15 maio 2025

O Demônio da Cidade Branca - Erik Larson

 





Jorge F. Isah



 Foi o primeiro livro de Erik Larson que li. A impressão, no geral, foi boa, pois ele descreve em detalhes os eventos históricos da "Grande Feira Mundial de Chicago", em 1893, concomitantemente com os ataques do primeiro serial killer americano, H. H. Holmes, na mesma Chicago e na mesma época.

 Primeiramente, ressalto a profusão de citações, a extensa bibliografia apontada, e fotografias que me pareceram oriundas de um trabalho historiográfico dispendioso, acurado e rigoroso. 

 Em segundo lugar, a narrativa se assemelha muito com os romances históricos, em voga nas últimas décadas. A diferença é que a obra se mostra claramente histórica, mas escrita em uma linguagem cativante, simples, íntima, onde as várias fases da feira (e da vida de seus realizadores), de Holmes e suas vítimas, se intercalam, favorecendo a leitura, tornando-a leve, didática, estimulante e mantendo um certo clima de suspense “noir”. Podemos encontrar as lutas, desejos, frustrações, rivalidades, cooperações, traições e tudo o mais que se pode ler em qualquer drama. Com isto, não estou dizendo que Larson desejou escrever um romance, não o é, ainda que se assemelhe em muitos pontos. Entretanto, ele se utilizou da linguagem "romancesca" para trazer leveza e criar empatia com o leitor. Ponto para ele. 

 Ao traçar um paralelo entre a Feira, Holmes e seus crimes, faz com que coisas diametralmente díspares, como a criação de um evento suntuoso e monumental, de caráter e apelo global, corram em paralelo à destruição provocada pelo “gênio” diabólico de Holmes. Alguém pode dizer que, em algum aspecto, o serial killer também era um criador, ao planejar e pôr em prática seus projetos bárbaros e atrozes. Bem, não entendo assim, e reputo Holmes como um homem com algumas habilidades e magnetismo pessoal, mas apenas os usando para a destruição, inclusive pessoal; e se para destruir é necessário "criar" algo, essa criação não passa de meios para a destruição, e não pode ser incluída no rol daqueles que constroem a beleza do nada, como é o caso dos grandes arquitetos David Burnham e F. L. Olmsted, entre outros, os gênios por trás da Feira de Chicago.

Se imaginarmos que a Feira abriu espaço para as maiores inovações tecnológicas, muitas das quais se tornariam imprescindíveis na sociedade moderna, como a eletricidade, tubos de vácuo elétricos iluminados por correntes sem fio, o telautógrafo (uma espécie de fac-símile primitivo), esteiras rolantes, o rádio e transmissões por ondas elétricas, equipamentos sonoros elétricos, a roda-gigante (criada para rivalizar com a Torre Eiffel, a principal atração da Feira de Paris, em 1889); e cientistas ilustres como Tesla, Edison, Bell, Gray; mais de 2 km quadrados de área iluminada, com réplica monumental de pirâmides, transatlânticos, colunas greco-romanas, tudo abarcado com o que de mais inovador e futurista a tecnologia podia reunir e proporcionar à época, temos um evento monumental e fascinante. 

Os visitantes das mais de 200 instalações se deslumbraram com a gigantesca, inusitada e profética demonstração do que viria a acontecer nas próximas décadas, em termos científicos, e a beleza incomum que os idealizadores da Feira ergueram e revelaram ao mundo. Chicago foi, durante a Feira Mundial, a antevisão do futuro naquele presente. 

