18 fevereiro 2024

Estudo sobre a Confissão de Fé Batista de 1689 - Aula 34: O poder soberano de Deus - Parte 2





Jorge F. Isah

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Introdução

Espero que os irmãos tenham lido o texto da semana passada, e possamos concluí-lo na aula de hoje.

Fazendo um pequeno resumo, analisamos a questão da soberania de Deus a partir de um diálogo entre um padre e um ateu em um banco de praça. Os irmãos se lembram do que foi discutido na última aula? Poderiam apontar um ou mais pontos debatidos?

O primeiro ponto que levantei foi o de que os nossos inimigos estarão sempre dispostos e armados para desestabilizarem a nossa fé, de forma a virmos descrer nos fundamentos que nos sustentam.

Segundo, analisamos alguns versículos que afirmam ser Deus poderoso para realizar tudo, até mesmo o impossível, mas nunca contra a sua vontade e natureza. De forma que tanto a sua natureza como vontade são os limitadores de Deus, que o impedem de realizar tudo que não esteja consoante com a sua vontade, sabedoria, santidade, justiça, etc..

Um ponto que não foi discutido naquela aula e que gostaria de tocar agora é quanto a essa disposição do incrédulo de nos perverter e desencaminhar da fé. O que os irmãos acham? Isso é possível? Um crente verdadeiro descrer ou deixar-se corromper pelo discurso mundano e, mesmo temporariamente, como Pedro diz, voltar ao próprio vômito? Sendo mais específico, um crente pode apostatar ou desviar-se, no sentido de voltar às mesmas práticas e à mente que tinha antes da conversão?

Leiamos os seguintes textos [1]:

Jr 32. 38-40: "E eles serão o meu povo, e eu lhes serei o seu Deus; e lhes darei um mesmo coração e um só caminho, para que me tema todo os dias para seu bem e o bem de seus filhos, depois deles. E farei com eles uma aliança eterna de não me desviar de fazer-lhes o bem; e porei o meu temor nos seus corações, para que nunca se apartem de mim".

Jo 10.28,29: "E dou-lhes a vida eterna, e nunca hão de perecer, e ninguém as arrebarará da minha mão. Meu Pai, que mas deu, é maior do que todos; e ninguém pode arrebatá-las da mão de meu Pai".

Jo 6.37: “Todo o que Pai me dá virá a mim; e o que vem a mim de maneira nenhuma o lançarei fora”.

Jo 17.2, 9: “Assim como lhe deste poder sobre toda a carne, para que dê a vida eterna a todos quantos lhe deste... Eu rogo por eles, não rogo pelo mundo, mas por aqueles que me deste, porque são teus”.

E, então, temos uma grande promessa do Senhor: “Pai, aqueles que me deste quero que, onde eu estiver, também eles estejam comigo, para que vejam a minha glória que me deste; porque tu me amaste antes da fundação do mundo” [Jo 17.24].

Fp 1.6: “Tendo por certo isto mesmo, que aquele que em vós começou a boa obra a aperfeiçoará até ao dia de Jesus Cristo”

I Pe 1. 3-5: "Bendito seja o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo que, segundo a sua grande misericórida, nos gerou de novo para uma vivia esperança, pela ressureição de Jesus Cristo dentre os mortos. Para uma herança incorruptível, incontaminável, e que não se pode murchar, guardada nos céus para vós, que mediante a fé estais guardados na virtude de Deus para a salvação, já prestes para se revelar no último tempo".

Terceiro, em dado momento, o ateu propõe uma “pegadinha” ao padre, um sofisma, o qual é: Deus pode criar uma pedra que não pode carregar? O padre afirma que sim, pode. E o ateu propõe que se Deus pode criar algo que não pode carregar, ele não é onipotente. E se ele não puder criar a tal pedra, também não é onipotente. Ao que o padre responde: “afinal, decida-se! Você quer que Deus crie a pedra ou que ele a carregue?". Na verdade, o ateu formulou duas afirmativas que se contradizem, o tal sofisma.

Quarto, E o padre ilustra o seu pensamento com o episódio da morte e ressurreição de Lázaro.

Continuemos de onde paramos na aula anterior; os comentários estarão sempre em itálico entremeados ao diálogo do padre e do ateu:


Deus pode criar, hipoteticamente, uma pedra que não possa carregar?

- Pois é. Como o senhor deve saber, quem pode o mais, pode o menos, ou seja, Jesus, de algum modo, poderia ter tirado a pedra, mas, também, de algum modo, não pôde fazê-lo. Ou seja, Deus criou aquela pedra e Deus não a pôde erguer.
O ateu não se deu por vencido:
- Bom, mas, como o senhor mesmo disse, Jesus poderia, sim, tirar a pedra, apenas não quis fazê-lo... Isso não é o mesmo que "não poder fazer".
- Mas, perceba: quando alguém pode tudo, pode, inclusive, limitar-se. Se não pode limitar-se, não pode tudo. Ademais, a sua dúvida está na onipotência de Deus, que Ele possa tudo e não que não possa alguma coisa... Se Ele não puder carregar a pedra, torna-se impotente, concorda?
O ateu sorriu como se o "rei" do padre estivesse, agora, fadado ao "xeque-mate”.
- Mas aí então, Deus não poderia criar uma pedra que não pudesse carregar...
- Mas é claro que pode, insistiu o padre:
Veja: Deus criou você para que você cresse nEle... mas você crê?
- Não, não creio.

