10 junho 2025

A Ilha do Tesouro ou Construindo Jackyll & Hyde




Jorge F. Isah


Depois de algumas décadas, refiz a leitura de “A Ilha do Tesouro”, meio que despretensiosamente, já que sempre considerei o livro infanto-juvenil (talvez por tê-lo lido umas duas ou três vezes até os 14 ou 15 anos). É um livro que prendeu-me a atenção pela volta à nostalgia, dos dias em que me imaginava um aventureiro corajoso e destemido em um mundo perigoso, mas completamente desconhecido. Devo tê-lo lido em dois ou três dias, nos momentos disponíveis entre o trabalho, os estudos e os afazeres familiares; o que acabava me deixando ansioso para uma folguinha e a volta à narrativa de Stevenson. 

Como curiosidade, vale lembrar que a ideia inicial de R. L. Stevenson era escrever uma história para o seu sobrinho (alguns julgam ser o enteado), algo que aguçasse a imaginação e fantasia do jovem; publicada inicialmente na forma de capítulos em uma revista da época, surgiu na forma de livro em 1883. 

A grande importância do livro, além do próprio enredo, foi trazer para o gênero (que não existia como tal) elementos que o caracterizariam depois. O mote de tudo é a busca pelo tesouro do “Capitão Flint”, um pirata terrível que supostamente havia enterrado uma grande fortuna. O motim dos tripulantes e a luta pela sobrevivência, enquanto a corrida ao baú continuava, são o pano de fundo para o desenrolar da estória. 

De um lado temos o “bem” nas pessoas do jovem Jim Hawkins (o narrador, em primeira pessoa), Capitão Smollett, Dr. Livesey e o Lorde Trelawney; em outro lado temos Hands, Papy, Arrow e o carismático, mas não menos temido, Silver. Ele é um caso à parte. E será dele a maior parte deste comentário. 

Situemos “A Ilha do Tesouro”, escrito cinco anos antes de “O Estranho Caso do Dr. Jackyll e o Sr. Hyde”, também conhecido como “O médico e o Monstro”. Encontramos na figura do cozinheiro Long John Silver (um disfarce para encobrir as suas reais intenções) características, ainda que preliminares, a comporem a personalidade central de Jackyll e Hyde, os conflitos entre o bem e o mal. É claro que nada disso é traçado de forma límpida, o tal do preto no branco, como se fossem meros espectros antagônicos, sem conflitos interiores, dúvidas e muito pouca certeza. Não sou dualista; entretanto, entendo que existe um conflito em curso na vida humana, ora pendendo para um lado, ora outro,  as vezes entrelaçados; ainda que boa parte das pessoas esteja em lados opostos, aparentemente, numa guerra de interesses. 

Silver é uma mente culta, de intelecto privilegiado, de retórica apurada, mestre tático, ardiloso, sedutor, capaz de convencer a pulga de que é o cachorro. Em contrapartida, é uma mente atormentada, capaz de cometer atrocidades e crimes sem um leve pestanejar, sem qualquer arrependimento ou compaixão. Da mesma forma que transparece eloquência, e uma boa dose de submissão aos seus empregadores, se o fim é apossar-se do tesouro de Flint, a fúria, a qualquer um que atravesse o  caminho, o tornará sanguinário e cruel. Nem mesmo o carinho e interesse quase paternal pelo jovem Jim (de certa forma, ainda que momentâneo, protegendo e ensinando-o os segredos da navegação) o impedirá de afastá-lo como um mero obstáculo a ser transposto até a posse do tesouro. 


Estando na meia-idade, e tendo uma perna-de-pau, sua força física, aliada a uma violência natural (sem nos esquecer da sua sagacidade), torna-o em um oponente quase imbatível. O temor pelo qual perpassam inimigos e aliados é completamente justificado pelo corpo e mente diabólicos de Silver. A luta dele é pela sobrevivência, mesmo que decida-se por um lado, e depois por outro, os interesses são os de preservar-se a todo custo, ainda que resulte em dupla traição: aos antigos inimigos feitos novos amigos, e aos antigos amigos em inimigos. 

Existe alguma semelhança na construção de Silver e Jackyll/Hyde, numa luta ferrenha entre as virtudes e os vícios, travadas na alma do mesmo homem. 

Na teologia cristã, e na vida de cristãos conversos, essa batalha se trava no âmago, em que, transformados e regenerados por Cristo, ainda se vive com a natureza pecaminosa. Em vários textos bíblicos temo-la como a “luta entre o espírito e a carne”. Essa é uma realidade vivenciada em maior grau pelos cristãos, cientes do que seja o bem e o mal, o moral e imoral, vida e morte. Mas mesmo os não-cristãos têm em si a centelha do Imago Dei; e trava-se a mesma disputa, por causa dos atributos divinos transmitidos ao homem quando da sua criação. 