Portanto, não dá para dizer o mesmo de Holmes, um psicopata, frio, dissimulado e covarde (inspirador de outros tantos malignos homens). Holmes era a antítese de Burnham e seus colegas, e, certamente por isso, Larson colocou-os lado a lado na narrativa; uma amostra ou lembrança, ou melhor, um alerta de que se existe criatividade construtiva, existe o labor para o mal e a deficiência. Neste sentido, Holmes foi um "criador" incompleto, negativo, cruel, fraco. Sem forças e talento para produzir o bem, contentou-se em destruir; e, durante o seu julgamento, tentou se passar por vítima, utilizando-se do delírio intelectual (presente em muitos acadêmicos e cientistas modernos), a fim de suprimir a realidade, distorcendo-a, na vã tentativa de enganar, se possível, alguns quanto à sua verdadeira imagem: um homem maldito, cruel e insensível!

Larson poderia ter reduzido em algumas dezenas de páginas a sua história, talvez não se entregando tanto a detalhes técnicos mais, digamos, enfadonhos. Entendo, contudo, que lhe pareceu necessário, a fim de poder aquilatar, um século depois, a grandiosidade e dispêndio criativo, econômico e de esforço, na construção da Feira das Feiras, a “World’s Columbian Exposition”, revelando a genialidade e o empreendedorismo humano.

Quanto a Holmes, aproveitando-se da ingenuidade e boa-fé das pessoas, utilizando-se do seu carisma para torturar e assassinar gente comum, colocou-o no rol dos maiores infames da humanidade e da história. De forma que, em meio ao brilho inventivo da arquitetura, física, engenharia e tantos obstáculos ultrapassados pela engenhosidade humana, temos a figura nefasta e torpe do primeiro serial killer e sua odiosa, e não menos feia e aterradora, "criação", fazendo jus ao título do livro. 

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Avaliação: (***)

Título: O Demônio na Cidade Branca

Autor: Erik Larson

Editora: Intrínseca

Páginas: 448

01 maio 2025

Diário de um Velho Louco - Junichiro Tanizaki

 




Jorge F. Isah

 

 

                Como o título denuncia, o livro foi escrito na forma de diário, pelo patriarca da família Utsugi. Quase um octogenário, impotente, com terríveis dores lombares e na mão, a gastar boa parte do dia com terapias, remédios e reclamações sem fim, é um homem relativamente culto, que gosta de teatro, poesias e domina muitas das tradições japonesas; é crítico, ácido, egoísta e despreza a família. Nutre antipatia pela esposa, velha como ele, as filhas e netos. Talvez a única pessoa a se relacionar pacificamente seja o filho Jokichi (talvez, e somente talvez, haja algum respeito por ele; não por ele, mas pelo que conquistou na vida. Mais adiante, entenderá), cujo distanciamento o mantém reservado a maior parte do tempo, não somente durante as inúmeras viagens a trabalho, mas também nas constantes reuniões que varam a noite. Utsugi quase sempre não se abstém de humilhar e escarnecer os demais membros, de maneira insolente e nada sutil. É rico, e isso o deixa senhor da situação, e evidência ainda mais o inconformismo que sente com a família e a vida.

    Nutre, contudo, uma obsessão pela nora, Sasaki, mulher de Jokichi. Como disse, se existe alguma inveja quanto ao sucesso do filho, provavelmente reside no fato dele ter amealhado o seu objeto de adoração. Sim, o velho tem fetiche pelos pés de Sasaki (ex-dançarina de clubes noturnos), os quais descreve com arrebatado deleite. Tudo faz para tocá-la e desfrutar dos parcos e raros momentos em que a esperta nora submete-se aos arroubos senis do vovô, assim chamado carinhosamente. Não sem cobrar o silêncio quanto as suas escapadas com o amante, Haruhisa, que o velho recebe em sua própria casa, e a presenteia com um anel valiosíssimo, em detrimento de, por exemplo, emprestar certa importância (muito inferior ao do anel) para a filha quitar o débito da casa. Talvez sejam vinganças de um louco, o homem que perdeu completamente a noção da razão e tem a sua consciência amortecida pela luxúria e traição, mas talvez seja o dane-se que a proximidade da morte pode se encarregar de exibir.