O que os irmãos pensam dessa afirmação? Deus criou o homem para que cresse nele? De certa forma, sim. Acontece que no Éden, onde a humanidade caiu junto com Adão, a queda se deu exatamente por conta da descrença de Adão e Eva. Eles simplesmente duvidaram do que Deus havia lhes dito, preferindo crer no que o seu coração insensato dizia ou maquinava e na mentira da serpente.
Se Deus criou o homem para crer, ele não creu por si mesmo. O Éden prova isso. Para que o homem cresse, foi necessário que Deus operasse nele, de forma a mudá-lo e transformá-lo à imagem do seu Filho Amado.
Veja bem, todos os homens têm em si fragmentos de Deus, o Imago Dei, contudo esses fragmentos não revelam a condição pecaminosa e caída do homem, nem o seu estado de rebelião e desprezo a Deus, nem a necessidade de arrepender-se e reconciliar-se com Deus. Isso somente é possível pela ação do próprio Deus, regenerando o homem, o qual, então, estará ligado a ele, em constante transformação, santificação, para, enfim, naquele glorioso dia ser semelhante ao homem perfeito: Jesus Cristo.
Todos os homens, sem exceção, são descrentes, e nasceram em descrença. Aprouve a Deus chamar uma parte deles à fé, à crença em Deus, que se dará a partir da ação regeneradora e santificadora do Espírito Santo. De forma que, se Deus quisesse que todos os homens cressem nele, eles creriam, e se não crêem é porque Deus não criou a todos para crer, mas antes, ao menos no princípio temporal da vida de cada um, criou-nos para descrer. Cremos somente pela pregação do Evangelho, o qual o Espírito Santo usará para nos revelar a nossa condição e a necessidade de arrependimento, de se pedir perdão a Deus pela nossa condição incrédula e ofensiva diante dele.
Esta visão do padre, na verdade, antes de exaltar a soberania de Deus, revela que ele é um ser limitado por conta de suas criaturas, e que criou para si mesmo limitações exteriores, que de alguma forma alteram a sua essência, impedindo-o de ser o que é. Como a Escritura nos afirma que Deus é imutável, ele não pode, em hipótese alguma, ter limitações que não sejam estabelecidas por sua natureza santa e perfeita ou por sua vontade igualmente santa e perfeita, eternamente.
Um exemplo que se dá é de que Deus poderia criar vários mundos, inclusive perfeitos. E é uma verdade. Acontece que encontramos apenas um mundo, o qual ele considerou bom, e de que esse é o único mundo possível; e assim ele quis. Qualquer hipótese de outros mundos criados estará sempre circunscrita à vontade divina de criá-los, sem a qual, nada pode vir a ser. E a vontade divina tem por propósito uma única coisa, a meu ver: a Sua glória! Que é revelada, entre outras coisas no todo poder com que ele realiza a sua vontade: na criação, na sustentação da criação, na redenção do homem, na preservação, santificação, e no reino eterno de Cristo, que não terá fim. Pois nada há que possa satisfazê-lo além de si mesmo, e tudo o que criou somente o satisfará se for realizado segundo a sua vontade. Logo, a vontade divina é a causa primeira, e o homem, ao rejeitá-la, ataca exatamente esse ponto inatacável [2].
Se Deus criou o homem para crer nele, e esse homem não crê, há um conflito de vontades e interesses, e o que temos é a vontade divina subjugada à vontade humana, estando essa prevalecente em relação àquela. Mas isso é viável? Claramente a Bíblia afirma que não. Deus se satisfaz em realizar a sua vontade, e ela acontecerá infalivelmente, sendo que Deus jamais se frustrará. 

- Pois é, continuou. Deus criou a sua liberdade e não pode removê-la, pois se auto-impôs esse limite. Com efeito, Deus pode tudo porque pode, inclusive, dizer o que não pode fazer. Quando alguém pode dizer o que não pode fazer, embora o possa, é porque, de fato, pode tudo.
O ateu agora estava em silêncio...
O padre pegou no seu ombro e concluiu:
Assim como a pedra que prendia Lázaro, a sua liberdade é algo que Deus criou, mas por uma auto-limitação, não se permite mover. A sua liberdade, meu amigo, é a pedra que Deus criou e que não pode mover.
Dizendo isso, afastou-se do ateu que permanecia pensativo no banco da praça, alheio à chuva mansa que se iniciara.
Lister Leão

Na verdade, Deus não pode criar uma pedra que não possa carregar, pois ele pode tudo, tanto criá-la como carregá-la. A proposição do ateu é simplesmente absurda, ilógica, e impossível, pois Deus estando fora da realidade da pedra, e como criador dessa realidade, simplesmente não tem qualquer limitação, nem mesmo a de se autolimitar em relação ao mundo exterior, à criação. A autolimitação divina está circunscrita à sua natureza santa e perfeita e à sua vontade. Nada mais pode impedi-lo ou restringi-lo. Nem mesmo a suposta liberdade que o homem diz ter, e que, em algum aspecto, seria limitadora da vontade de Deus. Porque Deus é Deus, e não pode deixar de sê-lo [Dt 4.35; Sl 100.3].
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Notas: [1] Textos analisados mais detidamente no áudio da aula, bem como a questão da justiça e bondade divinas.
[2] Novamente indico o texto "Deus não tem escolhas", o qual pode elucidar de maneira mais satisfatória o que estou apenas a discorrer preliminarmente aqui.
[3] Aula realizada no Tabernáculo Batista Bíblico 
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ÁUDIO DA AULA 34:

15 fevereiro 2024

Irmão Marx: três que valem por cinco

 



                 Os Irmãos Marx juntos com Charles Chaplin e Buster Keaton formam, provavelmente, o triunvirato do humor cinematográfico, os verdadeiros reis da comédia. Se Keaton era um ator excepcional e fazia rir sem mudar o menor traço em suas feições (o oposto dele seria Jerry Lewis, outro grande comediante), Chaplin era um mímico formidável, e The Brothers Marx  eram o verdadeiro caos, a babel instalada nos palcos e na tela, porém com uma precisão incrível. Todos vieram de famílias que trabalhavam no mundo do entretenimento, mais especificamente o gênero vaudeville (no Brasil, algo do tipo mambembe), cujos limites não estavam restritos à simples interpretação mas também afeito ao estilo circense, sendo, portanto, bastante popular na Europa e América, e incluía músicas, danças, animais treinados, acrobacias, mágicas, e tudo o que pudesse fazer a diversão dos espectadores, inclusive a comédia, certamente o ponto alto dos shows.

