26 maio 2025

Max Perkins - Um Editor de Gênios


 

Jorge F. Isah



Indicado pelo amigo Felipe Sabino, esta biografia trata do, talvez, maior editor americano de todos os tempos. Evidente que é impossível mensurar quem foi o maior ou não, mas certamente pelo volume de autores descobertos e publicados, gente da estirpe de Fitzgerald, Hemingway e Wolfe, para citar o triunvirato dos maiores e mais relevantes escritores dos seus tempos, e ainda o são mundo afora, nos dá a real dimensão do trabalho engenhoso a que Maxwell Perkins se devotou em quase cinco décadas de ofício, chegando ao cargo de Vice-presidente da Charles Scribner’s Sons, a mais conceituada e importante editora americana na primeira metade do século passado.

Lendário caçador e burilador de talentos, Max, como era chamado, entendia o seu trabalho não como uma simples profissão, mas um ministério,  ao qual se entregou de corpo, alma e espírito, e foi um dos mais relevantes, senão o maior, para os novos rumos que a literatura tomou a partir de suas descobertas e inspiração para autores e seus textos.  

      Antes de entrarmos na pessoa de Max, devo acentuar algo: o trabalho meticuloso de pesquisa, condensação e o mergulho às profundezas de Perkins e seus pupilos geniais. A. Scott Berg transpõe em palavras as emoções, frustrações, lealdade e desvelo do editor com a literatura e seus criadores. É um livro delicioso de ler, e ele consegue transportar à simplicidade as complexas relações entre os vários protagonistas e inúmeros figurantes. É quase impossível abandoná-lo. À medida que Berg tecia a sua rede, é irremediável tornar-se presa, já no início da construção. Por muitas vezes, vi-me descuidar de outros afazeres para devotar, e devorar, mais algumas páginas e tempo na companhia de tão ilustres personalidades. Scott Berg construiu, com talento e sensibilidade, o gênio e seus gênios, sendo ele também, sem exagero, um deles.

Por fim, a biografia serviu de base para uma versão cinematográfica de 2016: “O Mestre dos Gênios”(ainda não assisti, e o farei em breve; talvez até poste a resenha aqui), com Jude Law, Colin Firth, Guy Pearce e Nicole Kidman. E, se praticamente todas as versões cinéfilas de livros nunca conseguem sequer igualar a obra original, não espero algo de proporções similares quanto ao resultado, mesmo sabendo que são formas de comunicação e arte distintas. Desejo, contudo, que a produção e direção consigam agarrar o “espírito” do livro e transpô-lo para a tela. Já seria um grande feito.

William Maxwell Evarts Perkins, nasceu em 1884, em Nova York, filho de Elizabeth Evarts (filha de William M. Evarts, proeminente jurista, procurador e político) e de Edwards Clifford Perkins, advogado. Viveu a maior parte da infância em Plainfiel, New Jersey. Formou-se em economia na prestigiada Harvard University, em 1907; e, quando se decidiu pela carreira de editor, foi auxiliado pelo professor de literatura Charles Copeland que se tornaria um grande amigo. Nesse período, trabalhou no New York Times como repórter (1907 a 1910).

Sem muitas expectativas com a carreira jornalística, mas com alguma influência nos círculos literários da Big Apple, é contratado para o departamento de publicidade da Charles Scribner’s Sons, editora considerada “conservadora” e que detinha títulos de autores como Henry James, Sherwood Anderson, Rudyard Kipling, Robert Louis Stevenson, John Galsworthy e Edith Wharton, entre outros nomes considerados ultrapassados pelo mainstream da época. Muitos dos autores emergentes, durante o pós-Primeira Grande Guerra, jamais seriam publicados se não fosse o trabalho investigativo e “depurador” de Perkins, uma vez que o conselho diretivo da Scribner’s não somente era reticente, mas se opunha aos novos rumos em que a linguagem literária se aventurava, mantendo-se firme na disposição de investir nos clássicos. Com leitores fiéis, não estava disposta a romper a sua tradição editorial e investir em livros experimentais: novas estruturas, conceitos e estéticas.

