05 março 2011

A ética do velho-oeste

             














Por Jorge Fernandes Isah

                 Muito se fala em ética, hoje em dia, mas acho que poucas pessoas a relacionam com a lei e com a moral. Há até mesmo uma idéia de que ela pode prescindi-las, chegando ao cúmulo de ser equiparada a um simples pensamento, como uma maneira pessoal de melhor se relacionar e conviver na sociedade, sem contudo ser aplicável. É mais ou menos como um homem feio achar que cortar os cabelos e fazer a barba tornará a sua aparência melhor, quando a falta dos pêlos apenas ressaltará ainda mais a sua feíura. Porém, isso levaria a uma confusão ética, pois uma ética individual pode mesmo ser uma anti-ética, já que estará baseada no subjetivismo, à mercê de elementos como o desejo, intenção, preferência, etc. Esse tipo de distinção é falacioso, pois não há diferença entre a ética pessoal e a social, visto toda a conduta individual ter um significado que afetará tanto o indivíduo que decide quanto as outras pessoas que não tiveram o poder de decisão mas serão atingidas por ela. Portanto, é necessário que a ética esteja vinculada a um padrão. Como o homem é caracteristicamente um ser social, as decisões individuais terão, na maioria das vezes, implicações na sociedade. Mas qual seria esse padrão? E, ainda, pergunto: é possível haver ética sem moral? E moral sem um corpo legal que a estabeleça? Ao meu ver, isso é impossível, especialmente no Cristianismo.
                  Primeiro, tem-se de definir o termo: o que é ética? Segundo o Michaelis: 
Ética - sf (gr ethiké) 1- Parte da Filosofia que estuda os valores morais e os princípios ideais da conduta humana. É ciência normativa que serve de base à filosofia prática. 2- Parte prática da filosofia social, que indica as normas a que devem ajustar-se as relações entre os diversos membros da sociedade.
                   Outra definição seria: "Ética é a pesquisa da natureza moral do homem com a finalidade de se descobrir quais são as suas responsabilidades e quais os meios de cumpri-las. A ética compartilha com outros empreendimentos humanos a busca da verdade, mas distingue-se deles na sua preocupação com aquilo que o homem deve fazer, à luz da verdade desvendada. Ela não é simplesmente descritiva, mas também prescritiva no seu caráter" [1].
                  Nossas decisões e valores serão influenciados por um padrão normativo, seja a moralidade, a falsa moralidade ou a imoralidade. Para um cristão, o aborto é algo imoral e anti-ético; para um abortista não é mais do que uma opção possível, dentro de uma moral e ética deturpadas.
                Então, repetindo a pergunta: qual o padrão a se usar?
           Para nós, e o restante da sociedade, deveríamos baseá-la na perfeição e santidade divinas, o padrão moral máximo pelo qual o homem rejeitaria valores abomináveis e ofensivos a Deus e, por conseguinte, ao próprio homem.  E esse padrão está no código moral divino, a sua lei, dada a todos os homens sem exceção. Mesmo um não-crente será favorecido por ela, ao ponto de poder viver tranquilo e em segurança, sabendo que qualquer infrator receberá a pena justa na proporção do crime comentido. Isso seria o mais próximo que a Bíblia revela de algo que chamamos erroneamente de graça comum; mas que em nada agracia o bandido.
                  Portanto dizer que a ética não é derivada da moral e da lei, é dizer que não há ética, pois quem estabelece o sistema pelo qual ela existirá é exatamente a lei e a moral.
            O mundo evoca a todo instante um relativismo e um pluralismo visando  aniquilar a moral e a ética como absolutos; como um sistema de valores pelos quais a sociedade decidirá e julgará através das escolhas corretas, baseada na verdade, a qual é o próprio Deus; revelando e dando-a através das Escrituras, a sua palavra fiel, inerrante e infalível, para que o homem viva ordeiramente no mundo. Assim, em sua justiça, retidão e santidade, a lei de Deus é transposta como o padrão perfeito de ética e moral para todos, de forma que os justos serão beneficiados por ela, pela justiça que ela traz, e pelo prazer em segui-la; enquanto os injustos serão punidos por ela, pela igualmente justiça que ela traz, a qual rejeitam deliberadamente. 
             É claro que, por causa da queda e do pecado, o homem sempre quererá e buscará, ou se inclinará, a tomar as decisões que são opostas ou contrárias a Deus e sua lei, e também contrárias ao seu semelhante. Em muitos casos, se aglutinarão em grupos onde se defenderão, em busca da não observância da ética cristã, em flagrante oposição aos princípios bíblicos, num sistema corporativista onde o indivíduo é privilegiado em sua sanha de pecar e infringir a lei divina sem qualquer sanção ou restrição.
           Em muitos casos, os cristãos, aqueles que deveriam defender os valores morais e eticamente bíblicos, também se opõem a eles, reservando-se em grupos igualmente antinomistas, os quais consideram possível guardar a lei apenas em seus corações e assim estarem distantes do seu justo julgamento. No fundo é um habeas-corpus preventivo, as avessas, onde o infrator tem assegurado o livre trânsito social para cometer todos os tipos de crimes, além de um salvo-conduto para aterrorizar, perseguir e vitimar inocentes, trazendo-lhes perigo real e imediato, numa espécie de orgia pavorosa; onde o pecado pode ser livremente cometido, disseminado, e até mesmo estimulado, ensinado e defendido como o padrão de liberdade alcançada pelo homem em que se reconhece unicamente a auto-satisfação, a qual é a referência de si para si mesmo; e nisso, a comunidade será sempre a primeira e a última a pagar o alto preço por sua própria conivência com a impunidade; onde o pecado é consagrado no altar do individualismo. Estranhamente, sem que se perceba, enclausurado está o indivíduo, vitima do próprio individualismo; a marca mais resistente do pecado a destruir-lhe a alma.
              Este é o caráter máximo da não observância da lei e da ética: a liberdade que se busca em pecar sem qualquer sentimento de culpa, sem qualquer coerção, de tal forma que o amor ao próximo será um amontoado de palavras vazias, pois o não se subordinar a ele [no sentido de que o amar a Deus e ao próximo o disporá na posição de dependência e humilhação] o colocará na condição ilusória de apelar à autonomia de que até mesmo o amor deve-se sujeitar à liberdade pessoal de fazer o que se quer e como se quer, sem o menor constrangimento, sem qualquer tipo de sujeição ou obediência a Deus. Partindo-se do princípio de que não existe autonomia, mas uma tentativa frustrada de se tê-la, chega-se facilmente à conclusão de que o amor pelo qual se apela também é utópico.
            O grande dilema de muitos cristãos é imaginar que Deus somente pode ser obedecido pelo eleito, e de que o não-eleito estará livre para desobedecê-lo explicitamente; o que pode nos colocar na situação embaraçosa de não exigir dos outros que se dê a devida honra a Deus, e assim reconhecer a nossa própria dificuldade em também fazê-lo. Ora, Deus é Senhor de todas as coisas, e tudo está sujeito a ele, quer se queira ou não, e a ordem é para que todos, sem exceção, sejam obedientes e cumpram seus mandamentos. Como muitos cristãos resguardam-se a si mesmos o direito de pecar, considerando-o algo normativo e usual [interessante o número de crentes a afirmar a impossibilidade de não pecar, quando isso deveria ser uma vergonha para qualquer um], de certa forma essa impossibilidade é transferida para os ímpios como algo natural e do qual nada podem fazer. Realmente, não se pode acrescentar coisa alguma ao que já é perfeito, a lei, como o limitador, o inibidor da maldade no homem natural. Se temos o Espírito Santo e a lei a nos orientar e interferir em nossa vontade de maneira que não pequemos, aos não-eleitos resta-lhes apenas a lei como freio, na qual os seus destinos encontram-se eterna e definitivamente selados.
              O fato é que a pretensa autonomia não existe, e nada mais é do que o homem encontrando um jeitinho de permanecer escravo por meio de um sistema de valores não-cristãos que lhe dará a falsa idéia de estar livre de Deus, quando mais do que nunca ele está preso ao que lhe pode ser mais danoso: a insubordinação e a rebeldia contra o Senhor. E a consequência será a condenação eterna pela mesma lei que teima em transigir e desprezar.
             Por se ter vários tipos de ética, e o homem estar sujeito a elas, as quais são injustas e falhas em suas premissas de salvaguardá-lo a partir da desordem em si mesmo, o resultado será a imperfeição a serviço da imperfeição, dentro de uma relatividade em que o senso cultural e temporal do conhecimento humano, que poderá abastecer-se no passado de práticas falidas que ressurgem não como esperança, mas como afronta à dignidade humana, e, primeiramente, um insulto ao próprio Senhor; converter-se-á na busca infrutífera pela verdade, distanciando-se de modo que encontrá-la será encaminhar-se à completa impossibilidade. O passo seguinte é satisfazer-se em tornar a mentira numa aparente verdade, como se possível fosse buscar em nós mesmos aquilo que somente pode existir no Deus vivo e verdadeiro, e que é a sua essência. Quando esse princípio é abandonado, o homem se torna na própria farsa; de criá-la com o propósito do auto-engano; num esquema em que a realidade não pretendida é o resultado do processo pelo qual a irrealidade desejada não se concretiza. Guardadas as devidas proporções, seria o mesmo que deixar uma matilha de lobos cuidando das ovelhas, na expectativa de que nenhum mal recaía sobre elas. Haverá sempre a busca insensata de se burlar, de falsear a verdade e ver-se livre da moral e ética bíblicas.
                 Podemos citar, como exemplo, a ética marxista que na verdade é a não-ética, pois para eles tudo é possível, até os mais hediondos, reprováveis, imorais e ignóbeis atos a fim de que a revolução seja vitoriosa. No processo revolucionário tudo é possível, menos a moral e a ética. E como eles, muitos cristãos estão a se misturar e a sujar as mãos no sangue dos santos, imbuídos de uma luta na qual serão também vítimas [se já não são], pois servem apenas de “escada”, de trampolim, para que se atinja o poder e, então, os tolos serem sumariamente descartados; ou, ainda pior, se juntarão definitivamente em suas fileiras imorais e pervertidas sem nenhum peso na consciência ou escrúpulo, pelo contrário, com a certeza do dever cumprido em nome da “causa” que inadvertidamente supunham ser de Deus.
             Há éticas de todas as formas e para todos os gostos: existencialista, utilitária, naturalista, etc, mas todas como conseqüência da rebelião, da rejeição do homem natural a Deus; que se quer ver livre de qualquer padrão justo e santo, assim como o porco se refestela na lama, sujando-se ainda mais. É como está escrito: “Quem é injusto, seja injusto ainda; e quem é sujo, seja sujo ainda” [Ap 22.11].
               Por isso, a maioria das pessoas quer viver no padrão coletivo em que o comportamento individual seja o reflexo objetivo da servidão e de alimentar o mal, operando a degradação própria e plural, como autênticos "fora-da-lei".