                Nesse ambiente os Irmãos Marx foram introduzidos, ou melhor, estavam inseridos, portanto nada mais natural foi seguir os passos da mãe e do tio (Abraham Elieser Adolf Schönberg que adotou o nome artístico Al Shean), e desenvolver habilidades para os palcos. Aprenderam música, tornaram-se instrumentistas, interpretes, eram palhaços, acrobatas, quase tudo apreendido de maneira intuitiva, assistindo a repetição exaustiva dos mais velhos, entregando-se ao exercício de imitar e reproduzir-lhes as performances, e assim aprimorar esses estilos.

                Nascidos em Nova York, filhos de imigrantes judeus (a mãe era alemã, de Dornum, Frísia Oriental, e chamava-se Minnie Schoenberg, e o pai, Samuel Marx, francês, de Mertzwiller, uma aldeiazinha na Alsácia), fizeram boa parte das apresentações do início de carreira na cidade, principalmente na região onde moravam, Upper East Side, bairro formado por imigrantes irlandeses, alemães e italianos.  Diz a lenda, que o pai, “Sam”, era melhor cozinheiro do que alfaiate, profissão que abraçou a fim de sustentar a família de forma regular, pois o teatro, cheio de altos e baixos, nem sempre era suficiente para custear as despesas.

                                

                                          Minnie Marx com os netos Maxine e Arthur                                   “Sam” Marx e os filhos Zeppo, Chico, Groucho e Harpo

                                                                                                                             
                                      Sam e Minnie tiveram seis filhos e uma filha adotiva. O primogênito, Manfred (Manny), morreu aos sete meses de enterocolite com astenia, em 1886. Os demais, em ordem cronológica, e a origem provável dos seus cognomes, foram:

                Chico nasceu Leonard Marx, em 22.03.1887, e existem duas hipóteses para o apelido. A primeira, por perseguir as “galinhas” ou garotas fáceis em seus tempos de adolescente. Então, nada mais simples do que chamá-lo de Chico (pronuncia-se Chick-o), derivado de “Chicken” em inglês. A segunda, se deve ao seu significado em italiano, garoto ou rapazinho. Muitos relatos dão conta de ser ele o preferido da matriarca, Minnie (na certa por vir após a morte de Manny), e geralmente causava ciúme em Groucho.

 


               Harpo nasceu Adolph Arthur Marx, em 23.11.1888. A origem do apelido é bem mais simples, pois vem do seu virtuosismo em tocar Harpa, que aprendeu sozinho, pois a família não dispunha de recursos para pagar um professor.



 Groucho nasceu Julius Henry Marx, 02.10.1890. Ele usava sempre uma bolsa dependurada ao pescoço, chamada de “grouch bag”, onde levava moedas e outras quinquilharias. Daí a origem do apelido.



 Gummo nasceu Milton Marx, em 23.10.1892. Seu apelido é mais simples e advém dele sempre estar mascando chicletes ou goma, “gum” em inglês. Alguns sugerem também ser pelo fato dele usar galochas de borracha.



 

                Zeppo nasceu Herbert Marx, em 25.02.1901. Consta que o apelido se deve à primeira viagem do dirigível Zeppelin à América coincidir com o seu nascimento.



                 Polly, a irmã mais velha, era uma prima que o casal Marx adotou desde a mais tenra idade, nascida em janeiro de 1885.

                 


                                                                                                  A família Marx nos primórdios em N.Y.

                         No início, estabeleceram-se como músicos, algo que os pais estimularam desde cedo. Minnie nutria o desejo de vê-los progredir e prosperar no teatro, e, quem sabe, alcançarem a fama e realização que lhe faltou como artista. Tratou logo de empresariá-los, promovendo-os em pequenos palcos e viagens pela América. Chico tocava piano como ninguém jamais tocara. Sua mãe lhe dava 5 cents semanais para o pagamento das aulas, mas ele os gastava em apostas, e acabariam por levá-lo à miséria, se não fosse a ajuda sistemática de Harpo e Groucho.  Harpo era exímio harpista, talentoso até mesmo para os moldes eruditos da época, e chegou a tocar bem mais outros cinco instrumentos. Groucho violonista e cantor. Em 1907, Groucho e Gummo apresentavam-se como cantores, ao lado de Mabel O’Donnel; formavam o “The Three Nightingales”. Um ano depois, Harpo se uniu ao grupo, sendo o quarto “rouxinol”. Em seguida, o grupo foi rebatizado para “The Six Mascots”, com a adesão da mãe Minnie e da tia Hannah, mas não durou muito. Entretanto, em 1912, quando se apresentavam em uma cidadezinha do Texas, foram interrompidos pelos gritos histéricos a respeito de uma mula. O público saiu para ver o que estava acontecendo. Groucho então, furibundo, quando a plateia retornou, fez comentários sarcásticos: “Aqui está cheio de baratas” e “o burro é a fina flor do Tex-burro”. Todos caíram em gargalhadas. A família percebeu a veia cômica e aumentou os quadros humorísticos, com o tempo, em suas exibições musicais. Estava aí a grande virada, e sacada, na carreira dos Marx.

