18 agosto 2011

Haraquiri teológico - Parte 1: um reino sem súditos!











Por Jorge Fernandes Isah


Existe um movimento em progressão na igreja, que é a própria negação da igreja, e se resumiria na inadequação e acomodação dos conceitos mundanos a uma suposta vida cristã, não revelada como o sábio e perfeito conselho de Deus, pelo contrário, repudiada e condenada pela Escritura. Infelizmente a maior parte dos ataques que a igreja cristã sofre atualmente provém de suas próprias fileiras; o joio, misturado ao trigo, tem-se levantado para desarraigar o que Deus plantou, e assim fazer da igreja uma extensão do mundo, uma espécie de sanitário aparentemente higienizado e perfumado, mas que se resumiria a um local onde as pessoas defecam pelo chão e se esfregam nas paredes para limparem-se. Seria um local onde alguns poderiam amenizar suas dores, mas que se resume a um paliativo, um anestésico que aplicado sistêmica e subliminarmente, afasta-os do Evangelho, impedindo-os de reconher a verdade, acomodondo-os à má-consciência, à mentira deslavada e vergonhosa, como é toda mentira. O problema é a impossibilidade de se limpar um cômodo enchendo-o de lixo e entulho; da mesma forma a alma humana somente pode ser despoluída pelo puro Evangelho, que trará ao homem doente a cura através do arrependimento pelo qual vem o perdão: "Arrependei-vos, pois, e convertei-vos, para que sejam apagados os vossos pecados, e venham assim os tempos de refrigério pela presença do Senhor" [At 3.19] [1].

Os agentes infiltrados têm por objetivo levar a cabo o plano de tornar irrelevante o conselho do próprio Deus para os homens; e é dessa forma que os idealizadores do movimento agem [ainda que muitos adeptos não se aperceberam disso, cegados e iludidos pelos apelos do próprio coração]. Como Paulo nos alertou: "Porque eu sei isto que, depois da minha partida, entrarão no meio de vós lobos cruéis, que não pouparão ao rebanho, e que de entre vós mesmos se levantarão homens que falarão coisas perversas, para atraírem os discípulos após si." [At 20.29-30].

Mas do que estou falando? De uma corrente que se diz evangélica e que trabalha laboriosamente contra o Evangelho chamada “movimento do não-senhorio de Cristo”.

Em linhas gerais, para quem ainda não sabe, este grupo afirma que alguém pode ser salvo sem a necessidade de se apresentar um fruto sequer. A salvação, pela graça, em si mesma não está atrelada à santificação ou ao testemunho que o salvo deveria dar, nem aos frutos que deveria produzir. De tal forma que, contrariamente ao que a Bíblia afirma, o cristão pode ser salvo mesmo sem arrependimento, sem fé, sem testemunho, sem saber que foi salvo, sem mesmo querer sê-lo, bastando-lhe apenas e tão somente a graça de Deus; uma graça que pode passar completamente desapercebida, e pela qual não se terá nenhum sentimento de gratidão. É como se eu usasse uma mesma camisa todos os dias, sem tirá-la do corpo, sem a concepção de que ela exista. Ou comesse atum todos os dias, em todas as refeições, e jamais me apercebesse do que estava comendo, e mesmo da existência do próprio atum. É claro que são fíguras de linguagem precárias, especialmente quando se refere à salvação, mas a ideia de um crente completamente alheio à sua salvação é algo muito mais absurdo ainda.

O que torna essa falsa doutrina algo realmente perigoso é o fato dela conter parte da verdade, de ter em seus princípios algo verdadeiro, mas que somente está ali para facilitar o estratagema enganoso de capturar os incautos para um sistema completamente falacioso, perverso e maligno. Uma mentira, ainda que tenha elementos verdadeiros, continua e permanece uma mentira. Basta uma lida na passagem em que o Senhor Jesus é tentado no deserto pelo diabo [Mt 4.1-11] para se perceber como a astúcia, a habilidade para o mal e para o engano, pode-se confundir com a verdade, camuflando os seus reais intentos. Como alguém já disse alhures: meia-verdade é mentira inteira!

Sabemos que a salvação é dádiva e favor completamente divinos, onde o homem não pode participar de maneira alguma, sendo apenas o alvo de toda a obra redentiva planejada e executada por Deus. Não se pode colaborar em nada com ela[Ef 2.8-9]. Mas ela pressupõe um processo, ainda que tenha sido decretada eternamente. E esse processo também é decretado, de tal forma que o salvo terá fé, arrepender-se-á, será regenerado, santificado, e dará frutos para a glória de Deus [não nesta seqüência, necessariamente]. Portanto, um salvo não precisará das obras para a salvação, mas as obras confirmarão a sua salvação. Portanto, nós, os salvos, somos feitos do alto, "criados em Cristo Jesus para as boas obras, as quais Deus preparou para que andássemos nelas" [Ef 2.10]. Em outras palavras, os frutos não precedem a salvação, mas a sucedem, de tal maneira que por eles é possível se saber a sua procedência. Como o Senhor nos diz: “Por seus frutos os conhecereis. Porventura colhem-se uvas dos espinheiros, ou figos dos abrolhos? Assim, toda a árvore boa produz bons frutos, e toda a árvore má produz frutos maus. Não pode a árvore boa dar maus frutos; nem a árvore má dar frutos bons. Toda a árvore que não dá bom fruto corta-se e lança-se no fogo. Portanto, pelos seus frutos os conhecereis” [Mt 7.16-20].

Alguém poderá dizer: “mas, nessa passagem, Cristo está a falar dos falsos profetas e mestres”. É verdade, mas ela serve perfeitamente para os cristãos também, porque se é possível distinguir o engano e a mentira através dos maus frutos, é-se possível distinguir a verdade através dos bons. O cristão dará bons frutos que revelem a sua semelhança com Cristo e a sua filiação ao Pai.

O que o movimento do “não-senhorio de Cristo” proclama é que Deus salvará o homem ainda que ele não saiba, não queira, e não seja capacitado a testemunhar a sua eleição. Poderá mesmo continuar tão ímpio que não haja diferença em sua natureza. Mas tudo isso é avesso e alheio à verdade, ao que a Bíblia nos revela, porque o homem, para ver o reino de Deus, terá de nascer de novo. Foi o que Cristo disse a Nicodemus: “Na verdade, na verdade te digo que aquele que não nascer de novo, não pode ver o reino de Deus” [Jo 3.3]. Da mesma forma, o Senhor também disse que seriamos reconhecidos como seus discípulos se amássemos uns aos outros [Jo 13.35]; ou seja, os frutos são uma espécie de atestado daquilo que somos, do que nos tornamos pelo poder Deus. Se o homem mantém a sua velha natureza e não reconhece a necessidade do arrependimento, do perdão divino, e de se sujeitar ao senhorio de Cristo, esse homem permanece morto em seus delitos e pecados [Ef 2.5], e carece de ser vivificado por Deus.

É estranho que haja entre aqueles que se dizem discípulos de Cristo quem defenda o não discipulado a um salvo. O argumento é autocontraditório, pois se é-se discípulo de Cristo, recebe-se o ensino de Cristo, e com ele aprender-se-á. E se dizem que o discipulado é desnecessário, em si mesma essa afirmativa já é um ensino, um ponto ou princípio definido por um sistema de crenças, que foi ensinado e aprendido. Na verdade, essa é a condição para se proteger de maneira eficaz todo o sistema distorcido e inválido do "não-senhorio de Cristo", de forma que os tolos aprendam necessariamente um único aspecto normativo: o discipulado é supérfluo, pois nada se precisa aprender além dessa falsa premissa ensinada.