Nota: [1] Enciclopédia Histórico-Teológica da Igreja Cristã, II, pag. 86 - Editora Vida Nova.
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28 fevereiro 2011

Livro do mês: Deus e o Mal, o problema resolvido


          Por Jorge Fernandes Isah


Antes de ler textos esparsos de Clark e Cheung no Monergismo, eu vivia interrogando irmãos mais experientes na fé [e que são pessoas letradas, que entendem muito de teologia] sobre as implicações do mal na soberania de Deus. Normalmente a resposta era de que não havia respostas. Há, mesmo entre calvinistas, a idéia de que Deus é soberano e o homem é livre em algum aspecto. Mas eu não conseguia conciliar as duas coisa, nem mesmo via essa tal liberdade decantada, em livros e sermões, na Escritura. O que eu via era o homem agindo sempre segundo o propósito divino; e ao me deter no texto do Antigo Testamento, a coisa ficava ainda mais claramente delineada e exposta.

Livros como o de Jó, Isaías, Jeremias, João e Romanos, foram decisivos para eu abandonar completamente a possibilidade de conciliar a soberania de Deus com a liberdade humana, seja na forma de livre-arbítrio ou livre-agência.

Então acostumei-me a ouvir que havia paradoxos na Bíblia e de que eles existiam conjuntamente como uma espécie de  "mistério", ao qual Deus não nos revelou. Porém, nada disso me confortava; e lendo grandes teólogos [Spurgeon, LLoyd-Jones, Sproul, Piper, etc] a coisa toda não se resolvia. Era como se eles caminhassem até a conclusão final e, quando estavam prontos para enunciá-la, parassem, retrocedessem, e se conformassem com o tal do "mistério" ou do "paradoxo". Eu continuava frustrado e decepcionado, mas já vislumbrava uma hipótese que não assumia efetivamente por medo e temor do que viessem a pensar ou falar de mim [não é agradável para um crente ser visto como herético ou heterodoxo, ou quando menos, um irresponsável por cogitar o que muitos não consideravam possível. Sempre ouvia: "irmão, você está querendo ir onde os santos não ousaram ir. Cuidado!". Era quase uma "praga" proferida, de que não me arriscasse a ir, senão...].

Um belo dia, deparei-me com Gordon Clark [de quem nunca ouvira falar], e um pouco depois, Cheung. Lê-los foi um alívio, como se tivesse tirado toneladas de peso às costas, pois eu me certifiquei de que não era louco, nem herético, ou simplesmente um provocador, mas de que minhas dúvidas eram honestas, verdadeiras, e de que outros haviam pensado assim como eu. É claro que havia semelhança entre a minha interpretação e a dos autores citados, sem contudo a clareza e a pontuação dos múltiplos detalhes que expunham, e que não deixou também de ser uma descoberta, à medida que os lia. Poder ordenar aquilo que eu cria bíblico, a partir da busca pela lucidez e o conhecimento necessários para entendê-lo [em constante oração e leituras bíblicas e teológicas], trouxe-me o desejo de meditar e aprender sobre a soberania de Deus, e de como ele controla o mal segundo os seus santos propósitos. Este foi um momento de muita alegria  e, juntamente com ela, o alívio por não estar sendo apenas um tolo, teimoso ou blasfemo como muitos supunham que eu era.