                                                  Os “Seis Mascotes”                                                                                             O’Donnel e Groucho

Poster publicitário em que Harpo já se encontra integrado aos Nightingales

                   Por essa época, quando a comédia ganhou cada vez mais destaque nas apresentações musicais dos Marx, os seus personagens foram se aprimorando e ganhando as características a torná-los em grande sucesso, primeiro, nos teatros e cabarés e, por fim, na Broadway, depois as telas dos cinemas. Groucho começou a usar o bigode pintado toscamente e o andar curvado. Chico, sempre envolvido com garotas, brigões e jogos, desenvolveu seu personagem para um trambiqueiro incorrigível e detentor de um falso sotaque italiano. Harpo, optou pelo mutismo, adotou as buzinas e a mímica incomparável como forma de se expressar. Curioso notar o fato de Harpo decidir não falar mais porque suas falas não faziam sucesso nos palcos.  E o caminho, não tão óbvio mas sábio, foi o mutismo. Zeppo era o galã, o mocinho a encantar as donzelas, servindo de “escada” para os demais irmãos. Ele substituiu Gummo na trupe quando eclodiu a I Grande Guerra, e Gummo foi chamado a servir no exército. Na verdade, detestava atuar e considerava qualquer coisa, até ir para o front, melhor.  Pode se ver, portanto, que muitas das características dos personagens se assentavam em suas personalidades e traços peculiares.

                                 Em 1920 eles haviam se tornado célebres no teatro americano, por conta do humor ácido, perspicaz e singular, ao mesmo tempo esquisito e original. Sob a batuta de Chico e Groucho, que gerenciavam toda a parte artística dos espetáculos, enquanto Minnie cuidava de agenciá-los e promovê-los, rapidamente se tornaram estrelas na Broadway. Minnie, para não ser associada à mãe da trupe, alterou o nome para “Minnie Palmer” e assim enganar quem os pudesse contratar. Daí para o cinema, foi um passo. O primeiro contrato veio com os estúdios Paramount, onde ficaram de 1929 a 1933, realizando cinco filmes. O primeiro deles foi “Cocoanuts” (Hotel da Fuzarca), e o último “Diabo a Quatro” (Duck Soup), sendo considerado o melhor dessa fase. Zeppo deixaria o grupo disposto e não mais atuar, assim como o irmão Gummo, e ambos criaram uma das maiores agências de talentos da época, em Hollywood.

 

            Pelas mãos do produtor Irving Thalberg, com quem Chico jogava cartas todas as noites, se transferiram para a MGM, e acrescentaram ao seu humor anárquico, a pedido de Thalberg, uma forte estrutura narrativa, a torná-los mais simpáticos. Em meio à comédia, mesclaram tramas românticas, números musicais sérios, e o embate com vilões óbvios, tornando-os mais acessíveis ao público acostumado à dicotomia em outros artistas da época.

                                                                         Foto dos Irmãos Marx ainda como quarteto


 Dessa época são: Uma noite na Ópera (A Night At The Opera, de 1935) e Um Dia nas Corridas (A Day at the Races, de 1937), películas onde a produção conseguiu explorar as muitas habilidades dos três irmãos, arrancando risadas incontroláveis das plateias mundo afora. Foi durante as filmagens do último que uma tragédia se abateu sobre os Marx: Thalberg morreu de pneumonia, em 1936, e a parceria foi subitamente interrompida. Groucho foi categórico ao dizer que os dois melhores filmes realizados por eles foram sob a batuta de Thalberg. Em 1937, saíram da MGM e foram para RKO.

 

                                                                                                     Thalberg com The Brothers Marx

 A curta passagem pelo novo estúdio resultou em um único filme, “Room Service”, de 1938, quando retornaram à MGM para mais três filmes:  At the Circus (1939), Go West (1940) e The Big Store (1941). Neste último, Chico e Harpo sentaram-se ao piano e interpretaram “Mamãe eu Quero”, sucesso brasileiro de 1937, composta por Vicente Paiva e Jararaca, tornada mundialmente conhecida pelas mãos (e voz) de Carmen Miranda.

 

                                                                                Cena de “Room Service”, da RKO

 Antes do lançamento do último filme, os irmãos anunciaram que o grupo se dissolveria e estavam abandonando as telas. Entretanto, em 1945, devido aos constantes e sérios problemas financeiros de Chico, proveniente de dívidas de jogo, os dois remanescentes foram convencidos a filmar novamente. Assinaram com a United Artists: Uma Noite em Casablanca (1946) e Loucos de Amor (1949), quando definitivamente aposentaram a trupe.

Nos anos seguintes, fizeram aparições individualmente e em duplas, nos teatros, cassinos, rádio e eventualmente na TV. Groucho firmou-se como apresentador do programa You Bet your Life, até o início dos anos 1960.

Eles não atingiram a fama de Chaplin, Stan e Laurel ou dos Três Patetas, mas certamente influenciaram e inovaram as comédias, com um jeito despojado, fora dos padrões da época, as vezes ingênuo mas nunca inocente. Fizeram rir multidões, e ainda fazem. Influenciaram gerações e gerações de comediantes que não se cansavam de citá-los como referência, de Woody Allen a Mel Brooks, de John Cleese aos Monty Python, passando por Alan Alda e Elliot Gould, David Zucker e Jim Abrahans.

Não vale a pena deixar as datas de suas mortes pois Os Irmãos Marx, em sua singularidade, são eternos. E as provas estão aí: pode-se assistir as suas comédias na Tv, ou comprar boxes de seus filmes digitalizados, até mesmo em Blu-Ray.

Aprecie, sem moderação!


 Da esquerda para a direita: Harpo, Zeppo, Chico, Groucho e Gummo. Foto sem data. Provavelmente em fins dos anos 1950.