Em pouco tempo, foi promovido para uma espécie de “auxiliar de edição”, onde ajudava na leitura e avaliação de textos originais e inéditos. Nessa época, chegou-lhe às mãos um livro intitulado The Romantic Egotist”, de um jovem desconhecido, F. Scott Fitzgerald. Enquanto os colegas recusaram o livro, com a alegação de não estar de acordo com a linha editorial, Perkins leu-o de uma sentada e ficou maravilhado; então, rapidamente, escreveu ao autor sugerindo algumas modificações a fim de convencer o velho “Charles” a publicá-lo. Scott empenhou-se em reescrevê-lo, e alguns meses, entregou-o a Max com todas as alterações propostas. Após um embate interno, Max persuadiu o “chefão”, e recebeu o aval para publicá-lo.

Em 1920, é lançado “Este lado do Paraíso”, e o livro se tornou um sucesso de crítica e público, lançando quase instaneamente Fitzgerald ao estrelado, confirmando o acerto de Max e seu “feeling” editorial.

Apesar da resistência de parte da equipe, Perkins começava a ganhar admiração e chamar a atenção. Foi ele quem lançou todos os livros de Scott, a quem tinha por amigo, a quem aconselhou e orientou, não somente em relação ao aspecto profissional, mas também financeiro e emocional. A relação do autor com a esposa, Zelda, era conturbada, e Scott se submetia a despesas enormes, um padrão de vida ostentador, noites e mais noites envolvidas no “glamour” a que Zelda impunha o casal. Com isso, Fitzgerald teve, por muitas vezes, que escrever literatura de segunda, terceira linha (Hemingway, de quem também era amigo, acusou-o várias vezes de prostituição, e de desperdiçar um talento inestimável em troca de dinheiro para munir os caprichos de Zelda), roteiros para Hollywood (Max considerava essa opção um verdadeiro desastre na carreira do pupilo), e palestras que odiava. Ao mesmo tempo em que Scott era um escritor talentosíssimo, tinha as suas fragilidades: o vício do alcoolismo, ostentação social e a indigência financeira, arrastando-o para um final onde a degradação artística, por fim, fez claudicar e aniquilar a pessoa.

Berg ressaltou:

“Anos depois, em Paris é uma festa, Hemingway resumiu a carreira de Fitzgerald com a imagem que primeiro chamou sua atenção quando lia ‘O Último Magnata’: ‘Seu talento era natural como desenho feito pela poeira nas asas de uma borboleta. A certa altura sua compreensão dele não era maior do que a que tinha a borboleta e ele não sabia distinguir se estava comprometido. Mais tarde, tornou-se consciente de suas asas danificadas e da estrutura delas e aprendeu a pensar e não pôde mais voar porque perdera o amor pelo voo e só constituía se lembrar de quando ele não exigia esforço’”.  

Após a publicação de “O Grande Gatsby”, Perkins recebeu de Fitzgerald, a indicação de outro autor: Ernest Hemingway. Scott e Ernest se conheceram em Paris, na casa de Gertrude Stein, local onde o círculo de escritores se encontrava para, em primeiro lugar, abastecer o ego de Stein, insaciável, e orgias regadas a álcool e drogas sem freios e fim (muito foi descrito em “Paris é uma festa”). Hemingway era o oposto de Fitzgerald, o tipo de “macho alfa”, seguro e audacioso.

Novamente, Max teve de suar gotas de sangue para a Scribner’s publicar “O Sol Também se Levanta”, em 1926. O livro era considerado excessivamente obsceno, ao ver da direção, e não satisfazia as exigências editoriais. Depois de inúmeras reuniões e o jeito diplomático, mas convincente de Max, o romance veio à lume. Novo sucesso de crítica e público. E, até a sua morte, Perkins seria o editor de Hemingway.

Certa vez, depois de insistir muito com Max (havia anos que não tirava férias), Hemingway levou-o para pescar em Key West, Flórida, no Golfo do México, e contou-lhe muitas das aventuras no mar, histórias sobre pescadores, touradas e caçadas, algumas das quais ele mesmo estava envolvido. Perkins ouviu-as e percebeu material suficiente para “Hem” escrever um livro até então inédito: algo sobre a pesca e o mar. Fez sugestões, considerações e incitou “Hem” a planejá-lo. Durante anos, o autor esquivou-se de fazê-lo, mas em 1951 publicou “O Velho e o Mar”, dedicando-o ao velho amigo, que havia falecido em 1947.