Quando finalmente tive em mãos o PDF do "Autor do Pecado" [cujos comentários podem ser lidos aqui; e hoje produzido em formato de livro físico], praticamente todas as minhas dúvidas sanaram-se [dentro da minha limitação teológica e intelectual, claro!].

Agora, com “Deus e o Mal” em mãos, penso que se tivesse lido-o anteriormente, e até mesmo antes do Autor do Pecado, a coisa teria sido mais fácil e menos dolorosa.

Interessante que Gordon Clark é chamado de o “Agostinho da América” e, exatamente neste livro, ele diverge e combate a idéia de Agostinho quanto ao mal e o livre-arbítrio. É claro que a alcunha não quer indicar subserviência nem a defesa de todos os princípios propostos pelo Pai da Igreja, até porque, Agostinho, no final da vida, negou alguns pontos que defendera anteriormente [li, não sei onde, que um desses pontos é o livre-arbítrio, mas preciso buscar a fonte].

Ainda mais interessante são os argumentos que Clark advoga, muito parecidos com os que defendi em meus comentários sobre a questão do mal e o livre-arbítrio exposto por Agostinho no livro "Confissões" [e que podem ser lidos acessando o link]. Também, de uma forma mais clara, defendi-os em alguns textos aqui no Kálamos: "A Incoerência do Livre-Arbítrio",  "Mysterium Compatibilista" e "Preso na própria armadilha".

Agora, ao ler "Deus e o Mal", deparo-me com um pensamento muito próximo do que eu mesmo considerei anteriormente; o que novamente reavivou aquela antiga alegria de estar sendo guiado por Deus a utilizar-me mais da razão no trato com o texto bíblico e com livros teológicos. Sem dúvida, Gordon Clark está mil anos-luz ou mais à minha frente, e nem que eu vivesse mais cem anos o alcançaria. Porém, saber que mesmo incipientemente minha mente está sendo renovada diariamente pelo Espírito Santo, em si mesmo já é uma fonte de enorme e viva alegria.

Ao final do livro, posso declarar que, apesar de não ser um grande volume no tamanho, ele o é no seu conteúdo. Clark lançou por terra qualquer ideia de misticismo e irracionalidade na compreensão escriturística, e de que somente podemos fazê-la corretamente se os pressupostos também o forem. A Bíblia se autoexplica, e qualquer apelo fora dela trará apenas confusão, fruto da ignorância e da manipulação de conceitos e termos por parte daqueles que querem afastar-se da verdade.

Chamou-me também a atenção, e já havia percebido em outros textos, o fato de Clark defender a CFW, ou melhor, a interpretação correta da CFW quanto à questão da livre-agência [indicando o erro interpretativo da maioria que a lê]. Eu sempre tive a impressão de que a CFW era compatibilista, não determinista, mas Clark assegura-nos a sua determinação quanto à rejeição de qualquer liberdade do homem que o coloque numa condição de ser livre de Deus.

Ao definir a livre-agência como uma "causa necessária ou secundária", controlada por Deus, para que o homem realize exatamente aquilo que ele decretou eternamente, em que o homem é livre em sua vontade ou volição, mas não nas causas que o levaram a querer aquilo, a coisa toda, que mais me parecia um "artifício" para fugir do determinismo bíblico, tomou outros contornos. Mas é algo que ainda terei de meditar, terei de assimilar e rever, para depois aceitar. McGregor Wright tem a mesma posição de Clark, e Cheung parece diferir dos dois, aproximando-se muito mais do que eu mesmo acredito, de que livre-agência não passa de um termo criado para, ao mesmo tempo afastar-se da expressão "livre-arbítrio' e defender a liberdade humana sem a qual não haveria responsabilidade [os textos que indiquei poderão auxiliar no entendimento do que efetivamente penso].

Um trecho interessante, mais uma exortação à defesa da fé, fugindo do apelo "sensorial" que o humanismo quer prestar ao Cristianismo bíblico, é o capítulo final do livro, intitulado "A crise da nossa era". É um apêndice, talvez não escrito por Clark, mas revelador e profundo, ainda que seja uma pequena peça a analisar o estado em que boa parte da igreja atualmente se encontra.

E tenho para comigo, assim como o subtítulo do livro diz, que o problema está resolvido.

Nota: Mais do que uma crítica ou um ensaio, esta postagem tem o caráter de depoimento, de testemunho. Considerei que devia um agradecimento especial aos dois autores, ainda que não possam me ouvir e ler, e um agradecimento especial ao Felipe, da Editora Monergismo, por ser usado por Deus para publicar esses livros que, de outra forma, provavelmente não chegariam ao leitor brasileiro que não lê em inglês. Esta postagem foi mais uma atitude de gratidão a eles do que qualquer outra intenção. E que venham outras obras de Gordon Clark em português.

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15 fevereiro 2011

Predestinação em Gênesis 4

Por que Deus não se agradou de Caim?
  Por Jorge Fernandes Isah

Estou às voltas, esta semana, com a leitura do livro de Gênesis; e ao ler o capítulo 4, veio-me a questão: Por que Deus não se agradou da oferta de Caim, e se agradou da oferta de Abel?

A maioria tem como explicação o fato do sacrifício de Abel ter sido com sangue e o de Caim não; levando-se a crer que o fato de Abel ter escolhido dos primogênitos das suas ovelhas e das suas gorduras [indicando morte, sacrifício de inocentes, sangue derramado; assim como o próprio Deus sacrificou animais para, com suas peles, cozer roupas que escondessem a nudez do casal primevo], remetiam ao futuro, como “sombras” a indicar o sacrifício de Cristo na cruz do Calvário, como o Primogênito de Deus, o Cordeiro imaculado, inocente, que derramou o seu sangue para que muitos fossem salvos e tivessem seus pecados expiados, milhares de anos depois.

Entendo que essa conclusão é parcialmente correta. Ela aponta para a necessidade da morte como forma de se pagar os pecados; sendo o justo aquele que remirá o seu povo e, somente assim, ele será purificado de suas iniqüidades e libertado da condenação. Mas, ainda algo persiste em fustigar a mente: os irmãos sabiam como ofertar a Deus ou não?

Há os que entendem que ambos sabiam a maneira correta; mas, ao meu ver, não. O texto não traz nenhuma referência de como eles deveriam agradá-lo; se conheciam ou não, de antemão, como ofertar-lhe; apenas nos revela que:

a)     Eva deu à luz a Caim, e depois a seu irmão Abel [V.1-2];

b)     Abel foi pastor de ovelhas; e Caim, lavrador da terra [v.2];

c)     Caim trouxe do fruto da terra, e Abel tomou dos primogênitos das suas ovelhas e da sua gordura, como ofertas a Deus.