Interessante que a doutrina do “não-senhorio” reconhece a parte mais fácil para o homem [a salvação, pela graça de Deus], mas sem as suas implicações diretas [a servidão, a sujeição ao Senhor; que resultará na morte do velho homem e no surgimento do novo homem]. Paulo diz que estamos mortos para o pecado, então como é possível ainda vivermos nele? [Rm 6.3]. "Assim também vós considerai-vos certamente mortos para o pecado, mas vivos para Deus em Cristo Jesus nosso Senhor" [Rm 6.11]. Há um claro conflito de interesses entre o que dizem os proponentes do "movimento do não-senhorio" e o que a Bíblia nos revela. Ao ponto deles considerarem irrelevante o ato de se pecar ou não, pois já estão debaixo da graça, logo, quer pequem, quer não pequem, isso em nada afetará as suas condições de salvos. Para eles, qualquer alusão à Lei e à santidade não passa de legalismo, de hipocrisia, visto que ninguém consegue se ver livre totalmente do pecado. Ora, uma coisa é uma coisa, e outra coisa é outra coisa. O fato do homem regenerado ainda pecar, não é o mesmo que pecar deliberadamente. Por deliberado quero dizer, convicto, decidido, disposto a levar às últimas consequências o ato pecaminoso. O homem regenerado, ainda que conviva com os seus pecados, sente-os como um peso, um fardo duro de carregar; ele titubeia e oscila entre o fazer e o não fazer antes de fazer; feito, arrepende-se e é perdoado por Deus. Mas mesmo depois disso, ele ainda é capaz de experimentar uma certa angústia, de se aborrecer, se entristecer, pois tem a nítida noção de que seu ato ofendeu a Deus. Como está escrito: "Porque a tristeza segundo Deus opera arrependimento para a salvação, da qual ninguém se arrepende; mas a tristeza do mundo opera a morte" [2Co 7.10]. Por isso, alguém que se considera salvo e nunca tenha se arrependido diante de Deus, somente receberá o salário do pecado: a morte! [Rm 6.23]. Porque é impossível ser salvo sem ser servo, ou de receber a redenção sem se sujeitar ao Redentor. O que eles querem é um reino sem súditos, e súditos sem reino.


- Continua -

Leia também "Haraquiri Teológico - Parte 2: a ignorância não protege ninguém

NOTAS: [1] Esta é uma perspectiva do ponto de vista temporal e humana, pois é certo que o perdão de Deus é eterno e imutável, assim como o próprio Deus é etrno e imutável; logo, muito antes de virmos a nos arrepender no tempo, ele já nos perdoou eternamente, pois a obra de Cristo na cruz foi decretada também na eternidade. Leia o texto "Santidade: Temporal ou Eterna?", onde desenvolve melhor este ponto.
[2] Haraquiri - Técnica de suicídio praticada por membros da classe guerreira japonesa. A pessoa que comete haraquiri faz uma incisão em seu abdome, de determinada maneira prefixada, e estripa-se a si mesma. O termo japonês para designar esse ritual é Seppuku.
[3] Este texto é uma ampliação ao que foi publicado no blog "Cotidiano Cristão", cujo título é "Como ser 'salvo' e ainda ir para o Inferno!"
[4] Indico, como complemento, a leitura do texto "O que não é, pode não ser mesmo, se não for. Mas, e se for?", bem como a leitura do livro do pr. John MacArthur Jr. "O Evangelho Segundo dos Apóstolos", publicado pela Editora Fiel.
[5] Se tiver problemas na visualização e leitura do texto, vá até ao "Klone" do Kálamos e leia lá!


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10 agosto 2011

Dupla Predestinação, o Barro "decaído" e a Arbitrariedade de Deus











Por Jorge Fernandes Isah

A partir do livro Eleitos de Deus, de R. C. Sproul, farei algumas considerações sobre a sua abordagem relacionada à dupla predestinação, o barro "decaído" e a arbitrariedade de Deus. Boa parte desses argumentos podem ser lidos nos meus comentários ao livro, disponíveis aqui

Ressalto ainda que o meu intento não é o de polemizar pelo simples gosto da polêmica, mas revelar os meus pensamentos e fazer com que tanto eu como o leitor pensemos a partir do próprio texto bíblico. Não estou a sugerir nenhuma "saida" das Escrituras, nem uma tentativa estúpida de explicar algo inexplicável. Ao meu ver, o que tem feito os crentes permanecerem vulneráveis ao mundo e a si mesmos [em suas pressuposições] é exatamente o medo de ver na Bíblia aquilo que ali está revelado. Sem fazer-me dono da verdade ou especulador, nem exaustivo no que me proponho: uma reflexão a partir de considerações escriturísticas; o que pode levar muitos ao estudo sério de algumas questões que nem mesmo cogitamos pensar. O que acabará por nos tornar em replicantes de um esquema intruso à Bíblia, reverberando o deleite que o homem tem de ouvir sua própria voz. Então, sem mais delongas, mãos-à-obra!

Na questão da dupla predestinação, ainda que Sproul tente amenizar a eleição dos réprobos, ao dizer simplesmente que Deus escolheu os eleitos e deixou de lado ou à própria sorte os réprobos, não neutraliza a idéia do favor divino, da sua escolha dos eleitos para a salvação; e o desfavor, mas ainda assim uma escolha, dos ímpios para a perdição.

Da mesma forma, dizer que Deus não endurece efetivamente o coração ímpio, mas retira a restrição do pecado sobre eles, deixando-os livres para pecar, é muito simplória e faz o malabarista derrubar todos os pratos no chão e estatelar-se sobre eles, além de não haver respaldo bíblico para essa conjectura.

Usar termos como "endurecimento passivo", "entregá-los ao pecado", "decreto positivo e negativo", "destinação não simultânea", etc, são eufemismos, com o objetivo de suavizar aquilo que Deus empregou objetivamente como sua revelação. Ainda assim, por mais que se tente enfraquecê-los, eles não excluem de Deus o desejo de que seus corações sejam endurecidos, os pecadores se voltem mais e mais ao pecado, e de que destinando alguns para a salvação, estará destinando os demais para a condenação. É fato que Deus não os quis salvar; é fato que ele quis condená-los. Então, por que a necessidade de se tentar "aliviar" Deus quando Ele claramente diz o que fez e por quê fez? Não seria uma forma de subestimá-lo, e de até mesmo considerá-lo imperfeito, um "pobre-coitado" que necessita de nossos artifícios toscos e e imprecisos para defendê-lo do que não quer e nem precisa se defender? Necessitando que o adequemos aos nossos defeitos para assegurar-lhe a perfeição? Isso cheira mal, algo muito próximo da rebeldia ou, na melhor das hipóteses, ignorância disfarçada de piedade. Em muitos casos é não querer aceitá-lo como é; em outros é a incapacidade de vê-lo como se revelou-se a nós.

Sproul chegou ao ponto de utilizar a passagem de Ex 7.2-5 [quando Deus afirmou a Moíses que endureceria o coração do Faraó] como um exemplo de endurecimento passivo, onde Deus não interviu diretamente no coração do Faraó, mas ao remover a sua restrição sobre ele, deixou que "as inclinações malignas de Faraó fizessem o restante"[1]. Ao que pergunto: se isso não é o mais escancarado malabarismo argumentativo a fim de tirar de Deus o poder de mover a vontade do Faraó a fim de que se cumprissem exatamente os seus desígnios eternos, o que mais pode ser? De certa forma, não passa de uma tentativa ilusória para transformar o irreal em verdade através de hábeis jogos semânticos.

Passiva ou ativamente, o Faraó não cumpriu o decreto divino? Tal qual ele foi estabelecido na eternidade? E, ainda que passivamente [especulativo], estaria-se a dizer que Deus obteve o resultado desejado sem querer produzi-lo? E se Ele não quis produzi-lo, quem o produziu? Nós? Há uma nítida inversão de papeis e de valores; sempre como uma justificativa para eximi-lo de uma suposta culpa, o que redundará em uma tentativa, mesmo inconsciente, de desprezá-lo e a sua santidade, sabedoria e perfeição. Antes, deveríamos agir como Jó, que mesmo reconhecendo que Deus pode tomar aquilo que deu, não pecou, nem atribuiu a Deus falta alguma, mas bendizeu o nome do Senhor [Jó 1.21-22]. É a pergunta-resposta que ele profere à sua esposa, que o incitava a blasfemar contra Deus: "Como fala qualquer doida, falas tu; receberemos o bem de Deus, e não receberíamos o mal?" [Jó 2.10]. Esta deve ser a atitude de um servo diante do seu Senhor, ao invés de se buscar formas sofisticadas de murmuração e distorção da verdade.

