mau, em sua soberba, independência, autossuficiência, egoísmo e na frieza do trato comum. Não parece haver solução; e a morte, algumas vezes, pode ser um alívio, até mesmo para o leitor compadecido com a dor, a angústia e o sofrimento da(s) personagem(ns). 

Vivendo e descrevendo pessoas, lugares e situações dos EUA sulista, a autora perpassa pela vida de agentes e indolentes, com a candura de uma madre ensinando repetidas vezes aquilo que o aluno teima em não aprender. Todos somos pecadores, em maior ou menor grau; e se um bandido pode matar friamente uma velhinha com tiros no peito, enquanto ela se considerava, por toda a vida, a si mesma uma alma boníssima. Diante da morte iminente, os pecados são-lhe expostos; percebe que, ela mesma, não é muito diferente do facínora. E assim, sonhos são desfeitos; desejos rejeitados... Um círculo vicioso leva o homem a se prender na própria carência, que pouco ou nada pode colaborar para a sua interrupção. Quase nada sobra em um mundo fadado ao fracasso, se a busca de salvação encontra-se no homem em vertiginosa queda. 

As pessoas são de um automatismo absurdo, de uma indiferença desagradável, ou uma proximidade doentia. Um dos exemplos encontra-se no conto “Gente boa da roça”, onde uma jovem loura e corpulenta, que perderá uma das pernas na infância, após a maioridade, troca o nome de batismo “Allegra” por “Hulga”. A mãe não conseguia entender a opção da filha, por apropriar-se legalmente de um nome que a remetia a “um casco largo e cor de pulga de um navio de guerra. Recusava-se a usá-lo”. A filha demonstrava rejeitar os valores familiares, sem qualquer apego ou gratidão pelo cuidado e esmero que a mãe devotava. Ela declinava de qualquer convenção familiar ou social, colocando-se em posição arrogante, orgulhosa de seus feitos, ainda que fossem uma proteção natural para a sua deficiência. Mas tudo desmorona com a chegada de um caixeiro-viajante. Que planeja humilhá-la, com um plano ignóbil de roubar-lhe o membro artificial. 

Se o intento foi minuciosamente planejado e aplicado, a fim de dar o golpe, a vítima, insensível, dura, orgulhosa de seus diplomas e cultura, não é menos inocente. Na verdade, ela merecia cair no ardil, pois considerava a sua razão e intelecto o suficiente para compensar a perna perdida na infância; e de torná-la superior, elevada, diante dos seus semelhantes. Se faltava-lhe um membro, sobrava o desprezo às pessoas, a Deus, e a si mesma (ainda que, nesse aspecto, não tivesse a percepção suficiente para compreendê-lo); o orgulho gélido com que se autoexaltava, desdenhando da própria mãe, da empregada (uma mulher que tinha duas belas filhas e uma paixão lânguida por tragédias, doenças crônicas e incuráveis) e de suas demais relações, tornavam-na não a mais esperta das mulheres, como supunha, mas uma presa fácil nas dissimuladas intenções do jovem vendedor. 

Nos momentos finais, sem poder se locomover, ouviu o algoz lançar-lhe em rosto a sua estultice, enquanto guardava a prótese na valise. Ele também é um incrédulo, arrogante, explorador de velhinhas e mulheres ingênuas, orgulhoso dos seus feitos, impenitente, vendendo Bíblias e livros religiosos como se um religioso fosse, não passando de um vigarista. Mas aqui é colocado em xeque a fragilidade do racionalismo, como âncora das virtudes humanas e da ostentação, quando os adeptos são prosélitos, dísticos de otário. 