Um adendo interessante, que pode nem mesmo ser relevante, é o da Bíblia informar o nascimento na ordem de primogenitura: Caim e depois Abel. Um pouco mais à frente, ela cita a profissão de Abel, como pastor, para, em seguida, citar a de Caim, lavrador. Mais um pouco e temos Caim ofertando primeiramente que Abel, e este o seguiu, talvez respeitando alguma preeminência que o irmão mais velho teria, de tal forma que somente após a sua oferta, Abel pode fazê-lo também. O que me leva a crer que a ambos não foi ordenado como agradar a Deus, e de que as suas atitudes foram naturais, espontâneas, de levarem a Deus o produto de suas atividades, daquilo que produziam, e que lhes era inerente às vidas e habilidades; sem que pudessem agir de maneira diferente, a não ser Caim dar dos frutos do seu trabalho e, também, Abel.[2]

Ambos parecem sinceros, dispostos a agradar a Deus e, ao menos em princípio, descartarei a possibilidade de qualquer inclinação rebelde ou má da parte do primogênito de Adão. Numa perspectiva humana, queriam o melhor, dar o que tinham de melhor, tanto de si mesmos como dos seus esforços. Agradar ao Senhor era uma forma de recompensa pelos seus trabalhos, pelo suor dos seus rostos, o que é indicativo de esmero e dedicação para com as ofertas, mesmo que a gratidão não fosse a mola-mestra que os levasse a reconhecer o bem que Deus lhes proporcionou [ao menos, no caso de Caim, isso é possível, como uma inferência. Ele queria se ver reconhecido por estar "dando" a Deus o fruto do seu suor, o melhor que tinha para dar, o que tornaria a sua motivação em auto-idolatria, ao não reconhecer o Senhor como aquele que lhe deu e capacitou-o a dar].

Outra defesa que muitos advogam para Abel é de que ele era justo, por isso sua oferta foi justificada diante de Deus, ao contrário do seu irmão. E isso é uma verdade. Deus aceitou o seu sacrifício porque ele ofereceu algo maior do que Caim [Hb 11.4], pela fé, e se a fé é um dom de Deus [Ef 2,8], o próprio Senhor propiciou-o a dar na medida correta, exatamente aquilo que seria do seu agrado.

Não é interessante que Caim poderia ser Abel? Se houvesse uma roleta a determinar aleatoriamente a personalidade e a identidade das pessoas? Poderia ser ele a pastorear ovelhas, enquanto o caçula a lavrar a terra, o que mudaria o curso da história, a partir da mudança dos seus personagens? Contudo, aprouve a Deus, em sua soberania, predestinar Abel e Caim para que cumprissem os seus eternos propósitos, de maneira que os acontecimentos transcorressem assim como havia planejado; remetendo-me à questão apontada no item “b”, de que a primogenitura foi tirada de Caim e entregue a Abel.

Alguém poderá dizer que o fato da Bíblia citar o trabalho de Abel primeiro é simples coincidência. Como não acredito em sorte, azar, acaso e coincidências, mas apenas na providência divina de realizar tudo segundo o seu santo e eterno decreto, a citação é indicativa de que também a profissão foi um fator determinante para a oferta ser agradável ou não a Deus. Quando o Senhor predestinou Abel para pastor, ele o fez com a nítida certeza de que ele e sua  oferta o agradariam, e não o outro. Ao determinar que Caim seria lavrador, sua oferta já estava rejeitada, muito antes do mundo ser mundo, e de Adão vir a habitá-lo. Deus providenciou que tudo se cumprisse convenientemente para que Abel o agradasse, e Caim não. Fazendo uma analogia com Esaú e Jacó [Rm 9.13], podemos dizer, sem dúvidas, que Deus amou a Abel e odiou a Caim.

Pode-se argumentar que a minha analogia está errada? Por que Paulo está a falar de eleição para a salvação, e de que Deus escolheu-os antes de fazerem o bem ou o mal? A aplicação da teologia de Paulo serve para todos, sem exceção, em todos os tempos. E, por isso, cabe muito bem aqui. Pois é-nos dito que Abel era justo [Hb 11.4], assim como Caim era corrupto, ímpio [Jd 11]. Ainda pode-se alegar que o tipo de oferta, se de sangue ou da terra, é que definiu o agradar a Deus ou não. Há de se lembrar que Deus aceitava ofertas voluntários de gado, ovelhas e cereais [Lv 1 e 2], nada impedindo que Caim ofertasse dos frutos da terra, anulando assim o argumento. A questão se volta então para Caim. Se o problema não foram os frutos, então a rejeição de Deus recaiu sobre ele.

Como cristãos bíblicos, reconhecemos que Deus controla todas as coisas, visíveis e invisíveis, inclusive a nossa vontade; portanto Abel e Caim cumpriram o eterno propósito divino de conduzir a história em perfeição e sabedoria, a seu termo, segundo a vontade e o decreto eterno de Deus. Não importa se Deus lhes entregou regras de como ofertar; nem se Abel sabia e Caim não. Isso é irrelevante, pois não invalida em nada a decisão de Deus se agradar de um e não se agradar do outro. O texto quer deixar evidente e nos assegurar de que Deus se agradou de Abel e não se agradou do seu irmão.

Pausa.
Caim poderia ter aprendido uma grande lição, a de como se submeter a Deus; de como se sujeitar; de, seguindo o exemplo do seu irmão, Deus se agradar dele. Porém, em seu orgulho e tolice, ele se irou fortemente, ao ponto de descair-lhe o semblante [v.5]. Estava nítido o desagrado de Deus para consigo, e o Senhor lho manifestou. Bastaria reconhecer o seu erro e fazer a coisa certa dali em diante [o que confirma a irrelevância das regras, nesse caso].

Ao matar o seu irmão, Caim como que queria dizer ao Senhor: “Não se agradou da minha oferta? Nem de mim? Agora terá de se contentar, pois não terá outra a ser-lhe oferecida; não há mais Abel, nem o sacrifício de Abel, ambos morreram. Ou se agradará de mim ou de mais ninguém”. De certa forma Caim queria que Deus se adequasse ao seu padrão moral, demonstrando não estar disposto ao contrário.

Após o assassinato, Deus perguntou-lhe sobre Abel. Caim disse: "Não sei; Por acaso sou guardador do meu irmão?" [v. 9]. Além de homicida, ele se tornou mentiroso; demonstrou arrogância, irreverência, petulância e um tom desafiador. Como está escrito: “Um abismo chama outro abismo” [Sl 42.7]... Caim experimentou, em sucessão,  várias formas de pecado a partir do orgulho de não reconhecer a vontade divina, e de que o afrontara com a sua iniquidade. E este é outro assunto a ser abordado, o fato de que Deus é quem define o pecado. Ele estabeleceu o padrão moral a ser seguido e o imoral a não ser seguido. Desta forma, Caim não está isento da responsabilidade, pelo contrário, ele é o responsável por Deus não se agradar da sua oferta, da mesma forma que Abel foi responsável por Deus se agradar da sua. Uma coisa que temos de entender é que a autoridade divina é a única a estabelecer o que é e o que não é; o que tem de ser feito e o que não tem ser feito; quem é justo e injusto; e ninguém pode inquiri-lo sobre isso, ou acusá-lo, sob pena de acumular delitos contra si mesmo.