Em 1928, chega às suas mãos um calhamaço de páginas amarradas por barbantes, de um tal Thomas Wolfe, jovem escritor da Carolina do Norte. Havia sido recusado por todas as editoras em que enviou a sua obra, “O Lost: A Story of the Buried Life”. Tinha cerca de 1.100 páginas e entre 300.000 e 350.000 palavras. Era um excesso para um escritor iniciante, e fora dos padrões de edição da época. Max leu-o, considerou a ideia genial, mas era uma obra caótica e carecia de ajustes: um corte de 100.000 a 150.000 palavras e a reestruturação da história. Ele as sugeriu a Tom que, mesmo não gostando da ideia, concordou e trabalhou com o editor na nova formatação.

 Marcia Davenport descreveu:

Tudo que Max faz visa o efeito integral do livro (...) Ele acredita nos nossos personagens, que se tornam reais para ele (...) Mas pode pegar algo caótico, nos dar um andaime para construirmos uma casa em cima dele (...) Sua tarefa é grande, longa, cheia de agonia e confusão”. Berg acrescentou: “Como tantos de seus autores, ela (Marta) descobriu ao voltar ao trabalho que os comentários de Max eram eficazes de uma forma quase subliminar; que ele tinha um jeito de atirar observações com delicadeza como se atirasse seixos em um lago, criando anéis de significado que cresciam até tocar a consciência do autor”(pg. 572).

Lançado em 1929, “Look Homeward, Angel” foi estrondoso sucesso de crítica e público, e provavelmente pela ligação quase filial de Wolfe com Perkins: para Max, o filho que não teve (tinha cinco filhas), para Tom, o mentor e tutor único, a relação ia do céu ao inferno e vice-versa. A ligação entre eles é o centro da biografia de Berg e ocupa a maior parte. É possível ver o relacionamento ultrapassar o caráter profissional e tornar-se pessoal, emocional, quase familiar, como já descrevi. Thomas participa da rotina dos Perkins como se fosse um membro; e, ao mesmo tempo em que ganhava o carinho da esposa e filhas do editor, também se metia em cenas deploráveis e cruéis, ao ponto de causar certos “tremores” na relação.

Muitos críticos e executivos da própria Scribner’s acentuavam os méritos de Perkins nos livros de Wolfe, o que certamente deixou o autor enciumado e rancoroso. É comum, após as crises intempestivas, Tom se desculpar e buscar os conselhos do “papai”. Max, apesar de não se envolver na vida dos pupilos, que também eram seus amigos, especificamente Scott, Ernest e Tom, servia como confidente e orientador. Tentava, sempre que possível, auxiliá-los em qualquer situação ou problema. Era generoso, amigo, confiável, leal e um pacificador, no sentido de nunca promover disputas e impor sua vontade, apesar de, quase sempre, convencê-los. Se Fitzgerald era frágil e maleável, Hemingway impetuoso e confiante, Wolfe ficava no meio do caminho, entre a vaidade, a insegurança e o melindre.

Sobre isso, Berg escreveu:

“Na raiz de toda a raiva de Wolfe estava a crença geral de que sem Perkins ele era impublicável – um escritor fracassado. O próprio Wolfe dera fôlego a essa noção, tornando públicos fatos que Perkins lutara para manter privados” (pg. 451).

Em carta, Max ponderou com Wolfe:

“A minha impressão, porém, é de que você pediu minha ajuda, de que a deseja(...) E também tenho a impressão de que as mudanças não lhe foram impostas (você não é muito propenso a aceitar imposições, Tom, nem eu, muito dado a fazê-las), mas, sim, discutidas, muitas vezes por horas”(...) Acredito que o escritor, de todo jeito, deva sempre ter a última palavra, e minha intenção sempre foi essa. Sempre adotei tal postura e às vezes cheguei a ver o prejuízo que isso teve sobre certos livros, mas, ao menos, em igual medida, o quanto também foi útil. O livro pertence ao autor”(pg. 457).