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Frases de Groucho Marx


“Não entro para clubes que me aceitam como sócio.“

“Eu nunca esqueço uma cara, mas no teu caso ficarei satisfeito em abrir uma excepção.“

“A sinceridade e a honestidade são as chaves do sucesso. Se puderes falsificá-las, estás garantido.“

“Acho a televisão muito educativa. Toda as vezes que alguém liga o aparelho, vou para outra sala e leio um livro.“

“A política é a arte de procurar problemas, encontrá-los em todos os lados, diagnosticá-los incorretamente e aplicar as piores soluções.“

“Eu pretendo viver para sempre, ou morrer tentando.“

“Se acredito na vida após a morte? Não sei nem se acredito na vida antes da morte! Acho que acredito na morte durante a vida“

“Eu tenho princípios. Se você não gosta desses, eu tenho outros.“

“A filosofia é a ciência que nos ensina a ser infelizes da maneira mais inteligente.“

“Há muitas coisas na vida mais importantes que o dinheiro, mas custam tanto…“

“Eu não posso dizer que não discordo de você.“

“As noivas modernas preferem conservar os buquês e jogar fora seus maridos.“

“O humor é a razão a enlouquecer.“

“Nenhum homem desaparece antes do seu tempo - a não ser que o seu chefe saia primeiro.“

“Você prefere acreditar em mim ou em seus próprios olhos?”

“Eu não sou vegetariano, mas como animais que são.”

“Entre uma mulher e um charuto, escolherei sempre o charuto.”

“Foi um juiz que me casou. Eu deveria ter pedido um júri.”

“Ele pode parecer um idiota e até agir como um idiota, mas não se deixe enganar: é mesmo um idiota!”

“Eu quero ser cremado. Um décimo das minhas cinzas devem ser dadas ao meu agente, assim como está escrito em nosso contrato.”

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Nota: Texto publicado originalmente na Revista Bulunga

10 fevereiro 2024

Estudo sobre a Confissão de Fé Batista de 1689 - Aula 33: O poder soberano de Deus - Parte 1







Jorge F. Isah
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Durante a semana, recebi através do twitter este texto, e como estava preparando esta aula, achei providencial analisá-lo, pois ele trata exatamente do mesmo assunto ao qual daremos continuidade no estudo da C.F.B. Pensei que seria uma boa oportunidade para discutirmos a questão de uma maneira, digamos, mais prática, e uma chance de mudar um pouco o curso de como estamos a estudar. Será feita a leitura do texto, e os comentários estarão entremeados a ele, em itálico.
Então, sem mais delongas, vamos à leitura e análise do texto, o qual é:


Deus pode criar, hipoteticamente, uma pedra que não possa carregar?

O ateu se acomoda no banco da praça, olha sobre o ombro e percebe que há um jovem padre amarrando os sapatos.
- Com licença... O senhor é Padre?
O jovem ergue as sobrancelhas com admiração! [como não reconhecem um clérigo de batina nos dias de hoje?]
- Sim, sou, respondeu o padre ajeitando-se no banco, exibindo o clergyman e um sorriso irônico.
- O senhor ainda crê mesmo? O senhor...
- Sim creio... E o senhor, não crê?...
- Acostumei-me a tolerar a ignorância dos homens...
- Então, temos algo em comum... Revidou o padre, olhando o relógio.

Um minuto... Temos aqui, inicialmente, uma conversa entre o padre e um ateu em um banco de praça. O que se percebe é que o jovem avistou o clérigo e provocou-o com uma questão. Até então, o padre sequer havia notado ou percebido a presença do ateu, mas este percebeu-o e dirigiu-se a ele, inquirindo-o. É importante saber que os nossos inimigos estarão sempre lado a lado conosco, nos tentando. Pedro nos advertiu de que o diabo está ao nosso redor à espreita, buscando a quem possa tragar. Igualmente, os seus servos também querem demover-nos da fé, de forma que reneguemo-la; fruto, primeiramente, do ódio e desprezo a Deus e que se transfere de alguma maneira para nós. 
Uma das formas mais usuais deles é a argumentação sutil, cavilosa, sofismática, de maneira que fiquemos numa posição de dúvida. Devemos, portanto, estar preparados para, onde estivermos, seja no trabalho, na escola, no lar, entre amigos, parentes e vizinhos, e até mesmo dentro da igreja, saber que seremos confrontados por pessoas que são instrumentos do inimigo, e eles próprios inimigos de Deus, para nos tentar. O que o padre está sofrendo é uma tentação. Pode parecer apenas uma conversa trivial, mas ele está sendo tentado pelo ateu. 
Continuemos...

Dobrando o jornal que estampava a figura do último show de rock, troca as pernas numa cruzada e, olhando para o padre, pergunta:
- Como pode crer no que foge à lógica?
- O que não é lógico em crer?
- Muita coisa... Por exemplo: o senhor deve crer que Deus tudo pode...
- Sim, não é só verdade que creio, como é verdade que Ele tudo pode.