Ainda assim, a aleijada queria um relacionamento. Desprezando a mãe e conterrâneos, é seduzida pelo jovem, quatorze anos mais novo, e o apelo que ele faz, à sua maneira, a beleza de Hulga. No fim das contas, toda a pompa intelectual, o cuidado racional, o ceticismo como estilo de vida, sucumbiu ao mais comum dos rogos: a vaidade. A sinceridade dos românticos deu lugar à lábia do astuto, a arrancar a confiança, a intimidade, guardada estoicamente na fortaleza da alma da mulher. Entretanto, o que considerava o alicerce do caráter, foi a sua fraqueza, o calcanhar de Aquiles. A força não estava na confiança, mas na inveja, e nela não existe pujança, mas debilidade. E a debilidade acaba por tomar-lhe o cuidado, o distanciamento necessário para reconhecer no estranho cafajeste. 

Mas ela não queria ver a realidade, nem de si, nem dele; de, por algum motivo oculto, não haver a menor possibilidade de imperfeição na relação... Pouco a pouco ela se encanta, abre a guarda, se submete, crê. Bastaria o arrependimento, ver-se como realmente era, para não ser tragada na patifaria. Soberba e queda caminham juntas; autoengano é a própria morte, se não se desperta do letárgico delírio, do orgulho, e das mentiras incansáveis que consideramos reais. Indefesa, nada pode fazer diante da  ridícula exposição, enganada por um garoto iletrado, mas astuto. E a constatação dolorosa do seu erro a silencia. Não mais apela à civilidade, ao bom-senso; vítima de si mesmo e à mercê do próprio esnobismo. A sua fé cai por terra, desbarata-se, como castelo de areia em meio à tormenta. 

Não sabemos o que aconteceu depois, enquanto o jovem trapaceiro se afastava triunfante do celeiro, onde abandonou-a solitária. Mas, certamente, se ela não reconheceu os erros e a incapacidade de autorredenção, apenas asseverou-se a amargura e o ressentimento por uma vingança, sem perdão. E o ceticismo certamente tomou-a de si mesma: não era confiável, nem suficiente. Da parte dele, sua revanche era itinerante; jamais passaria disso, da mesma forma que o cego somente pode ver a escuridão. 

Flannery trata, via de regra, da impossibilidade humana de apagar as manchas do pecado original, enquanto o homem labora incessantemente para extinguir de si o “Imago Dei”, como se o negar a Deus e o seu auxílio pudessem impedi-lo da miséria e desgraça nas quais sucumbiria. 

Não é um livro triste, não premeditadamente triste. Chega a ser engraçado em vários momentos. O desacerto das relações humanas pode resultar em leveza e divertimento. Também não é um livro sisudo, amargo, pois a autora indica um caminho em meio à estranheza de suas histórias. E nada disso é pouco; quando se está às voltas com a vulnerabilidade e desequilíbrio humanos, enquanto se acredita soberano de si mesmo. Talvez, por isso, ela insista em afirmar no título, e em um dos contos, que “Um homem bom é difícil de encontrar”. Sem Deus, o homem é o que é, e não pode deixar de sê-lo, por mais simplório que isso possa parecer.



________________ 

Avaliação: (****)

Título: Um homem Bom é Difícil de Encontrar

Autora: Flannery O'Connor

Editora: Nova Fronteira

No. Páginas: 224 

Sinopse: "Um homem bom é difícil de encontrar e outras histórias, lançado em 1955, é a mais famosa de todas as obras de Flannery O’Connor e aquela que a consagrou como uma das maiores escritoras do século XX. Enraizados na tradição gótica do sul dos Estados Unidos, os dez contos aqui reunidos revelam uma visão de mundo um tanto peculiar, em que o grotesco, o simbolismo religioso, o humor, a violência, a presença da graça divina e situações excepcionalmente tragicômicas se mesclam para revelar as complexidades do comportamento humano e, acima de tudo, a busca dos homens pela redenção"




24 janeiro 2020

Morte em Veneza: A morte por um desejo







Jorge F. Isah



“Morte em Veneza” é um livro, no mínimo intrigante. A prosa suave, plácida e incrivelmente detalhista de Mann, o torna em um dos escritores mais caudais da história. Sua obra, composta de poucos, mas densos livros (tanto no volume, quanto na trama e personagens) não tem cortes repentinos e situações bombásticas, como boa parte dos escritores modernos parece querer esculpir seus livros. Ela vai em uma crescente, lenta e cuidadosamente se desenvolvendo, até que o leitor se vê irremediavelmente fisgado, e incapaz de largar o livro, por maior que seja.