Max lidava da melhor forma com temperamentos tão distintos, sempre gentil e econômico. Não era dado a exibições, rechaçava elogios, e escondia a timidez no silêncio; os livros eram o refúgio para afastar-se do mundo das pessoas, ao menos as reais.

A exceção foi a relação platônica com  Elizabeth Lemmon. Durante a maior parte de sua vida, correspondeu-se com ela por meio de longas cartas, nas quais se abria de uma maneira singular. Ela era a sua confidente, a pessoa em quem mais confiava, e com quem, certamente, caso não tivesse casado com Louise Saunders, se uniria. Não houve qualquer relacionamento lascivo entre eles. Havia, sim, um envolvimento emocional, fraterno, que poderia se estender a outros aspectos, caso Max não fosse completamente leal à família. Algo verdadeiramente difícil, não impossível, nos dias atuais. Sobretudo, era um homem de caráter, princípios e, mesmo não havendo qualquer referência a algum relacionamento com Deus (algo que a esposa, nos anos derradeiros do casamento, aceitou, ao converter-se ao catolicismo), Max tinha em seu temperamento e atitudes um espírito cristão.

A relação entre Maxwell e Beth foi dedicada, honrada e sincera, mas nada a permitir “avanços” ou aventuras extraconjugais. O fato de Louise se dar bem com a “rival”, de se confraternizarem nos raros momentos em que a distância (os Perkins moravam em Connecticut, os Lemmon em Baltimore, distante 460 km) e a vida profissional exaustiva e compulsiva de Max permitiram.

Perkins mentoreou e obteve, para outros dos seus pupilos, grande sucesso, como Edmundo Wilson, Alan Paton, Erskine Caldwell, John P. Marquand, Marjorie Kinnan Rawlings, S.S. Van Dine, Ring Lardner, James Jones (autor de “A um Passo da Eternidade” e “Além da Linha Vermelha”),  Marguerite Young, e a lista cresce...

A coletânea de cartas, publicada em 1950, “Editor to Author”, descreve como foram os relacionamentos entre o gênio e seus gênios. Em especial, Perkins foi não somente o pai às filhas que amava devotadamente, mas também aos outros que adotou, quase gerou, e, enquanto pôde, protegeu, orientou e entregou-os ao mundo.

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FRASES:


“A melhor sensação que existe é a de ir dormir cansado”.

“Quanto mais é um homem, menos ele deseja”.

“A verdadeira escrita faz-se na cabeça, onde as impressões estão armazenadas, e faz-se com o olho e o ouvido. A agonia vem depois, quando passamos para o papel, mas isso pode tornar-se fácil se, através da leitura, soubermos como os outros o fazem.”

“A base genuína da amizade é ter um ou dois preconceitos em comum”.

“A obrigação mais importante da amizade é ouvir”.

“A verdade é que os melhores escritores não são aquele que, via de regra, fazem sucesso de imediato”.

“Creio, na verdade, que a melhor escrita é aquela que vem muito depois dos acontecimentos com que se relaciona, numa altura em que já houve assimilação e reflexão, e o autor consegue finalmente entendê-los por inteiro. É bom jornalismo aquele que é feito rapidamente enquanto tudo é novidade, mas essa não é a melhor escrita.”

“Mal posso crer, na verdade, mas prefiro fingir que é verdade”.

“Minha sensação é de que o primeiro compromisso do editor é para com o talento. E se não vamos publicar um talento como este (F. Scott Fitzgerald), a coisa fica muito séria”.

“A meu ver, a universidade é o lugar para o indivíduo se expandir, superar preconceitos, olhar para tudo através dos próprios olhos”.

“Os homens medem o sucesso social pelo tipo de clube a que pertencem”.

“Não existem duas moças iguais, como também nenhuma moça é a mesma, exceto por pura coincidência, em duas ocasiões diferentes”.

“Mesmo quando as pessoas estão totalmente erradas, não se pode senão respeitar os que falam com tal sinceridade passional”.

“Estou tentando dizer a um escritor e à sua esposa como ele deveria escreve. Não é engraçado, já que é uma coisa que eu mesmo não sei fazer? Cheguei até a lhe dar para escrever uma história que inventei — e ele ficou encanto com ela. É um bocado difícil falar a noite toda de coisas sobre as quais você não entende nada”.