Rapidamente o ateu chega ao ponto principal do seu intento: afirmar que a fé não é lógica, a partir de uma pergunta capciosa: Deus tudo pode? 
Sabemos que esta é uma verdade bíblica, e de que ela está presente em uma série de versos, como tais:
Jó 42.2: “Bem sei eu que tudo podes, e que nenhum dos teus propósitos pode ser impedido”
Mt 19.26: “E Jesus, olhando para eles, disse-lhes: Aos homens é isso impossível, mas a Deus tudo é possível” [1].
Lc 1.37: “Porque para Deus nada é impossível”
Sl 47.2-3: “Porque o Senhor Altíssimo é tremendo, e Rei grande sobre toda a terra. Ele nos subjugará os povos e as nações debaixo dos nossos pés”
Sl 97.2-5 - "Nuvens e escuridão estão ao redor dele; justiça e juízo são a base do seu trono. Um fogo vai adiante dele, e abrasa os seus inimigos em redor. Os seus relâmpagos iluminam o mundo; a terra viu e tremeu. Os montes derretem como cera na presença do Senhor, na presença do Senhor de toda a terra"
Não devemos nunca temer os ataques dos inimigos quando estamos diante da palavra do Senhor. Ela deve ser buscada sempre, consultada nos momentos em que mais temos dúvidas. Eu trouxe este texto pois é uma situação que pode acontecer com qualquer um de nós, e não devemos nos turbar, mas estar preparados, como já disse. Somos questionados o tempo todo em nossa fé, e há uma ação do mundo em fazer-nos parecer tolos ou ultrapassados, ou revelar que a nossa crença é algo insano ou fruto da ignorância. Jamais nos esqueçamos de que a Escritura não tem apenas aspectos doutrinários, mas ela nos orienta a tudo: desde como viver com as demais pessoas até como deve ser o nosso relacionamento com Deus. Ela nos revelará toda a vontade de Deus para a nossa vida, não somente como uma crença mas como a forma correta e santa de se viver, seja em qual tipo de relação estivermos; e assim glorificaremos a Deus em todas as coisas e aspectos, não somente nos momentos em que estamos na igreja.
Nesse Salmo temos descrito o poder de Deus. O salmista se utiliza de uma linguagem poética para descrever o poder absoluto de Deus. Deus reina absoluto sobre todas as coisas. De forma que nada é impossível para Deus, pois ele tem o poder de fazer qualquer coisa. Mais a frente, entenderemos que o poder de Deus é absoluto, mas limitado em alguns aspectos. Fiquem tranquilo, não estou a proferir nenhuma heresia, nem aderi repentinamente à Teologia do Processo ou Relacional, na qual se prega um "Deus" limitado, frágil e titubeante como o homem é... um "Deus" feito à semelhança humana. Não é isso. 
Prossigamos...

-Então, me responda... Deus pode criar, hipoteticamente, uma pedra que não possa carregar?
- Sim. Claro!
O ateu ficou surpreso pela resposta instantânea do sacerdote. E julgando que tivesse sido apressado, tentou explicar a pergunta:
- Mas, veja: Se Deus pode tudo e pode criar algo que não possa erguer, no fim ele não pode tudo, porque não poderá erguer a pedra.

O inimigo lança então o seu o ardil; e penso que devemos ter cuidado com as respostas instantâneas. Ele proferiu uma "pegadinha" com o objetivo de colocar o padre em contradição ou mesmo ridicularizá-lo, de forma que ele se envergonhe da sua fé. Quando estivermos diante de questões que não conhecemos ou de discussões que não passaram por nossa mente, nem foram alvos dos nossos estudos, o melhor a fazer é calar-se, evitando ser imprudente. Está escrito que até o tolo, em silêncio, parece sábio. Se estamos diante de questões que não refletimos, nem cogitamos refletir [e sempre devemos ter em mente que todas as questões devem ser meditadas à luz da Escritura], a nossa resposta deve ser: não sei! Não há pecado em não se saber algo. Muitas vezes, por causa do nosso orgulho, somos tolos o bastante para cair nas armadilhas que nos são postas, como se fosse uma obrigação ter uma resposta para tudo. É necessário saber que não temos, e jamais teremos. O apelo racionalista é de que eles têm, quando não têm. E o fato de não termos, aos olhos deles, nos tornam inferiores, quando reconhecer a nossa limitação é sábio e não o contrário. 
Pedro diz que devemos estar sempre prontos a mostrar a razão da nossa fé. E qual é ela? Ora, o Senhor Jesus Cristo. E isto podemos mostrar e revelar para qualquer pessoa em qualquer situação. Falar que ele nos resgatou, nos livrou da perdição, nos ligou novamente a Deus, que transformou a nossa mente e nos fez novas criaturas, isto podemos falar o tempo todo para qualquer pessoa. Ao invés de darmos atenção para pegadinhas como a proferida pelo ateu, a qual é absurda e não quer dizer nada. O único objetivo dele é confundir e fazer o padre desacreditar a sua fé; e devemos ser prudentes diante de situações como essas. 
Mas o que pensam do fato de a Bíblia dizer que Deus pode criar até mesmo o impossível, pois para ele, nada é impossível? Deus pode criar absurdos? Ou criar algo que não esteja conforme a sua vontade? Não seria a sua vontade o limitador para que Deus crie qualquer coisa? Há limites para Deus?... Sim!
Deus, por exemplo, não mente:
- Nm 23.19: “Deus não é homem, para que minta; nem filho do homem, para que se arrependa; porventura diria ele, e não o faria? Ou falaria, e não o confirmaria?” 
- 1 Sm 15.29: “E também aquele que é a Força de Israel não mente nem se arrepende; porquanto não é um homem para que se arrependa." 
Deus não pode mudar: 
- Sl 102.27: “Mas tu és o mesmo e os teus anos nunca terão fim” 
- Is 48:12: “Dá-me ouvidos, ó Jacob, e tu, ó Israel, a quem chamei; eu sou o mesmo, eu o primeiro, eu, também, o último” 
- Ml 3:6 “Porque eu, o Senhor, não mudo” 
- Hb 1:12 ”E como um manto os enrolarás, e como um vestido se mudarão, mas tu és o mesmo, e os teus anos não acabarão” 
- Hb 13.8: “Jesus Cristo é o mesmo, ontem, e hoje, e eternamente” 
- Tg 1:17 :“Toda a boa dádiva e todo o dom perfeito vêm do alto, descendo do Pai das luzes, em quem não há mudança nem sombra de variação.” 
Então temos que Deus pode fazer tudo, mas ele fará tudo segundo a sua natureza e vontade, de forma que mesmo sendo o Deus do impossível, e devemos entender que isso se refere ao que ele pode fazer como possibilidade, mas não ao que ele pode fazer indo contra a sua natureza, pois tanto a santidade, como a justiça e a perfeição impedem-no de praticar o mal, por exemplo, ou de pecar.
Outro exemplo está em Mt 3.9, em que João o Batista diz, falando aos fariseus: “E não presumais, de vós mesmos, dizendo: temos por pai a Abraão; porque eu vos digo que, mesmo destas pedras, Deus pode suscitar filhos a Abraão”.
É claro que o objetivo principal do profeta era derrubar a arrogância e soberba dos fariseus, comparando-os com as pedras do rio Jordão, mas há nesse verso a verdade de que Deus realmente pode tudo, mas isso não quer dizer que ele fará tudo, pois o fará segundo a sua natureza santa e perfeita, e segundo a sua vontade igualmente santa e perfeita [Is 46.10: "Que anuncio o fim desde o princípio, e desde a antiguidade as coisas que ainda não sucederam; que digo: o meu conselho será firme, e farei toda a minha vontade”]...