Da mesma forma, ao referir-se a Rm 9, Sproul diz: "Soa como se Deus estivesse ativamenbte fazendo pessoas ser pecadoras. Mas isso não é requerido pelo texto... veremos que o barro com o qual o oleiro trabalha é barro 'decaído'. Um pouco de barro recebe misericórdia para tornar-se vaso de honra. Essa misericórdia pressupõe um vaso que já está culpado. Da mesma maneira, Deus precisa 'tolerar' os vasos de ira, próprios para a destruição, pois eles são vasos de ira, culpados"[2].

Não sei quanto a você, mas me parece outro contorcionismo desnecessário para não concluir o que o texto bíblico evidentemente afirma: Deus é quem faz os vasos de honra e os vasos de ira, lançando "as riquezas da sua glória nos vasos de misericórdia, que para glória já dantes preparou" [v.23]; assim como a "sua ira, e dar a conhecer o seu poder, suportou com muita paciência os vasos da ira, preparados para a perdição"[v.22].

Quem preparou? Quem destinou? Quem é o oleiro? Ou seja, quem fez os vasos destinando-os a ser o que são? Se não foi Deus, quem foi? Outro deus? Satanás? O homem? Mas se mesmo o mal, e apenas o mal e o pecado, não foi criado e ordenado à existência pelo Senhor, Ele não é soberano, e estamos de alguma forma enganados ou sendo enganados. Se como a Bíblia assegura que não há outro deus além do Senhor, e de que Ele é o criador de todas as coisas, por que ainda resistimos? Por que não nos sujeitamos às evidências internas das Escrituras? Certamente porque os nossos conceitos e argumentos não se encontram em unidade e harmonia com essas manifestações certeiras; os quais penetram sorrateiramente pela porta dos fundos, como se fizessem parte da revelação proposicional quando não passam de parasitas a provocar a verdade, no exercício de induzir o crente a uma aventura desastrosa, a culminar numa imagem distorcida de Deus.

O barro não existia previamente antes de Deus fazê-lo existir. O barro "decaído" não decaiu alheio à vontade de Deus, à sua revelia, por vontade própria. O barro "decaído" não foi autocriado, ou criado por outra "força". O barro "decaído" surgiu pelo poder e vontade de Deus, e apenas por Ele poderia existir. O mesmo poder que destinou alguns para a glória e outros para a perdição. Ou seria possível ao homem escolher a forma como Deus o faria? E de como sería? Por exemplo, a cor dos olhos, cabelos ou pele? E o que dizer de coisas como o estado pecaminoso e o redentivo? Afinal, qual poder temos sobre nós mesmos? E a história? E a eternidade?

Fico com a impressão de que o autor quer ao mesmo tempo dizer e não dizer o que diz. E suas atenuações acabam por enfraquecer e confundir o conceito de soberania, predestinação e eleição divinas.

Isso é manipulação teológica, com todo o respeito e admiração que o Dr. Sproul merece. Bastaria ater-se ao texto bíblico, que é claro e límpido como água [especialmente os dois textos citados], sem a preocupação de imputar a Deus qualquer injustiça, pois, o menor pensamento de que isso seja possível somente poderá vir de uma mente doentia e caída; de uma mente não regenerada e carente da misericórdia divina. Nesses casos, vale a mesma resposta dada por Paulo: "Mas, ó homem, quem és tu, que a Deus replicas? Porventura a coisa formada dirá ao que a formou: Por que me fizeste assim?"[Rm 9.20].

Outra questão é a definição de arbitrário. Ele afirmou que Deus não é arbitrário, porque "por si só, ser arbritário é fazer alguma coisa por nenhuma razão"[3]. Bem, acho que esse conceito do autor, demonstra o seu nível de excentricidade, ou seria arbitrariedade?

A palavra arbitrário designa alguém que decide como árbitro, que não é regulado por leis, mas só depende da sua vontade. Nesse sentido, Deus é completamente arbitrário. Há algo igual ou superior a Ele, ao qual esteja condicionado? Deus faz exatamente tudo aquilo que quer, como quer e da maneira que quer, segundo a sua perfeição, santidade e justiça. E quem somos nós para questioná-lo? Ou para moldá-lo a um padrão humano?

Não nascemos por nossa vontade, nem escolhemos o país, os pais, sexo ou nível de inteligência que gostaríamos de ter. Nascemos pecadores sem desejar sê-lo; somos eleitos sem querer sê-lo; e muitos irão para o inferno sem querer ir. Essas coisas todas aconteceram  e acontecerão à nossa revelia, pela arbitrária vontade divina. Então, considero Deus arbitrário  no sentido de que tudo no universo acontecerá segundo o seu arbítrio, sem nenhuma consulta prévia, sem nem mesmo Ele se preocupar se suas decisões agradarão ou não à sua criação. E, por que? Porque ele é santo, justo, perfeito, sábio, Todo-Poderoso. E porque somos pecadores, injustos, imperfeitos e tolos, criaturas metidas a besta, julgando ter algum poder quando não temos nada, e o pouco que temos [o que é muito para a nossa condição] provém dele, e é por ele, para a sua glória.

Descrever a vontade divina como não-imperativa, não-absoluta, em que o governo de Deus não depende exclusivamente de si, nem é independente do universo governado, é professar a maior heresia que o homem é capaz de produzir. Numa tentativa tola de diminuí-lo aos nossos olhos. Portanto, concluo que Deus é arbitrário, e não há como não ser. Em qualquer situação que se vá explicar a soberania divina, não há como não ligá-la à arbitrariedade.  Senão não estaríamos falando de Deus, mas de deus, algo diminutivo, depreciativo, frágil como nós.

Nos aspectos citados, a despeito de muita coisa valorosa e pautada biblicamente que o Dr. Sproul diz e escreve, não posso concordar com suas afirmações. Elas me parecem como o marido desesperado que, ao encontrar a esposa em adultério no sofá da casa, joga fora o sofá.

Notas: 1 - Eleitos de Deus - R. C. Sproul - Editora Cultura Cristã - página 109;
2 - Idem - página 114;
3 -  Ibidem - página 116;
* Texto publicado originalmente em 05.02.2010, aqui mesmo, ao qual fiz pequenos ajustes.


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03 agosto 2011

Pode o cristão se casar com uma incrédula?














Por Jorge Fernandes Isah

Alguém pode pensar que este é um assunto morto. Tanto quanto o defunto mais velho enterrado no cemitério da sua cidade. Porém, isso me parece muito mais uma atitude para se afastar do assunto, rejeitá-lo ou negligenciá-lo, do que propriamente conhecê-lo à luz da Escritura.

Há muitos que consideram normal o casamento misto. Afinal, o marido crente abençoa a mulher não-crente, e vice-versa. Mas esquecem-se de que o contexto para esta afirmação não se encontra antes do casamento, quando um(a) crente poderia casar com uma(um) incrédula(o) e assim obter de mais tempo e empenho para convertê-la(o). Paulo nos diz que isso acontece quando dois incrédulos se casam, e no decorrer do casamento, um deles se converte a Cristo. Como o casamento é indissolúvel, não há porque o recém-convertido se separar da outra parte, a menos que esta não queira viver com ele.