   Tanizaki descreve toda essa amálgama de desgraças de maneira burlesca e caricata, como se estivesse a brincar, ironizar as maluquices do velho e o assombro dos demais personagens. Existem cenas de nítido humor, um humor distendido, quase negro, permeado pelo ridículo e sarcasmo. Assim, a narrativa é fluída, simples e transmite com eficiência o clima picaresco e satírico da trajetória do ancião. A tragédia tem sempre elementos absurdos e espalhafatosos, e aqui não é diferente.

   Algumas pessoas reputam o livro como libertador, o frescor do sexo livre, sem amarras, e desse ser um traço da literatura japonesa não afeita aos rigores morais do Ocidente e, em especial, do Cristianismo, uma vez que o budismo e o xintoísmo são religiões mais, digamos, flexíveis quanto aos princípios. Será mesmo?... Não seria o contrário?  No sentido de o Japão ser um país muito mais apegado às tradições, à honra, à família, uma moral ainda mais palpável e elevada (no sentido de graduação) do que a nossa? Ou Sade, Diderot, Laclos, Boccaccio, Roma, Atenas e tutti quanti autores e palcos centenários e milenares escreveram e foram descritos em orgias e libertinagem? A comparação colocaria o personagem de Tanizaki como um velhinho inofensivo e bocó, mas ainda assim um hedonista, como outros em diferentes épocas e culturas. Porém, existem graus de imoralidade, de vícios, assim como virtudes e bondade. O homem, seja ocidental, oriental e, caso exista algum, marciano, é sempre o mesmo homem, indisposto ao bem e predisposto ao mal, ainda que o mal não se manifeste em toda a sua virulência, nem o bem algo inerente, mas fruto dos resquícios, conta-gotas, do Imago Dei. Sem entrar nos pormenores teológicos, do ponto de vista literário, o autor denuncia a degradação e o apodrecimento da sociedade japonesa, ao contrário da conclusão libertária que alguns, ou muitos, depreendem do livro. 

  O velho, culto e abastado, ao manter uma relação incestuosa com Sasaki, em seu ceticismo com o mundo e as pessoas, a vida, a morte e qualquer possibilidade de esperança, transforma-a em ídolo, a deusa não somente momentânea, mas da qual, inclusive, quer esculpir as formas exatas dos pés e colocar sobre o seu mausoléu, e substituir os símbolos religiosos pela sua própria deidade. E isso me leva a questionar se, no fim das contas, Utsugi não é o seu próprio deus a estabelecer os ritos do autoculto, autoveneração e autodevoção. E Sasaki não seria o sacrifício através do qual os seus súditos, a família, amigos e serviçais, conheceriam os caprichos de um deus idoso e caquético?

 Deparei-me também com a ideia de toda a narrativa não ser nada além de imaginação e delírio do velho safado (apropriação de Bukowski), em sua condição decrépita e caduca, já que a maior parte do livro é narrada por ele, à exceção de dois capítulos onde a enfermeira e o médico descrevem a sua particular condição. Seja ou não alucinação, a verdade é que Tanizaki compôs a face de um homem com a qual muitos podem se identificar, velho ou não, onde as consequências afetam não somente o indivíduo, mas todos ao seu redor, especialmente os que, por um motivo ou outro, tenham intimidade e convívio. Sem contar o pouco caso com aqueles a auxiliá-lo, a se preocuparem, independente da motivação. Convenhamos, ele é um velho esquisito, manipulador em sua obsessão tardia e caduca; depende de todos, mas arrasta-os consigo para a queda vertiginosa. 

Isolado em si mesmo, a sua excentricidade era impulso, de ser o que não podia mais ser, à cata de um elixir da vida e da juventude, onde, perdoe-me Cormac, os velhos ou fracos não têm vez!

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Avaliação: (***)

Título: Diário de um Velho Louco

Autor: Junichiro Tanizaki

Páginas: 208

Editora: Estação Liberdade

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