Caim queria ser aceito, e não aceitou um não como resposta; não reconheceu seu erro, e de que não procedera corretamente, pois não foi admitido por Deus exatamente por não fazer o bem, antes o pecado estava a bater-lhe à porta, como lhe foi dito, e sobre o seu desejo de proceder mal deveria ter dominado [v.7]. Mas sabemos que o coração ímpio é incontrolável em buscar o mal [Pv  21.10]; por isso, de uma forma obstinada, Caim queria ser justificado, mas é Deus quem justifica [Rm 8.33]. Em sua dureza e cegueira, cobiçou a honra que não podia obter por seus próprios meios; fez-se provocador; culminando em receber a justa condenação de Deus: “Agora maldito és tu desde a terra... quando lavrares a terra, não te dará mais a sua força; fugitivo e vagabundo serás na terra” [v.11,12]. Caim se tornou em um homem sem arrependimento, sem amor, sem temor, e por isso foi expulso de diante da face do Senhor [v.16].
Fim da pausa.

Ainda fica a dúvida: Mas Deus não seria injusto por rejeitar a oferta de Caim, sem lhe mostrar o padrão que o agradaria? Nesse caso Caim não seria desobediente, não poderia fazer nada a respeito. Porém, a questão não é se Caim obedeceu ou não, mas se Caim agradou ou não a Deus. E não agradou; mas coube a Abel satisfazer ao Senhor, mesmo desconhecendo também o padrão que o Senhor desejava. Importa-nos saber que Deus não aprovou a sua oferta; importa-nos saber que Deus não aprovou a Caim, antes mesmo de desaprovar a oferta, pois como diz o texto: "Mas para Caim e para a sua oferta não atentou"[v.5]. E, no final, é isso que conta. Pois assim Deus se agradou de Abel e não do seu irmão; de tal forma que Abel, desde antes do seu nascimento estava predestinado a ser o pastor de ovelhas [tipo do Senhor Jesus em sua morte de sangue também] e a sacrificá-las, e a tomar-lhes a gordura, e oferecê-la aprazivelmente a Deus. Da mesma forma que predestinou Caim a ser um lavrador, a tomar dos frutos da terra para ofertar ao Senhor, irar-se, matar o seu irmão, ser amaldiçoado por Deus, e apascentar a si mesmo, seguindo o mesmo caminho do maligno.

Este é um exemplo bíblico de predestinação; revelando o poder divino de, segundo a sua vontade, operar na vida, como também na morte.

Nota: [1] Agradeço a irmã Joelma Rocha, do blog "Verdade no Coração" pelas dicas que me ajudaram a desenvolver o tema.
[2] Seguindo esse raciocínio, caso Abel fosse oleiro e Caim um caçador, as suas ofertas respectivamente seriam um vaso e um animal abatido. E, nesse caso, quem agradaria a Deus?
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07 fevereiro 2011

"Sorteios & Promoções" mensais



Por Jorge Fernandes Isah


Desde Janeiro/2011, reativei a seção de sorteios aqui no Kálamos. O primeiro, na verdade, foi realizado em 13/09/2009; mas depois de conversar com o Tiago Knox do Internautas Cristãos [à época, um recém-amigo] decidimos criar um site, onde os sorteios ocorressem em conjunto. Com o passar dos meses, o Vinícius Pimentel do Voltemos ao Evangelho, o Armando Marcos do Projeto Spurgeon e, finalmente, o Ricardo Mamedes do blog homônimo, se juntaram ao projeto.

Porém, querendo uma maior liberdade para divulgar livros e autores que não se adequam ao perfil do "Sorteio de Livros" [nome do meu antigo blog que foi transferido para o site, e se mantém lá], optei por usar o nome "Sorteio & Promoções", nada criativo, mas bastante objetivo. Com isso, estou tanto em um, o "Sorteio de Livros", como no outro, aqui.

Na reinauguração, a regra para participar consistia de se fazer um comentário em qualquer das postagens do Kálamos durante o mês, visando privilegiar os leitores deste blog.

Neste mês, decidi "abrir" a participação a todos que se interessarem, bastando enviar um email com nome completo, cidade e estado em que reside para kalamosorteio@hotmail.com

Os livros encontram-se relacionados abaixo, cujos ganhadores serão conhecidos no dia 28.02.2011, as 22 horas.

Até o próximo "Sorteio & Promoções" [Para maiores informações, consulte a página da promoção].


1) "PROFÉCIA BÍBLICA EM 12 LIÇÕES", de Max Anders, Editora Vida















2) "O PERÍODO INTERBÍBLICO", de Enéas Tognini, Editora Hagnos















3) "DEUS E O MAL", de Gordon H. Clark, Editora Monergismo















31 janeiro 2011

Cristianismo, Estado e Justiça - Parte 3: separação entre Deus e governo civil?
















Por Jorge Fernandes Isah 

Há vários argumentos que são utilizados para a não aplicação da Lei divina no governo civil. Alguns alegam que o Estado é laico e, portanto, não tem de ter vínculo algum com religião alguma. Essa é uma grande conversa fiada, pois o Estado, a despeito de se dizer laico, age de maneira antireligiosa, como se fosse possível governar neutra e isentamente. O fato é que o Estado não é neutro, nem isento, e ao agir antireligosamente, em especial com relação ao Cristianismo, demonstra sua parcialidade, e o que é pior, uma autosuficiência que o coloca no lugar de Deus, como um ídolo, do qual até mesmo cristãos são adoradores. Vão dizer que não, o que simplesmente acontece é uma separação entre religião e Estado, mas, pergunto: quem autorizou essa separação? Em quais pressupostos ela aconteceu? Quem é o seu beneficiário?

Ao se fazer a separação arbitrária entre religião e Estado está-se tentando separar Deus do seu governo, como se fosse algo possível. Na verdade, o que existe é uma rejeição completa e total a qualquer idéia de Deus, mais detidamente o Deus bíblico, absoluto e Senhor de tudo o que foi criado e há no universo; e dessa forma o homem se considera autônomo, dono do seu nariz, independente de qualquer influência e autoridade divina. Quando o homem natural alega a “separação”, está a pensar e fazer algo que lhe é inerente, em sua corrupção, em seu senso moral caído, em seu prazer no pecado, ainda que esteja a dizer que não. Mas o que levaria um cristão a defender tal coisa? Ignorância, má-interpretação ou uma fé distorcida? Pode-se alegar que a história nos revela a nefasta ligação entre religião e Estado. Pode-se alegar que essa união nunca deu certo, e de que a “separação” é o melhor. O exemplo seria a teocracia islâmica, diria um defensor do laicismo. Mas pode o islamismo ser padrão moral e ético para um cristão? O próprio fato dos países islâmicos não serem cristãos, nem se pautarem na lei divina, já revela que seus princípios e premissas são falsos e o governo em si mesmo é falso e culpado em sua ilegalidade. Por ser uma mentira, um embuste, não pode ser parâmetro para um governo levado à cabo pela legitimidade da lei divina. Da mesma forma, o catolicismo não pode servir de medida comparativa. Assim como qualquer governo que se abstenha da lei para se livrar de Deus.

