Estou a ler “Confissões” de Agostinho de Hipona [1], e, vez ou outra, me deparo com algumas afirmações contraditórias do autor. Com isso não quero desqualificar a obra, nem sou louco para tanto. O livro é mais do que bom, é ótimo! Porém contaminado pela idéia extrabíblica do livre-arbítrio; ou a tentativa de defender Deus dos ataques inimigos, daqueles que querem desacreditá-lo por causa da existência do mal; ou ainda pelos que insistem em manter seus “esquemas” conceituais e doutrinários a todo custo; ele diz: "Pois eu não sabia que o mal é apenas privação do bem, privação esta que chega ao nada absoluto"[2].
Esta última afirmação não me convenceu. O mal não pode ser o nada absoluto, nem o nada absoluto resultar num mal absoluto. O "nada" nada pode criar, nem dele resultar efeito algum, sendo causa de qualquer coisa, mesmo que um “nada” maior ou menor do que nada. Ele é o que é: nada; e mais nada.
Da mesma forma, dizer que o mal é a privação do bem, implica em que ele, assim como o bem, pode ser autocriado e existir fortuitamente. Acontece que se o bem é proveniente de Deus, o mal é proveniente do quê? Da ausência de Deus? Mas estaria Deus ausente de algum lugar? Poderia haver algum espaço onde Ele não esteja presente? Onde o Seu conhecimento não alcance? Haveria algo possível de existir contrário à mente divina? Uma espécie de "energia" ou "força" que subsista alheia a Ele? Pode haver algum recôndito na criação onde Deus deixou-o à própria sorte, abandonando a pessoalidade com que não somente criou mas sustenta todas as coisas, para a impessoalidade de negligenciá-la ou omitir-se [deísmo]? É possível haver algo que se sustente por vontade própria?
A Bíblia afirma que tudo, absolutamente tudo, é sustentado pelo poder da palavra, a qual é Cristo. Por Ele tudo foi criado, existe e subsiste [Cl 1.15-17; Hb 11.3]. Portanto, parece-me ilógica essa assertiva, a menos que ela tenha um cunho simbólico, figurado, seja uma metáfora; mas para que isso acontecesse, não se poderia usar os termos “mal” e “bem” como Agostinho os usa. Os termos utilizados são os que conhecemos como definidos semanticamente.
Os ímpios foram criados para o mal, a fim de exercê-lo e praticá-lo, e por isso, e por desempenhá-lo com especial veneração, serão irremediavelmente condenados [Pv 16.4]. Se foram criados com esse propósito, o mal, que eles praticam, também. Logo Deus criou-os objetiva e determinadamente, cumprindo os Seus santos e perfeitos desígnios.
Dizer que o mal é a ausência absoluta do bem, e de que isso seja o nada absoluto, representa dizer que ele não existe, nem é praticado, nem produz os efeitos pelos quais o Senhor o criou. Seria apenas uma ilusão, o produto da mente, como algumas religiões garantem? Ou, de alguma forma, Deus foi impedido ou incapaz de manter o bem na esfera em que o mal atua? O que levaria à perigosa e maligna idéia de que Deus pode ter sido pego de surpresa, ou não ser o Todo-Poderoso como a Escritura assevera. Em muitos aspectos, vejo sérios problemas à manutenção da doutrina da soberania, onisciência, onipotência, perfeição e santidade divinas quando o mal parece ser colocado em uma categoria “extra” Deus. Por mais que os argumentos sejam bem construídos, agradáveis, e revestidos de certa nobreza metafísica, ainda assim, se não estiverem em harmonia com o texto bíblico, são reprováveis.
Agostinho, em sua doxologia e amor a Deus [há de se entender que o nosso amor ainda é imperfeito, e somente será perfeito no glorioso dia do Senhor], costura uma doutrina que fica aquém da Escritura, com o nítido objetivo de salvaguardar Deus da criação do mal e, para isso, utilizou-se de um raciocínio falacioso. Entenda, não estou a anular nem inabilitar a sua obra. Reconheço-o como instrumento divino na construção dos fundamentos teológicos cristãos, em sua sistematização, na proclamação do Evangelho e defesa da fé. Por ele, Deus operou na Igreja revelando verdades que estavam enevoadas ou esquecidas; porém, em relação ao mal, a despeito da inspiração e sublimidade dos versos, não passa de incompreensão e interpretação deturpada da Bíblia.