Não há garantias de que um crente, casando-se com uma incrédulo, poderá levá-la a Cristo. Ora, como Paulo disse: "Porque, de onde sabes, ó mulher, se salvarás teu marido? ou, de onde sabes, ó marido, se salvarás tua mulher?" [1Co 7.16]. A salvação é divina, e somente Deus poderá salvar ou não; mas o crente é chamado à obediência; e a Escritura é clara em fazer separação entre o fiel e o infiel. Portanto, considero essa posição [e há pastores, líderes e muitos de nós que a defendem] como um conselho temerário, senão, vejamos:

1) Como crentes, desaprovamos a desobediência a Deus;
2) Segundo os defensores do casamento misto, a desobediência tem um elemento que justifica a rebeldia, ou seja, o altruísmo de se levar o futuro cônjuge a Cristo, valendo-se da piedade por sua alma. Mas isso nada mais é que enganar-se, achando que o erro pode se converter em acerto pelo simples desejo do nosso coração de que assim ele seja.
3) Levando-nos à conclusão de que o crente, mesmo em rebeldia, deve buscar por uma bênção por seus próprios meios e esforços, à parte do preceito divino de que lhe devemos, sobretudo, obediência.

A coisa toda fica pior quando se utiliza do exemplo de Salomão, o qual se entregou aos casamentos mistos, para ratificar esse pecado. É evidente que a Bíblia nos revela os erros de Salomão não para serem seguidos, mas exatamente como um preventivo para que não incorramos neles; ao nos mostrar os efeitos danosos que sobrevieram ao povo de Israel [a idolatria, p. ex.], mas para o próprio Salomão, que também se tornou idólatra, e queimou incenso para outros "deuses", e teve o seu reino dividido, ainda que Deus o poupasse desse desgosto, por amor ao seu pai Davi; mas assegurando-lhe de que sob o reinado do seu filho Roboão, Israel se esfacelaria.

O argumento do casamento misto, nada mais é do que o desejo do desobediente de convencer-se a si mesmo de que existem motivos nobres e piedosos para se aventurar a uma empreitada que significará rebelião e pecado. É isso mesmo! Quem age deliberadamente assim não comente nada além do que pecado! E o pecado é o desprezo ao próprio Deus.

Muitos também alegam que Deus pode abençoar o crente na desobediência. É possível? Sim, claro! O que, contudo, não absolve o crente em sua desobediência, ao rejeitar o princípio tão claramente exposto na Escritura, a separação que Deus estabeleceu para o seu povo. Fato é que o desobediente será disciplinado por isso, caso seja realmente um filho de Deus. Do contrário, a ira do Senhor estará sobre ele, para todo o sempre.

Então, pode-se perguntar: o que o(a) crente deve fazer caso tenha se casado com uma(um) incrédula(o), e reconhece que pecou? Meu conselho é: arrependa-se! E dê o melhor testemunho cristão para que o(a) cônjuge também se arrependa de seus pecados, reconheça Cristo como Senhor e Salvador pessoal, e assim, formem um lar santo, em que a obediência aos preceitos divinos traga frutos de glória para o bom Deus.

Nota: Texto originalmente publicado no "Cotidiano Cristão", blog que tenho o prazer e a honra de dividir com o irmão Filipe Machado
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28 julho 2011

Defesa da Fé: uma perspectiva cheunguiana












Por Jorge Fernandes Isah

Há coisas na apologética que não consegui ainda entender; estou-me esforçando, mas parece ir muito além do que eu mesmo seja capaz de compreender. Uma das questões é o fato de Cheung estabelecer que um incrédulo ou seja, um não-cristão, pode ser demolido em sua cosmovisão, racionalmente, pelo Cristianismo.

Ao meu ver, um não-cristão somente pode ser convencido racionalmente pela verdade, o Cristianismo, se for regenerado. Não consigo imaginar um não-cristão crendo nos princípios cristãos sem o novo-nascimento, sem que os seus pressupostos sejam ordenados pelo Espírito Santo.
 
Por isso, fiz algumas perguntas a um irmão [cujo nome manterei em sigilo, pois não lhe pedi autorização para transcrever a sua resposta], as quais me respondeu:

Eu: O Cristianismo é superior às outras cosmovisões. Ponto. Agora, um cristão tem de reconhecer isso naturalmente, pelo pressuposto de que a Bíblia é a palavra de Deus.

Ele: Não meramente por crer que a Bíblia é a Palavra de Deus. Isto, por si só, não leva à conclusão lógica que o cristianismo é superior às outras cosmovisões. A Bíblia diz ser a Palavra de Deus, e o cristão defende a superioridade (ou melhor, exclusividade, monopólio da verdade) do cristianismo porque o próprio cristianismo ensina isso: Ef 4.4-6; Is 37.20; 42.8; 43.10-13; 44.6,8,24; 45.5-6,18,20-24; 46.5,9; 1 Ts 1.9-10; 1 Tm 1.17; 2.5; Jr 10.10-13; Dn 3.29; Jd 1.24-25; Jl 2.27; Gn 28.13-14; Ex 34.14 etc.
- 'Há um só Deus e um só mediador entre Deus e os homens: o homem Cristo Jesus' (1 Tm 2.5);
- 'Não há absolutamente ninguém comparável a ti, ó Senhor; tu és grande, e grande é o poder do teu nome' (Jr 10.6);
- 'Há apenas um Legislador e Juiz, aquele que pode salvar e destruir' (Tg 4.12);
- 'Quem entre os deuses é semelhante a ti, Senhor? Quem é semelhante a ti? Majestoso em santidade, terrível em feitos gloriosos, autor de maravilhas?' (Ex 15.11; tbém 34.10)
- Moisés disse a Deus: 'Como se saberá que eu e o teu povo podemos contar com o teu favor, se não nos acompanhares? Que mais poderá distinguir a mim e a teu povo de todos os demais povos da face da terra?' (Ex 33.16)
- 'Não há outro Deus além de mim, um Deus justo e salvador; não há outro além de mim' (Is 45.21)
- 'Todo o que nega o Filho também não tem o Pai; quem confessa publicamente o Filho tem também o Pai' (1 Jo 2.23);
- 'Deus nos deu a vida eterna, e essa vida está em seu Filho [Jesus Cristo]. Quem tem o Filho, tem a vida; quem não tem o Filho de Deus, não tem a vida' (1 Jo 5.11-12; tbém Jd 1.21);
- 'Todo aquele que não permanece no ensino de Cristo, mas vai além dele, não tem Deus; quem permanece no ensino tem o Pai e também o Filho' (2 Jo 1.9);
- 'Ninguém conhece o Filho a não ser o Pai, e ninguém conhece o Pai a não ser o Filho e aqueles a quem o Filho o quiser revelar' (Mt 11.27);
- 'Aquele que não está comigo, está contra mim; e aquele que comigo não ajunta, espalha' (Mt 12.30)
- 'Sabemos também que o Filho de Deus veio e nos deu entendimento, para que conheçamos aquele que é o Verdadeiro. E nós estamos naquele que é o Verdadeiro, em seu Filho Jesus Cristo. Este é o verdadeiro Deus e a vida eterna' (1 Jo 5.20)
- 'Você crê que existe um só Deus? Muito bem! Até mesmo os demônios crêem e tremem!' (Tg 2.19).

Eu: Mas e no caso de um incrédulo que não crê na veracidade da Escritura?

Ele: O cristão deve mostrar:
(1) que o sistema filosófico do incrédulo é irracional, e;
(2) que o sistema filosófico do cristão é logicamente sustentável, consistente.Também, o incrédulo deve entender que as reivindicações da Bíblia não podem ser tomadas isoladamente de tudo o mais que está pressuposto na metafísica cristã (por ex., o fato de a Bíblia ser fidedigna no conteúdo porque é revelação de um Deus soberano). O sistema filosófico cristão, como qualquer cosmovisão, é um esquema conceitual com partes mutuamente dependentes, e assim devemos analisar a cosmovisão de maneira sistemática.
Da mesma forma, tendo demonstrado (1), o cristão terá mostrado ao incrédulo que este não tem qualquer garantia ou critério racional para rejeitar de antemão o cristianismo.

Eu: O ateu, por exemplo, não reconhecerá a Bíblia. Então, pergunto: por que seria mais racional para um incrédulo crer em Deus do que não crer em Deus?