O ateu ficou surpreso pela resposta instantânea do sacerdote. E julgando que tivesse sido apressado, tentou explicar a pergunta:
- Mas, veja: Se Deus pode tudo e pode criar algo que não possa erguer, no fim ele não pode tudo, porque não poderá erguer a pedra.
O padre se ajeitou no banco novamente e, apoiando os braços sobre as pernas, explicou:
- O senhor propõe que Deus faça duas coisas contrárias: criar algo que não possa carregar e, ao mesmo tempo carregá-la. Parece que o senhor ainda não decidiu o que quer que Deus faça... Há um problema na sua pergunta, uma armadilha sofística... Mas, de qualquer modo: Ele pode, sim, fazer ambas as coisas.

Deus não pode tudo? Se ele pode tudo, pode criar qualquer coisa, mas temos de entender que ele fará tudo conforme a sua vontade. Ele não tem de provar nada para nós, muito menos provar-nos o seu poder, pois ele o tem inerente ao seu ser.
Mas a questão é que o ateu propõe uma “pegadinha” e formula algo contraditório: Se Deus pode tudo, pode criar uma pedra incapaz de movê-la; mas se ele não pode movê-la não é onipotente nem todo-poderoso. Ele formulou duas afirmativas que se contradizem, o que é chamado de sofisma, que é um raciocínio falso com a intenção de enganar, ludibriar, de induzir alguém ao erro.
Na verdade, Deus não pode criar uma pedra que não possa carregar, pois ele pode tudo, inclusive carregar algo de massa e peso inimaginável ou mesmo impossível de se carregar por qualquer outro ser, menos ele, que, novamente afirmo, pode tudo, sendo a exceção aquilo que vá contra si mesmo, contra o seu ser perfeito. A característica de um poder absoluto não é fazer tudo o que se pode fazer sem critérios ou juízo. O poder absoluto denota autoridade, e Deus é uma autoridade sábia, perfeita e santa, que não fará sandices, nem agirá ilógica e desproporcionadamente. O poder absoluto de Deus se refere ao fato dele ser o ser supremo sobre tudo e todos, mas também de que ele é absoluto em perfeição e santidade e justiça e sabedoria. Fazer algo insano é impossível para Deus. Fazer algo despropositado, também. Então temos que Deus tem limites sim, circunscritos à sua natureza e vontade, ou seja, aos aspectos intrínsecos do seu ser, pois se assim não fosse, ele iria contra si mesmo...

O ateu franziu a testa, com curiosidade. 
Continuou, então, o padre:
- Deus criou essa pedra. Ela existe... Ou pelo menos existiu:
Quando Jesus ressuscitou Lázaro, está lá nos Evangelhos, Ele ordenou que tirassem a pedra para que Lázaro viesse para fora... Ora, para o senhor, o que é mais fácil? Trazer um morto à vida ou retirar uma pedra?
- Em tese, trazer o morto à vida...

Na próxima aula, continuaremos a meditar sobre este texto.

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Notas: [1] Este e outros trechos são analisados mais detidamente no áudio.
[2] Aula realizada no Tabernáculo Batista Bíblico.
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                 ÁUDIO DA AULA 33: 

04 fevereiro 2024

Nada de Novo no Front - Erich M. Remarque

 



Jorge F. Isah

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Este livro estava em minha lista já havia um bom tempo, na verdade, quase uma década. É interessante como fazemos relações dos itens a ler no ano seguinte e, ao término dele, muitos títulos foram abandonados, substituídos por outros ou simplesmente ignorados. Assim foi com “Nada de novo no front”, de Erich Maria Remarque.

E o que dizer?

O autor nos fisga com uma narrativa ao mesmo tempo cínica, humanista e transparente dos horrores da guerra; sem heróis, sem vilões, sem princípios ou razão, sem nobreza ou virtudes. Se existe algo a aprovar e contemplar seriam as relações interpessoais, a cumplicidade, o auxílio mútuo, as almas engatadas ao intento comum de sobreviver e tornar-se, um dia, página virada na história geral mas também individual... A despeito dos motivos históricos, da soberania das nações, das provocações e tudo o mais a conflagrar as guerras, a estupidez e malignidade do “espetáculo” não é casual ou imprevisto, mas meticulosamente programado. O erro, se assim pode-se dizer, está em nenhum dos lados admitir a derrota, mesmo que seja iminente e também precisamente calculada. Talvez, por isso, Remarque não perca tempo descrevendo a motivação ou incidentes a suscitar a guerra. Qualquer que seja, não existe razão a não ser a natureza diabólica do homem em destruir e ansiar o caos em sua forma mais organizadamente desvairada.

O livro é pacifista. O pano de fundo é a 1ª Grande Guerra. O autor, ele mesmo, em sua juventude, foi para a frente de batalha a defender a loucura dos loucos. E o realismo da narrativa se baseia essencialmente em suas experiências no front, entre explosões, ricocheteios, sangue, ratos, gases, doenças, mortes e tudo o mais a envolver a sanha encarniçada humana.