Este, contudo, seria uma exceção, ao menos quanto ao seu tamanho. É uma novela de pouco mais de noventa páginas, que se pode ler de uma sentada, o que não seria aconselhável. Mas, do que trata o livro? Ele fala da beleza, sobretudo da beleza perdida pelo protagonista (um homem de meia-idade), escritor famoso e laureado, que está com a vida consolidada no âmbito profissional, pessoal e familiar, e em busca de novos ares, a fim de injetar um novo rumo a sua carreira.


Em férias, von Aschenback, chega a Veneza, e encontra, no hotel, o jovem Tadzio (jovem é eufemismo, pois o rapaz é quase uma criança), um garoto polonês de beleza arrebatadora, causando assombro ao escritor. Aschenback sente-se seduzido pela graça e encantado com a perfeição escultural do jovem, tornando as suas férias em uma obsessiva perseguição visual, no vislumbre delirante de um amor platônico, na intocabilidade do tato, no desejo ilícito, na reprovável insídia de acalentar o amor infame.
Mann retrata os dramas e ensejos do velho escritor, mostrando os seus conflitos morais e íntimos, a insanidade e vergonha com que ele se avalia, entretanto, incapaz de detê-lo do desejo imperfeito do amor indigno. Um amor fadado à morte, e que consome a alma de Aschenback. Não há paz, nem consolo, ou alívio na atormentada cobiça, pelo delito de um adulto ansiando o amor de uma criança. Nem mesmo as cenas mais pueris, em que os infantes se envolvem, são o alerta para demover o escritor da sua obsessão. O ridículo se vislumbra como um fato mais que comprovado. O crime, às portas da concepção, ao menos na mente perturbada do escritor.

Mann constrói um livro que, pela mão de outro soaria apelativo, quando não um pastiche de dramalhão gay. Há momentos de ternura, de cumplicidade e afeição, provando que até mesmo os loucos e doentes têm a sua porção sensibilidade. Mas ela não absolve Aschenback, nem cria empatia no leitor, por mais tortuoso seja o seu dilema.

Quando o barbeiro se oferece para “repaginar” o visual de Aschenback, pintando-lhe os cabelos grisalhos, maquiando-o para esconder-lhe a idade, perfumando-o, ele se apercebe do ridículo em que se apresenta, mas o desejo suplanta-lhe a razão e o bom senso, cedendo ao escárnio, a zombar-se de si mesmo.

O texto de Mann, como sempre primoroso, serve como o retrato de uma causa indigna, de uma defesa não sustentável, mesmo que se possa, em algum sentido, se compadecer da aflição romântica do protagonista (pela qual muitos de nós já passamos também; afinal, quem não morreu de amores ao menos uma vez?), ela não traz enlevo, mas a certeza de ser imoral e perversa. Mesmo que Mann discuta a perda da beleza, da juventude, e a sua busca na beleza e juventude alheia, a narrativa nos remete à pedofilia, o controle do mais forte, a animalidade humana. Se no início havia o fascínio pela formosura, remetendo-o à perfeição da criação humana, e o próprio Imago Dei presente no homem, ao espírito que eleva o homem até o ser divino, ele se transforma num desejo indigno, perscrutador, maligno.

É possível até mesmo se discutir a arte pela arte, e encontrar vários elementos simbólicos na narrativa de “Morte em Veneza”, mas a despeito da capacidade de Mann de analisar e abordar praticamente tudo em suas obras, não há como não sentir uma aversão pelos sentimentos importunos, a ideia fixa de Ashenback por Tadzio.

Mann traça com maestria as fraquezas de um homem entregue a si mesmo e a sua impotência: a de ver o belo sem desejar corrompê-lo.
E a morte não poderia se dar em outro lugar, a não ser na idílica, angustiante e fatal Veneza.