“Quando o tumulto e a gritaria da turba de críticos e mexeriqueiros esmorecer, ‘O Grande Gatsby’ se destacará como um livro extraordinário”.

“Seria uma lástima o próprio significado de um livro tão original ser desconsiderado devido aos uivos de um bando de tagarelas mesquinhos, puritanos e idiotas”.

“Como esperar, me diga, que um homem entenda as mulheres?... Ou uma única mulher, que seja?”

“Tenho a ambição de pegar a estrada aos sessenta anos. As chances são mais ou menos de uma em mil de que isso venha a acontecer”.

“A forma como se ensina literatura e escrita na faculdade é prejudicial. Faz com que se adquira o hábito de ver tudo através de uma espécie de fotografia da literatura, em vez de captar o que está à volta através dos próprios sentidos. Diria que alguns anos num jornal, para alguém que ambicione ser escritor, é muito melhor do que alguns anos na faculdade”.

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Avaliação: (****)

Autor: A. Scott Berg

Editora: Instrínseca

Páginas: 544



15 maio 2025

O Demônio da Cidade Branca - Erik Larson

 





Jorge F. Isah



 Foi o primeiro livro de Erik Larson que li. A impressão, no geral, foi boa, pois ele descreve em detalhes os eventos históricos da "Grande Feira Mundial de Chicago", em 1893, concomitantemente com os ataques do primeiro serial killer americano, H. H. Holmes, na mesma Chicago e na mesma época.

 Primeiramente, ressalto a profusão de citações, a extensa bibliografia apontada, e fotografias que me pareceram oriundas de um trabalho historiográfico dispendioso, acurado e rigoroso. 

 Em segundo lugar, a narrativa se assemelha muito com os romances históricos, em voga nas últimas décadas. A diferença é que a obra se mostra claramente histórica, mas escrita em uma linguagem cativante, simples, íntima, onde as várias fases da feira (e da vida de seus realizadores), de Holmes e suas vítimas, se intercalam, favorecendo a leitura, tornando-a leve, didática, estimulante e mantendo um certo clima de suspense “noir”. Podemos encontrar as lutas, desejos, frustrações, rivalidades, cooperações, traições e tudo o mais que se pode ler em qualquer drama. Com isto, não estou dizendo que Larson desejou escrever um romance, não o é, ainda que se assemelhe em muitos pontos. Entretanto, ele se utilizou da linguagem "romancesca" para trazer leveza e criar empatia com o leitor. Ponto para ele. 

 Ao traçar um paralelo entre a Feira, Holmes e seus crimes, faz com que coisas diametralmente díspares, como a criação de um evento suntuoso e monumental, de caráter e apelo global, corram em paralelo à destruição provocada pelo “gênio” diabólico de Holmes. Alguém pode dizer que, em algum aspecto, o serial killer também era um criador, ao planejar e pôr em prática seus projetos bárbaros e atrozes. Bem, não entendo assim, e reputo Holmes como um homem com algumas habilidades e magnetismo pessoal, mas apenas os usando para a destruição, inclusive pessoal; e se para destruir é necessário "criar" algo, essa criação não passa de meios para a destruição, e não pode ser incluída no rol daqueles que constroem a beleza do nada, como é o caso dos grandes arquitetos David Burnham e F. L. Olmsted, entre outros, os gênios por trás da Feira de Chicago.

Se imaginarmos que a Feira abriu espaço para as maiores inovações tecnológicas, muitas das quais se tornariam imprescindíveis na sociedade moderna, como a eletricidade, tubos de vácuo elétricos iluminados por correntes sem fio, o telautógrafo (uma espécie de fac-símile primitivo), esteiras rolantes, o rádio e transmissões por ondas elétricas, equipamentos sonoros elétricos, a roda-gigante (criada para rivalizar com a Torre Eiffel, a principal atração da Feira de Paris, em 1889); e cientistas ilustres como Tesla, Edison, Bell, Gray; mais de 2 km quadrados de área iluminada, com réplica monumental de pirâmides, transatlânticos, colunas greco-romanas, tudo abarcado com o que de mais inovador e futurista a tecnologia podia reunir e proporcionar à época, temos um evento monumental e fascinante. 