Um grupo de garotos, na faixa dos 20 anos, se vê na frente de batalha, a empunhar um rifle que, de tão gasto, já não conserva a mira correta e acaba, como o personagem principal relata, por abater os soldados do próprio pelotão. As condições são miseráveis. A Alemanha está às portas de perder a guerra que começou, e os recursos são escassos: comida, medicamentos, armamentos, munições, e sem dispor das técnicas mais modernas de combate. Se vê irremediavelmente suplantado pelos britânicos e americanos; mesmo assim, recusa-se a encarar a previsível derrota e alista mais e mais soldados em idade cada vez mais tenra, lançando-os sem qualquer treinamento prévio nas trincheiras e campos onde são dizimados às centenas e milhares pelos modernos e letais aviões da RAF, por tanques e artilharia sofisticada. Do lado germânico, cavalos e homens se amontoam nas valas e buracos das bombas, quando não são destroçados e espalhados por elas.

O princípio de tudo é o patriotismo, a defesa intransigente da nação, como se a existência individual não pudesse prescindir à estatal. O ser é determinado por onde você nasce ou vive, as cores da bandeira, o brasão nacional, o rei e seu governo (à época do evento), a glória e integridade pátrias. A recusa significa covardia e desonra, enquanto o prestígio está a serviço do país, mesmo se significar a morte e uma condecoração póstuma; e a sobrevivência garante ao “morto” a perpetuação do luto, angústia e desgosto tal qual uma pena capital em vida. Por isto, os mantras cívicos invocam sempre para a repetição de um amor e dedicação unilateral; o culto a fórceps, a subordinação a ferros... E a liberdade propalada é o “mote” para a escravidão.

Quando vejo as pessoas a brigar, segregar e estigmatizar conterrâneos que desconfiam das intenções de governos e políticos, sejam eles quais forem (e não vale citar os casos “raros”, pois esses nunca chegarão ao “verdadeiro poder”), e se debruçam em promessas e discursos nitidamente velhacos e patifes, algo de muito podre está a corroer a consciência e a suposta racionalidade. Por falar em racionalidade, as guerras de maneira geral, e a 1ª Grande Guerra em especial, derrubou o iluminismo e o racionalismo de várias gerações, e, por si só, já seria suficiente para desancar de uma vez as raízes das “luzes”, apontando-a como fraude e embuste. Afinal, se o homem é essencialmente racional, qual a lógica em promover (e, pior, defender cegamente) massacres, torturas e devastação em nome da razão? E fabricar mortos aos borbotões?

Remarque não explica a guerra, muito menos está preocupado em justificá-la, mas levantar a reflexão sobre a própria condição humana e sua capacidade de produzir o mal em níveis e proporções heterogêneas, contudo, incessante. O homem é mal, aponta, e o ódio ao inimigo não está simplesmente no instinto de viver, mas de destruir. A distância favorece a indiferença, mas quando ela se torna próxima, seja dos correligionários ou não, o impacto da vida esvair-se é doloroso e antinatural. Em dado momento, o protagonista, ilhado em uma cratera em meio ao detonar de granadas e bombas e o ribombar das metralhadoras, se depara com a visita de um soldado francês; ele desfere algumas facadas e o inimigo agoniza mortalmente. Enquanto ali, a ouvir o respirar aflito e os gemidos torturantes, o vê como a si mesmo, um homem comum, com mulher, filhos, lar, trabalho, uma vida igual à sua. Tenta ajudá-lo, sem sucesso. Tem remorsos por feri-lo (não consegue, porém, “consumar o seu feito”); jura gastar a sua existência para honrar aquele inimigo, assegura-se de saber o máximo sobre ele: nome, profissão, família, etc, a partir de dados e fotos da carteira. Após sobreviver, e passarem-se alguns dias, sequer se lembra do soldado, e abandona qualquer tentativa de cumprir as promessas feitas no covil. O remorso faz parte da história, esquecida e longínqua, e as lembranças não têm lugar na memória, na alma, na inconsciência do dever cumprido, seja lá o que isso represente.

Remarque escreve de maneira fluída, onde as descrições de eventos, lugares e pessoas é minuciosa, disseca as angústias, medos, desejos e o artificialismo nas trincheiras e descampados, sem deixar de pontuar trechos lúdicos e outros bucólicos. Pode-se encontrar até movimentos poéticos, se o leitor tiver a devida atenção.

O livro é impactante, daqueles difíceis de esquecer. O senão, a meu ver, é o final. Apesar de condizente com a narrativa, eu preferiria dar-lhe um aspecto mais, digamos, indefinido e, quem sabe, otimista. Contudo, em nada diminui ou anula o valor da obra.

Um ponto a se considerar, e me levou a refletir, é quanto a perceptível ausência de elementos metafísicos. Talvez, porque a guerra é dos homens, e a eles apenas deve ser imputada, jamais a Deus. Talvez, porque Remarque considera o homem abandonado por Deus e, como tal, não poderia invocá-lo a seu favor. Talvez, porque a guerra seja o inferno profetizado, seus atores condenados, e nada possa mais ser reparado. O fato é que, enquanto o homem se perder em si mesmo, achará apenas mais de si, e isso, na maioria das vezes, significa a batalha inglória e sem fim.

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Avaliação: (****)

Título: Nada de novo no front

Autor: Erich Maria Remarque

Editora: L&PM

Páginas: 208

Sinopse: “Aos dezoito anos de idade, Erich Maria Remarque (1898-1970) conheceu as trincheiras alemãs da Primeira Guerra Mundial. Foi ferido em três ocasiões. Saiu do conflito profundamente marcado e perplexo com a crueldade da guerra. Durante a década de 20, enfrentava a insônia carregada de fantasmas tomando notas sobre os horrores que viu e viveu no front. Os rascunhos formavam o núcleo de um romance. Publicado em livro no ano de 1929, "Nada de novo no front" firmou uma posição radicalmente pacifista em um mundo que ainda via a guerra como uma alternativa política e determinou o perfil antibelicista que habita a literatura ocidental até hoje.”

Nota: Texto publicado originalmente na Revista Bulunga