Ele: A menos que o ateu mostre e justifique um critério infalível não-bíblico para reconhecer ou não a autoridade de Deus (cf. a Bíblia), sua rejeição desse Deus será arbitrária. Agora, como ele não tem a opção racional de rejeitar Deus a priori, o cristão só precisará mostrar a consistência interna do sistema cristão (cf. ensino bíblico), sempre lembrando que a mesma Bíblia que nos fala de Deus, também fala que esse Deus (1) revelou a Bíblia para nós e (2) preservou seu conteúdo porque é um Deus soberano.

No fim das contas, o Deus cristão não ficará demonstrado apenas por expor que não há base racional para efetivamente rejeitá-lo. Mas aí é que entram a fé e o testemunho interno do Espírito Santo.O ateu não pode racionalmente rejeitar o Deus cristão, nem pode rejeitar a racionalidade do sistema cristão. Mas só aceitará a fé cristã por ação sobrenatural de Deus. [Fim do diálogo].

No frigir dos ovos, pude entender que a Bíblia autentica o Cristianismo e vice-versa [o que ainda me parece um esquema circular para um não-cristão, mas a própria descrença do não-cristão é um movimento circular em que ele sempre partirá da descrença e sempre voltará a ela]; e de que somente pelo poder regenerador de Deus o homem se convencerá e reconhecerá a verdade, operada através da revelação especial, a Escritura. E fico pensando, o que adiantaria convencer um incrédulo da lógica e validade do Cristianismo sem que ele se convertesse? Bem, entendo que ela poderá levá-lo ao entendimento, e o Espírito agindo em conformidade com a Palavra operará a regeneração, suficiente para transformar-lhe a vida. Do contrário, ele poderá até mesmo entender e validar o Cristianismo como a única verdade, mas o fará segundo outros propósitos de Deus [p.ex., servir de instrumento para a conversão de outros], sem que, contudo, ele se beneficie da verdade além da vida terrena.


Espero que os esclarecimentos daquele irmão sejam de auxílio.

21 julho 2011

Mistério, Paradoxo e Contradições aparentes - Parte 2

"O NÃO-DOGMÁTISMO DOGMÁTICO!"













Por Jorge Fernandes Isah

Abordarei um assunto que não agradará talvez a muitos. Sou acusado, as vezes, de dogmatismo. Na verdade, para mim, não é uma acusação, é mesmo um elogio, pois me considero realmente um dogmático. E por que gosto tanto do rótulo? Simples, porque, para se ter um princípio, ele tem de ser estabelecido dogmaticamente. Por exemplo, o "Sola Scriptura" é um princípio estabelecido pelo axioma de que a Escritura é a verdade, e nada mais além da verdade. Quando alguém defende este princípio, não pode defendê-lo sem aplicá-lo. Se o faz, ele está demolindo o princípio, não o princípio em si mesmo, mas a sua certeza nele. Ainda que um ou dois digam que a Escritura é a verdade, mas ao se deparar com o texto bíblico considera-o com falhas, incongruências ou contradições, ele não tem o princípio do "Sola Scriptura" como absoluto. O que ele diz defender não está em harmonia com o seu pensamento. E ele então tem dois dogmas: o primeiro, diz crer que a Escritura é a verdade; o segundo, reconhece e defende intelectualmente que a Escritura não é infalível e santa. Na prática, ele se contradiz. Mas a qual tipo de verdade ele crê, então? Ele não crê na verdade, mas numa possibilidade de verdade, de que, como leitor ou ouvinte, pode ou não perceber algum aspecto da verdade, e de que a verdade não é objetiva. É algo intuitivo, experiencial, sensitivo, e que guarda em si um grande problema: como o indivíduo poderá se aperceber de que o que leu ou ouviu é verdadeiro ou não? 

Quem diz que a Escritura é a verdade, mas crê que há nela paradoxos ou antinomias [1], desenvolve um conflito de interesses, pois acreditará em um dos pontos, jamais em ambos, visto serem antagônicos. Para se afirmar que a Bíblia é a verdade, terá também de afirmar que nela não há paradoxos. Para se acreditar em paradoxos, não se poderá acreditar que a Bíblia é a verdade. Ou seja, uma das afirmações tem de ser verdadeira e a outra falsa. Ambas não podem ser verdadeiras e falsas ao mesmo tempo. O Senhor Jesus aplicou muito bem este conceito quando do Sermão do Monte: "Seja, porém, o vosso falar: Sim, sim; Não, não; porque o que passa disto é de procedência maligna" [Mt 5.37].

O paradoxo ou a antinomia confunde, ainda que muitos utilizem-no com o intuito de se elucidar determinado problema, que consideram insolúvel, incompreensivo. De fato, ele não traz esclarecimento algum, antes permite que as dúvidas se estabeleçam e, através delas, o engano seja alçado ao mesmo nível da verdade, e veja mesmo a superá-la. Não foi o que a serpente fez com Eva? Fazendo-a acreditar que a verdade era mentira, e de que a mentira era a verdade? Eva considerou inapropriadamente que Deus não era santo, perfeito e infalível. Para a perdição dela, e a nossa, cogitou que a ordem divina era incoerente com a afirmação da serpente, o que era de fato, mas descartou o primeiro princípio pelo qual deveria se nortear: de que Deus é verdadeiro e não pode mentir [Tt 1.2], para se fiar no princípio de que a serpente era verdadeira e não poderia mentir. Num dado momento, ela ficou talvez em dúvida; ela pensou na contradição entre as duas afirmações; considerou que as duas poderiam estar certas, mas o fato é que, em seguida, seu pensamento se direcionou e desviou-se da verdade para a opção errada, a mentira, e ela escolheu o que não deveria escolher, porque creu no que não deveria crer.

Assim também acontece com o homem que se diz a-dogmático; ele simplesmente escolhe defender um princípio falso e descartar o princípio verdadeiro. Ele permanece um dogmático; contudo, seus fundamentos partem de princípios não verdadeiros, já que a negação de um princípio é um princípio em si mesmo. O que vale dizer que ninguém pode recusar um dogma sem ser dogmático. A negação parte da afirmação de se negar, de dizer não, de não reconhecer ou admitir aquilo que se nega. Logo a negação está fundada no enunciado de que o objeto negado deve ser renunciado voluntariamente.

O dogmatismo, historicamente, se contrapôs ao ceticismo, que afirmava ser impossível se conhecer a verdade. O dogmático reconhece a capacidade humana de se conhecer a verdade absoluta, insofismável, indiscutível. Mas quando um cético [seria um pós-moderno, um relativista, ou mesmo um liberal, nos termos de hoje] afirma que a verdade não pode ser conhecida, ele está a afirmar uma verdade. O que o torna em um dogmático, dentro de um conceito falacioso e contraditório, pois ele mesmo diz haver algo que não acredita existir. Então, chego à conclusão de que todos são dogmáticos, no sentido de que a ideia de alguém não-dogmático é uma contradição, algo incompreensível e irracional.

Assistindo aos Três Patetas [The Three Stooges], em dado momento, Moe e Larry conversavam à mesa:
Moe: Só imbecis têm certeza absoluta!
Larry, curioso: Tem certeza?
Moe respondeu, convicto: Claro!

É impossível não rir... A piada da dupla [genial, ao meu ver], delineia perfeitamente o erro daqueles que afirmam categoricamente não haver "verdade", mas consideram a afirmação uma verdade absoluta. Moe confirmou, ao mesmo tempo, duas coisas:
1) De que estava a afirmar algo quando a sua afirmação dizia não haver algo afirmável ou conhecível. Ao se sustentar a impossibilidade de se ter uma certeza absoluta, a própria declaração contradiz o teor do que se é afirmado. Há uma contradição que inviabiliza completamente todo o fundamento da afirmação, reconhecendo a sua própria ininteligibilidade, como um conceito autoinsustentável. 
2) Quando diz ter certeza de que somente imbecis têm certeza, Moe se considera ao mesmo tempo imbecil e contraditório, visto ser impossível ele manter a sua declaração "absoluta" sem dar um tiro no próprio pé.