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Avaliação: (**)

Título: Morte em Veneza

Autor: Thomas Mann

Editora: Saraiva

No. Páginas: 70





Sinopse: "'Morte em Veneza' aborda o fascínio mortal que a beleza física pode exercer. Gustav von Aschenbach é um escritor que, diante da pouca aceitação de suas últimas obras, decide viajar para Veneza para descansar. Já na cidade, depara-se com o belo inatingível, a perfeição estética do adolescente Tadzio, por quem se apaixona platonicamente. O velho escritor passa a vagar pelos decadentes, inspiradores e famosos canais venezianos, seus dias girando em torno da visão do rapaz, o que o impede de dar atenção aos boatos que circulam a respeito da epidemia de cólera que assola a cidade."


17 janeiro 2020

A Ilha do Tesouro ou Construindo Jackyll & Hyde





Jorge F. Isah


Depois de algumas décadas, refiz a leitura de “A Ilha do Tesouro”, meio que despretensiosamente, já que sempre considerei o livro infanto-juvenil (talvez por tê-lo lido umas duas ou três vezes até os 14 ou 15 anos). É um livro que prendeu-me a atenção pela volta à nostalgia, dos dias em que me imaginava um aventureiro corajoso e destemido em um mundo perigoso, mas completamente desconhecido. Devo tê-lo lido em dois ou três dias, nos momentos disponíveis entre o trabalho, os estudos e os afazeres familiares; o que acabava me deixando ansioso para uma folguinha e a volta à narrativa de Stevenson. 

Como curiosidade, vale lembrar que a ideia inicial de R. L. Stevenson era escrever uma história para o seu sobrinho (alguns julgam ser o enteado), algo que aguçasse a imaginação e fantasia do jovem; publicada inicialmente na forma de capítulos em uma revista da época, surgiu na forma de livro em 1883. 

A grande importância do livro, além do próprio enredo, foi trazer para o gênero (que não existia como tal) elementos que o caracterizariam depois. O mote de tudo é a busca pelo tesouro do “Capitão Flint”, um pirata terrível que supostamente havia enterrado uma grande fortuna. O motim dos tripulantes e a luta pela sobrevivência, enquanto a corrida ao baú continuava, são o pano de fundo para o desenrolar da estória. 

De um lado temos o “bem” nas pessoas do jovem Jim Hawkins (o narrador, em primeira pessoa), Capitão Smollett, Dr. Livesey e o Lorde Trelawney; em outro lado temos Hands, Papy, Arrow e o carismático, mas não menos temido, Silver. Ele é um caso à parte. E será dele a maior parte deste comentário. 

Situemos “A Ilha do Tesouro”, escrito cinco anos antes de “O Estranho Caso do Dr. Jackyll e o Sr. Hyde”, também conhecido como “O médico e o Monstro”. Encontramos na figura do cozinheiro Long John Silver (um disfarce para encobrir as suas reais intenções) características, ainda que preliminares, a comporem a personalidade central de Jackyll e Hyde, os conflitos entre o bem e o mal. É claro que nada disso é traçado de forma límpida, o tal do preto no branco, como se fossem meros espectros antagônicos, sem conflitos interiores, dúvidas e muito pouca certeza. Não sou dualista; entretanto, entendo que existe um conflito em curso na vida humana, ora pendendo para um lado, ora outro,  as vezes entrelaçados; ainda que boa parte das pessoas esteja em lados opostos, aparentemente, numa guerra de interesses. 

Silver é uma mente culta, de intelecto privilegiado, de retórica apurada, mestre tático, ardiloso, sedutor, capaz de convencer a pulga de que é o cachorro. Em contrapartida, é uma mente atormentada, capaz de cometer atrocidades e crimes sem um leve pestanejar, sem qualquer arrependimento ou compaixão. Da mesma forma que transparece eloquência, e uma boa dose de submissão aos seus empregadores, se o fim é apossar-se do tesouro de Flint, a fúria, a qualquer um que atravesse o  caminho, o tornará sanguinário e cruel. Nem mesmo o carinho e interesse quase paternal pelo jovem Jim (de certa forma, ainda que momentâneo, protegendo e ensinando-o os segredos da navegação) o impedirá de afastá-lo como um mero obstáculo a ser transposto até a posse do tesouro. 