Apelar também para o efeito noético do pecado parece-me uma válvula de escape que não livra o homem de sua responsabilidade. Seria o mesmo que um ladrão justificar o seu crime porque não conseguiu resistir a possuir o objeto do furto. O objetivo é garantir a impossibilidade de aplicar-se a lei, não porque ela falha em alguma coisa; não porque ela não é o padrão verdadeiro de justiça; não porque haja algo melhor que ela; não que seja imperfeita em algum aspecto; mas porque somos incapazes de torná-la apropriada e eficaz em sua praticabilidade. Em linhas gerais, fazemos como os fariseus que ao tentarem se mostrar inocentes em relação aos seus pais que derramaram o sangue dos profetas, acabaram por encher as medidas deles, testificando serem filhos de assassinos [Mt 23.30-32]. Ao acusarmos aqueles que não foram capazes de governar adequadamente segundo o padrão divino, justificando assim a nossa própria incapacidade, enchemos as medidas deles ao nos tornarmos herdeiros do seu legado não-bíblico. E o que é pior, desconfiamos do poder de Deus para operar a verdade mesmo no mundo de mentiras; para impor a luz em meio às trevas; para trazer justiça onde impera a injustiça. Isso é sinal de descrença, mesmo para os salvos.

Alguém pode dizer: “Não tenho nada com isso! Não me envolvo em política, nem quero nada com política. Apenas me preocupo com a proclamação do Evangelho de Cristo. Que cada um seja responsável pelo seu próprio erro!”... Alguém duvida que o ato de Pilatos lavar as mãos, quando da condenação do Senhor Jesus, não o isentou do pecado e da culpa? E de que seus interesses pessoais o levaram a não decidir pela absolvição do Justo e Santo? Seria essa atitude perdoável diante de Deus? Pedro diz que Pilatos, juntamente com Herodes, os gentios e os povos de Israel se ajuntaram contra Jesus, que foi preso, crucificado e morto pelas mãos de injustos [At 4.27, 2.23]. O “lavar as mãos” me parece uma atitude mais soberba e covarde do que a falsa acusação e a condenação injusta, pois aquele deseja se fazer limpo quando está sujo até o pescoço.

Ainda alguém poderá dizer: “Mas Cristo morreu por nós! Somos culpados da sua morte, também!”, o que é verdade. Acontece que esse deveria ser, mais do que um motivo, o melhor motivo para não apelarmos para a omissão, para a subida em um muro imaginário onde estaremos negando fazer o certo, e o que é pior, desobedecer o mandato que nos foi entregue de salgar e trazer luz ao mundo. Ou é possível iluminar o mundo colocando a luz debaixo da cama ao invés de elevá-la, para que todos vejam? [Mt 5.14-15]. Isso é indiferença ou apelar para a indiferença em relação à vida política como se ela não influenciasse e determinasse como andará a sociedade e o mundo; implica em se dar as costas à injustiça, à imoralidade como se não afetassem a vida das pessoas, trazendo-lhes danos; quando o nosso não envolvimento apenas diz o quanto somos egoístas e mesquinhos, e o quanto nos esforçamos em manter um ascetismo que não existe. Pelo contrário, a negligência em relação à política nos faz maldição quando deveríamos ser bênção também na vida pública, de tal forma que não poderemos olhar para o próximo e dizer que o amamos, sem parecer hipócritas.


Como já disse anteriormente, o Evangelho é um todo; uma parte não ficou no passado e outra pode ser aplicada hoje, para, talvez no futuro, nada disso ser relevante para a igreja e para o mundo. É o mesmo que picotar uma folha de papel e jogá-la do topo de um arranha-céu em meio à tempestade, e após terminada, descer e recolher os pedaços. A chance da folha não ser mais restabelecida em sua inteireza é praticamente certa. Por isso, alegar que certas partes da Bíblia não são requeridas em nosso tempo é torná-la irrelevante em todos os tempos. Não somos nós que escolhemos o que se deve obedecer ou não na Escritura, mas o próprio Deus diz que ela é toda “proveitosa para ensinar, para redargüir, para corrigir, para instruir em justiça” [2Tm 3.16]; e, de outra forma, se ela pode ser aplicada individualmente o que impede que seja aplicada coletivamente? Ou estamos dispostos a guardá-la em nosso íntimo a fim de não sermos responsáveis por ensinar, redargüir, corrigir e instruir em justiça? E, também, não sermos ensinados, redargüidos, corrigidos e instruídos em justiça? Não estaria assim assegurada a manutenção da independência e autonomia em relação à Palavra? É possível se apelar para a irresponsabilidade, para o autonegar-se à obrigação, e não rejeitá-la?

A queda elevou ao máximo a corrupção da alma humana, ao ponto do homem ser capaz de cometer crimes inimagináveis para satisfazer o seu prazer maligno. Contudo, Paulo afirma que temos a mente de Cristo, pois “o espiritual discerne bem tudo, e ele de ninguém é discernido” [1Co 2.15-16]; e o novo-nascimento nos dá isso: a oportunidade de exercer sabiamente os princípios que nos foram dados por Deus. E esse poder não estaria nas mãos de um homem, ou de um pequeno grupo de homens, mas do Corpo de Cristo. Mas aí entra a questão da unidade... de que nós não pensamos igualmente, e de que há muitas interpretações díspares entre os vários grupos de cristãos. Acontece que a lei é objetiva e clara em seus princípios. O que se quer é relativizá-los ao ponto em que negá-la se torna a opção mais fácil dentro de um pensamento essencialmente humanista e antibíblico. E assim o homem acaba por tomar em suas mãos o destino daquilo que é certo e errado, à revelia do padrão de Deus, o único que seguramente definiu o que é verdade e o que é mentira, como a negação da verdade.

Um dos versos mais usados para defender a “separação” entre Deus e o governo civil é a frase proferida por Cristo aos fariseus e herodianos, quando lhe apresentam a moeda de tributo [1]: “Daí pois a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus” [Mt 22.21]. Mas essa distinção que o Senhor faz não seria, exatamente, por que o governo de César era antibíblico? Ao meu ver, o Senhor está dizendo: se vocês, hipócritas, fossem obedientes a Deus, não seriam servos de César, nem a ele deveriam tributos. Mas já que a moeda tem a esfinge de César, devei a ele a liberdade perdida; pois se são devedores de César, o que dirá de Deus? Se tivessem dado a Deus anteriormente, não teriam de dar agora a César... Porque, assim Paulo também disse: não é possível haver sociedade entre justiça e injustiça? E comunhão entre luz e trevas? E concórdia entre Cristo e Belial? Ou parte entre o fiel e o infiel? [2Co 6.14-15]... Ainda mais contundentemente: é possível o consenso entre o templo de Deus com os ídolos? [v.16]. Nesse aspecto, me parece claro que Cristo não está defendendo uma separação entre Deus e o governo civil, mas entre Deus e um governo ímpio e idólatra, pois onde o Senhor não é reverenciado e glorificado não é possível haver comunhão. Porém, se o governo de César fosse nitidamente bíblico, Cristo proferiria a mesma sentença? E, por quê? [2]