Esse é princípio autocontraditório, que destrói a si mesmo ao sustentar e reconhecer algo que não crê possível, que considera falso. Uma afirmação pode ser falsa, mas será uma afirmação, baseada em uma certeza, ainda que essa certeza seja enganosa e falha.

Da mesma forma, quando se diz que a Bíblia é a verdade e de que ela contém paradoxos, temos uma afirmação contraditória [não aparentemente contraditória como querem alguns; mas, como já disse, essa expressão é ilógica e não quer dizer absolutamente nada]; pois ou há de se crer em uma ou em outra coisa; ambas são simplesmente impossíveis e irreconciliáveis, ao impugnarem-se mutuamente, por contrastarem-se como antíteses; duas proposições inteiramente contrárias.

Então se chegará facilmente à conclusão de que não é a Escritura que tem paradoxos, mas o homem é quem os cria ao não reconhecer os claros e definitivos objetivos de Deus em proclamar a verdade absoluta na revelação, pois Deus não pode não revela-los, já que os revelou.

De certa forma, todos somos meio burros diante da grandeza da revelação divina. Algo evidente é a sua perfeição, possível de se reconhecer até mesmo por seres imperfeitos como nós. Porém, como a palavra fiel de Deus, ela é santa e perfeita, e em si mesmo garante-nos a sua santidade e perfeição porque proveniente do Deus santo e perfeito; logo, objetivamente, não é uma questão subjetiva, ainda que seja de fé. Nesse caso, é a fé objetiva na palavra objetiva que garante a objetiva perfeição e santidade do texto sagrado. Não há espaço para antinomias, e é isso o que ela diz.

Quando sou acusado de ser dogmático e de estar à caça de "chifres em cabeça de cavalo", poderia facilmente responder com a acusação de que o acusador não passa de um cético, pois a forma de não se ser dogmático é sendo cético. Mas até mesmo o cético crê em alguma coisa, ainda que essa coisa não seja verdadeira, seja um embuste intelectual no qual ele se aprisiona a si mesmo para não crer na verdade. Mas ele a conhece, ainda que não seja nos termos corretos de conhecê-la, e por isso, e somente por isso, ele a rejeita. É interessante como a negação da verdade nada mais é do que o reconhecimento de que ela existe, visto não ser possível negá-la sem antes admiti-la como legítima. A negação se baseia em algum conceito de verdade, sem o qual não haveria a possibilidade de negação. E quem se autodenomina a-dogmático, nada mais é do que um dogmático que não se aceita com tal; ele rejeita a ideia de ser dogmático, considerando-se não dogmático, mas sem deixar de sê-lo.

O que muitos estão fazendo é negando a realidade como se vivessem num mundo de faz-de-contas; contudo, o que está à sua volta, definido e conceituado muito antes de gerações de seus antepassados existirem, e que ele aceita como sendo verdade, não lhe é inconveniente vivê-lo como algo real, sendo ele mesmo parte da realidade, do mundo real que é impossível negar efetivamente. O que há é um delírio intelectual a negar o que seus olhos vêem, o tato sente e os ouvidos ouvem. Com isso não estou dizendo que toda experiência sensorial é real e verdadeira. Os sentidos podem nos enganar. Mas, por exemplo, quando toco uma mesa, na maioria das vezes estarei tocando um objeto cuja superfície é plana e horizontal, sustentada por um ou mais pés, confeccionada em madeira, metal, pedra, plástico, etc. É impossível que todas as mesas não sejam mesas. E a própria concepção de mesa, mesmo para alguém que nunca viu uma [como o cego, p. ex.] é um conceito tão claro que não se tem como fugir dele. Portanto, quando alguém alega que dogmas não existem, ou que a verdade não existe, do ponto de vista real terá de negar a si mesmo. E, negar a si mesmo, representa negar o próprio ato de pensar e aquilo que se está pensando. Logo, é melhor dar as costas e deixar o tolo com a sua tolice.

Por isso, custa-me tanto compreender porque os cristãos empenham-se em sustentar que existem contradições e antinomias na Bíblia, já que ao fazê-lo, questiona-se aquilo que ela é, a inferir-se como sendo aquilo que nunca foi.

Mas, e quanto ao mistério? A Bíblia possui mistérios?

[Continua...]

13 julho 2011

Mistério, Paradoxo e Contradições aparentes - Parte 1

"QUANDO SE PERDE ATÉ O QUE NÃO SE TEM!"




















Por Jorge Fernandes Isah

Existe um senso quase comum entre os crentes, mesmo entre calvinistas, de que a Bíblia é um livro de paradoxos ou antinomias. O termo mais comum e popularmente usado é o de “mistério”. Mas sendo a Escritura inerrante, infalível e divinamente inspirada há possibilidade de que ela contenha paradoxos?

Primeiro, definamos os termos, segundo o Michaeles:
a)Paradoxo - (cs) sm (gr parádoxos) 1.Opinião contrária à comum. 2.Afirmação, na mesma frase, de um conceito mediante aparentes contradições ou termos incompatíveis.
b)Antinomia - sf (gr antinomía) 1.Contradição entre leis ou princípios. 2.Filos Reunião de um par de proposições que simultaneamente parecem contradizer-se e serem provadas, sendo em realidade a contradição apenas aparente ou a prova, no mínimo, de uma das proposições, não concludente. Kant define-a como uma contradição inevitável, em que a razão incorre, ao aplicar as concepções a priori ao transcendente e absoluto: "O mundo teve começo no tempo". "O mundo é eterno" (isto é, sempre existiu). 3.Filos Contradição entre duas leis, quando são aplicadas.
c)Mistério sm (gr mystérion) 1.Arcano ou segredo religioso. 2.Cada uma das verdades da religião cristã, impenetráveis à razão humana e impostas como artigo de fé... 5.Tudo quanto a razão não pode explicar ou compreender; tudo quanto tem causa oculta ou parece inexplicável. 6.Coisa oculta, de que ninguém tem conhecimento. 7.Reserva, segredo. 8.Proposição difícil de compreender; enigma. 9.Ato inexplicável.

Partindo-se da idéia comumente utilizada pela teologia cristã, a Bíblia tem alguns [ou muitos, dependendo do entendimento] paradoxos ou antinomias. Isso quer dizer que o texto nos revela tanto um princípio como outro, que se opõe àquele, ou seja, seriam duas verdades que coexistem conflituosamente dentro de um mesmo conceito de verdade. Apelar para o termo “contradições aparentes” em nada alivia a situação, pois não se sabe onde as contradições são aparentes, além de contradições, naturalmente, serem incoerências em qualquer lugar do mundo, seja aqui ou na Conchinchina.

Por exemplo, quando os calvinistas afirmam que Deus é soberano e o homem é livre em suas escolhas, a fim de se garantir a sua responsabilidade, fica impossível compreender como o Deus soberano, todo-poderoso, que predestinou e determinou todas as coisas, até mesmo as mínimas e mais inexpressivas dentre elas, pode coexistir com o homem livre desse mesmo Deus. 

O sentido de liberdade que se propõe não é outro senão ser livre de Deus. Pois como o homem pode escolher livremente alheio à vontade divina? É o que muitos dizem quando afirmam que Deus é soberano mas a sua soberania para ou é freada quando da decisão humana. Ele determinou e é a causa primeira e última de tudo, mas o homem ainda permanece livre para se decidir, para fazer escolhas livres de Deus, como um livre-agente, sem se compreender adequadamente o que isso representaria. Guardadas as devidas proporções [e todos sabem que analogias são falhas quando se referem a Deus], seria o mesmo que um canário-belga, aprisionado em uma gaiola desde o seu nascimento, declarasse a pleno pulmões que é livre. Mas livre em qual aspecto e condições? Livre do quê e de quem? A qual sentido de liberdade pode apelar?