Estando na meia-idade, e tendo uma perna-de-pau, sua força física, aliada a uma violência natural (sem nos esquecer da sua sagacidade), torna-o em um oponente quase imbatível. O temor pelo qual perpassam inimigos e aliados é completamente justificado pelo corpo e mente diabólicos de Silver. A luta dele é pela sobrevivência, mesmo que decida-se por um lado, e depois por outro, os interesses são os de preservar-se a todo custo, ainda que resulte em dupla traição: aos antigos inimigos feitos novos amigos, e aos antigos amigos em inimigos. 

Existe alguma semelhança na construção de Silver e Jackyll/Hyde, numa luta ferrenha entre as virtudes e os vícios, travadas na alma do mesmo homem. 

Na teologia cristã, e na vida de cristãos conversos, essa batalha se trava no âmago, em que, transformados e regenerados por Cristo, ainda se vive com a natureza pecaminosa. Em vários textos bíblicos temo-la como a “luta entre o espírito e a carne”. Essa é uma realidade vivenciada em maior grau pelos cristãos, cientes do que seja o bem e o mal, o moral e imoral, vida e morte. Mas mesmo os não-cristãos têm em si a centelha do Imago Dei; e trava-se a mesma disputa, por causa dos atributos divinos transmitidos ao homem quando da sua criação. 

Por que toquei nesse ponto? Porque a boa literatura não prescinde a realidade, muito menos a realidade moral, da qual Silver e Jackyll/Hyde são exemplos do que somos, fomos ou seremos, em algum momento e alguma proporção. Ainda que a crueldade de Silver e Hyde não aflore em nossos atos, a certeza é de que, sem os aspectos da moral divina a nos frear, seríamos tão ou mais sanguinários que eles. 

Se levarmos em consideração que “O Médico e o Monstro” é uma aventura pela loucura, cobiça e depravação de Jackyll, a pretensão de se fazer Deus, como certo personagem do Éden, “A Ilha do Tesouro” não é menos uma aventura pela alma conturbada de Silver do que a caça à riqueza e poder. Por isso, Long John se inscreve no rol dos grandes personagens literários de todos os tempos, como um alerta para vencermos o mal. Por pouco, não pagou por seus atos, debaixo da benevolência do Dr. Livesey e de um acordo interessante a ambos. Fica contudo a imagem de que o homem sem Deus pode resistir ao apelo do mal por algo de divino que ainda reside em seu ser, mas de que, invariavelmente, ele será apenas o que é, um fugitivo do bem a cair nas malhas ou teias dos vícios e pecados. 

Ben Gunn entendeu, à sua maneira, aplicar engenhosamente os princípios morais, negando o que fora, para aliar-se àqueles que o salvariam. Ainda que tenha voltado novamente ao vômito como o cão... tempos depois. Mas vou parar por aqui, senão um comentário pode se tornar um ensaio. E estou longe de escrevê-lo.


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Avaliação: (***)

Título: A Ilha do Tesouro

Autor: Robert Louis Stevenson

Editora: L&PM Pocket

No. Páginas: 366

Sinopse: "Stevenson concebeu A ilha do tesouro para o divertimento de seu enteado, Lloyd Osbourne, que tinha doze anos em 1881. Escrevendo a seu amigo W. H. Henley a respeito do novo livro, ele declarou que "se isto não encantar os garotos, ora, então eles mudaram muito desde que eu era criança". Uma história de piratas, com um mapa, um tesouro, um motim e um cozinheiro de bordo com uma perna só, A ilha do tesouro permanece uma das histórias de aventuras mais amadas da literatura. - L&PM"





14 janeiro 2020

Prefácio ao Livro "O Morto Inacabado", por Michel Salomão




Jorge F. Isah


"O Morto Inacabado" está disponível para compra no site da Kálamos Editora (kalamoseditora.com) ou em amazon.com.br, em ebook e em papel (amazon.com) ao custo de, respectivamente, R$ 4,99 e R$ 46,55 + frete (o produto vem, em formato livro físico diretamente dos USA). 