Deus, quando estabeleceu a lei, queria que o homem fosse governado por ele em sabedoria, justiça e santidade. Por isso estabeleceu juízes em Israel, e eles, ainda que pecadores, levaram ao povo a justiça proveniente da lei. Ao desejarem um rei, optaram pelo padrão humano de governo [o totalitarismo e a idolatria ganharam forma no monarca], e o que vemos agora é o mesmo padrão sendo sustentado e defendido por cristãos, e assim como os judeus fizeram, desprezam o bom conselho de Deus. Mas será dito: “Nunca houve um governo justo! Somente Cristo trará justiça à terra!”... Sim, certamente jamais houve um governo justo, e Cristo é a própria justiça, mas não será que essa “realidade” não passa de um subterfúgio para acomodar a indolência no seio da igreja? E a igreja como o Corpo não se desvincular do seu papel ao ponto de não andar segundo a vontade do cabeça? Mas se tudo é determinado por Deus, do que está se queixando? Afinal, os governos atuais não são instituídos, sustentados por ele? Paulo não disse que são todos ministros de Deus?... É o que se pensa e diz; porém, o que isso nos exclui da obediência? Em qual lugar está escrito: Disse Deus: como decretei a desobediência, estais livres para desobedecer?... Ou, ao contrário, somos chamados à submissão?

As tentativas de se justificar tal atitude são muitas, desde a descontinuidade da lei na Bíblia até o seu desuso e arcadismo, como se o fato do homem considerá-la indigna de si [numa inversão de valores] a tornasse irrealizável em seu propósito eterno e imutável. Quando se abre mão de Deus e sua justiça, do governo de Deus sobre o homem em todos os aspectos e sentidos da vida, este deixa-se guiar por outros deuses e pela injustiça, o que revelará a desordem e a iniqüidade não somente dos seus "deuses" mas de si mesmo. Por isso a Lei tem de ser retomada; a moral cristã tem de ser retomada; valores como ética têm de retomar ao seu devido lugar na sociedade; pois será através deles que a justiça se manifestará efetivamente, de forma prática, não apenas como um sonho utópico e intangível ou possível apenas na eternidade [nesse ambiente, o amor poderá ser visto e sentido, não apenas idealizado], não entre suposições e incertezas relativistas que apontam para lugar nenhum e nenhuma efetiva ação cristã na sociedade.

Sem a ordem divina, através da Lei, seus ensinamentos, orientações e sanções, o homem não deixará de ser o naúfrago sem qualquer bóia salva-vidas, a se ferir até o sangue em meio a um cardume de vorazes tubarões.

Nota: [1] O sistema monetário romano incluía o denário (denarius, em latim, plural denaris), uma pequena moeda de prata que era a de maior circulação no Império Romano  [fonte: Wikipédia]. E isso me leva a crer que Cristo, ao indicar-lhes a esfinge de César, revelava que o produto da corrupção do povo e sua rebeldia contra Deus proporcionou que pertencessem a César, e assim fossem objetos da injustiça romana ao invés da justiça divina. 
[2] Ora, a “separação” que Cristo faz é entre os valores de Deus e os valores humanos; entre os princípios perfeitos e eternos de Deus e os princípios imperfeitos e temporais do homem; entre o santo e o profano; de tal forma que se dê a Deus o que é de Deus, honra, glória e louvor, por sua plena justiça; e aos homens o que lhes é de direito, ainda que esse direito seja fruto da injustiça.

24 janeiro 2011

Livro do mês: "John Knox"

 Por Jorge Fernandes Isah

A partir de agora, ao menos uma vez por mês, estarei postando uma resenha de uma de minhas leituras, as vezes transpondo comentários do blog "O que estou lendo... ou li" para cá. Assim, espero estimular os irmãos à leitura, tendo-se em vista que a audiência do Kálamos é maior do que aquele blog. Também me utilizarei dos temas correntes nos livros para outras reflexões, analogias ou superposição ao assunto. O que vale dizer que não esperem sempre uma resenha, mas até mesmo uma outra abordagem dentro dela. Poderei, também, escrever sobre livros já lidos em outros meses e anos, e que considerei relevantes do ponto de vista bíblico ou aqueles antibíblicos, os quais é necessário combater.
  
Terminei a leitura de "John Knox", e inaugurarei a série com ele, exatamente pelo tema ser pertinente aos últimos textos escritos sobre teonomia. Ele será o ponto de partida para futuras reflexões sobre o assunto. Então, vamos à resenha sobre o livro deste mês.
Boa leitura!

       


O Dr. Waldyr Carvalho Luz, entre outras obras, traduziu as Institutas de Calvino, do latim, e tem também publicados livros de gramáticas do grego e o Manual interlinear do Novo Testamento, o que o credencia como um autor erudito.


No início, temos uma apresentação rápida dos motivos que o levaram a escrever o livro, e suas fontes primárias, em que faz um apanhado geral do momento histórico em que John Knox nasceu; trazendo detalhes da Reforma Protestante que insurgia-se na Europa continental contra o poder papal, e que ainda era incipiente na Grã-Bretanha, especificamente na Escócia, país natal de Knox.

O panorama geral é tratado de forma a dar uma idéia do contexto em que o personagem vivia, um período em que as idéias e os movimentos eclodiam: Renascença, Iluminismo, Reforma, etc. Há citações de John Huss, Wycliffe e alguns mártires da Reforma em território britânico.

O estilo do Dr. Waldyr poderá não agradar a alguns. Por seu eruditismo, ele usa palavras e um fraseamento mais, digamos, sofisticado e que poderá soar hermético e rebuscado, sem contudo sê-lo. Com isso, não quero dizer que o livro seja maçante ou entendiante. Pelo contrário, a leitura é apaixonada para os que gostam de livros escritos com esmero e rigor, sem perder a objetividade.

O autor nos descreve os tempos tumultuosos e perigosos do período da Reforma na Europa e, no meio deles estava John Knox. Entre perseguições, ameaças, prisões [Knox chegou a ser escravo de uma galés francesa por dois anos], havia o amor à proclamação do Evangelho da graça, da suficiência apenas em Cristo encarnado, crucificado, morto e ressuscitado, pelo qual haveria salvação a todo o que cresse.

Homens fiéis a Deus e sua palavra sofreram a morte na fogueira, outros foram perseguidos, alijados, muitos tiveram de se exilar no continente, mas mais do que isso, o que estava em evidência era o caráter quase absoluto da injustiça dos homens, que resistiam pela força a manter o Evangelho restrito a uns poucos, de tal forma que a livre interpretação não era permitida, e havia apenas uma maneira de conhecê-la: pelos interesses e a motivação da igreja romana que tinha verdadeiro controle político e intelectual de todos os seus súditos espalhados mundo afora. Pensar biblicamente era assegurar uma sentença de perseguição e morte.