Senão, vejamos: ele não conhece outro lugar, nem pode sair do seu habitáculo; o máximo que pode é ver o mundo à distância, através das grades, e pode haver alguém que considere o fato dele ter uma visão abrangente do que está a sua volta como liberdade. Nesse sentido, o canário seria livre. Mas se fosse cego, não seria. Se sua mente o levasse a passear pela rua, ou a voar de árvore em árvore,  muitos considerarão que ele seria livre. Mas o fato é que ele pode, quando muito, pular de um poleiro para outro dentro da gaiola; comer, tomar água ou morrer de fome e sede se o dono não providenciar os suprimentos necessários. Dentro da gaiola, o canário é livre para ir e vir, mas o mundo exterior a ela não lhe é permitido. Podemos dizer que ele é um agente-livre, por sempre estar ali e poder mover-se ali? Ele é livre para comer quando quiser, mas não pode escolher o tipo de comida, a menos que lhe sejam dadas opções, que elas sejam colocadas ao seu alcance. Da mesma forma, ele não poderá beber o que quiser, e nem mesmo quando quiser, pois se o dono se esquecer de abastecer-lhe de água e comida, morrerá à míngua. É a esse tipo de liberdade que os compatibilistas se referem quando dizem que o homem é um livre-agente? Mas ele é livre em qual aspecto? O canário é um livre-agente, também? Creio que ambos são livres, mas com uma liberdade que os faz cumprir exatamente aquilo que os seus senhores desejarem ou quiserem que ele faça.

Sei que há objeções, pois o canário, a despeito do controle que o seu dono tem, não pode latir, caçar ratos ou fazer a contabilidade da casa. O dono terá de compreender que ele agirá conforme a sua natureza [e o canário não pode mudar a si mesmo, tornando-se um cão, gato ou contador], mas ainda assim essa natureza encontrar-se-á presa a condições preestabelecidas, e das quais todos os canários participam sem que possam ser identificados como outra espécie, não deixando de ser canários. Eles sempre serão canários, e não podem deixar de sê-los. 

Estando certos de que as Escrituras não mentem, sabemos que Deus é aquele que estabeleceu a natureza do canário, dando a ele todas as características peculiares à sua espécie, de tal forma que ele permanecerá canário sem a menor chance de ser outra coisa. Ele pode se encontrar em vários estados e estágios, mas sempre será um canário, mesmo que seja um canário morto. 

Vamos tentar um exemplo ainda mais prático: Deus determinou que no dia tal, na hora tal, eu entrasse em uma certa lanchonete e pedisse um “Beirute”. É fato e infalível que eu naquele exato momento e dia entrasse exatamente naquela lanchonete e pedisse exatamente aquele sanduíche. Deus me colocou ali, de tal forma que eu não poderia estar em outro lugar ou fazendo outra coisa. Então, onde está a minha liberdade de escolha? Os proponentes do “mistério” dizem que Deus estabeleceu isso, mas eu escolhi livremente isso. O fato é que houve uma escolha, entre tantos sanduíches, decidi-me por um, mas como essa escolha poderia ser “livre” se Deus já havia decretado o que eu iria fazer? É como tentar colocar a chave que abrirá certa fechadura em uma outra fechadura que precisará de outra chave para ser aberta.

Placidamente, e acho que com algum peso na consciência, dirão: isso é um mistério, um paradoxo, pois são duas verdades que a Bíblia afirma, mas que não entendemos nem compreendemos e que apenas Deus sabe. Aí é que se encontra a tal “contradição aparente”. Por aparente, querem dizer que ela parece uma contradição, mas na verdade não é. Mas, afinal, é ou não é uma contradição? Como é possível conciliar uma decisão estabelecida por Deus eternamente com uma decisão humana livre? Só se pode chegar a uma conclusão: o homem é livre para escolher aquilo que Deus sabiamente determinou que escolhesse. O homem é livre para fazer o que Deus quer que ele faça.

Um dos mais sérios problemas envolvidos nessa questão da "contradição aparente", a qual é ilógica em si mesma, ainda que se tente fazê-la racional e inteligivel é que a fé cristã parece baseada em contradições, em afirmações autorefutáveis. Pois se A é A, e B é B, não sendo A igual a B, como compreender que A possa ser A e B ao mesmo tempo? Seria o Cristianismo um conjunto de doutrinas absurdas, que vão além do entendimento humano? E mais, seria Deus um deus de absurdos? E que nos quisesse confundir ao dizer coisas que jamais poderemos compreender? Tudo isso tem de ser levado em consideração quando se procura respaldar uma fé na irracionalidade. 

Por isso, o que mais temos hoje são cristãos alegando "experiências" para confirmarem a sua fé. Desde as mais simples às mais bizarras. O que aconteceu? Em algum momento, o homem abandonou-se à falsa premissa de que a fé não pode ser compreendida, antes tem de ser sentida. Em algum momento, os homens deram mais valor à experiência, ao empirismo, à subjetividade de suas sensações, do que à objetividade do texto bíblico. Em algum momento,  abandonou-se os princípios revelados por Deus, os quais nos dão o entendimento e a compreensão corretas de quem ele é, para entregar-se à uma fé mascarada de piedade mas que, no fundo, não passa de futilidade, do apelo carnal à irracionalidade, a rejeição da verdade. 

Quando cada um pode ter a sua "verdade", ninguém a tem. Quando cada um pode se apropriar de parte dela, transformando-a em algo parecido com ela, mas que não é, ninguém a tem. Quando elementos incompreensíveis são colocados em pé de igualdade com os compreensíveis, e até superando-os, a incompreensividade anula a compreensibilidade. Com isso a mensagem que se está levando é de que tudo pode ser relevante para o conhecimento de Deus e para a prática da fé cristã, sem precisar seguir princípios e normas estabelecidos pelo próprio Deus. Desde que eu "sinta" e o sentimento seja sincero, as coisas mais tolas e ridículas não somente devem ser toleradas, mas disseminadas e seguidas [e o movimento gospel está repleto de esquisitices como que saídas do maior de todos os hospícios]. 

A paixão e um "amor autônomo", que não deve satisfação a ninguém mas apenas a si mesmo, significando que esse amor nada mais é do que o narcisismo, o autoamor que possibilita se fazer tudo sem regras, apenas pelo prazer de fazê-las, tem sido a explicação para que se defenda o disparate e tudo o que é contrário à razão. Quando as pessoas encontram-se nesse estágio, elas estão aquém da realidade bíblica, num mundo de faz-de-contas religioso,  como o das fábulas infantis.  E, nesse caso, a adoração não é a Deus, mas ao ídolo criado pelo próprio homem, que pode ser qualquer deus,  e ele sempre será o próprio homem, ainda que esteja na mente de vários deles ao mesmo tempo; ainda que o objeto de culto seja exterior a ele, mas o culto seja interior, procedendo do coração, e isso contamina o homem [Mt 15.18].

Entendo que o argumento do “mistério” tem um pouco de fé, mas uma fé irracional, e que a Bíblia nos diz não ser a fé bíblica. Na verdade não há na Escritura nenhuma afirmação de que o homem precisa ser livre para ser responsável. A Bíblia não afirma que o homem é dependente de qualquer conceito de liberdade para ser responsável, mas da autoridade divina que o faz responsável. No Éden foi dito: “E ordenou o Senhor Deus ao homem, dizendo: De toda a árvore do jardim comerás livremente, mas da árvore do conhecimento do bem e do mal, dela não comerás; porque no dia em que dela comeres, certamente morrerás [Gn 2.16-17]. E ainda: “A alma que pecar, essa morrerá” [Ez 18.20]. Não há alusão à liberdade, a um tipo de liberdade em que o homem está livre de Deus. O que se lê é tão somente uma ordem que deve ser cumprida, e se não cumprida, ocasionará uma penalidade. O princípio da obediência é a própria autoridade divina, não a liberdade do homem de fazer alguma coisa que seja alheio ou contra os preceitos de Deus. Por isso, o desobediente pagará, porque Deus estabeleceu o castigo e punição. Por isso a Lei é para todos, e ninguém pode alegar que não conhece a Lei para se fazer inocente. O princípio do conhecimento legal existe mesmo em nossos códigos humanos, para que ninguém fique inescusável.