Por que toquei nesse ponto? Porque a boa literatura não prescinde a realidade, muito menos a realidade moral, da qual Silver e Jackyll/Hyde são exemplos do que somos, fomos ou seremos, em algum momento e alguma proporção. Ainda que a crueldade de Silver e Hyde não aflore em nossos atos, a certeza é de que, sem os aspectos da moral divina a nos frear, seríamos tão ou mais sanguinários que eles. 

Se levarmos em consideração que “O Médico e o Monstro” é uma aventura pela loucura, cobiça e depravação de Jackyll, a pretensão de se fazer Deus, como certo personagem do Éden, “A Ilha do Tesouro” não é menos uma aventura pela alma conturbada de Silver do que a caça à riqueza e poder. Por isso, Long John se inscreve no rol dos grandes personagens literários de todos os tempos, como um alerta para vencermos o mal. Por pouco, não pagou por seus atos, debaixo da benevolência do Dr. Livesey e de um acordo interessante a ambos. Fica contudo a imagem de que o homem sem Deus pode resistir ao apelo do mal por algo de divino que ainda reside em seu ser, mas de que, invariavelmente, ele será apenas o que é, um fugitivo do bem a cair nas malhas ou teias dos vícios e pecados. 

Ben Gunn entendeu, à sua maneira, aplicar engenhosamente os princípios morais, negando o que fora, para aliar-se àqueles que o salvariam. Ainda que tenha voltado novamente ao vômito como o cão... tempos depois. Mas vou parar por aqui, senão um comentário pode se tornar um ensaio. E estou longe de escrevê-lo.


__________________ 

Avaliação: (****)

Título: A Ilha do Tesouro

Autor: Robert Louis Stevenson

Editora: L&PM Pocket

No. Páginas: 366



04 junho 2025

Judas, o Obscuro - Thomas Hardy

 




Jorge F. Isah

 

 

Judas é um tipo literário muito próximo de Jó, o personagem bíblico, em suas agruras, aflições e dores. Ao passo em que Jó sofre exatamente por sua fidelidade a Deus, e pelo desejo sincero de retidão e justiça (o que acaba por despertar a maldade objetiva de Satanás), Judas deseja apenas se ver livre das amarras sociais, numa espécie de autonomismo e independência, acreditando que suas decisões cabem apenas e exclusivamente a si mesmo, sem se importar, ou vislumbrar, com as consequências dos seus atos. A liberdade de Judas é pueril e enganadora; e arrasta-o para dentro do “Mal”.

O livro escrito por Thomas Hardy (um entusiasta apaixonado pelas ideias de Darwin) foi escrito em 1895, e carregado do naturalismo em voga, que não deixou de influenciar a literatura. Judas, por mais que tente, ao seu jeito, fugir do destino que lhe é traçado, sucumbe à sua inexorabilidade (referência ao personagem bíblico que traiu Jesus?)¹.

Como não sou de fazer resumo dos livros, também não o farei neste. Apontarei, contudo, o que mais me chamou a atenção, sem fazer spoilers, e sem desestimular o futuro leitor a emprenhar-se nas aventuras e desventuras do protagonista:

1)  Judas tenta “mudar” o seu destino, algo que os naturalistas, e, em especial Hardy, não crê possível. Para ele, Judas será o que é, nascido um pária, morrerá como tal.

2)  Ciente do que lhe espera, Judas apela para um autonomismo impossível, como se pudesse viver no mundo alheio ao mundo, sem que seus atos trouxessem consequências para si e seus queridos. Pouco a pouco, no decorrer da história, parte para a negação de Deus, fazendo do Cristianismo o “bode expiatório” do seu sofrimento. Em uma sociedade cristã, a culpa de todas as convenções e males se deve, portanto, ao Cristianismo, num apelo tresloucado à razão, como sendo-a santa, pura e perfeita; de maneira que, se todos os homens a aplicassem por completo, negando suas crenças e fé, todos seriam felizes. Acaba-se por criar e defender um dualismo “fé x razão” no enredo, o que é, no mínimo, reducionista, simplório.