Interessante que, no momento atual, em que a igreja quer se despir de sua participação política, acreditando ser possível iluminar apenas as paredes dos templos, os cristãos do séc. XVI estavam empenhados na reforma eclesiástica, mas também na reforma da sociedade. O que me leva a corroborar a idéia de que Deus usará os meios humanos necessários para levar à cabo a sua obra; e, sendo assim, por que excluir desses meios o campo político? Por que podemos ser sal e luz nas escolas, universidades, no trabalho, nos lares, em atividades profissionais as mais variadas [onde em todas devemos demonstrar ao mundo o padrão moral e ético divinos], ocupando cargos de direção em grandes empresas, em grandes fundações, e mesmo no segundo e terceiro escalão governamental, os chamados cargos técnicos, mas não podemos ser luz e sal na política, propriamente dita? E aqui incluo a política partidária? Como se ela fosse um campo impossível de ser restaurada por Deus? Como se estivéssemos diante de um local nefasto e diabólico, quase tão todo-poderoso como Deus, em que a luz não pode combater as trevas? A seara de satanás seria um local especial em que ele teria um poder superior ao poder regenerador do Evangelho? Não parece que pensando e agindo assim estamos delimitando um campo de atuação em que nos é impossível atuar, e no qual a Bíblia não nos impede de atuar e, desta forma, não asseguramos ao diabo um lugar inviolável para que exerça livremente sua obra maligna sem oposição?

Ao meu ver, falhamos clamorosamente ao descuidar de uma área tão importante, e que em nada é diferente das citadas anteriormente, em que somos chamados a revelar a luz de Cristo e do seu Evangelho. Se é para agirmos moral e éticamente de forma bíblica em todos os diferentes segmentos da sociedade, o que nos permite excluir a política como um campo reservado apenas para a imoralidade, a injustiça e a antiética?

Realmente não entendo esse posicionamento de muitos irmãos, que asseveram uma biblicidade na omissão política, quando não há qualquer proibição ou obstrução ao crente para ser governador, vereador e até mesmo presidente do país. Como está escrito: "assim resplandeça a vossa luz diante dos homens, para que vejam as vossas boas obras e glorifiquem a vosso Pai, que está nos céus" [Mt 5.16]. Cristo não nos ordena a ser luz onde estivermos, para que todos os homens a vejam e, sobretudo, para que Deus seja glorificado? Ora, se escolhemos esse ou aquele lugar apenas para salgar, Deus não será glorificado onde escolhemos não salgar e, portanto, a vitória é do inimigo que estará livre para agir conforme a sua perversidade. A Bíblia nos exorta a influenciar o mundo; não podemos escolher arbitrariamente onde se deve influenciar, mas a própria palavra mundo inclui e engloba todas as esferas humanas, para que Deus seja glorificado em todos os lugares, perante todos os homens.

Foi o que Knox e tantos outros irmãos realizaram em prol do Reino, em amor a milhões de pessoas que estavam acorrentadas à ignorância da ICAR [e muito se deve ao seu aspecto político controlador; à sua aliança com o Estado; a impedir a liberdade de proclamação da Escritura], e que necessitavam conhecer a mensagem libertadora e redentora da Palavra.

Foi preciso que esses irmãos lutassem, muitos até o sangue, como está escrito em Hebreus, para que a verdade fosse proclamada e permanecessem livres para proclamá-la, combatendo contra o pecado [Hb 12.4]. Eram tempos difíceis, de muitas privações, em meio à onda de peste negra que assolava a Europa [estima-se que 1/3 da população da Europa foi consumida pela epidemia], muito sofrimento, muita resignações para, alegremente, cumprirem a missão que o Senhor lhes havia entregue.

Portanto, aconselho sobremaneira a leitura deste livro, que poderá revelar um pouco de história, um pouco da vida desses homens, mas também o dever que temos para com Deus de sermos completa luz em todos os lugares e ambientes. Sem nos tornarmos cínicos a ponto de querer ver o "circo pegar fogo" para que seja destruído mais rapidamente. Não nos cabe torcer para que as profecias aconteçam antes do previsto, nem nos esforçar na omissão para que ela se abrevie, mas, pelo contrário, lutar para que o mundo seja restaurado, o Evangelho de Cristo proclamado, e a sociedade [até mesmo os ímpios] se beneficie da ordem e paz que somente Cristo pode dar.

Isto não tem nada a ver com otimismo ou pessimismo, se acredito ou não no que vai acontecer [alguém aí tem uma bola de cristal à disposição?], nem em que tempo vai acontecer; porém a nossa obediência a Deus tem de ser em qualquer tempo, fazendo valer o chamado e a obra que nos foram dados, e deixar o resto com o Senhor. Acreditar que, porque o mundo vai de mal a pior, tem-se de cruzar os braços, é sinal de soberba, de se ter uma sabedoria superior à ordem que nos foi dada, e de se fazer superior à palavra que nos foi ordenada: Ide e pregai o Evangelho a toda criatura, em todas as nações, "ensinando-as a guardar todas as coisas que eu vos tenho mandado" [Mt 28.19-20].

De certa forma, é se colocar acima da palavra; de certa forma é desprezar o mundo, as pessoas, deixando que o mal exista livremente, sem contenção; de certa forma, é medo de sair do lugar confortável; de certa forma, é sinal de arrogância ao se colocar em posição privilegiada, como filho de Deus, privando as pessoas da totalidade do Evangelho, e com isso, impedindo-as de serem alcançadas. Parafraseando Mateus, ainda se cumpre a vontade de Deus, de que os não eleitos não sejam alcançados, mas aí daquele homem por quem  os não-eleitos não são alcançados pela palavra, "bom seria para esse homem se não houvera nascido" [Mt 26.24].

John Knox nos mostrou que o Cristianismo é mais do que palavras ao vento, revelando o papel transformador do Evangelho em todas as esferas humanas, e de que a igreja exerce o papel fundamental não somente na sua proclamação, mas também na sua aplicação, sendo ambas a forma objetiva de propagação do Reino. Ao que parece, não somente devemos esquecer a luta dos reformadores, mas desprezá-la quase como uma loucura; afinal, o papel da igreja é lutar apenas contra as potestades espirituais; esquecendo-nos de que elas são materializadas nos homens, nos pensamentos e em seus feitos. Enquanto se pensar apenas numa luta sobrenatural, seremos invariavelmente derrotados no campo material, o que revelará uma derrota espiritual também [não estou apelando para o pragmatismo, os resultados não nos cabe obtê-los, mas devemos buscá-los. Se acontecerão ou não, não é da nossa conta. O nosso papel de proclamadores e membros do Reino de Cristo é que não pode ser minimizado ou relativizado]. E esse parece ser o intento do nosso inimigo, em espiritualizar até mesmo o que não é espiritual, para que o mal se materialize efetiva e objetivamente. Ao ponto em que nos acomodamos nas promessas ao invés de lutar por elas.

Título da obra: John Knox
Autor: Waldyr Carvalho Luz
Editora: Cultura Cristã
Avaliação: Bom