Mas alguém pode dizer: a lei humana é falha nesse princípio, e Deus, sendo justo, não falharia nele. O mais interessante é que normalmente essa afirmação não é proferida por quem desconhece a Lei, mas exatamente por quem a conhece muito bem. E é ele quem quer definir o tipo de “justiça” que Deus deve ter, ao invés de reconhecer a única Justiça que provém de Deus. Senão, por que Paulo afirmaria que todos nascem condenados? “Portanto, como por um homem entrou o pecado no mundo, e pelo pecado a morte, assim também a morte passou a todos os homens por isso que todos pecaram” [Rm 5.12]. Alguém escolheu nascer? Mas, ao nascer, já está condenado. O próprio Senhor diz ao incrédulo: “Quem crê nele não é condenado; mas quem não crê já está condenado, porquanto não crê no nome do unigênito Filho de Deus” [Jo 3.18]. O fato é que todos os homens nascem condenados. Ainda que a eleição e salvação foram decretadas na eternidade, do ponto de vista humano, nascemos incrédulos em Cristo. No decorrer da história, Deus chamará, regenerará e justificará aquele que escolheu eternamente, capacitando-o a crer em Jesus como Senhor e Salvador [Rm 8.28-30].

Se entendemos que Deus é o Senhor da história, e de que todos os fatos não escapam à sua vontade; se a história de nações e povos foi estabelecida por ele; por que a minha história pessoal e individual não será? É possível Deus controlar multidões de pessoas, muitos milhões e bilhões delas, sem controlar o indivíduo? Ou Deus controla o indivíduo ou não controla absolutamente nada: “E todos os moradores da terra são reputados em nada, e segundo a sua vontade ele opera com o exército do céu e os moradores da terra; não há quem possa estorvar a sua mão, e lhe diga: Que fazes?” [Dn 4.35]. Como é possível o Deus que estabelece todas as coisas em seus mínimos e mais inexpressivos detalhes, segundo a sua vontade, coexistir com a “liberdade humana” de, até mesmo, se contrapor a ele?

Sei que calvinistas dirão que esse esquema é arminiano. E de que afirmam a soberania de Deus, de que o homem não pode fazer nada alheio ao decreto eterno, contudo, também afirmam que nas causas secundárias, nas causas circunstanciais, o homem é livre em sua escolha segundo a sua natureza. Se para o pecado, irá escolher pecar; se redimido, pode não pecar ou, em último caso, vir a pecar. Como isso se dá, um homem livre escolher livremente segundo a vontade divina, eles não têm respostas. Alegam a antinomia. De que são duas verdades que correm paralelas. Mas seria isso mesmo? Ou esse não é um esquema nitidamente construído pela mente humana para não reconhecer que Deus é o Criador de todas as coisas, e de que controla todas as coisas? E de que mesmo o mal e o pecado não podem existir sem que Deus os tivesse criado e os sustentasse para a sua glória? Se Deus tem poder sobre os vasos de honra e vasos para a desonra [Rm 9.21], originalmente eles foram criados com propósitos nítidos e definidos, por ninguém menos que o próprio Deus. E de que os vasos para desonra, preparados para a perdição, cumprirão exatamente toda a vontade decretiva de Deus, de viverem ímpia e pecaminosamente, praticando o mal e o pecado livremente, mas numa liberdade somente possível de se cumprir “ipsis litteris” a plena vontade de Deus... O homem, seja quem for, é livre para fazer somente a vontade de Deus.

É claro que estou-me referindo à relação Criador-criatura; entre as criaturas temos uma "aparente liberdade" [esse é um senso de autonomia que acredito originário da própria Queda do homem. Uma ilusão de que é possível ser livre de Deus, e assim, enganá-lo em sua vontade] , e, de fato, escolhemos e nos decidimos por muitas coisas durante a vida, porém, sabendo que mesmo as escolhas mais simples estarão “amarradas” às contingências anteriores [sejam objetivas ou subjetivas] as quais nos levarão a escolher por alguma coisa em detrimento de outra. 

Quando o homem acredita que existe uma compatibilidade entre ele e Deus, de maneira que o homem colabora livremente para que aquilo que o Criador determinou soberana e livremente na eternidade se cumpra, temos um dilema sem respostas. É isso que a maioria dos calvinistas afirmam no final das contas: não há respostas. Acontece que Pedro alertou-nos para estarmos sempre preparados para responder com mansidão e temor a qualquer que pedir a razão da esperança que há em nós [1Pe 3.15]. Mas como poderemos responder se não temos respostas? Ou se nossas respostas são vazias em si mesmas? Ou se revelam uma fé claudicante e contraditória? Ou, ainda,  se ela se opõe ao que foi revelado pelo próprio Deus? Seria Deus perfeito ao ponto de nos apresentar conceitos imperfeitos e incompletos? Penso que não. Penso que há uma espécie de negligência travestida de piedade e humildade em que as pessoas são conformadas à mentalidade do presente século;  de forma que os apelos existenciais do homem moderno sobrepujam à verdade escrituristica. Sei de muitos que não podem ver, mas sei de muitos mais que não querem ver. Recusam-se terminantemente a encarar a verdade, preferindo o conforto de manterem seus corações e mentes presos à mentira, ao engano. 

Alguém dirá que isso é irrelevante. Desde que se seja eleito. O importante, no final, é a salvação, somente possível por Deus. Isso é verdade, mas usá-la para justificar uma infinidade de erros, em que muitos são usados como pedras de tropeço para seus semelhantes está distante daquilo que é-nos exigido fazer.  

É inadimissível a ideia de que Deus nos preparou "pegadinhas" ou orientou desleixadamente os seus autores. Para o Deus sábio, santo e perfeito, isso é impossível. Mesmo que eu não entenda e compreenda certas questões descritas na Bíblia [e posso não entender muitas coisas por simples  incapacidade intelectual, mas a minha incapacidade intelectual não a tornará em um livro de paradoxos],  jamais poderia apelar para o "mistério".  O que há, em muitos casos, é má-vontade, é não querer a explicação e contentar-se com a não-explicação.  E a Escritura exprime-se inteligivelmente, desenvolve-se em seu escopo de maneira autoexplicável, a fim de que o homem entenda a verdade e afaste-se do engano.  Afirmar a sua contradição aparente [e o que vem a ser isso, logicamente?] significa dizer que não há verdade, pois não existe oposição na verdade, de tal forma que duas proposições que se contrapõem não podem ter a mesma origem, elas se excluem, e uma será verdadeira, enquanto a outra será falsa. Procurar um entendimento de qualquer conceito bíblico com a premissa de que a Bíblia tem contradições, significa dizer que ela é falsa, não é infalível, nem divinamente inspirada. 

Ainda alguém poderá dizer: "Cara, você é arrogante demais! Desprezar séculos e séculos de história em que  homens piedosos humildemente se curvaram ao paradoxo, sabendo que não teriam todas as respostas, é colocar-se numa posição superior e orgulhosa".

Eu diria que o fato, em si mesmo, é irrelevante, pois se homens erraram [e muitos erraram], e outros seguiram os erros daqueles, e gerações posteriores os propagaram, não quer dizer que eu deva negar a verdade pela quantidade de testemunhos que se opõem a ela. O número de pessoas que se identificam com determinada posição não garante a veracidade dessa posição.  Pode, quando muito, dizer que ela é bem aceita, que há muitos defensores. Mas o que resta a essas pessoas é responder o seguinte: como se é possível crer em algo que se contradiz? Você poderia confiar em uma placa de "Perigo! Não  entre!" se houver ao lado dela uma outra dizendo "Benvindo! Entre!"? Como saberá qual placa é a verdadeira? Se afastará ou prosseguirá? Esse é o problema quando os princípios absolutos são negados. E se pensa que se tem algo, quando não se tem nada!