Os visitantes das mais de 200 instalações se deslumbraram com a gigantesca, inusitada e profética demonstração do que viria a acontecer nas próximas décadas, em termos científicos, e a beleza incomum que os idealizadores da Feira ergueram e revelaram ao mundo. Chicago foi, durante a Feira Mundial, a antevisão do futuro naquele presente. 

Portanto, não dá para dizer o mesmo de Holmes, um psicopata, frio, dissimulado e covarde (inspirador de outros tantos malignos homens). Holmes era a antítese de Burnham e seus colegas, e, certamente por isso, Larson colocou-os lado a lado na narrativa; uma amostra ou lembrança, ou melhor, um alerta de que se existe criatividade construtiva, existe o labor para o mal e a deficiência. Neste sentido, Holmes foi um "criador" incompleto, negativo, cruel, fraco. Sem forças e talento para produzir o bem, contentou-se em destruir; e, durante o seu julgamento, tentou se passar por vítima, utilizando-se do delírio intelectual (presente em muitos acadêmicos e cientistas modernos), a fim de suprimir a realidade, distorcendo-a, na vã tentativa de enganar, se possível, alguns quanto à sua verdadeira imagem: um homem maldito, cruel e insensível!

Larson poderia ter reduzido em algumas dezenas de páginas a sua história, talvez não se entregando tanto a detalhes técnicos mais, digamos, enfadonhos. Entendo, contudo, que lhe pareceu necessário, a fim de poder aquilatar, um século depois, a grandiosidade e dispêndio criativo, econômico e de esforço, na construção da Feira das Feiras, a “World’s Columbian Exposition”, revelando a genialidade e o empreendedorismo humano.

Quanto a Holmes, aproveitando-se da ingenuidade e boa-fé das pessoas, utilizando-se do seu carisma para torturar e assassinar gente comum, colocou-o no rol dos maiores infames da humanidade e da história. De forma que, em meio ao brilho inventivo da arquitetura, física, engenharia e tantos obstáculos ultrapassados pela engenhosidade humana, temos a figura nefasta e torpe do primeiro serial killer e sua odiosa, e não menos feia e aterradora, "criação", fazendo jus ao título do livro. 

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Avaliação: (***)

Título: O Demônio na Cidade Branca

Autor: Erik Larson

Editora: Intrínseca

Páginas: 448

01 maio 2025

Diário de um Velho Louco - Junichiro Tanizaki

 




Jorge F. Isah

 

 

                Como o título denuncia, o livro foi escrito na forma de diário, pelo patriarca da família Utsugi. Quase um octogenário, impotente, com terríveis dores lombares e na mão, a gastar boa parte do dia com terapias, remédios e reclamações sem fim, é um homem relativamente culto, que gosta de teatro, poesias e domina muitas das tradições japonesas; é crítico, ácido, egoísta e despreza a família. Nutre antipatia pela esposa, velha como ele, as filhas e netos. Talvez a única pessoa a se relacionar pacificamente seja o filho Jokichi (talvez, e somente talvez, haja algum respeito por ele; não por ele, mas pelo que conquistou na vida. Mais adiante, entenderá), cujo distanciamento o mantém reservado a maior parte do tempo, não somente durante as inúmeras viagens a trabalho, mas também nas constantes reuniões que varam a noite. Utsugi quase sempre não se abstém de humilhar e escarnecer os demais membros, de maneira insolente e nada sutil. É rico, e isso o deixa senhor da situação, e evidência ainda mais o inconformismo que sente com a família e a vida.

    Nutre, contudo, uma obsessão pela nora, Sasaki, mulher de Jokichi. Como disse, se existe alguma inveja quanto ao sucesso do filho, provavelmente reside no fato dele ter amealhado o seu objeto de adoração. Sim, o velho tem fetiche pelos pés de Sasaki (ex-dançarina de clubes noturnos), os quais descreve com arrebatado deleite. Tudo faz para tocá-la e desfrutar dos parcos e raros momentos em que a esperta nora submete-se aos arroubos senis do vovô, assim chamado carinhosamente. Não sem cobrar o silêncio quanto as suas escapadas com o amante, Haruhisa, que o velho recebe em sua própria casa, e a presenteia com um anel valiosíssimo, em detrimento de, por exemplo, emprestar certa importância (muito inferior ao do anel) para a filha quitar o débito da casa. Talvez sejam vinganças de um louco, o homem que perdeu completamente a noção da razão e tem a sua consciência amortecida pela luxúria e traição, mas talvez seja o dane-se que a proximidade da morte pode se encarregar de exibir.