Dizer que o mal é a ausência absoluta do bem, e de que isso seja o nada absoluto, representa dizer que ele não existe, nem é praticado, nem produz os efeitos pelos quais o Senhor o criou. Seria apenas uma ilusão, o produto da mente, como algumas religiões garantem? Ou, de alguma forma, Deus foi impedido ou incapaz de manter o bem na esfera em que o mal atua? O que levaria à perigosa e maligna idéia de que Deus pode ter sido pego de surpresa, ou não ser o Todo-Poderoso como a Escritura assevera. Em muitos aspectos, vejo sérios problemas à manutenção da doutrina da soberania, onisciência, onipotência, perfeição e santidade divinas quando o mal parece ser colocado em uma categoria “extra” Deus. Por mais que os argumentos sejam bem construídos, agradáveis, e revestidos de certa nobreza metafísica, ainda assim, se não estiverem em harmonia com o texto bíblico, são reprováveis.
Agostinho, em sua doxologia e amor a Deus [há de se entender que o nosso amor ainda é imperfeito, e somente será perfeito no glorioso dia do Senhor], costura uma doutrina que fica aquém da Escritura, com o nítido objetivo de salvaguardar Deus da criação do mal e, para isso, utilizou-se de um raciocínio falacioso. Entenda, não estou a anular nem inabilitar a sua obra. Reconheço-o como instrumento divino na construção dos fundamentos teológicos cristãos, em sua sistematização, na proclamação do Evangelho e defesa da fé. Por ele, Deus operou na Igreja revelando verdades que estavam enevoadas ou esquecidas; porém, em relação ao mal, a despeito da inspiração e sublimidade dos versos, não passa de incompreensão e interpretação deturpada da Bíblia.
Quer dizer que estou a rejeitar a sua obra? Longe disso. Ao contrário. Quero apenas garantir que em meio a todos os seus acertos, o erro não seja confundido com eles; não seja de alguma forma diluído na verdade, passando-se por ela.
À medida que a leitura avança, percebemos que a vida de Agostinho está tão intrinsecamente ligada a Deus que não é possível discorrer sobre qualquer ponto sem reportá-la ao senhorio divino.
Por exemplo, quanto à natureza caída do homem, que se inclina, almeja, deseja e se deleita na prática do mal, do pecado; em relação à depravação do homem e sua responsabilidade perante Deus, concordo em gênero e número com o que diz, estando plenamente em conformidade com a revelação especial.
Para falar do Senhor como o Ser infinito e eterno, ele diz; “'Tu, porém, és o mesmo eternamente', e todas as coisas de amanhã e do futuro, de ontem e do passado, hoje as farás, hoje as fizeste!"[3], ecoando o ensino do Salmo 102.27 e Hebreus 1.12.
Ou ainda: "Alguém pode ser autor de sua própria criação?"[4]; ao referir-se à criatura, mostrando a impossibilidade de qualquer coisa existir aparte de Deus, o qual sendo não-criado é o único autor de tudo o que foi criado.
São fragmentos que espelham posições bíblicas, e das quais nenhum ortodoxo rejeitará.
Mas, voltando à questão do bem e do mal, parece-me que a idéia agostiniana se resume à presença e ausência de Deus, da ação de Deus e da ação do "não-Deus" para que o bem e o mal existam, respectivamente. Contudo, ele mesmo afirma que não há universo possível para contê-lo [Deus], mostrando a sua infinitude. Então, como o mal surgiu a partir da não-presença do Deus infinito na criação finita?
Ao distinguir entre tudo e o pecado, como este não estando incluído na categoria "tudo" [o que considero um grave erro doutrinário e lógico], Agostinho mostra-se contraditório ao dizer: "Senhor, meu Deus, ordenador e criador de tudo o que existe na natureza, com exceção do pecado, de que és apenas regularizador"[5].
Ao assumir que Deus não criou o pecado [e por conseguinte o mal], sendo apenas seu regulador, coordenador, estaria agindo sobre quais leis? As Suas ou de outrem? E como ficaria a citação de que Deus criou "tudo o que existe na natureza", mas o "tudo" pode significar alguma coisa rotulada de "não-tudo", mesmo que seja o pecado? Implicando, na verdade, que Deus não é o único Criador perfeito e santo, havendo a possibilidade de outro agente criativo? Estaríamos diante da idéia de um "não-Deus" em alguma parte da criação?
De várias formas, Agostinho tenta, inexplicavelmente, não-explicar o explicável, como um caçador preso em sua própria armadilha.
Nota: 1-"Confissões", de Santo Agostinho - Editora Paulus
2-Idem - pg 75
3- " - pg 26-27
4- " - pg 26
5- " - pg 32