Abaixo, deixo o prefácio do livro escrito por Michel Salomão (escritor, dramaturgo, ator, desenhista, e outros tantos talentos que Deus lhe deu), amigo de longa data, desde a época em que adentramos na Faculdade de Direito da UFMG. 

Chamar o prefácio de "aperitivo" seria injusto, ele faz parte de toda a refeição, que espero, seja lauta e possa levar o leitor a se identificar com o personagem e as situações, sabendo que, cada um de nós, pode, em algum momento da vida, receber a alcunha de o morto inacabado. 

Boa leitura!

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PREFÁCIO AO LIVRO "O MORTO INACABADO", 
POR MICHEL SALOMÃO
  

A desolação e a dúvida da morte permeiam essa obra de Jorge F. Isah, que traz um personagem cheio de angústias, as mesmas que todos nós possuímos e procuramos ignorar, as incertezas da existência, as impressões acerca do pai agonizante, da mãe sofredora, de parentes e amigos que passam e deixaram suas marcas, os remorsos, os medos, o abandono, um futuro que não se concretizou, um amor rompido premeditadamente, filhos que não nasceram, entre outros sofrimentos que fazem de nós, humanos, tão parecidos. 

Não, o livro não fala de zumbis, mas é quase isso: fala sobre o vivo quase morto, ou sobre o morto ainda vivo, condição que muitos de nós passamos a assumir por inconsciente negligência. Fala sobre as impressões de uma vida quase sempre entediante, bem diferente do que acontece na maioria dos filmes e livros. 

Amigos há três décadas, aconteceu de conhecer o Jorge em uma sala de aula do curso de Direito, na Universidade Federal de Minas Gerais, quando vi aquele rapaz entediado, sentado no fundo da sala, olhando para o vazio através da janela. Eu tinha 17 anos à época, era um rebelde tímido, me aproximei e logo começamos a disparar sobre literatura. Daí começou a nossa amizade, que teve longos intervalos, pois cada um foi cuidar de sua vida, de sua família, da profissão, mas o laço permaneceu, mesmo que por longos telefonemas ou por intermináveis textos trocados pelas redes sociais, além de encontros esporádicos que quase sempre davam continuidade ao assunto interrompido no anterior; e não foi com surpresa que recebi este convite para fazer o prefácio de seu novo livro, “O Morto Inacabado”, quando alertei para o fato de que talvez não tivesse capacidade para tal, pois, sem falsa modéstia, considero-me um escritor “descompromissado”. Bem diferente do Jorge, que é muito técnico e dedicado. 

Eu o aconselhei a dar títulos aos capítulos, para facilitar o entendimento dos leitores (entendo o porquê dele não ter aplicado a sugestão, mas não vem ao caso expô-la), pois não é uma leitura fácil, a não ser que você esteja acostumado a ler Dostoievski, na minha opinião, sua mais forte influência, pois ele entra com facilidade daqueles questionamentos existenciais entrecortados com pequenos diálogos triviais, possivelmente, apenas para comprovar que seus personagens estão mesmo vivos. 

Também conheço seu incansável trabalho religioso, na tentativa de salvar as pessoas dessa “morte em vida”, e aprecio sua determinação, apesar de, nesse trabalho, não entrar tão profundamente nessas questões como em seus outros livros, talvez para despertar determinados questionamentos nas pessoas que passam por idêntica situação de seu personagem central, que vive essa aparente morte. 

Uma aventura instigante e investigativa da alma de todos nós. 


Michel Salomão







Livro: O Morto Inacabado

Autor: Jorge F. Isah

Editora: Kálamos

Número de Páginas: 261 (ebook) e 453 (papel)


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