   Tanizaki descreve toda essa amálgama de desgraças de maneira burlesca e caricata, como se estivesse a brincar, ironizar as maluquices do velho e o assombro dos demais personagens. Existem cenas de nítido humor, um humor distendido, quase negro, permeado pelo ridículo e sarcasmo. Assim, a narrativa é fluída, simples e transmite com eficiência o clima picaresco e satírico da trajetória do ancião. A tragédia tem sempre elementos absurdos e espalhafatosos, e aqui não é diferente.

   Algumas pessoas reputam o livro como libertador, o frescor do sexo livre, sem amarras, e desse ser um traço da literatura japonesa não afeita aos rigores morais do Ocidente e, em especial, do Cristianismo, uma vez que o budismo e o xintoísmo são religiões mais, digamos, flexíveis quanto aos princípios. Será mesmo?... Não seria o contrário?  No sentido de o Japão ser um país muito mais apegado às tradições, à honra, à família, uma moral ainda mais palpável e elevada (no sentido de graduação) do que a nossa? Ou Sade, Diderot, Laclos, Boccaccio, Roma, Atenas e tutti quanti autores e palcos centenários e milenares escreveram e foram descritos em orgias e libertinagem? A comparação colocaria o personagem de Tanizaki como um velhinho inofensivo e bocó, mas ainda assim um hedonista, como outros em diferentes épocas e culturas. Porém, existem graus de imoralidade, de vícios, assim como virtudes e bondade. O homem, seja ocidental, oriental e, caso exista algum, marciano, é sempre o mesmo homem, indisposto ao bem e predisposto ao mal, ainda que o mal não se manifeste em toda a sua virulência, nem o bem algo inerente, mas fruto dos resquícios, conta-gotas, do Imago Dei. Sem entrar nos pormenores teológicos, do ponto de vista literário, o autor denuncia a degradação e o apodrecimento da sociedade japonesa, ao contrário da conclusão libertária que alguns, ou muitos, depreendem do livro. 

  O velho, culto e abastado, ao manter uma relação incestuosa com Sasaki, em seu ceticismo com o mundo e as pessoas, a vida, a morte e qualquer possibilidade de esperança, transforma-a em ídolo, a deusa não somente momentânea, mas da qual, inclusive, quer esculpir as formas exatas dos pés e colocar sobre o seu mausoléu, e substituir os símbolos religiosos pela sua própria deidade. E isso me leva a questionar se, no fim das contas, Utsugi não é o seu próprio deus a estabelecer os ritos do autoculto, autoveneração e autodevoção. E Sasaki não seria o sacrifício através do qual os seus súditos, a família, amigos e serviçais, conheceriam os caprichos de um deus idoso e caquético?

 Deparei-me também com a ideia de toda a narrativa não ser nada além de imaginação e delírio do velho safado (apropriação de Bukowski), em sua condição decrépita e caduca, já que a maior parte do livro é narrada por ele, à exceção de dois capítulos onde a enfermeira e o médico descrevem a sua particular condição. Seja ou não alucinação, a verdade é que Tanizaki compôs a face de um homem com a qual muitos podem se identificar, velho ou não, onde as consequências afetam não somente o indivíduo, mas todos ao seu redor, especialmente os que, por um motivo ou outro, tenham intimidade e convívio. Sem contar o pouco caso com aqueles a auxiliá-lo, a se preocuparem, independente da motivação. Convenhamos, ele é um velho esquisito, manipulador em sua obsessão tardia e caduca; depende de todos, mas arrasta-os consigo para a queda vertiginosa. 

Isolado em si mesmo, a sua excentricidade era impulso, de ser o que não podia mais ser, à cata de um elixir da vida e da juventude, onde, perdoe-me Cormac, os velhos ou fracos não têm vez!

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Avaliação: (***)

Título: Diário de um Velho Louco

Autor: Junichiro Tanizaki

Páginas: 208

Editora: Estação Liberdade

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