3)  Hardy não escreveu uma única linha em que não destilasse a sua aversão ao Cristianismo, se não explicitamente (como em muitos diálogos e pensamentos), deixou-os subliminarmente evocados em ações e comportamentos. Porém, o Cristianismo descrito pelo autor é o que podemos chamar de “cristianismo secular” ou “nominal”, onde a aparência cristã é utilizada para justificar o farisaísmo e a hipocrisia do homem. Veja bem, farisaísmo e hipocrisia não são, nem de longe, aspectos do verdadeiro Cristianismo, mas a “máscara” daqueles que o próprio Senhor Jesus denunciou a seu tempo. Talvez, por isso mesmo, o autor escolheu o nome “Judas” para o seu protagonista que, mesmo vivendo por mais de três ano na companhia do Cristo, não se furtou a traí-lo.

4)  Ao fugir das convenções e de aspectos morais que regulavam o convívio social, se viu pagando um preço alto, vivendo como um “cigano”, juntamente com a sua família. O capricho de não querer se enquadrar ao escopo da sociedade colocou-o na situação mais miserável que o enquadramento social lhe destinaria. Em sua rebeldia juvenil e ingênua, acreditava possível passar ileso, sem traumas, quebrando regras. Judas não se considera responsável por si, mas “a chorar as pitangas” contra  o inimigo a destruir-lhe a felicidade: a sociedade; enquanto aplica-se em cavar para si e os seus o caminho de ruina. Este é um aspecto, em que o mal dentro do homem procura uma versão de mal fora de si, e o distrai e afasta do julgamento correto, da seriedade correta, da conclusão correta, onde o relativismo é o tiro certeiro no vazio, e o atirador se convence de ter acertado o alvo, como um Quixote a lutar com monstros e demônios apenas na imaginação.

5)  Outro aspecto, fruto dessa visão vitimista e malévola, inegável em Judas e sua esposa, Sue, é o orgulho e presunção de, ao não se curvarem aos hábitos da sua época, serem superiores aos seus concidadãos. A prova encontra-se nas inúmeras vezes em que exaltavam suas inteligências, raciocínios e um apelo à razão como a essência de todas as virtudes; por conseguinte, sendo os seus detentores, consideravam-se também especiais, enquanto eram apenas jactantes, desdenhosos e antipáticos.

6)  Nem mesmo o sacrifício pessoal, como o do prof. Richard, parece um ato isento de soberba, de autoexaltação obstinada, dominada pela “pureza” racional.

7)  Entretanto, não há como não se compadecer da “má-sorte” e os rumos que suas vidas tomaram. Ao ponto de, sem qualquer esperança, sobrar-lhes a loucura e o definhamento.

Judas, o obscuro, é um livro pessimista, áspero, quase inóspito. Mesmo nos momentos mais ternos e belos, a angústia, dúvidas e desespero estão entranhadas nas palavras, sentimentos e reações. Não é um livro fácil de ler, pois os lampejos de esperança são quase imediatamente dizimados por uma realidade sufocante e cruel, pela teimosia de não mudar ou ceder, e a incapacidade de tornar à vida, de encará-la de maneira menos fatalista, onde a liberdade individual, via de regra, é quase inexistente diante do apelo opressivo e coercitivo do destino.

Entretanto, é possível encontrar momentos de ternura, elegância, acabando por tornar verossímil os personagens e o enredo como um todo.

 A linguagem é simples, sem rebuscamentos. A narrativa parece se arrastar um pouco, especialmente na primeira metade do livro. Contudo, em sua bissecção final, ela flui sem delongas.

Judas, o obscuro é um bom livro? Sim, sem dúvidas. Para estar no rol dos melhores de todos os tempos, como comumente é citado nas grandes listas? Tenho dúvidas. Talvez, precise ruminar ainda um bom tempo a história, e, quem sabe, fazer uma nova leitura, no futuro. Certo é que, tirando a defesa “intransigente” do racionalismo e de um certo determinismo naturalista, a “aversão” ao Cristianismo (criando um estereótipo, uma espécie de espantalho), o livro se sai bem.

_______________________________ 

Notas: 1- Pode-se levantar a questão de que Judas traiu a si e sua família, como alguns apontam, mas não vejo fundamento. Por outro lado, é possível que Hardy tenha se utilizado do personagem Judas, do Novo Testamento, para dizer o quanto o caminho daquele era inevitalmente lúgubre, e, de alguma maneira, não se fez a devida justiça a ele; sua culpa não era inerente mas advinda do contexto social no qual vivia. Alguns teólogos e teóricos liberais concordariam, se não no todo em parte, com essa hipótese. 

_______________________________  

Avaliação: (***)

Autor: Thomas Hardy

Editora: Abril Cultural

Páginas: 461